DOI: 10.36661/2595-4520.2025v8n1.15161
Recebido em: 08/07/2025
Aceito em: 13/11/2025
O que é isto que se mostra do Itinerário Formativo: percepções de professoras de Química do Centro-Oeste
What is this that is shown in the Training Itinerary: perceptions of Chemistry teachers from the Central-West
Qué es lo que se muestra en el Itinerario de Formación: percepciones de los docentes de Química del Centro-Oeste
Ana Carolina Manvailer Siqueira (ana.siqueira033@academico.ufgd.edu.br)
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Brasil
https://orcid.org/0009-0007-3999-4697
Vivian dos Santos Calixto (viviancalixto@ufgd.edu.br)
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Brasil
https://orcid.org/0000-0002-5521-0633
Resumo
No campo educacional a seleção de determinados conteúdos em detrimento de outros expressa intencionalidades e modos de ser e estar de uma sociedade. Considerando que a experiência vivenciada na Escola oportuniza uma formação mais ou menos alienadora/domesticadora, o espaço do currículo se torna um importante palco de disputas e de constituição de identidades. Nas últimas décadas foram propostas distintas reformas curriculares que prometeram resolver os problemas crônicos do sistema educacional. Dentre elas destacam-se o Novo Ensino Médio (NEM) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que alicerçaram sua proposição mediante a propaganda da flexibilização curricular e maior atratividade. Diante dessa conjectura, em nosso estudo intencionamos compreender o contexto do Itinerário Formativo (IF) por meio de entrevistas com três professoras. Do processo de análise das entrevistas, via Análise Textual Discursiva, emergiram quarenta e duas unidades de significado, quatorze categorias iniciais, quatro categorias intermediárias e uma final. Nesse artigo nos centramos no debate de duas categorias intermediárias, uma vinculada às acepções do NEM e a outra nos seus impactos. No processo interpretativo foi possível identificar pistas relevantes no desafio de compreensão do IF, tais como: i) a dualidade das acepções do NEM e IF; e ii) desocultamento da realidade.
Palavras-chave: Novo Ensino Médio; Entrevistas; Análise Textual Discursiva.
Abstract
In the educational field, the selection of certain contents to the detriment of others expresses intentions and ways of being and acting of a society. Considering that the experience lived in school provides a more or less alienating/domesticating education, the curriculum space becomes an important stage for disputes and the constitution of identities. In the last decades, different curricular reforms have been proposed that promised to solve the chronic problems of the educational system. Among these, the New Secondary Education (NEM) and the National Common Curricular Base (BNCC), which based their proposition on the propaganda of curricular flexibility and greater attractiveness. In view of this conjecture, in our study we intend to understand the context of the Formative Itinerary (IF) through interviews with three teachers. From the process of analyzing the interviews, via Discursive Textual Analysis, forty-two units of meaning emerged, fourteen initial categories, four intermediate categories and one final category. In this article we focus on the debate of two intermediate categories, one linked to the meanings of NEM and the other to its impacts. In the interpretative process it was possible to identify relevant clues in the challenge of understanding IF, such as: i) the duality of the meanings of NEM and IF; and ii) unveiling of reality.
Keywords: New Secondary Education; Interviews; Discursive Textual Analysis.
Resumen
En el ámbito educativo, la selección de ciertos contenidos en detrimento de otros expresa las intenciones y las formas de ser y actuar de una sociedad. Considerando que la experiencia escolar proporciona una educación más o menos alienante/domesticadora, el currículo se convierte en un escenario importante para las disputas y la constitución de identidades. En las últimas décadas, se han propuesto diversas reformas curriculares que prometían resolver los problemas crónicos del sistema educativo. Entre ellas se encuentran la Nueva Escuela Secundaria (NEM) y la Base Curricular Nacional Común (BNCC), que basaron su propuesta en la promoción de la flexibilidad curricular y un mayor atractivo. Ante esta conjetura, en nuestro estudio nos proponemos comprender el contexto del Itinerario Formativo (IF) a través de entrevistas a tres docentes. Del proceso de análisis de las entrevistas, mediante el Análisis Textual Discursivo, emergieron cuarenta y dos unidades de significado: catorce categorías iniciales, cuatro intermedias y una final. En este artículo nos centramos en el debate de dos categorías intermedias, una vinculada a los significados del NEM y la otra a sus impactos. En el proceso interpretativo fue posible identificar pistas relevantes en el desafío de la comprensión del IF, tales como: i) la dualidad de los significados de NEM e IF; y ii) el develamiento de la realidad.
Palabras-clave: Nueva Escuela Secundaria; Entrevistas; Análisis Textual Discursivo.
