DOI: 10.36661/2595-4520.2025v8n1.15176

Recebido em: 21/07/2025

Aceito em: 25/11/2025

 

Caracterização da prática de leitura na formação inicial de professores de Ciências e Biologia

Characterization of Reading Practices in the Initial Education of Science and Biology Teachers

Caracterización de la Práctica de Lectura en la Formación Inicial de Profesores de Ciencias y Biología

 

Bárbara Grace Tobaldini de Lima (barbara.lima@uffs.edu.br)

Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Realeza - PR

https://orcid.org/0000-0002-6502-7306

 

 

Resumo

Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa voltada à avaliação da formação de egressos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. A investigação foi conduzida com base na Referencialização proposta por Figari, metodologia que valoriza a identidade dos sujeitos avaliados e permite uma análise criteriosa das informações. A análise dos referentes possibilitou a identificação de cinco dimensões formativas, entre elas a Dimensão Curricular. Neste trabalho, o foco recai sobre as práticas de leitura realizadas (ou não) pelos acadêmicos durante a graduação. Os resultados indicam que a leitura esteve, em grande parte, restrita a demandas pontuais, sem articulação com a formação profissional mais ampla. Diante disso, destaca-se a necessidade de promover estratégias que consolidem uma cultura de leitura contínua e integrada, reconhecendo-a como prática estruturante da formação crítica, reflexiva e cidadã de futuros professores.

Palavras-chave: Formação de professores; referencialização; leitura.

 

Abstract

This study presents partial results of a research project aimed at evaluating the education of graduates from the Biological Sciences Teacher Education Program. The investigation was conducted using the Referentialization approach proposed by Figari, a methodology that values the identity of the evaluated subjects and enables a rigorous analysis of the data. The analysis of the referents allowed for the identification of five formative dimensions, among which the Curricular Dimension. In this paper, the focus is placed on the reading practices undertaken (or not) by students during their undergraduate studies. The findings indicate that reading was largely limited to punctual demands, with little articulation to broader professional training. In light of this, the study highlights the need to foster strategies that consolidate a continuous and integrated culture of reading, recognizing it as a structuring practice in the critical, reflective, and civic formation of future teachers.

Keywords: Teacher education; referentialization; reading.

 

 

Resumen

Este trabajo presenta resultados parciales de una investigación orientada a evaluar la formación de egresados del programa de Licenciatura en Ciencias Biológicas. La investigación se llevó a cabo utilizando el enfoque de Referencialización propuesto por Figari, una metodología que valora la identidad de los sujetos evaluados y permite un análisis riguroso de los datos. El análisis de los referentes permitió identificar cinco dimensiones formativas, entre ellas la Dimensión Curricular. En este trabajo, el foco se centra en las prácticas de lectura realizadas (o no) por los estudiantes durante sus estudios de grado. Los hallazgos indican que la lectura estuvo, en gran medida, limitada a demandas puntuales, con poca articulación con la formación profesional más amplia. Ante ello, el estudio destaca la necesidad de promover estrategias que consoliden una cultura de lectura continua e integrada, reconociéndola como una práctica estructurante en la formación crítica, reflexiva y ciudadana de los futuros docentes.

Palabras-clave: Formación docente; referencialización; lectura.

 

 

A REFERENCIALIZAÇÃO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Em tempos que se exige dos cursos de licenciatura não apenas a transmissão de conteúdos, mas a construção de competências e saberes que dialoguem com a prática e com os desafios contemporâneos da educação, torna-se imprescindível questionar: quais princípios efetivamente orientam essa formação? Mais ainda, em que medida esses princípios são materializados nas experiências formativas vividas pelos acadêmicos? Este trabalho toma como horizonte essas indagações, ancorando-se no método da Referencialização (Figari, 1996), para analisar, de modo crítico, a formação de egressos de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, a partir da articulação entre os referentes internos e externos que fundamentam o dispositivo educativo e a dimensão curricular nele presente.

Inicialmente, Figari (1996) pontua que seu método deve ser utilizado para avaliar estruturas educativas que se caracterizam como um espaço ou sistema ao desenvolvimento de competências e de qualificações relacionadas ao aspecto educacional ou formativo. As estruturas educativas podem ser tratadas como: macroestrutura, microestruturas e mesoestrutura. Contudo, o autor adverte que o termo “estrutura” pertence mais ao campo social e político do que ao pedagógico, e que, por estar mais interessado nas mesoestruturas, o termo “Dispositivo” torna-se mais adequado (Figari, 1996). Assim, o Dispositivo Educativo (DE) é o resultado de um processo de construção coletiva e foi um projeto de aprendizagem a respeito dos conteúdos, das competências e tarefas.

