Paulo Freire e Educação Estético-Ambiental: o ensino de Química a partir do trabalho no tambo de leite

Paulo Freire and Aesthetic-Environmental Education: teaching Chemistry through work in the milking shed

Paulo Freire y Educación Estético-Ambiental: enseñar Química a través del trabajo en el establo de ordeño

 

André de Azambuja Maraschin (andremaraschin@hotmail.com)

Instituto Federal Sul-rio-grandense campus Bagé, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-2153-8024

 

Renata Hernandez Lindemann (renatalindemann@unipampa.edu.br)

Universidade Federal do Pampa campus Bagé, Brasil

https://orcid.org/0000-0001-5932-7807

 

 

Resumo

O presente artigo apresenta uma intervenção de ensino de Química na educação básica, elaborada a partir de adaptações da Investigação Temática e conceitos de Educação Estético-Ambiental. Esses dois referenciais permitiram diálogar sobre a rotina e experiências de vida no campo. O trabalho ocorreu via abordagem temática e os estudantes perceberam uma situação codificada em suas vivências: a relação entre leite e dinheiro. Com isso, objetivou-se problematizar e dialogar sobre a importância da temática leite e seu beneficiamento com estudantes do terceiro ano do ensino médio, considerando seus saberes adquiridos culturalmente e suas percepções sobre o contexto local. A metodologia adotada configurou-se como exploratória, de análise qualitativa. Adotou-se uma concepção construtivista na intervenção de ensino, assumindo o caráter dialógico e problematizador. A proposta indicou potencialidades da temática leite para serem trabalhadas no ensino de Química de nível médio, possibilitando maior autonomia e participação dos sujeitos no processo formativo.

Palavras-chave: Abordagem Temática Freireana; Pesquisa de intervenção pedagógica; Programa de Residência Pedagógica.

 

Abstract

The present article presents an intervention of teaching of Chemistry in the basic education, elaborated from adaptations of the Thematic Investigation and concepts of Aesthetic-Environmental Education. These two references allowed us to discuss the routine and experiences of life in the countryside. The work took place via a thematic approach and the students perceived a situation encoded in their experiences: the relationship between milk and money. With this, the aim was to problematize and dialogue the importance of the theme milk and its improvement with third year students from high school, considering their acquired knowledge culturally and their perceptions of the local context. The adopted methodology was configured as exploratory, of qualitative analysis. A constructivist conception was adopted in the teaching intervention, assuming the dialogical and problematizing character. The proposal indicated potentialities of the Milk theme to be worked on in the teaching of high school chemistry, allowing greater autonomy and participation of the subjects in the training process.

Keywords: Freirean Thematic Approach; Pedagogical intervention research; Pedagogical Residence Program.

 

Resumen

Este artículo presenta una intervención en la enseñanza de la Química en la educación básica, basada en adaptaciones de Investigación Temática y conceptos de Educación Estético-Ambiental. Estos dos referentes nos permitieron discutir la rutina y las experiencias de vida en el campo. El trabajo se desarrolló a través de un enfoque temático y los estudiantes percibieron una situación codificada en sus vivencias: la relación entre la leche y el dinero. Con esto, el objetivo fue problematizar y discutir la importancia del tema leche y su mejora con los estudiantes de tercer año en el nivel secundario, considerando sus conocimientos adquiridos culturalmente y sus percepciones sobre el contexto local. La metodología adoptada se configuró como análisis exploratorio cualitativo. Se adoptó una concepción constructivista en la intervención de la enseñanza, asumiendo un carácter dialógico y problematizador. La propuesta señaló potencialidades del tema Leche para trabajar en la enseñanza de la Química de nivel secundario, posibilitando mayor autonomía y participación de los sujetos en el proceso de formación.

Palabras-clave: Enfoque Temático Freireano; Investigación de intervención pedagógica; Programa de Residência Pedagógica.

 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo vincula-se a uma pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em Química, do curso de Química-Licenciatura, da Universidade Federal do Pampa campus Bagé. Os referenciais teóricos adotados relacionam-se com os pressupostos do educador Paulo Freire e de Educação Estético-Ambiental (EEA), buscando o trabalho pedagógico via Abordagem Temática (AT). A AT se apresenta como uma alternativa à organização curricular pautada por conceitos, conhecida como Abordagem Conceitual (AC).

Segundo Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2018), a AC tem como foco os conceitos científicos, que acabam por selecionar os conteúdos de ensino com fim em si mesmos. Nessa lógica, os currículos e práticas pedagógicas engessadas e acríticas se fortalecem, pois muitas vezes mantém-se o caráter de reprodução conceitual, sem estabelecer relações com a realidade. Já a AT se pauta em temas com potencial para identificar e problematizar situações não percebidas ou pouco exploradas, estruturando conceitos a serem trabalhados (Delizoicov, Angotti e Pernambuco, 2018).

As potencialidades dialógicas e problematizadoras em Paulo Freire (Freire, 2019), oportunizam percepções mais críticas a respeito da realidade. Com isso, a proposta Freireana busca vislumbrar outras possibilidades de pensamento e ação, em viés crítico, para transformar concepções e posturas frente a problemas locais que passam a ser identificados. Já a proposta de EEA, para além do olhar crítico sobre a realidade, busca fortalecer as relações que o sujeito possui com aquele ambiente, valorizando sentimentos e emoções (Silveira; Freitas; Estévez, 2016), que não se desvinculam da ideia ontológica de sujeito histórico apresentada em Freire (2019).