DAS PALAVRAS DE CONTEXTO À ANCORAGEM TEÓRICA
O currículo assume um papel central no contexto educacional, especialmente quando compreendemos sua influência na constituição de identidades e consolidação de áreas de conhecimento. Os processos de seleção e densidade dos conteúdos estruturantes das matrizes curriculares oportunizam a constituição de identidades e com isso perfis daqueles que integram a sociedade. Mediante o exposto, os argumentos em torno da definição do currículo como um documento de identidade e território de disputa, tecidos por Silva (2015) e Arroyo (2013), nos parecem potentes e coerentes no intento de compreender as influências das reformas curriculares impostas na contemporaneidade.
Nesse escopo, Sacristán (2013, p. 25) nos convida a reflexão, por meio de uma metáfora, sobre as possíveis zonas de aproximação e distanciamento do currículo prescrito e real, nas suas palavras:
[...] não é o currículo em si que constitui um plano escrito, mas o seu desenvolvimento. O primeiro é como se fosse a partitura, o segundo seria a música que é executada. Ambos guardam uma relação entre si, embora sejam coisas distintas. Com base na partitura, podem ser desenvolvidas ou executadas músicas diferentes.
Esta metáfora nos parece potente, no intento de compreendermos as possibilidades de ressignificação do currículo prescrito, dos documentos normativos, no cenário da escola, o currículo real. Quando consideramos as reformas contemporâneas, em especial aquelas correlatas a Educação Básica, que envolvem a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Lei 13.415/2017, popularmente conhecida como Novo Ensino Médio (NEM), identificamos um solo fértil para analisar as variáveis expressas até o momento.
Diante dessa conjuntura, compreender o contexto de produção desses documentos, os interesses e intencionalidades explícitas e implícitas, delineia-se como um pertinente exercício para desenvolver estratégias para que a música possa ser executada, a partir da partitura, mediante outros tempos e compassos. Ao observarmos o histórico da elaboração, tanto da BNCC quanto da Lei do NEM, podemos identificar pistas que desvelam e atribuem características e marcadores neoliberais a essas propostas. As distintas versões da BNCC e a desvinculação das mesmas à perspectivas mais dialógicas e com representatividade esboçam o abandono de uma versão mais democrática. Sobre esse cenário Compiani (2018) argumenta que, considerando as versões da base, podemos classificá-las como versão democrática e versão do golpe. Conforme discorre:
Há muitas diferenças entre as versões, talvez a principal diferença entre a versão aprovada pelo CNE e a anterior que teve o seu processo de construção interrompido pelo golpe de estado, é que esta, ao envolver um grande grupo de pesquisadores das universidades e professores da rede de ensino básica brasileira e pelo processo interno e externo (ampla consulta nacional) desse grupo ter havido muito diálogo com seus diversos conflitos, a sua última versão reflete e refrata os avanços teórico-metodológicos atuais, no Brasil, na área de ensino e pesquisa de Ciências da Natureza; vou nomear essa versão como versão democrática. Aquela, a versão do golpe, como vou discutir estruturou-se com um forte embasamento cognitivista nos referenciais da taxonomia de Bloom (Compiani, 2018, p. 94, grifos nossos).
A troca da equipe de elaboração da BNCC esboça intencionalidades daqueles que conduziram o término do seu percurso de estruturação. Para além dessa nuance, a desconsideração da participação dos setores educacionais nesse processo se configurou como outra dimensão problemática da redação final deste documento. Pistas semelhantes se desvelam quando avaliamos os movimentos de produção da Lei do NEM. A sua gênese, atrelada a conversão de uma Medida Provisória (MP), a MP No 746 de 22 de setembro de 2016, já esboça problemas em termos de consideração e relevância dos princípios democráticos.
Cássio e Goulart (2022) e Fávero, Centenaro e Santos (2022) argumentam, de maneira convergente, em torno das problemáticas que constituem o âmago das reformas contemporâneas, em especial do NEM, e mencionam como nuances recorrentes a falácia da flexibilização curricular, a falta de investimentos e a retomada de conceitos e propostas anacrônicas como a pedagogia das competências. Ao desenvolver uma análise deste documento Calixto (2023) propõe seis fotografias, que potencializam a compreensão das zonas limitantes da Lei do NEM, destas menciona: i) alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB); ii) ferramenta para implementação da BNCC; iii) aumento da carga horária; iv) itinerários (de)formativos; v) notório saber; e vi) ensino profissional. Especificamente, quando discorre sobre a fotografia do itinerário, que adjetiva de (de)formativo, argumenta:
O termo itinerário formativo pode ser destacado como um dos mais problematizados no escopo do texto da BNCC e por decorrência da Lei do NEM. Transvestido de uma boa intencionalidade, que assume, pelo menos duas variações semânticas, constituídas por diferentes modulações de intelectualidade, ora como liberdade de escolha e ora como flexibilização curricular (Calixto, 2023, p. 92, grifos nossos).