A referencialização, em linhas gerais, é um o método que realiza uma análise criteriosa e metódica dos materiais que são fonte de informação e os resultados oriundos podem fornecer elementos para apoiar futuros trabalhos de intervenção. Seu uso requer a compreensão e a mobilização dos seguintes conceitos: Dispositivo educativo, referente, referido, referencial e das dimensões dos polos Induzido, Construído e Produzido (o esquema ICP). Ainda admitimos que a Referencialização é um método capaz de orientar a leitura da realidade e, em seguida, de avaliar um DE, a partir dos objetivos e princípios relativos à instituição formadora.

Em paralelo, compreendemos que ao avaliar é preciso que os instrumentos e os objetivos sejam coerentes com o planejamento e o desenvolvimento das ações, dos princípios e das orientações adotadas e mobilizadas pelos participantes. Ao avaliar, advogamos que todos os envolvidos são responsáveis pelos resultados e pelas ações a serem realizadas, bem como pelo andamento das atividades. Tais princípios e valores também estão presentes na Referencialização, método escolhido para analisar a formação de um grupo de egressos de um curso de licenciatura em Ciências Biológicas, de uma universidade federal, situada no Paraná, partindo daquilo que foi oferecido durante a sua formação acadêmica, ou seja, dos referentes internos (documentos produzidos pela instituição de origem) e externos (por exemplo, documentos elaborados pelo MEC e direcionados à formação de professores). Importante salientar que o referencial de avaliação (formado pelo referente interno e externo) foi elaborador a partir de dois objetos: o primeiro relacionado a formação de professores (de modo geral) e o segundo, a partir das orientações direcionadas aos cursos de licenciatura em Ciências Biológicas, conforme exposto no quadro a seguir:

Quadro 1 – Referencial de avaliação

Referencial de avaliação

Objeto: Curso de graduação de Licenciatura em Ciências Biológicas

Dimensão do DE: Induzido e Construído

Objetivo: Identificar as dimensões a serem avaliadas em curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, da UFFS.

Técnica de análise: Análise Documental

INDUZIDO

Referente Externo[1]

Contexto Nacional relativo às orientações para os cursos de licenciatura.

Referente Externo[2]

Contexto Nacional relativo às orientações para os cursos de licenciatura em Ciências Biológicas

§  Lei nº 9.394/96 de 20 de dezembro de 1996

§  Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002

§  Diretrizes Curriculares para os Cursos de Ciências Biológicas

CONSTRUÍDO

Referente Interno[3]

Contexto local relativo às orientações da IES.

Referente Interno[4]

Contexto local relativo às orientações da IES para o curso de licenciatura em Ciências Biológicas

§  Projeto político institucional;

§  Plano de desenvolvimento institucional,

§  Regulamento da graduação,

§  Estatuto da IES,

§  Regimento geral da IES.

§  Projeto Político Pedagógico do Curso de Ciências Biológicas − Licenciatura

Fonte: Adaptado de Lima (2019).

A partir da análise dos documentos anteriores identificamos 05 (cinco) dimensões que compõem e caracterizam o Dispositivo Educativo (DE) analisados, são elas: Curricular, avaliativa, profissional, ciência e sociedade, e dos valores, conforme exposto em Lima (2019) e Lima, Richetti e Alves-Filho (2021). Para este trabalho, optamos por explorar a Dimensão curricular.

A dimensão – “Curricular” – reúne, a partir dos referentes externos, orientações, encaminhamentos e objetivos relativos à formação para atividade docente, competências profissionais, conhecimento sobre a docência e a presença de eixos articuladores na organização da matriz curricular. Nos referentes internos, a organização curricular de todos os cursos de graduação dá-se por três domínios: Domínio Comum (conjunto de componentes curriculares obrigatórios a todos os cursos da UFFS, voltados à inserção acadêmica e à formação crítico-social, promovendo leitura, interpretação, produção em diferentes linguagens, responsabilidade socioambiental e compreensão crítica do mundo contemporâneo); Domínio Conexo (componentes curriculares que articulam diferentes áreas do conhecimento, favorecendo a formação interdisciplinar entre cursos do campus) e Domínio Específico (componentes curriculares próprios de cada curso, voltados prioritariamente à formação específica da área). O objetivo, de acordo com o PPI, é que desta forma

[...] todos os estudantes da UFFS recebam uma formação cidadã, interdisciplinar e profissional, possibilitando otimizar a gestão da oferta de disciplinas pelo corpo docente e, como consequência, ampliar as oportunidades de acesso à comunidade (PPI/UFFS, 2010, s/p).