Assim sendo, assumiu-se o objetivo de problematizar e dialogar sobre a importância da temática leite e seu beneficiamento com estudantes do terceiro ano do ensino médio, considerando seus saberes adquiridos culturalmente e suas percepções sobre o contexto local. Esse movimento se justifica pela importância à formação docente e discente, haja vista que nesses processos, as escolas podem ser concebidas como um lugar de formação cidadã ativa, de desenvolvimento da criticidade e democracia. A escola é entendida por Gadotti (2007) como um lugar de esperança e luta, com relações e representações sociais que contribuem para a transformação social, por meio da criticidade e criatividade.

Tais argumentos levam em conta a participação do estudante no próprio processo de ensino e aprendizagem, considerando-o como um ser histórico, produtor de cultura e capaz de modificar realidades. Além disso, o autor sinaliza que quando o professor problematiza e atua mediando o conhecimento, passa a assumir um papel de organizador da aprendizagem e construtor de sentidos, ensinando e aprendendo. Nas palavras de Freire (2019, p. 95), “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

Por isso, a escola precisa estimular práticas pedagógicas que ressignificam conceitos e estimulam o sentimento de pertencimento dentro dos processos formativos. Conforme mencionado, baseados nessas ideias, pautamo-nos na Abordagem Temática Freireana (ATF) e concepções de EEA, para planejar e executar a proposta.

 

A ATF E A EEA

Foram considerados princípios relacionados à ATF e concepções de EEA. Para Freire (2019), o ato de educar exige compromisso para com o outro, abertura ao diálogo e disposição para estabelecer relações interpessoais. Tais aspectos são desenvolvidos na escola, espaço de diálogos que pode levar os sujeitos à transformação de pensamentos e atitudes, pois novas perspectivas passam a ser conhecidas, compreendidas e praticadas.

Por consequência, esse movimento tende a possibilitar a quebra de um silenciamento, denominado “cultura do silêncio” (Freire, 2019), em que as vozes se calam, sem que haja a possibilidade de os sujeitos decidirem sobre suas vidas, porque não percebem os problemas em volta. Para tanto, quando a educação assume práticas que estimulam o pensamento, a observação atenta e crítica da realidade, bem como a busca pela resolução dos problemas da sociedade, constitui-se como uma via para romper com essa cultura. Por isso, Freire (2019) considera o diálogo como elemento fundamental, capaz de aproximar diferentes crenças e visões de mundo, evidenciando assim a capacidade delas em contribuir umas com as outras.

Para que isso ocorra, o diálogo não deve ser fechado ou limitado em suas falas, tampouco sustentar ideias hegemônicas e falsas concepções sobre o conhecimento. Freire (2019, p. 109) afirma que “[...] dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens” e considera que “[...] ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais”. Somado ao diálogo, a problematização também é importante no fazer educacional e na busca pelo rompimento de práticas bancárias, as quais o educador deposita informações nos educandos e estes recebem-nas sem refleti-las.

Gadotti (2007) considera a escola intimamente ligada à sociedade, sendo concomitantemente, um fator e um produto dela mesma. Portanto, problematizar e pensar criticamente esses espaços e suas contradições sociais, leva ao enfrentamento dos problemas reais. A investigação e identificação de temas emergem da necessidade de construção de um currículo mais humano, que considere a formação integral dos sujeitos. Para Schneider et al. (2018), um currículo pautado pela abordagem de temas reais rompe com a perspectiva tradicional de ensino. Ou seja, desmaterializar estruturas engessadas e dar mais flexibilidade para os significados que os estudantes carregam.

Em outras palavras, trabalhar a partir de temáticas no ensino permite atingir caminhos muitas vezes não explorados na lógica disciplinar, desde que estes tenham significado para o educando. Por isso, considerou-se uma temática escolhida junto aos estudantes, daquela realidade, permitindo a inserção deles no processo de ensino e aprendizagem a partir dos seus saberes. Aproximamo-nos da Investigação Temática (IT) (Freire, 2019), sistematizada em cinco etapas para a educação formal (Delizoicov, 1991):

O levantamento preliminar consiste na aproximação com a localidade a ser estudada, buscando informações sobre ela; a análise das situações e escolha das codificações foca nas contradições do cotidiano, que são codificadas; os diálogos descodificadores retomam as codificações junto à comunidade, obtendo Temas Geradores (TG), trabalhados nas próximas etapas para superar as situações não percebidas pelos sujeitos; na redução temática, os especialistas identificam e selecionam, a partir das descodificações, conhecimentos sistematizados para auxiliarem na compreensão dos temas, elaborando o programa a ser desenvolvido; o trabalho em sala de aula ocorre a partir do programa, bem como, materiais didáticos preparados.

A ATF é reconhecida como possibilidade para superar visões limitadas sobre a própria realidade, por meio do diálogo e problematização em processos investigativos, que encontram situações contraditórias não percebidas. Nossa proposta se alicerça em aproximações com as três primeiras etapas da IT, elegendo temáticas significativas do contexto da região da campanha gaúcha. Outros trabalhos, pautados na ATF, também buscam obter TG e caracterizam-se por releituras ou reorganização da IT. São exemplos, os Três Momentos Pedagógicos como estruturantes de currículos (Muenchen, 2010) e a Rede Temática (Silva, 2004).