A reforma do NEM propõe a organização do currículo a partir de duas dimensões, a primeira centrada na Formação Geral Básica e a segunda vinculada aos Itinerários Formativos (IF). No que tange especificamente ao IF Viegas, Domingues e Lima (2024, p. 11) discorrem que configura-se como:
[...] sequências de estudos e atividades que visam orientar o desenvolvimento educacional e profissional de uma pessoa. Eles são compostos de disciplinas com teor mais prático ou trazem o protagonismo dos alunos como parte de seu desenvolvimento permitindo que os estudantes do Ensino Médio adquiram certas habilidades e conhecimentos necessários para atingir suas metas.
Os autores avançam indicando que no MS foram identificados formatos diversos “como programas de formação técnica e/ou profissional, sendo que, dentro de cada área de formação, esse modelo é o mais comum nas escolas estaduais do MS, uma vez que, na maioria delas, não há estrutura para oferecer itinerários mais técnicos e práticos” (Viegas; Domingues; Lima, 2024, p. 11).
A falácia da flexibilização curricular, propagada pela proposição dos IF, se desvela como inviável na medida em que na realidade das escolas, especialmente do sistema público, não encontra suporte em investimento financeiro e uma política de valorização dos profissionais da educação. Diante desse contexto, complexo e multifacetado, compreendemos como relevante adensar e diversificar as pesquisas que assumam como foco a investigação do fenômeno do NEM, principalmente quando consideram como lócus nossa localização geográfica. Sendo assim, intencionamos, por meio desse artigo, nos ancorando em uma perspectiva Fenomenológica e Hermenêutica, “compreender o que é isto que se mostra do IF a partir da percepção de três professoras de Química”.
APORTES METODOLÓGICOS
O desenho teórico/metodológico desta investigação se ancora nos princípios da pesquisa de natureza qualitativa (Sanchez-Gamboa, 2007), assumindo uma ênfase Fenomenológica e Hermenêutica (Bicudo, 2011; Moraes; Galiazzi, 2016). Como questionamento orientador do movimento interpretativo propomos: o que é isto que se mostra do IF a partir das falas de três professoras de Química? Mediante esses marcadores tencionamos compreender nosso fenômeno de interesse, o IF, por meio de dois movimentos complementares, sendo eles: i) um exercício sistemático de descrição fenomenológica, pautado nos princípios da Fenomenologia; e ii) a busca pela compreensão deste fenômeno por meio do desafio da interpretação no percurso entre a palavra e o conceito, base da Hermenêutica Filosófica.
O processo de constituição do material empírico se estruturou por meio da realização de entrevistas com professoras vinculadas a escolas parceiras. A seleção destas professoras considerou a relação que estabelecemos no desenvolvimento de distintas ações vinculadas a dimensões de ensino, pesquisa e extensão. O roteiro da entrevista pode ser observado no Quadro 1, na sequência:
Quadro 1 – Roteiro da entrevista.
|
Parte I – Estabelecimento do perfil |
|
|
Questão 1 |
Qual é sua formação acadêmica? |
|
Questão 2 |
Há quanto tempo você atua na Educação Básica? |
|
Questão 3 |
Quais disciplinas você leciona? |
|
Parte II – Compreensão acerca do IF |
|
|
Questão 1 |
Qual sua experiência com o NEM? Você teve alguma formação específica para atuar nessa nova estrutura curricular? |
|
Questão 2 |
Como você compreende o conceito de IF no contexto da sua prática docente? |
|
Questão 3 |
Como os Itinerários Formativos foram organizados na sua escola e como essa estrutura impacta o ensino? |
|
Parte III – Desafios e Impactos |
|
|
Questão 4 |
Quais desafios você enfrentou ao implementar os IF nos seus planejamentos de aula? |
|
Questão 5 |
Na sua percepção, como os IF contribuem para a formação dos estudantes? Como a disponibilidade de recursos influencia esse processo? |
|
Parte IV – Ensino de Química e o IF |
|
|
Questão 6 |
Como os conteúdos de Química têm sido abordados dentro do IF? |
|
Questão 7 |
Quais estratégias você tem adotado para conectar os conteúdos de Química com as novas diretrizes do NEM? |
|
Parte V – Perspectivas e Sugestões |
|
|
Questão 8 |
Se pudesse modificar algo no NEM para melhorar a implementação dos IF com relação aos conteúdos de Química, como seria e por quê? |
|
Questão 9 |
Você acredita que os impactos da reforma do Ensino Médio podem ser revertidos ou modificados no futuro? |
|
Parte VI – Perguntas criativas |
|
|
Questão 10 |
Se você tivesse que explicar o IF para um professor que nunca ouviu falar disso, mas apenas com uma metáfora ou analogia, qual usaria? |
|
Questão 11 |
Se pudesse voltar no tempo e dar um conselho a si mesmo antes da implementação do NEM, qual seria? |
|
Questão 12 |
Existe alguma experiência marcante que resume bem os desafios ou oportunidades dessa mudança? |
|
Questão 13 |
Se sua escola tivesse total autonomia para organizar os IF, como faria para que realmente fizessem sentido para os alunos? |
|
Questão 14 |
Se um aluno perguntasse: “Professor(a), por que eu preciso aprender isso dentro desse itinerário?” Qual seria sua resposta mais honesta? |
|
Questão 15 |
Você acredita que olharemos para essa reforma como um avanço educacional ou um erro que precisará ser corrigido? |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Vale destacar que o roteiro, expresso no Quadro 1, passou por processo de validação realizado por integrantes do grupo de pesquisa[1] em que ambas as autoras se vinculam. Três professoras de Química, pertencentes a três escolas parceiras, participaram das entrevistas e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Cada entrevista apresentou uma média de cinquenta minutos e passou por processo minucioso de transcrição. A análise da primeira parte da entrevista e da primeira questão da segunda parte compuseram o Quadro 2, inerente ao perfil das colaboradoras. Conforme expresso a seguir:
Quadro 2 – Perfil das colaboradoras.