Ainda nos referentes internos, identificamos algumas particularidades em relação ao curso de Ciências Biológicas, são elas: a) questões epistemológicas sobre a produção do conhecimento; b) práticas interdisciplinares; c) abordagem unificada das Ciências Biológicas; d) o estabelecimento de relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade e e) articulação dos conhecimentos científicos com os saberes escolares e com as metodologias de ensino de Ciências e Biologia. Entendemos que essas especificidades, além de dialogarem com os referentes externos, são princípios a serem desenvolvidos e mobilizados na prática das atividades universitárias e com potencial para estarem presentes na atuação profissional dos egressos. Diante dos pressupostos da referencialização, nos questionamos: como a dimensão curricular foi mobilizada pelos participantes no seu período de formação acadêmica? Para essa investigação os egressos do curso foram convidados a participar da pesquisa por meio de um questionário na escala Likert e de uma entrevista, conforme apresentamos na próxima seção.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O problema de pesquisa, seus objetivos e o objeto de investigação são elementos que orientam o desenvolvimento das pesquisas, caracterizam a investigação e requerem uma coerência metodológica diante do contexto que será investigado. Em nossa pesquisa de doutoramento, o objetivo geral foi o de “avaliar a formação dos egressos da Licenciatura em Ciências Biológicas, considerando os princípios e os objetivos formadores estabelecidos pela UFFS e pelo curso”. Na ocasião, a pesquisa de natureza qualitativa, os diferentes instrumentos e a triangulação das informações foram organizados e mobilizados a partir do Estudo de Caso, e analisadas a partir da Análise Textual Discursiva.

O lócus de investigação era de uma instituição, que até aquele momento não possuía histórico de investigação com egressos e com uma trajetória histórica recente, quando comparada às demais instituições de ensino superior federal do país. Ponderamos que uma instituição mais nova possibilitaria uma formação mais próxima do cenário educacional vigente, e que os resultados desta pesquisa poderiam contribuir para problematizar, avaliar e fortalecer a formação proporcionada aos acadêmicos.  Com isso, definimos que a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) seria um espaço propício para o desenvolvimento da pesquisa. Por ser uma instituição multicampi e atender cursos de licenciatura nas diferentes áreas, foi necessário verticalizar o espaço para desenvolvimento da pesquisa. Das possibilidades, optamos pelo curso de Ciências Biológicas, ofertado no campus Realeza – PR, pois desse espaço emergiram as minhas principais inquietudes.

Além disso, a UFFS, criada em 2010, possui três características que precisam ser compartilhadas neste momento: 1) está sediada em uma região geográfica desassistida de universidades públicas, 2) pertence à região de fronteira e 3) contou com o apoio dos movimentos sociais e de toda a comunidade local. Esses elementos fazem a história de criação da UFFS ser diferente das demais instituição de ensino. E, por ainda ser uma universidade recente, compreendemos que muitos segmentos, sejam eles no âmbito administrativo ou educacional, ainda estão em fase de adequação.

Referente aos participantes, dos 62 egressos (que coloram grau até 1º de março de 2018) 46 aceitaram participar do primeiro momento, ou seja, 75% dos licenciados responderam ao questionário e à ficha de identificação. A entrevista por usa vez foi realizada com aqueles participantes que mostraram interesse em participar, totalizando 09 deles. Na Tabela 1, quantificamos a participação, por ano de ingresso dos participantes da pesquisa, sinalizando a participação de 100% dos egressos que iniciaram o curso de graduação em 2013 e 64% (a menor taxa) daqueles que ingressaram em 2012.

Tabela 1 − Número de participantes por ano de ingresso

Ano de ingresso

Total de egressos

Participantes no Questionário

Participantes na Entrevista

2010

23

16

3

2011

17

14

4

2012

14

9

1

2013

7

7

1

2014

1

0

0

Fonte: Lima (2019).