Acerca da EEA, esta carrega princípios de valorização das experiências e estímulo à apreensão do conhecimento. Silveira, Freitas e Estévez (2016), consideram que a EEA desenvolve atitudes e outras posturas nos sujeitos, frente às relações entre seres vivos e meio ambiente. Em suma, vai além dos limites da sala de aula e das barreiras conceituais, indo ao encontro do núcleo do ser humano, que é composto por sentimentos e emoções. Estévez (2008, p. 21) ratifica que os valores estéticos exercem uma função integradora, pois estão presentes nos fenômenos naturais, sociais e de criação do pensamento, em virtude das relações que se estabelecem entre os homens, com a natureza e sociedade.

Além disso, Silveira, Freitas e Estévez (2016) sinalizam que a EEA está conectada com a nossa base emocional, visto que as emoções são construídas a partir da realidade de cada pessoa. A sensibilização dos acontecimentos à volta também faz parte das ideias propostas por Paulo Freire, pelo estímulo à manifestação dos sujeitos, no intuito de articular vivências e saberes da cultura local aos conhecimentos sistematizados. Ou seja, a ressignificação das rotinas e tarefas, que por vezes já estão automatizadas, possui potencial no contexto escolar para discutir demandas da atualidade.

A EEA reaproxima o sujeito do seu interior e estimula os educandos para que façam leituras e se posicionem criticamente sobre as relações sociais contemporâneas (Dolci, 2014; Rezende et al. 2018). Para Dolci (2014), a EEA tem como pretensão repensar as ações e transformá-las em novas atitudes, pautadas na compreensão da realidade concreta e das relações da vida em sociedade. A autora afirma que a EEA “[...] está presente quando sinto que estou interligada aos sujeitos e às coisas; quando compreendo que pertenço ao lugar onde vivo [...]” (Dolci, 2014, p. 45).

Nesse sentido, a convergência entre Paulo Freire e EEA reconhece o educando enquanto ser histórico e valoriza a formação integral do sujeito, desenvolvida a partir do olhar sensível ao que acontece no dia a dia. São incipientes os trabalhos que realizam aproximações entre os dois referenciais. Cita-se o dossiê “Educación Estético-Ambiental (EEA): Fundamentos, Saberes y Práctica”, de 2022, da Revista Ambiente & Educação.

O trabalho de Oliveira (2022), propõe pensar sobre a EEA como práxis educativa. A autora argumenta que o diálogo, as relações entre os sujeitos e com o mundo, além da consciência do inacabamento, estão em sintonia com elementos presentes na EEA como as emoções, experiências e presença no mundo. Com isso, buscam a formação integral e humanizada do ser humano, levando à construção de caminhos educativos direcionados à amorosidade, inclusão, emancipação e para o processo de ressignificar nossa existência.

Enquanto isso, Dolci e Simões (2022) tratam a EEA como prática emancipatória. As autoras defendem como potencialidade, o despertar para o senso crítico e tomada de decisão, por meio da compreensão do mundo e das condições existenciais dos sujeitos. O trabalho indica práticas pedagógicas de EEA que se aproximam da pedagogia Freireana, que exercitam um olhar sensível e questionador para si, para o outro e para o entorno (vinculado à mudança de consciência) e permitem que o sujeito olhe para sua constituição e transforme a história (valorização da historicidade do sujeito, a busca pelo ser mais).

É importante mencionar que as atividades aqui descritas foram planejadas levando em consideração o processo dialógico entre docente e discentes. Registra-se também que a temática assumida não se configura como TG, pois sua identificação não seguiu todas as etapas do processo de IT, nem foi realizada por uma equipe multidisciplinar. No entanto, garantiu-se o diálogo e a problematização das situações vivenciadas, contando com experiências de base emocional dos estudantes, que desde pequenos acompanham e auxiliam no trabalho do campo. A seguir, apresenta-se o percurso metodológico, cotejado com episódios transcritos das construções coletivas e reflexões proporcionadas.

 

PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

A pesquisa configurou-se como do tipo exploratória e a análise do tipo qualitativa, tendo como pretensão a interpretação do fenômeno-objeto de estudo, se baseando em experiências do cenário natural dos sujeitos (Stake, 2011). O contexto da atividade foi o ensino médio regular (EM), em uma turma de terceiro ano, pertencente a uma escola-campo[1] do Programa Residência Pedagógica, no município de Aceguá, RS.

Aproximadamente 65% da turma residia na zona rural, localizada a aproximadamente 30 km de distância da escola, tendo na atividade leiteira uma parte significativa da sua renda. É importante destacar que a pesquisa ocorreu no ano de 2019 e, segundo os dados mais recentes da época, vinculados a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2018), Aceguá ocupou o quinto lugar no Estado do Rio Grande do Sul em quantidade produzida de leite, com impactos significativos para as famílias dos produtores, estudantes e comunidade em geral. Atualmente, os dados atualizados (IBGE, 2022) indicam que o município ocupa a 31ª posição no Estado.

Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram gravações em áudio dos encontros, sínteses de ideias dos estudantes (entregues na forma escrita durante os encontros) e ficha com critérios de avaliação para as etapas teórica e de apresentação de seminário. Dos 23 discentes matriculados, 17 participaram de toda a pesquisa. Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico para coletar dados sobre o município e sobre a rotina de alguns educandos, referente à primeira etapa da IT.

É importante situar essa fase como aproximação da primeira etapa, porque um elemento que nos levou ao distanciamento da descrição de Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2018) foi a busca por informações. Limitou-se ao IBGE e a alguns estudantes, sem que ocorresse o diálogo com responsáveis, movimentos ou líderes comunitários. Posteriormente, as atividades foram desenvolvidas em três encontros, cada um constituído por duas horas/aula em sequência, configurando-se como espaços de construção conceitual e de formação integral, com duração de 90 minutos cada.