|
Codinome |
Formação |
Tempo de docência |
Disciplinas |
Experiência/Formação no NEM |
|
PQ1 |
Química Industrial; Licenciatura em Química; Mestre em Educação Científica e Matemática; Pós-graduação em Educação Ambiental e Sustentabilidade. |
6 anos |
Química e Unidade Curricular (UC) |
Entre altos e baixos, participa do NEM desde 2022, quando todas as escolas de MS passaram a compor esse modelo. Reflete em torno da falta de formações, ou de suas inadequações. |
|
PQ2 |
Bacharel em Química; Licenciada em Química; Mestre e Doutora em Química. |
7 anos |
Está atuando na coordenação; Química; UC; itinerários, etc. |
Destaca falta de formação, explicita que atualmente está mais organizado, mas entre 2022 e 2023 foi complicado. |
|
PQ3 |
Licenciada em Química |
12 anos |
Química, UC 2 e 4 |
Experiência satisfatória, destaca melhora desde 2024. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Mediante o expresso no quadro podemos observar que todas as três professoras apresentam formação específica, com graduação em Licenciatura em Química. Para além do exposto cabe ressaltar que o tempo de atuação das três oportuniza e enriquece a interpretação do contexto, antes e durante a proposição do NEM. Acresce-se a essas dimensões o fato de que ministram componentes vinculados ao espaço do IF.
As questões – dois, da parte dois até a quinze, da parte seis – foram analisadas a partir dos aportes teórico/metodológicos da Análise Textual Discursiva (ATD), desenvolvida por Moraes e Galiazzi (2016). Esta metodologia se configura como uma potente proposta para análise de informações discursivas, vinculada a pesquisas de natureza qualitativa, e ancora-se em princípios da Fenomenologia e Hermenêutica. Sua operacionalização envolve, essencialmente, três movimentos, sendo eles: a) unitarização; b) categorização; e c) elaboração do metatexto.
Por meio do movimento de unitarização das transcrições das entrevistas emergiram quarenta e duas unidades de significado, quatorze categoriais iniciais, quatro categorias intermediárias e uma categoria final. O processo de categorização pode ser observado na sequência:
Quadro 3 – Processo de categorização.
|
Categorias Iniciais |
Categorias Intermediárias |
Categoria Final |
|
A - Acepções (3)[2] |
1 - Acepções do NEM [A(3)+D(3)+I(3)+M(3)= 12] |
Paisagens compreensivas do Itinerário no NEM |
|
D - Contribuições na formação dos Estudantes (3) |
||
|
I - Metáforas do IF (3) |
||
|
M - Porque estudar no IF (3) |
||
|
B - Organização e impacto (3) |
2 - Currículo [B(3) +C(3) + G(3) + K(3) + L(3)=15] |
|
|
C - Abordagem dos conteúdos (3) |
||
|
G - Possíveis alterações (3) |
||
|
K - Experiências marcantes (3) |
||
|
L - Escolhas possíveis (3) |
||
|
E - Abordagem dos conteúdos de Química (3) |
3 - Conteúdos e Estratégias no E.Q [E(3) + F(3)=6] |
|
|
F - Estratégias de ensino dos conteúdos de Química (3) |
||
|
H - Há reversões possíveis dos impactos (3) |
4 - Impactos NEM [H(3) + J(3) + N(3)=9] |
|
|
J - Conselhos NEM (3) |
||
|
N - Reforma enquanto erro ou progresso (3) |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Na próxima dimensão do artigo, por meio do metatexto, desenvolvemos um exercício de comunicação de nosso movimento interpretativo, mediante a apresentação das categoriais intermediárias 1 e 4, catalisado pelas respostas da entrevista.
METATEXTO - NEM E IF: O DESAFIO DE TROCAR O PNEU DO CARRO ENQUANTO ANDAMOS
Esta dimensão do texto comunica o exercício de compreensão realizado por meio das entrevistas realizadas com três professoras de Química da rede pública do estado de Mato Grosso do Sul (MS). Sua estrutura contempla duas, das quatro categorias intermediárias explicitadas no Quadro 3.