 

Assim, houve uma participação expressiva e significativa dos egressos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, para o desenvolvimento metodológico da pesquisa e da análise do questionário. Aos participantes, no momento da análise foram atribuídos nomes fictícios e que foram sugeridos pelos próprios participantes durante as entrevistas.

Instrumentos para geração das informações e metodologia de análise

O primeiro momento foi uma análise exploratória e documental de fontes primárias a partir da Referencialização, que envolveu os referentes externos e internos. Com esse procedimento, identificamos elementos orientadores para as instituições de ensino superior e a matriz dos cursos de licenciatura, tendo em vista as particularidades e os princípios gerais a serem promovidos.

Para o segundo momento, de caráter propositivo, foram elaborados dois instrumentos de pesquisa compartilhados com os egressos do curso de Ciências Biológicas. O primeiro instrumento foi o questionário, elaborado na escala tipo Likert e composto por composto por 102 assertivas, organizadas em seis blocos e atreladas às dimensões a serem avaliadas. O segundo instrumento envolveu um roteiro de entrevista semiestruturado com 14 itens organizado em 5 blocos (Lima, 2019).

Em virtude da amplitude de informações obtidas, e motivada pelo objetivo de investigar de que modo a dimensão curricular do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas contemplou práticas de leitura, analisando sua contribuição para a formação acadêmica e profissional dos licenciandos, optamos por discutir as informações obtidas com a análise de 40 assertivas que correspondiam a Dimensão curricular, mais as informações obtidas a partir das entrevistas. Para análise das informações obtidas foi utilizada a Análise Textual Discursiva (ATD), que assume pressupostos que a localizam entre a Análise de Conteúdo e a Análise de Discurso e, assim, como toda análise textual, a ATD assume um processo de produção de novas compreensões e novos significados sobre o objeto de estudo (Moraes; Galiazzi, 2007).

A ATD é desenvolvida desde a construção de significados relativos a um conjunto de textos, denominado de corpus, e, nesse sentido, é papel do pesquisador atribuir ao significante (materiais textuais) um sentido e um significado, que são oriundos dos referenciais teóricos que balizam o pesquisador. Na perspectiva não apenas da ATD, mas de toda análise textual, tem-se como pressuposto que não há uma leitura única e objetiva, mas que no ato de ler já existe uma interpretação, por isso o mesmo texto possibilita múltiplos significados.

O primeiro passo da ATD foi a desconstrução dos textos e a sua unitarização. Em posse do corpus, o pesquisador faz a leitura, uma ou mais vezes, do material e em seguida destaca os fragmentos, identificando-os e codificando-os. Os fragmentos foram nomeados de “unidades de análise”, e são acompanhados por unidades de contexto, informações que situam o fragmento diante do instrumento em que foi produzido e do participante da pesquisa.

O segundo momento da ATD, estabelecimento de relações, consiste na categorização das unidades de análise construídas anteriormente. Segundo Moraes e Galiazzi (2007), categorizar é a ação de reunir elementos com significados semelhantes. Após aproximação das unidades de análise em categorias iniciais, que podem ser intermediárias e depois finais, o pesquisador inicia o processo de redação para explicitar os sentidos que configuram uma determinada categoria, como, também, a relação entre elas. Nesse momento, cabe ao pesquisador o uso de argumentos para defender as categorias construídas, bem como a relação delas com os objetivos e princípios da pesquisa. As discussões e relações estabelecidas a partir das categorias objetivam um trabalho que represente o todo, haja vista que elas são elementos diferentes do objeto investigado, mas que se complementam e se “retroalimentam” no exercício da ATD. 

O terceiro momento da análise nomeia-se “captando o novo emergente”. Nesse momento, o pesquisador, ao descrever as unidades de análise fundamentado nas categorias, realiza o que Moraes e Galiazzi (2016) chamam de um metatexto, que pode assumir um caráter descritivo e interpretativo. Na descrição, apresentam-se as categorias com os trechos empíricos retirados dos textos originais, o que possibilita ao leitor uma imagem da situação que se investiga. No caso da interpretação, Moraes e Galiazzi (2016) argumentam no sentido da abstração do pesquisador para que, a partir das categorias, ele possa construir novas compreensões sobre o estudado.