Os encontros foram estruturados pelos vieses da segunda e terceira etapas da IT, ou seja, os estudantes assumiram o papel de protagonistas e o pesquisador atuou como mediador dos conhecimentos que se apresentavam. O primeiro encontro fez emergir saberes culturais e reflexões junto aos estudantes sobre a vida e trabalho no campo e, ao final, adotou a experimentação como estratégia investigativa para discussão de conceitos (Maraschin; Lindemann, 2022). Ao refletirem, deixaram emergir uma codificação na relação controversa entre cultura, trabalho e dependência financeira, sob a ótica da vocação ontológica em ser mais (Freire, 2019).

Tal codificação se refere a um sujeito paralisado e com pensamentos limitados ao trabalho, enquanto poderia estar em movimento e projetando outras atuações ainda não vislumbradas, para além daquele território. O distanciamento com essa etapa se deu pela ausência da equipe de especialistas. A descodificação ocorreu quando perceberam dificuldades, desvantagens e o compromisso social e econômico da sua comunidade.

O segundo encontro adotou uma estratégia expositiva e dialogada, no sentido de pensar alguns conteúdos e conceitos a partir da temática leite. A aproximação com a segunda e terceira etapas da IT se deu por conta da continuidade dos diálogos, mantendo as problematizações sobre a temática identificada junto aos estudantes e incorporando aspectos científicos do conhecimento sistematizado pela Química. Nessa condição, a temática não ficou refém da síntese de compreensão docente. Pelo contrário, a codificação prévia do docente foi diferente daquela que se mostrou (Maraschin, 2019).

Não adotamos a quarta e quinta etapas da IT por alguns motivos, dentre eles: a identificação e seleção dos conteúdos foi realizada pelo docente e não pela equipe de especialistas (distanciando-se da redução temática nesse aspecto); não houve a elaboração de um programa a ser desenvolvido para guiar o trabalho em sala ou preparar materiais didáticos. Ocorreu, no terceiro encontro, a apresentação de um seminário envolvendo aspectos sociais, culturais e econômicos sobre o leite e seu beneficiamento. Ou seja, os estudantes com suas histórias, sentimentos e investigações, assumiram o protagonismo.

Isso permitiu que outras descodificações ocorressem. Por exemplo, perceberam que o trabalho que sustenta o desenvolvimento econômico da região, não garante o próprio desenvolvimento das famílias. Na conclusão dos encontros, houve um momento de conversa sobre todas as construções proporcionadas pela pesquisa, relacionando os diálogos em sala com as informações do seminário, a fim de ratificar a articulação entre os conhecimentos culturais e o conhecimento sistematizado.

Respeitando os princípios éticos e como forma de resguardar as identidades dos educandos, estes foram identificados pela letra “E”, seguida de um número, por exemplo “E1”, e assim sucessivamente. O pesquisador será identificado pela letra “P”. Também, como forma de resguardar a escola, seu nome não será divulgado. Os pais dos estudantes menores de idade, bem como os estudantes maiores de idade, receberam e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, permitindo a utilização dos dados.

 

PRIMEIRO ENCONTRO

O encontro foi dividido em dois momentos. No primeiro, o pesquisador solicitou aos estudantes que narrassem um pouco do trabalho no campo. As atividades de ordenha e alimentação dos animais foram muito mencionadas, além da vacinação, higienização das vacas, limpeza dos galpões e equipamentos utilizados na ordenha. Enquanto os diálogos aconteciam, palavras-chave iam sendo elencadas no quadro branco. Dois fragmentos dos diálogos foram selecionados para serem apresentados na sequência. As transcrições completas podem ser encontradas em Maraschin (2019). A primeira palavra foi VACA, conforme o diálogo a seguir (Maraschin, 2019, p. 39-40):

P: [...], conte rapidamente aos colegas o que faz, como é que trabalha, quais são as atividades do cotidiano e a gente vai colocando algumas palavras principais que vocês acham que precisamos destacar [...].

E1: Acordo cinco ou cinco e meia da manhã e vou buscar as vacas. Coloco no galpão e lavo os tetos.

E2: Pra lavar os tetos tem os “produtinhos”, pré-dipping[2].

E3: Tem que secar.

P: Por que tem que lavar os tetos?

E2: Por causa das bactérias, sujeiras, senão a bacteriana depois no leite “dispara”. E se a bacteriana tá muito alta tu perde alguns centavos no leite.

P: Então lavei os tetos da vaca, com o que?

E2: Com água e Pré-dipping.

P: O que é o Pré-dipping?

E2: É tipo um sabão, um antisséptico que tu passa e para secar precisa um papel seco.

E3: Um papel toalha.

P: Por que um papel toalha?

E1: Porque aí tu descarta.

E2: É que tu não pode, por exemplo, pegar um pano e passar em todas as vacas, senão pode passar as bactérias de uma para a outra.

P: Então será que já temos uma palavra para começar a compor aqui o primeiro quadro?

E4: (com o aceite dos demais colegas) Vamos colocar vaca.

A segunda palavra foi HIGIENE (Maraschin, 2019, p. 43):

P: [...] lavei o teto e agora vou ordenhar. Como é esse processo de ordenha na casa de vocês?

E2: Com a máquina.

P: E vocês lavam a máquina também?

E3: A máquina já estava limpa.