Categoria intermediária 1: acepções do NEM
Esta categoria intermediária é composta por quatro categorias iniciais, que foram organizadas a partir de perguntas norteadoras feitas às professoras participantes da pesquisa. Cada uma dessas categorias reúne três unidades de significado, correspondentes às respostas de três docentes, e busca explorar diferentes facetas da vivência do IF no contexto do NEM. A primeira categoria, A, concentra-se nos sentidos atribuídos ao conceito de IF pelas professoras, ou seja, como elas compreendem essa proposta dentro de suas práticas docentes. A segunda, D, volta-se às percepções sobre as contribuições dos itinerários para a formação dos estudantes, considerando também os efeitos da disponibilidade (ou falta) de recursos nesse processo. A categoria I convida as docentes a expressarem o itinerário por meio de metáforas ou analogias, permitindo acessar representações simbólicas que revelam aspectos subjetivos e interpretativos da proposta. Por fim, a categoria M busca compreender o sentido atribuído ao itinerário na perspectiva do aluno, a partir de uma pergunta hipotética sobre a utilidade e a relevância de se aprender dentro desse espaço. Juntas, essas categorias iniciais possibilitam uma análise multifocal, que considera tanto os entendimentos conceituais quanto os sentidos práticos e subjetivos atribuídos ao IF pelas docentes entrevistadas.
Categoria Inicial A: acepções
Ao longo dessa categoria inicial são abordadas algumas das possíveis definições/entendimentos do espaço do IF a partir das percepções das professoras colaboradoras. Para PQ1, por exemplo, o IF pode ser compreendido enquanto uma oportunidade de duas vias, a primeira concernente à escolha de área pelos alunos e a segunda com relação a diversificação de estratégias do professor, intencionando aprofundar os conhecimentos. Nas suas palavras:
Olha, eu vejo itinerário como uma oportunidade da gente trabalhar conceitos que não dá tempo na química básica. Eu acho que foi essa a primeira vontade do governo, em que os alunos escolhessem uma área que eles gostassem mais para se aprofundar. Então, acho que era esse o intuito (PQ1.PT2Q2.1[3], grifos nossos).
Já PQ2 compreende que o IF se configura como um caminho específico para o futuro acadêmico e profissional, visto que:
Eu entendo que o itinerário veio com a proposta de ser mais específico em algumas áreas para que depois que o estudante termine a educação básica, ele possa ir para uma universidade ou fazer, depois da educação básica, estudar outros estudos em relação ao que foi aprendido de forma específica na escola. Essa acho que era a proposta (PQ2.PT2Q2.1, grifos nossos).
Enquanto PQ3 o percebe “Como um aprofundamento para o desenvolvimento de habilidades que são elencadas como primordiais para que o processo de aprendizagem do estudante ocorra” (PQ3.PT2Q2.1, grifo nosso). Dá análise e interpretação das falas das três professoras podemos identificar algumas dimensões de convergência, tal como a ideia de que o IF se configura como espaço/tempo de aprofundamento, no intento de adensar questões/conceitos não contemplados no decorrer das aulas do componente curricular de Química.
A reforma do NEM, legitimada pela Lei 13.415/2017, determina a reorganização do currículo a partir de duas dimensões, a Formação Geral Básica e os IF (Brasil, 2017). Na primeira são contemplados os componentes tradicionais, que se fazem presentes a um longo tempo, organizados em áreas como: Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Na segunda são propostos componentes que, supostamente, possibilitariam aos estudantes o movimento de escolha e a diversificação curricular.
No âmago da (contra)reforma do NEM o IF tem incorporado a figura, na promessa disseminada, da flexibilização curricular, oportunizando a liberdade de escolha para os estudantes. A esse respeito, Calixto (2023), em investigação documental, com foco na Lei do NEM, discorre que duas abordagens de divulgação são assumidas, compostas por modulações de intelectualidade diferentes, a primeira propagada como liberdade de escolha, direcionada ao público em geral, e a segunda como flexibilização curricular, para a esfera acadêmica.
Entendemos que a compreensão das professoras, em torno do IF, enquanto espaço de aprofundamento, se catalisa mediante a própria denominação que esta dimensão foi assumindo no currículo de MS. Nas versões iniciais do currículo do NEM observa-se a organização dos IF mediante a seguinte estrutura: i) uma parte comum, sem escolha, na qual os estudantes cursam componentes como Língua Espanhola, Projetos Empreendedores (Projeto de Vida, Empreendedorismo Social e Intervenção Comunitária) e Ciências Integradas (Ciências Integradas e novas Tecnologias, Linguagens e Interartes e Matemática Criativa); e ii) uma parte flexível, ramificada em dois percursos, Propedêutico (Aprofundamento em área de conhecimento, com quatro Unidades Curriculares, e uma Unidade Curricular Eletiva) e o Profissional (com três Unidades Curriculares). Essa organização pode ser observada na Figura 1, na sequência:

Fonte: Elaborado pelas autoras com base no Anexo I da Resolução SED No 3.958 de 16/12/2021.