Importante destacar que, segundo os autores, o metatexto não é uma simples montagem das unidades de análise e das categorias, mas um texto que, ao apresentar as informações, também constrói argumentos e/ou teses importantes sobre a pesquisa e que possa ser um elemento central da investigação. Assim, “o metatexto resultante desse processo representa um esforço de explicitar a compreensão que se apresenta como produto de uma nova combinação dos elementos construídos ao longo dos passos anteriores” (Moraes; Galiazzi, 2007, p. 12).

Compreendemos que as orientações metodológicas, os instrumentos e as técnicas para análise selecionados acompanham os pressupostos da “referencialização” e, com isso, podemos sinalizar como os princípios e as orientações para formação dos licenciandos estiveram presentes e foram mobilizados durante sua participação no curso de graduação.

Diante do exposto e conforme apontando anteriormente neste trabalho nos propomos a discutir uma parte da investigação original - a dimensão curricular. Esta dimensão teórica, quando triangulada com os dados obtidos a partir do “polo produzido” permitiu a identificação de três categoria, a saber: 1) O lugar das estratégias de Ensino e da leitura no processo de aprender e tornar-se professor; 2) As concepções de Ciência e suas possibilidades ao processo de aprender e ensinar e 3) A interdisciplinaridade na formação de professores em Ciências Biológicas (Lima, 2019).

Para este trabalho, apresentamos o fenômeno (a prática da leitura) que emergiu diante da análise realizada na dimensão Curricular e que está contemplada na primeira categoria – 1) O lugar das estratégias de Ensino e da leitura no processo de aprender e tornar-se professor.

ENTRE PRINCÍPIOS E PRÁTICAS: A LEITURA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A leitura é uma atividade essencial, não apenas para o desenvolvimento pessoal, mas por ser elemento intrínseco à formação acadêmica e profissional dos licenciandos. Ademais, nos referentes analisados para esta pesquisa, a leitura está atrelada como estratégia ao trabalho do formador e dos acadêmicos, podendo ser realizada a partir de diferentes materiais e espaços.

A formação de um sujeito-leitor também é objetivo do Ensino de Ciências. A leitura é elemento significativo para o Ensino, a aprendizagem e aproximação com as questões e os valores profissionais, e no Ensino de Ciências não seria diferente, ela promove “uma visão mais crítica quanto à própria natureza desse conhecimento” (Giraldi, 2010). Além disso, quando planejada em articulação com os conteúdos escolares e o universo sociocultural dos estudantes, a leitura pode se tornar uma potente ferramenta de significação, como demonstrado por Vale (2020) ao trabalhar fábulas parasitológicas em aulas de Ciências.

Com isso, no questionário, os participantes foram indagados a respeito da leitura envolvendo as Ciências Biológicas, os aspectos educacionais e assuntos contemporâneos. A presença da leitura foi expressiva nas três assertivas, quando 41 participantes indicaram que a presença da leitura sobre assuntos educacionais e da natureza específica da Ciências Biológicas estiverem presentes e 33 indicaram também a presença de leitura sobre tópicos contemporâneas, ainda que nove participantes tenham sinalizado o pouco estímulo à leitura de tópicos contemporâneos. Diante da importância do ato de ler e das evidências apresentadas, indagamos os entrevistados “como a leitura esteve inserida durante sua formação acadêmica” e algumas das respostas foram:

BIANCA: Ela estava presente nas disciplinas de educação, a partir dos regimentos, das normas educacionais, das DCN, ou algum texto de um pensador, um filósofo, nesse sentido, nas outras áreas, a gente lia mais para os trabalhos, dos conteúdos e para as provas, mas a gente lia mais para educação mesmo.

CECÍLIA: Eu acho que ficava mais restrita à leitura de artigos, de ler para estudar para a prova, de coisas assim.

JENIFER: Mas, assim, a gente tinha que ler porque sabia que ia ter que debater [...]. Mas não porque eu queria ler sobre aquele tal assunto.

TERE: Mas as leituras tanto dos tópicos quanto as leituras técnicas acabavam nas disciplinas técnicas, as disciplinas de Ensino talvez tinham mais maleabilidade, na verdade, mas ainda acabava sendo técnico.

MILA: Alguns seriam trabalhados na aula, agora, por mim, só lia o que era obrigatório, agora, se eu pudesse escolher, se tivesse a oportunidade de não ler, eu não lia, até porque era muita coisa.