E2: É que geralmente quando tu termina a ordenha tu lava ela pra usar na próxima vez.

P: E como é que tu lava a máquina?

E2: As normas lá pedem água a 70 ºC, aí tem os produtos. Se tu colocar água acima de 80 ºC cozinha o leite ali dentro, não tira as bactérias. Muito abaixo da temperatura também não tira. 70 ºC seria a temperatura exata.

P: E vocês sabem que produtos são esses que usam na máquina?

E1: Sanitizantes, detergentes alcalinos.

E2: Não é recomendado usar escova para limpar as teteiras, porque arranha a borracha e acaba criando bactérias ali.

P: Tem mais alguma palavra pra gente colocar no nosso quadro?

E4: (com o aceite dos demais colegas) Higiene.

Os termos foram escolhidos a partir de reflexões sobre as práticas, que carregam um grande conhecimento cultural e podem ser exploradas não apenas na Química. Algumas potencialidades em relação a trabalhos futuros e interdisciplinares foram encontradas, a saber: composição química dos produtos; processos bioquímicos; seres vivos e cadeia alimentar; bactérias e doenças; evoluções tecnológicas da ordenha; dados sobre a bacia leiteira; e índices econômicos/sanitários.

A interdisciplinaridade é destacada por autores vinculados ao Ensino de Ciências (Auler; Dalmolin; Fenalti, 2009; Ferreira; Muenchen; Auler, 2019), que discutem a AT em diferentes perspectivas, dentre elas, a Freireana. Auler, Dalmolin e Fenalti (2009) defendem a interdisciplinaridade articulada aos TG, em virtude da equipe com profissionais de diferentes áreas para obtê-los. Outrossim, Ferreira, Muenchen e Auler (2019) indicam desafios para a efetivação da interdisciplinaridade, como a limitação na formação docente e a dificuldade de encontrar parcerias ou tempo para planejamento.

Reconhecemos algumas dessas dificuldades, visto que o TCC ocorreu no contexto de sala de aula, em lógica de currículo pré-estabelecido, além do tempo limitado para a coleta e análise de dados. Caso a investigação tivesse ocorrido em equipe, poderiam ser explorados processos históricos (da ordenha à mão até as máquinas), geográficos (vegetação, relevo e influências climáticas para os animais e sua produção), biológicos (especificidades de alimentação, deficiências e doenças) e econômicos (capacidade de investimento), com auxílio de conceitos científicos de outras áreas e saberes populares.

Posteriormente, os outros termos do diálogo em sala foram: proteção (teto); alimentação; qualidade do leite; e música. Os estudantes pensaram sobre aspectos em comum entre todos os termos e chegaram ao consenso de que remetiam à codificação leite/dinheiro. Esse movimento dialoga com os referenciais adotados, visto que permitiu: o resgate de suas rotinas; o olhar reflexivo e crítico sobre suas relações com os familiares e com o trabalho; e a sensação de pertencimento à sociedade, quando começaram a narrar suas vidas e perceber a importância do papel que desempenham socialmente (Rezende et al. 2018; Freire, 2019). Além disso, permitiu ao pesquisador se aproximar mais da realidade circundante, ampliando sua visão de mundo. Na sequência, apresenta-se mais uma transcrição, referente ao início da descodificação (Maraschin, 2019, p. 53-54):

P: [...] o que vem na cabeça de vocês quando falamos essas duas palavras: leite e dinheiro? O que vocês entendem por leite e por dinheiro?

E3: Tambo.

P: O que é o tambo?

E2: Tambo, ordenha.

E4: É essa função mesmo, da ordenha.

P: O que mais? O que é o leite?

E4: Sustento.

P: Leite é sustento?

E6: Geralmente é sustento.

P: O que mais?

E7: Alimento.

E13: Vitamina também.

P: Vamos por alimento e vitamina entre parênteses, pode ser?

E13: Pode.

E7: Saúde.

P: Leite é saúde?

E7: O nosso sim, agora, os que vendem de “caixinha” nem sempre.

E6: É muito melhor tu tomar direto do tanque do que pegar um de “caixinha”.

P: O que mais é o leite?

E4: Natural, comparado ao de “caixinha”.

P: Mais alguma palavra?

E10: Irritabilidade.

P: Por que irritabilidade?

E2: É que imagina, professor: Tu acordar às cinco horas da manhã, “deitando água”[3], ir lá no meio do campo buscar as vacas.

E10: E depois no meio do tambo.

E2: Aí vai manter a paciência...

E6: E as “mimosas” que começam a coicear o cara no meio da ordenha [...]

E2: Imagina só a situação: O senhor acorda 5 horas da manhã...

E10: Comprometimento

E2: Imagina só a situação: O senhor acorda 5 horas da manhã, chovendo, o senhor chega lá para buscar as vacas e elas arrebentam todos os choques[4]. O senhor tem que ir buscar lá no vizinho, aí tu passa um trabalho danado pra encerrar e ao invés de começar a tirar leite cinco e meia, seis horas, tu vai começar às oito porque foi a hora que tu conseguiu juntar elas. Aí te enchem a “colaço”[5] e coice lá dentro, querem te matar, tu quer matar elas.

E4: Aí não pode matar elas porque é o sustento.

E2: Aí tu lembra que no fim do mês tu vai precisar delas.

A descodificação trouxe à tona significados sociais e culturais para os discentes que, por sua vez, pensaram a respeito das implicações da temática em suas vidas. Estes referem-se às práticas daquela comunidade, que se mostrou preocupada com a saúde, a economia e o destino do seu produto. Além dos diálogos, foi solicitado que entregassem por escrito a sistematização de suas percepções (Figura 1).