Figura 1 – Matriz curricular – Ensino Médio em Tempo Integral/ MS – 2021.
Ante ao exposto, a percepção do IF enquanto campo de aprofundamento e com viés propedêutico pode estar influenciada pela organização e denominação que esta dimensão carregou nas suas versões preliminares, na matriz referência do estado. Diante da análise das entrevistas compreendemos que os IF são anunciados como caminhos de escolha, aprofundamento e preparação para o futuro. Prometem autonomia ao estudante e inovação ao docente. No entanto, entre o ideal e o real, o que se observa são tensionamentos, falta estrutura, sobra improviso e a promessa de formação integral muitas vezes se esvazia no cotidiano escolar.
Categoria inicial D: contribuições na formação dos estudantes
Esta categoria busca comunicar nossa interpretação acerca de como as professoras compreendem os efeitos dos IF no desenvolvimento dos alunos, considerando também o papel que a disponibilidade (ou escassez) de recursos exerce nesse processo. A partir das respostas à pergunta norteadora, observa-se que as docentes apontam para o potencial formativo do IF, destacando aspectos como o incentivo à experimentação, à autonomia e ao protagonismo juvenil, ainda que nem sempre as condições escolares permitam a plena realização dessas intenções. Para PQ1, por exemplo, o itinerário representa uma oportunidade de tornar o ensino mais próximo da realidade, articulando os conceitos a dimensões da vida dos estudantes. Em suas palavras:
A questão de trazer mais o cotidiano, por exemplo, teve a do sabonete, então eu pude falar sobre a história do cosmético. Desde quando começou a utilizar. E aí a gente foi, fez balm labial, a gente fez sabonete. Todo um contexto, eu consegui trazer um contexto. Mas, assim, às vezes os alunos acham que isso encher linguiça”. Fala assim, ah professora, isso aqui, ó. Serve pra nada. Mas, às vezes, eu acho que é... Assim, o modo que a gente passa também. Tem professor que passa que é uma encheção de linguiça. E aí o aluno acredita que é mesmo. Mas eu vejo que é uma possibilidade de aplicação [...] (PQ1.PT3Q5.1, grifos nossos).
Já para PQ2, os itinerários podem contribuir na formação se houver continuidade e orientação, pois os estudantes ainda não têm maturidade para fazer escolhas bem fundamentadas. Como afirma:
Então, assim, eu acho que a proposta dos itinerários é boa, se fosse colocada da maneira correta. Então, assim, como eu disse, os estudantes, eles fazem uma escolha de qual itinerário ele quer frequentar. Vendo assim, eu gosto um pouco de biologia, eu gosto de química, então eu vou fazer esse itinerário que tem as matérias de ciência da natureza. Então, eles fazem a escolha. Só que tem horas que a escolha, eles acham que é uma coisa e é outra, eles querem ficar mudando. Então, assim, para a formação deles, se eles continuassem os três anos, eu gostei de biologia, química, ciência, matemática, então se eles ficassem os três anos, primeiro, segundo e terceiro ano num tipo de itinerário só, eu acho que eles sairiam mais perceptivos para uma universidade, do que eles ficarem e falarem, ah, vocês ficam pulando de galho em galho, daqui a pouco você não sabe o que querem fazer. E realmente eu acho que eles não têm um amadurecimento para poder fazer essas escolhas (PQ2.PT3Q5.1, grifos nossos).
PQ3 discorre que o IF funciona, no modelo atual, como um apoio à disciplina da base, especialmente quando é conduzido pelo mesmo professor. No entanto, ela destaca que a falta de recursos por parte da Secretaria de Educação exige que o próprio docente arque com os custos para garantir aulas mais dinâmicas e eficazes. Nas palavras da entrevistada:
No modelo atual sim, pois serve como uma aula de apoio para a disciplina da base. Se o mesmo professor pega a disciplina consegue trabalhar mais tranquilamente. Em relação a disponibilidade de recursos é ilusão ficar esperando recurso da Secretaria de Educação para fazer sua aula, o professor deve ser consciente que vai ter que gastar dinheiro do bolso para que as aulas ocorram de forma mais dinâmica e diferenciada (PQ3.PT3Q5.1, grifos nossos).
Dessa forma, observa-se que, embora as professoras reconheçam o potencial formativo dos itinerários, há uma compreensão comum de que sua efetividade está condicionada a fatores como continuidade, clareza na escolha por parte dos estudantes e, sobretudo, condições materiais. A implementação dos IF, embora prometa favorecer a formação integral e a autonomia dos estudantes, encontra entraves estruturais que afetam diretamente sua efetividade. Lima e Gomes (2022), ao investigar a implementação do NEM em Pernambuco, a partir da perspectiva dos atores escolares, identificam três sentimentos: a desconfiança, a incerteza e a expectativa. Esses sentimentos desvelam angústias, aventuras e desventuras vivenciadas no decorrer de um processo pautado pela celeridade e antidialogicidade, tal qual como experienciado em MS.