Esses excertos demonstram como a leitura esteve presente na formação dos entrevistados em diferentes situações. Inicialmente, eles reforçam – as leituras, quando presentes, abordavam questões mais específicas, ou seja, relacionadas a um determinado conceito científico ou pedagógico. Na perspectiva dos entrevistados, a leitura era mobilizada a partir da elaboração de uma atividade, um relatório ou uma prova, o que reforça esse caráter mais técnico enfatizado nas entrevistas, como exemplificado por Tere: “Tem tal autor para o relatório de estágio, para fazer o trabalho de Ensino, de botânica, tem tal trabalho que vocês podem se referenciar, mas mais técnicos.”

Outra situação presente é que, quando as leituras eram propostas, elas pouco dialogavam com as questões escolares. Bianca, em sua entrevista, pondera que a articulação da leitura com o domínio escolar, por exemplo, era realizada quando o acadêmico tinha algum interesse: “A gente fazia relação com a escola, se a gente buscasse”. Essa situação reforça, portanto, o caráter técnico da leitura, uma vez que não houve estímulo para reflexões e debates que as relacionem com o Ensino de Ciências e Biologia, nem mesmo sobre as diferentes e diversas interpretações que podem envolver um determinado texto.

Jenifer e Mila ainda revelam um movimento pessoal envolvendo a leitura. Por motivos de trabalho e até mesmo desinteresse em relação aos temas, relataram que, em muitas situações, só realizavam a leitura quando esta era obrigatória. Nesse cenário que envolve a leitura, nos questionamos: “Para um curso de licenciatura, qual o impacto da falta de ações que relacionam a leitura com a dimensão profissional? Quais as consequências em formar professores que não leem?”

Na Educação em Ciência, Souza (2003) analisa que a leitura, quando pontual e restritiva, tem um olhar específico ao conteúdo, reforça uma concepção de Ciência empírica e processual. Além disso, os acadêmicos que precisam otimizar o seu tempo optam em fazer leituras que estão atreladas aos momentos avaliativos. Assim, a leitura pontual pode promover, segundo o autor, o desestímulo dos acadêmicos perante o ato de ler. Em contrapartida, a articulação da leitura com práticas pedagógicas significativas pode contribuir decisivamente para a formação de sujeitos críticos e engajados.

Vale (2020), ao relatar o uso de fábulas como recurso didático no ensino de parasitologia com alunos do ensino fundamental, evidencia que a leitura, quando contextualizada com o cotidiano dos estudantes, favorece a construção de sentidos e o engajamento com o conhecimento científico. Ainda que em níveis distintos de ensino, tais experiências apontam para a necessidade de que a leitura seja compreendida como ferramenta formativa desde os primeiros anos escolares até a formação docente, extrapolando sua função instrumental e assumindo um papel central no desenvolvimento de habilidades cognitivas e de representação simbólica.

Daga (2016), ao investigar o ato de ler em acadêmicos de três cursos de licenciatura, também da UFFS, no campus Realeza, identificou importantes manifestações que nos permitiram outras reflexões, entre elas aquela que é reforçada pelos excertos apresentados nesta pesquisa – a presença de leitura a serviço de uma atividade, e não necessariamente de um processo de aprendizagem, na perspectiva dos acadêmicos. Situação que reforça nosso entendimento sobre o posicionamento dos alunos em relação à leitura “técnica”/ específica.

Ainda segundo Daga (2016), quando o acadêmico se limita diante da ação de ler, o desenvolvimento de outras habilidades intelectuais, a aproximação com a perspectiva profissional e o desenvolvimento de uma formação cultural são comprometidos, pois não há uma ressignificação da leitura em níveis acadêmicos. Ao serem realizadas de modo pontual e fragmentado, a leitura e a discussão no Ensino superior tornam-se menos efetivas, produtivas e reforçam os mesmos hábitos e práticas de leitura anteriores à sua inserção neste espaço formativo.

Ao relacionarmos a questão da leitura com a aula expositiva e o uso de slides como recurso, apresentado na pesquisa original (Lima, 2019), estaremos diante de outra constatação do trabalho de Daga (2016) - o uso de slides interfere de modo significativo no modo como o aluno se relaciona com a leitura. O slide: “uma síntese do conteúdo a ser estudado, acaba, muitas vezes, abreviando ou substituindo a leitura integral de textos teóricos.” (Daga, 2016, p. 259). A autora defende que a leitura não pode ser entendida como uma obrigação, ela é um importante mecanismo para a apropriação e mobilização de outros e novos conhecimentos.