 

Tela de celular com mensagem de texto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Maraschin, 2019, p. 57.

Figura 1Brainstorming das respostas sobre leite/dinheiro.

 

As visões que emergiram dos educandos, sobre suas realidades, ratificam a ideia de que eles passaram a estabelecer relações entre “o que” e “por que” se faz e, ainda, “em que” se aplica. Na visão de Freire (2019), isso é importante porque os educandos não ficam reféns à memorização de conteúdos sem significados para eles. O autor destaca que o conteúdo deve ser pautado pelo diálogo crítico e libertador, podendo e devendo “[...] variar, em função do nível de percepção da realidade” (Freire, 2019, p. 72).

No segundo momento da aula, ocorreu uma prática experimental Maraschin e Lindemann (2022). Ao final desse encontro, quatro grupos foram organizados a partir de derivados do leite: iogurte, nata, queijo e ambrosia. Esses grupos receberam orientações sobre a avaliação do trabalho teórico e apresentação do seminário, constando que deveriam abordar a temática leite/dinheiro com ênfase no beneficiamento, possibilidades de renda extra, receitas e conceitos químicos envolvidos na produção.

 

SEGUNDO ENCONTRO

O segundo encontro deu continuidade às problematizações, logo, manteve em sua estrutura os princípios da segunda e terceira etapas da IT. A contradição percebida, de passividade de alguns frente à rotina exaustiva da atividade leiteira, foi explorada a partir da elucidação de conceitos por trás da temática. Os educandos não abandonaram seus saberes culturais e, nesse encontro, fizeram a articulação com alguns conceitos, em especial, a visão nutricional do leite. Um texto sobre os benefícios do leite foi lido coletivamente e, a cada informação importante, questionamentos eram realizados.

Diálogos emergiram dessa leitura: qual a classificação do cálcio? (sobre a osteoporose); quem é responsável por ajudar no crescimento dos músculos? (sobre as proteínas do leite); o que são oligossacarídeos? (sobre açúcares); o que são aminoácidos? (sobre o controle de hipertensão); e por que não se deve dar leite de vaca para crianças menores de um ano de idade? (sobre o organismo, digestão de proteínas e efeitos da quantidade de gordura e sódio para os rins). A Tabela 1 foi abordada:

 

Tabela 1 – Composição centesimal do leite de várias espécies de animais.

Espécie

Proteína

(%)

Gordura

(%)

Lactose

(%)

Cinzas

(%)

Água

(%)

Humana

1,5

3,5

7,0

0,2

87,8

Bovina

3,5

3,8

5,0

0,7

87,0

Caprina

4,0

3,0

4,8

0,8

87,4

Ovina

5,4

8,2

4,8

0,9

80,7

Equina

2,6

1,6

6,1

0,4

89,3

Búfala

4,1

7,7

4,8

0,7

82,7

Fonte: Oliveira, 1986 apud Aquarone et al. 2001, p. 229.

 

A partir da análise da tabela, mais discussões foram possibilitadas, conforme a transcrição a seguir (Maraschin, 2019, p. 72-73):

P: Então vamos olhar essa tabela [...]. [...] é legal ver essa comparação entre as quantidades de água em todos os leites. Qual leite possui mais água?

E2: O equino.

P: E a gente imagina que o equino, ou todos esses outros leites, têm essa quantidade de água descrita na tabela? [...].

E4: Na verdade, sim.

P: Na verdade, sim? Por quê?

E4: Porque se tu vai ver tudo o que está compondo o leite, nada disso é tão aquoso quanto a água, então o que faz o leite ser líquido é a água e não a gordura ou qualquer outro componente.

P: Alguém mais concorda?

E6: Concordo.

E7: Concordo.

P: Mais alguma coisa nessa tabela que vocês queiram destacar? [...]

E15: O leite com mais gordura, da espécie ovina.

P: Vocês esperavam que o leite de ovelha fosse mais gorduroso?

E6: Eu já ouvi falar, mas não sabia que era tanto assim.

P: Onde tu já ouviu falar?

E6: Pelo meu pai.

P: Mais alguém já tinha ouvido falar?

E3: Eu já ouvi e vi.

P: Como é que tu viu e depois fez a comparação?

E3: Ele é mais grosso e mais amarelo.

P: Que legal! Mais algum dado para vermos aqui?

E4: O que tem mais cinzas, também ovino.

P: Será que faz sentido para nós?

E4: Ele tem grande quantidade de proteína, é o que mais tem. Tem menos lactose que os demais, só empata com o de cabra e búfala. Mas aparenta realmente ser o mais forte de todos.

E6: [...]. Não tem tanta água, mas é o que tem mais gordura.

Conceitos químicos foram introduzidos a partir desse diálogo: polaridade e interações intermoleculares da água; polaridade e reações de esterificação em gorduras; polímeros naturais, aminoácidos e ligações peptídicas das proteínas; açúcares, classificações e ligações glicosídicas; importância das vitaminas e sais minerais; e estruturas moleculares e ligações conjugadas (pigmentação). Enfatiza-se, mais uma vez, o protagonismo discente, trazendo em suas análises conhecimentos que escutaram ou presenciaram ao longo da vida e que reforçam os princípios Freireanos e da EEA.

