Chamada para submissões de artigos, resenhas e colaborações para as demais seções da revista - Dossiê Temático: Artes interativas, interações artísticas

07-06-2024

No conhecido livro "Palavras-Chave", Raymond Williams (2007) apresenta um interessante mapeamento conceitual das valências da noção de “arte”. Lembra que o termo, desde o século XIII, poderia referir-se a qualquer tipo de habilidade, emprego que permanece vigente até a atualidade. Os sentidos específicos de arte, entretanto, oscilaram ao longo do tempo: no período medieval as “artes liberais” compreendiam a gramática, a lógica, a retórica, a aritmética, a geometria, a música e a astronomia; a partir do final do séc. XVII o termo passou a referir-se à pintura, desenho, gravura e escultura e, na sequência, às “belas artes”; em meados do século XIX, com a distinção moderna entre ciência e arte, o artista passou a distinguir-se do cientista mas também do artesão, dos trabalhadores técnicos, industriais, operários e, em aproximação com a vanguarda, esforçava-se por distanciar-se dos burgueses.

Em perspectiva semelhante, o antropólogo e crítico literário James Clifford (1994) argumenta que uma análise da história da antropologia e também da arte moderna evidencia acesso privilegiado às transformações da subjetividade ocidental bem como à mutação de práticas institucionais, epistemológicas e disciplinares (Clifford, 1994; 2002). Seu conhecido estudo do “surrealismo etnográfico” empregava um sentido expandido do termo para englobar uma aproximação entre artistas, estudiosos e intelectuais diversos, dedicados à análise e produção da arte e da cultura com especial interesse na alteridade, em práticas, objetos e artefatos “exóticos” e também em certo “exotismo do familiar”.

Diversas outras publicações apontam para relações entre arte e alteridade, com destaque para as críticas ao caráter fundamentalmente moderno do conhecimento sobre práticas e produtos artísticos oriundos de contextos não ocidentais promovidas pela antropologia norte-americana a partir dos anos 1970 (Clifford e Marcus, 1986; Clifford, 2002; Marcus e Myers, 1995; Marcus, 2004; Foster, 1995). Tais discussões conferiram novos impulsos à produção audiovisual (Mead, Bateson, 1942; Rouch, 2003) e precipitaram viradas literárias (Geertz, 2009; Marcus e Cushman, 1982), performativas (Turner, 1982, 1986; Bauman, 2014; Bauman e Briggs, 1990; Denzin, 2003); multissensoriais (Feld, 2013; Elias 2019; Bezerra et. al., 2023) e curatoriais (Sansi, 2020) nas Ciências Humanas.

Ainda que figuras proeminentes da antropologia contemporânea como Tim Ingold (2016) tenham proposto abandonar a etnografia, devido a seu compromisso documental, a tendência da antropologia a refletir sobre as interações e a mutualidade de interesses entre as(os) próprias(os) pesquisadoras(es) e sujeitos de pesquisa oferece um novo caminho, mais experimental e relacional, de se produzir conhecimento sobre as artes a partir das Ciências Humanas. Em recente artigo voltado a refletir sobre “experimentações etnográficas” no âmbito da educação, Graziele Ramos Schweig (2023) propõe abordar a colaboração com os sujeitos da pesquisa como “experiência intersubjetiva" que tem efeito criativo sobre a relação entre a bibliografia e o material produzido em campo; ou ainda como alargamento das possibilidades de registrar dados de pesquisa por meio de grafismos, imagens, desenhos e suportes multissensoriais. Destaca, portanto, que a interação com sujeitos de pesquisa também deve se configurar “como uma maneira de tecer relações e de participar na confecção de mundos” (Schweig, 2023, p.19). A autora, que em seu texto investe na proposta do modo operativo AND (Eugênio, Salgado, 2018) em contexto escolar, registra, como tendências nestes campos, práticas interativas que envolvem o bordado (Pérez-Bustos; Choconta-Piraquive, 2018), projetar artefatos em colaboração (Ingold; Gatt, 2013; Estalella; Criado, 2018), desenhar (Kuschnir, 2016) ou dançar (Dumit, 2019).

O presente dossiê ARTES INTERATIVAS, INTERAÇÕES ARTÍSTICAS objetiva, portanto, reverberar tais reflexões e acolher propostas (i) de estudos da arte envolvendo artistas, diferentes mídias, suportes e linguagens, processos criativos e/ou articulações institucionais; (ii) reflexões e propostas de colaborações e experimentações interdisciplinares envolvendo arte, antropologia e outras áreas das Ciências Humanas em suas múltiplas possibilidades, fluxos e intercâmbios; (iii) apropriações e usos de abordagens etnográficas e/ou participativas feitas por artistas, cientistas, educadores e pesquisadores das Ciências Humanas.

Referências mencionadas:

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Organizadores:

Cauê Krüger
Doutor em Sociologia e Antropologia - UFRJ
Coordenador da especialização em Antropologia Cultural - PUCPR
Professor do curso de Licenciatura em Ciências Sociais - PUCPR
http://lattes.cnpq.br/1114691391456508
https://pucpr.academia.edu/CaueKruger

Paulo Ricardo Müller
Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH)

Prazo: 15/08/2024