Nesse sentido, encontramos em João a seguinte reflexão: “Foi quando eu comecei a ler de verdade as leituras complementares que eu percebi que os artigos que os professores indicam fazem diferença”. Nela, o entrevistado continua e enfatiza a necessidade de que os acadêmicos se responsabilizem pelo seu processo de formação e apropriação do conhecimento. Além disso, a autonomia, muito valorizada nos dias de hoje, mas pouco presente e estimulada, é reforçada por Mila: “Ela estava presente, estava ali, mas dependia do aluno” e segue relatando que em alguns componentes curriculares o professor disponibilizava tempo em sala de aula para que eles pudessem realizar a leitura do material.

MILA: O que mudava um pouco é que, na área de Ensino, o professor disponibilizava um tempo para ler em sala, então eu achava isso bem produtivo, tinha um momento, meia-hora, por exemplo, para fazer a leitura daquele material que seria visto. Então, pensando no tempo que a gente tem, isso era bem valioso. Mas também não é para todos, porque tem gente que usava aquele tempo para outra coisa. Não lia em casa e depois também não lia.

No decorrer da entrevista, fica claro que Mila trabalhou durante todo o período da graduação e que, por esse motivo, tenha realizado apenas as leituras que eram “obrigatórias”, como também valorizava o tempo que era disponibilizado em sala de aula para realização das leituras, situação também observada por Daga (2016). Para a autora, as questões laborais, socioeconômicas e o uso de artefatos tecnológicos pelos acadêmicos, como celular e computador durante a aula, interfere no modo como o estudante se dedica à formação acadêmica e no modo como o professor administra a situação.

Para Daga (2016) o tempo do trabalho substituiu o tempo que os acadêmicos poderiam dedicar aos estudos e, por isso, alegam não terem disponibilidade para realizar as leituras. Os professores, ao adaptarem a leitura do texto para a sala, precisam contar com a colaboração e a responsabilidade dos alunos, do contrário a leitura pode não agregar e não possibilitar o desenvolvimento de construções mentais mais significativas e apropriadas à formação em nível superior.

Cecília, ao refletir sobre o movimento de leitura, reforça a presença da leitura específica nos componentes curriculares, e em seguida faz sugestões que poderiam ser promovidas, segundo ela, durante a formação acadêmica.

CECÍLIA: Na vertente, assim, das disciplinas mais de licenciatura, a gente até tinha algumas dicas de leitura, no meu ponto de vista, mas nas mais biológicas eu não percebi esse movimento, até porque hoje é assim, tem na escola, por exemplo, o livro ‘DNA’, eu nunca li esse livro, ninguém nunca me disse que esse livro é legal, que falava sobre genética, e eu tive genética, tive biologia, tive várias disciplinas [...]. Eu gostaria de ter tido mais influência nesse sentido. A gente lia muito artigo para discussão, para diálogo, mas leituras que falassem de biologia até a própria ‘Origem das Espécies’, de Darwin, ninguém nunca falou na sala: ‘Vocês poderiam ler o livro porque é bem legal’, entende, porque eu não tive, não tenho lembranças dessas dicas de leituras.

Diante do exposto por Cecília, estamos diante de uma leitura que assume outra forma de texto, são livros que relatam processos biológicos a partir de uma vertente histórica. Possuem como público-alvo não apenas estudantes de biologia ou áreas afins, mas aqueles que desejam conhecer sobre o DNA e a evolução. Uma literatura que ultrapassa a sala de aula e permite ao leitor a possibilidade para aprender mais sobre a Ciência de modo mais prazeroso.

Compreendemos, a partir de Souza (2003), Andrade e Martins (2006) e Daga (2016), que as sugestões apresentadas por Cecília, como leituras alternativas e complementares, podem motivar o aluno para o aprendizado, diminuem o distanciamento entre ele e o conhecimento científico, tecnológico e social, ampliam o repertório formativo e cultural, e podem ser objeto de investigação, problematização e motivação no cenário da escola de educação básica. Além disso, na educação em Ciências, seja no espaço da educação básica ou do Ensino superior, a leitura e a formação do aluno/acadêmico como leitor precisa ser potencializada de acordo as características educacionais, sociais e formativas envolvidas. Também é preciso superar o limite da leitura obrigatória para a leitura como recurso para aprendizagem e para formação cultural a partir de diferentes tipos de materiais.