Os saberes da comunidade, relacionados com o conhecimento sistematizado, podem permitir a leitura da organização social. Por exemplo, as vitaminas, proteínas e carboidratos remetem à importância do produto que as famílias entregam diariamente. Na dimensão econômica, a qualidade do leite influencia na venda do produto, no rendimento mensal dos núcleos familiares e desenvolvimento regional. Nas dimensões de ciência e tecnologia, nas condições seguras de obtenção, armazenamento e testagem, além da nutrição para evitar deficiências apresentadas pelos animais.

 

TERCEIRO ENCONTRO

Espaço de problematização e fala dos protagonistas, para que socializassem suas descobertas a respeito de leite/dinheiro, no que se refere ao beneficiamento, possibilidades de renda extra, receitas e conceitos químicos. A avaliação da pesquisa escrita considerou: 1) presença de entrevista/relato de alguém que produz o derivado ou receita que é realizada por terceiros; 2) dados sobre técnicas de produção, tipos dos derivados, custos para produção, cuidados na produção/armazenamento/transporte e conceitos químicos; e 3) proposta de beneficiamento para renda extra (cálculos de produção e lucro). A avaliação do seminário considerou: 1) conteúdo (temática, importância do beneficiamento e relação com a Química); 2) conhecimentos adquiridos (domínio, compreensão e segurança na fala); 3) postura (gírias, vícios de linguagem etc.); e 4) tempo (8 min a 12 min). No Quadro 1, destaca-se os principais aspectos avaliados:

 

Quadro 1 – Principais aspectos avaliados sobre cada grupo.

Grupo

Avaliação da parte escrita

Avaliação do seminário

 

Iogurte

Relacionaram a teoria com seus conhecimentos sobre os nutrientes do leite. Discutiram o pH na obtenção da proteína caseína.

Resgataram aspectos sobre os nutrientes do leite, produziram o derivado e contextualizaram as discussões sobre proteínas.

Nata

Relacionaram a teoria com seus conhecimentos sobre os nutrientes do leite. Apresentaram discussão sobre o pH na fermentação.

Domínio sobre o beneficiamento do leite. Mostraram-se um pouco inseguros nas relações com a Química. Produziram o derivado.

Queijo

Relacionaram a teoria com seus conhecimentos sobre os nutrientes do leite. Apresentaram estruturas e ligações químicas, bem como a regras da vigilância sanitária para a produção do derivado.

Mostraram-se problematizadores na produção do leite em suas residências, além do custo/benefício gerado pelo beneficiamento. Apresentaram regras sanitárias, relacionando com suas realidades.

Ambrosia

Relacionaram a teoria com seus conhecimentos a partir do conceito de tonoscopia[6]. Apresentaram aspectos históricos da culinária portuguesa e mitologia grega.

Abordaram curiosidades e produziram o derivado. Indicaram conceitos químicos. Apresentaram aspectos históricos, culturais e científicos da produção do doce.

Fonte: Elaborado pelos autores.

 

As avaliações apresentadas no Quadro 1 subsidiaram as análises finais. Entende-se que os resultados foram satisfatórios, uma vez que permitiram ampliar as reflexões sobre a cultura, articuladas aos conhecimentos químicos. O grupo Iogurte comentou sobre a importância desses conhecimentos para buscar mais qualidade de vida e considerou a proposta positiva, pela mobilização que causou. Esse grupo também refletiu sobre a presença de todas essas questões em suas práticas diárias e sinalizou que apesar de serem situações que realizam diariamente, nunca tinham pensado em todos os detalhes que descobriram pesquisando e problematizando. Sobre isso, percebe-se o despertar de novas relações, diante de experiências que já eram vividas, reforçando a argumentação sobre a articulação entre Freire e EEA, enquanto movimento de ressignificação das rotinas.

O grupo Nata enfatizou que a pesquisa foi importante porque possibilitou aprender de uma maneira diferente, mais perceptível. Já o grupo Ambrosia relatou que apesar de todos terem achado curioso estudar a produção de um doce em Química, chegaram à conclusão de que aprenderam mais e se enxergaram nesse processo. O grupo apontou que a pesquisa foi se construindo nas aulas, relembrando as conversas tidas e comentando que a aprendizagem foi além de comer um doce, indo ao encontro das problematizações relacionadas à “o que é”, “como é” e “por que é”. Entende-se que as atividades serviram para responder à pergunta feita ao longo dos anos: Por que devemos estudar Química?

Só foi possível encontrar algumas respostas a partir do momento em que passaram a problematizar e considerar as situações do dia a dia por um olhar de sujeito histórico, que pertence ao espaço e busca criticamente as respostas. Nesse cenário, a Química deixa de ser uma disciplina do currículo, assumindo um papel transformador de realidades. Alguns feedbacks foram recebidos ao final do encontro (Maraschin, 2019, p. 86):

E4: A gente nunca para pra pensar sobre a Química por trás das coisas e a gente aprendeu a Química por trás de um doce. Também, quando estávamos fazendo o trabalho, paramos pra perceber que o senhor tinha dado uma pincelada de como seria o trabalho nos explicando o leite, separando os tópicos no quadro, explicando parte por parte e indagando coisas sobre o leite e como era mantido. Depois a gente acabou fazendo a mesma coisa no trabalho: nos perguntamos como iriamos manter a nossa produção, como iríamos higienizar as coisas, era mais ou menos o mesmo papo, então tudo se integrou no final e fez sentido. Gostei, a gente foi bem encaminhado, bem guiado e conseguimos fazer um trabalho legal. Não vi pontos negativos.