Dessa forma, as percepções das professoras colaboradoras demonstram que, para que os IF contribuam de fato com a formação dos estudantes, é necessário superar a lógica da responsabilização individual e garantir condições concretas de funcionamento, como continuidade das propostas, orientação pedagógica e investimento em infraestrutura. Caso contrário, corre-se o risco de reforçar desigualdades, esvaziando de sentido a proposta de formação integral. Nesse ínterim, do processo de análise pode-se argumentar que quando o cotidiano do aluno se torna ponto de partida para o conteúdo, surgem oportunidades reais de aprendizagem. No entanto, escolhas precipitadas, falta de preparo e ausência de acompanhamento comprometem a formação integral que se almeja. A responsabilidade pela qualidade do processo recai, muitas vezes, sobre o professor, que precisa conciliar a flexibilidade da proposta com a garantia de sentido e profundidade nas experiências formativas.
Categoria inicial I: metáforas do IF
As imagens criadas pelas professoras, ao recorrerem a comparações simbólicas, revelam sentidos que muitas vezes escapam às definições formais. É nesse jogo entre o concreto da prática e a abstração das metáforas que se tornam visíveis nuances importantes sobre como o IF é percebido no cotidiano escolar. Para PQ1, por exemplo, a experiência com o IF é marcada por uma sensação constante de urgência e improviso no fazer docente. Em suas palavras:
É trocar o pneu do carro com o carro andando. É isso. Você precisa consertar alguma coisa, mas você não pode parar ela. Ah, não tem como eu parar a aula pra eu falar, não, agora, hoje eu não vou dar aula porque eu vou estudar pra eu dar aula depois. Não existe. Você tem que ir se preparando durante o processo (PQ1.PT6Q10.1, grifos nossos).
Já PQ2 recorre à imagem de uma viagem para expressar a dinâmica do IF, destacando a ideia de escolhas e caminhos personalizados na aprendizagem. Segundo a colaboradora:
Ah, eu diria que o itinerário é uma jornada, uma viagem personalizada, que o professor é o guia dessa viagem, e os alunos são os viajantes. E os alunos podem escolher, fazer as suas escolhas conforme vai acontecendo ao longo do tempo. E o itinerário tem o caminho de uma aprendizagem mais específica (PQ2.PT6Q10.1, grifos nossos).
Essas percepções ecoam a crítica tecida por Viegas, Domingues e Lima (2024, p. 13), especialmente quando discorrem que:
No caso da REE-MS, identificamos um movimento implementação impositiva verticalizada das orientações da BNCC, desconsiderando as características regionais específicas, mas sim com uma aderença estreita com os desígnios das orientações via BNCC-EM, o que tem servido para o enfraquecimento da autonomia docente, da discussão coletiva, da reflexão crítica e da questão da identidade profissional do professor.
Ante ao exposto, do desafio de análise desta categoria emerge o argumento de que as metáforas ajudam a traduzir o que os IF representam na prática, o conserto com o carro andando e uma viagem com rotas mal definidas, na qual professores precisaram se preparar enquanto já estavam em movimento. A promessa de personalização se diluiu em escolhas limitadas, tornando o IF mais parecido com um cardápio fixo do que com uma experiência. A imagem revela não só os desafios vividos, mas também a distância entre o discurso e a prática.
Categoria inicial M: Por que estudar no IF?
Esta categoria busca compreender quais sentidos são atribuídos à aprendizagem no contexto do IF, a partir de justificativas oferecidas pelas professoras sobre a importância de se estudar os conteúdos propostos nesse espaço. Trata-se de uma tentativa de acessar como esse componente é legitimado no discurso docente frente aos estudantes.
Nesse escopo PQ1 reforça a importância de tornar a ciência significativa para todos os alunos, buscando contextualizar os conteúdos para que façam sentido no cotidiano deles, o que, segundo ela, aumenta o interesse e o prazer pela aprendizagem. Nuances expressas na fala a seguir:
A minha resposta é para todos, na verdade. Sendo para a Química, e para a Unidade Curricular. Eu quero que eles vejam as coisas aplicadas, que realmente façam sentido para eles. Às vezes tem algumas coisas que estão um pouco mais longe, e aí você fica difícil de dar uma aplicação para o aluno. Mas, tudo isso, eu falo que a ciência precisa ser emancipadora. E ela precisa dar sentido e ter sentido para o aluno. Então, quanto mais eu conseguir contextualizar os conteúdos para que o aluno não faça essa pergunta, mais eu vou fazer. Então, por exemplo, eu estou dando aula de chuvas ácidas. O que eu mais uso de exemplo, para falar de pH, de potencial hidrogênio-iônico, é produto de lavar carro. Porque as minhas turmas do noturno, elas têm muito menino. Então, sabe o Intercap que você usa para lavar a lataria? Aquilo lá é um ácido. Sabe o Solupan que você usa para lavar o motor? Aquilo lá é uma base. Por isso que você usa para graxa, que é a soda cáustica. E aí eles se ligam. Ah, beleza. Ah, por isso que o carro estraga na chuva. Quando a chuva é ácida. Quando a ciência faz sentido, ela é muito mais legal. Eles vão ter muito mais prazer (PQ1.PT6Q14.1, grifos nossos).