Falar em leitura, nos dias de hoje, é reconhecer sua centralidade não apenas como prática acadêmica, mas como fundamento da formação crítica, reflexiva e cultural dos futuros professores. Em um contexto de intensas transformações sociais, tecnológicas e educacionais, ler torna-se um ato político e formativo — capaz de ampliar repertórios, desenvolver autonomia intelectual e fomentar a articulação entre saberes científicos e experiências escolares. A leitura, como evidenciado na análise empírica desta pesquisa e sustentada por autores como Giraldi (2010), Souza (2003) e Daga (2016) não pode mais se restringir ao cumprimento de tarefas avaliativas; ela deve ser compreendida como prática estruturante da formação docente.

Quando promovida de forma significativa e integrada às dimensões formativas do Dispositivo Educativo, a leitura contribui para consolidar os princípios institucionais da formação universitária — entre eles, a interdisciplinaridade, a articulação entre ciência e sociedade e o compromisso com a formação cidadã. Assim, discutir a leitura hoje é, sobretudo, reivindicar sua potência como eixo de formação profissional, cultural e humana nos cursos de licenciatura.

CONSIDERAÇÕES

Para responder aos nossos questionamentos, inquietações e objetivos, encontramos na Referencialização (Figari, 1996) orientações para o desenvolvimento do trabalho e diante da modelização do nosso Dispositivo Educativo, identificamos os objetivos e os princípios que orientam a formação de professores no curso de Ciências Biológicas da UFFS, os quais foram reunidos nas dimensões a serem avaliadas.

Da dimensão curricular, emergiram três categorias de análise que nos permitiu explorar questões relacionados às estratégias de ensino e leitura, à concepção de Ciência e à formação interdisciplinar (Lima, 2019). Para este trabalho apresentamos as discussões referente as práticas de leitura (não)realizadas pelos participantes da pesquisa, e com isso a necessidade de promovê-la junto aos acadêmicos. Um dos participantes sugere que sejam propostas estratégias que auxiliem na formação de uma cultura de leitura. Essa necessidade é igualmente apontada por Vale (2020), que defende a leitura em sala de aula como uma prática contínua, reflexiva e integrada ao cotidiano dos alunos — e não apenas como uma tarefa para ser realizada em casa.

Com a leitura, nos apropriamos de conhecimentos construídos pela humanidade, e ao interpretá-los de acordo com as nossas compreensões e, também, vivências, temos a oportunidade de (re)construir outros conhecimentos. Além disso, ler é uma atitude essencial para todas as profissões, e no caso dos cursos de licenciatura, a atenção também está no fato de que os acadêmicos, futuros professores, poderão utilizar a leitura enquanto uma estratégia de ensino, da mesma forma que devem incentivar a prática da leitura no contexto educacional.

Assim, a referencialização permite avaliar, no caso desta pesquisa, a formação de professores a partir dos princípios e orientações que emergiram dos referentes nacionais e institucionais. Portanto, eles refletem as concepções que a UFFS e o curso de licenciatura em Ciências Biológicas estabeleceram como princípios e objetivos para a formação dos seus acadêmicos. São discussões e orientações que não se restringem apenas à universidade investigada, elas também estão presentes há décadas na pesquisa educacional, com sugestões significativas à formação de professores. Portanto, os princípios e os objetivos precisam ser reconhecidos, trabalhados e mobilizados por todos aqueles que fazem parte da formação de novos profissionais da educação.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, I. B.; MARTINS, I. Discursos de professores de ciências sobre a leitura. Investigações em ensino de ciências, v.11, n.2, p.121-151, 2006. Disponível em: https://ienci.if.ufrgs.br/index.php/ienci/article/view/491/293

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VALE, R. F. Aprendendo com leituras e textos: uma estratégia pedagógica para o ensino de Ciências da Natureza. Revista Insignare Scientia, v. 3, n. 2, p. 509–520, mai./ago. 2020. Disponível em: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/RIS/article/view/11383.



[1] Para propostas curriculares elaboradas a partir de 2015, deve ser inserida a Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015. 

[2] Para propostas curriculares elaboradas a partir de 2015, deve ser inserida a Resolução CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015.

[3] Para analisar os cursos de licenciatura da UFFS, com PPC a partir de 2016, deve ser inserido Documento síntese do Fórum das Licenciaturas (2016).

[4] Para analisar os cursos de licenciatura da UFFS, com PPC, a partir de 2016, deve ser inserido o Documento Síntese do Fórum das Licenciaturas, publicado em 2016.