A fala evidencia a importância do pensamento Freireano relacionado à EEA, pela reflexão sobre a aplicação dos conhecimentos adquiridos, aliados aos saberes provenientes daquela cultura e pela importância do diálogo entre pesquisador e educandos, na compreensão do mundo e das situações que se apresentam para serem superadas. Essas concepções se baseiam em uma visão mais crítica e emancipatória (Freire, 2019), ao mesmo tempo que ultrapassam modelos mais conservadores, em busca de relações conscientes e harmoniosas entre sujeitos e natureza (Rezende et al., 2018).

Não obstante, pesquisador e educandos passaram a superar a primeira visão mágica e incorporaram uma visão mais crítica de mundo. A intervenção se mostrou com potencial para romper com a perspectiva bancária, ao contemplar o contexto para além da ideia de ensino norteada por conteúdos programáticos pré-definidos. Destaca-se que a atividade foi realizada por um professor residente e não regente, ou seja, um sujeito distante daquele lugar e que esteve tão envolvido e disposto a ensinar e aprender quanto seus estudantes.

Esse é um aspecto destacado por Hoffmann e Schirmer (2020), que em suas reflexões, ratificam que somente o contato não garante uma realidade desvelada. Na visão dos autores, deve-se “[...] re-ad-mirar aquilo que talvez já viram muitas vezes. Buscar nas entrelinhas, nas contradições e nas falas significativas da comunidade aquilo que somente o ‘ver o outro’, mas não ‘com o outro’, não proporciona” (Hoffmann; Schirmer, 2020, p. 280). A intervenção deixou memórias afetivas e significados que impactaram na aprendizagem e que acompanharão novas práticas (Silveira; Freitas; Estévez, 2016).

Sobre a superação do conteúdo, Freire (2019, p. 143) considera que numa visão libertadora, o conteúdo programático “[...] já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus anseios e esperanças”. Destaca-se o diálogo como ponto de partida de um processo educacional libertador, aliado à problematização e construído com os discentes. O ensino de Química garante conhecimentos básicos para que os cidadãos possam compreender o mundo à volta e contribuir com o desenvolvimento de novas informações e produtos (Oliveira; Barros; Moreno-Rodríguez, 2023).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com relação ao objetivo, consideramos que foi atingido. Os encontros elucidaram caminhos para práticas pedagógicas de maior autonomia discente, que articulam os saberes existentes com os conhecimentos científicos apresentados em aula. Outrossim, os diálogos e problematizações que emergiram potencializaram a formação crítico-reflexiva dos educandos e do pesquisador e valorizaram o contexto estudado.

A convergência entre os princípios Freireanos e a EEA, além de possibilitar maior conhecimento e reflexão sobre a vida no campo, contribuiu para a organização e apresentação dos grupos no trabalho final e seminário. Os educandos conseguiram se apropriar de alguns conceitos porque tudo aconteceu em um ambiente que lhes é natural, carregado de sentimentos, que os acompanham desde o seu nascimento. Não obstante, a temática valorizou a formação de olhar sensível para as relações entre seres, natureza e demais fenômenos. Cita-se novas perspectivas quanto à produção, comércio e futuro dos jovens, pensando sobre a melhoria de suas fontes de renda e novas oportunidades.

Foi possível perceber potencialidades conceituais da temática para serem trabalhadas no ensino de Química de nível médio, conforme indicado anteriormente. Contudo, os conceitos não podem ter um fim em si mesmos. Logo, se faz necessário ratificar que o planejamento feito a partir da realidade dos estudantes torna a aprendizagem mais prazerosa e instigante, rompendo com práticas engessadas e causando provocações nos envolvidos. Mesmo assim, no contexto da pesquisa, o percurso adotado permitiu expandir horizontes para a tomada de decisão naquela realidade.

Seria importante estimular abordagens dessa natureza, seja na formação de professores, seja em ações planejadas na/pela escola. Percebe-se a carência de espaços de resistência e reorganização curricular via AT, que não podem ser planejados e executados individualmente. A relação universidade-escola é importante na medida em que constrói estudos e propostas articuladas, pois a ação pedagógica não se efetiva quando um dos lados mantém-se fechado às alternativas para além dos conteúdos com fim em si mesmos. Não encontraremos uma solução imediata, mas de acordo com a concepção Freireana, cabe a nós iniciarmos esse movimento de busca pela transformação da realidade.

 

Recebido em: 21/02/2024

Aceito em: 29/05/2024

 

REFERÊNCIAS

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STAKE, Robert. Pesquisa qualitativa: estudando como as coisas funcionam. Porto Alegre: Penso, 2011.



[1] Escola-campo é o termo adotado no Programa Residência Pedagógica para se referir às instituições públicas de ensino que recebem os acadêmicos de cursos de licenciatura, denominados residentes.

[2] O pré-dipping é um antisséptico utilizado para reduzir o número de bactérias presentes nos tetos das vacas, prevenindo a mastite/mamite (inflamação na glândula mamária causada por bactérias).

[3] Chovendo muito.

[4] Cercas elétricas com baixa tensão, que servem para limitar o espaço em que as vacas se encontram, evitando a fuga para outros campos.

[5] Bater com a cola (rabo) em alguma parte do corpo da pessoa que está ordenhando.

[6] Ao caramelizar o açúcar antes de acrescentar o leite, o tempo de preparo da ambrosia é menor. Quando adicionamos um soluto a um solvente, a tendência é que as moléculas que iriam se volatilizar interajam com ele e sua evaporação demore por conta da diminuição da pressão máxima de vapor.