Em sua fala a professora discorre em torno da relevância de ensinar Química, dentro do espaço do IF, de forma contextualizada e que almeje a emancipação. Nesse espectro este espaço/tempo se configura como potência na subversão das (contra)reformas em vigor. No intento de burlar o epistemicídio, Süssekind (2019), que assola o campo da Química na Formação Geral Básica, utiliza-se o IF como meio para adensar conteúdos e/ou temáticas ocultadas. Diante da interpretação das respostas das professoras podemos argumentar que o IF só cumpre sua função quando oferece mais do que conteúdos: ele precisa entregar propósito. Disciplinas específicas têm o potencial de formar sujeitos autônomos, desde que conectadas ao mundo real e às escolhas concretas dos estudantes.
Categoria intermediária 4: impactos do NEM
Esta categoria intermediária reúne enunciados que tratam das percepções sobre os efeitos mais amplos da reforma educacional. Contempla reflexões sobre possibilidades de revisão ou ajustes futuros, avaliações quanto aos rumos tomados pela política e posicionamentos sobre seu legado. Ao abordar aspectos relacionados à continuidade, às decisões tomadas durante a implementação e à forma como essa reforma poderá ser vista posteriormente, a categoria permite observar como a política educacional mobiliza sentidos sobre o presente e o futuro da escola.
Categoria inicial H: há reversões possíveis dos impactos?
A categoria H aborda percepções quanto à possibilidade de alterações futuras nos efeitos gerados pela implementação do NEM, considerando potenciais ajustes ou revisões dessa política. Para PQ1, a relevância dos IF pode ser condicionada ao tempo de permanência do estudante no modelo do NEM. A experiência vivida ao longo dos anos influencia o potencial impacto da proposta em sua trajetória educacional. Especialmente porque:
Muito depende da experiência que o aluno teve, porque às vezes teve esse aluno que pegou um ano e pra ele não fez diferença nenhuma. Ele só achou que aquilo lá era uma encheção de linguiça, ele saiu da escola e aquilo não causou nenhum impacto na vida dele. Talvez esse aluno que já pegou mais tempo, desde o primeiro ano que vem vindo, talvez cause um impacto (PQ1.PT5Q9.1, grifo nosso).
Para PQ2 as mudanças decorrentes da implementação do NEM foram inicialmente percebidas como desorganizadas, sem uma base clara, o que gerou incertezas entre os professores. Conforme o processo avançou, embora de forma lenta, observou-se uma melhora gradual na organização e compreensão dos conteúdos, da carga horária e da estrutura dos IF. Como destacado: “No começo, parecia que foi uma coisa jogada, sem base alguma, e os professores estavam perdidos. Agora, aos poucos, a mudança vem acontecendo de forma lenta, mas já é possível perceber uma melhora, tanto pelos professores quanto pelos estudantes” (PQ2.PT5Q9.1, grifos nossos).
A esse respeito Lima e Gomes (2022, p. 334) discorrem que: “acreditamos que mudanças possam ser necessárias, mas devem estar ligadas aos anseios sociais, políticos e históricos de quem faz a escola, e não de mecanismos terceirizados do mercado que tentam nela se infiltrar”. Nesse sentido argumentamos que os efeitos da implementação dos itinerários não são neutros nem definitivos. A escolha dos percursos, muitas vezes pouco dialogada, gerou afastamento ou desinteresse entre parte dos estudantes. No entanto, reconhecer esses limites é o primeiro passo para redirecionar o percurso. Reverter impactos exige revisão de práticas, escuta ativa e uma escola disposta/desafiada a reconstruir sentido para além da estrutura formal.
Categoria inicial J: conselhos sobre o NEM
A categoria J reúne relatos e recomendações relacionados à implementação do NEM, destacando desafios enfrentados e apontando orientações para aprimoramentos futuros. Essa categoria permite compreender as experiências vivenciadas durante o processo de adaptação às mudanças educacionais e suas consequências pedagógicas. A experiência docente frente aos desafios do NEM exige adaptação e aprendizado contínuo. Nesse ínterim, PQ1 compartilha um relato no qual discorre em torno desse processo de enfrentamento, desafio e coragem na prática pedagógica:
Vai igual. Você precisa de aula? Tenta. Você vai conseguir dar suas aulas. Não vai ser fácil, mas não tem o que fazer. Você precisa dar aula! Então, se a solução é dar aula nos IF, você vai dar. Talvez não seja melhor a aula? Talvez você queria se preparar mais? Sim, mas era o que tinha que ser feito. É o que eu podia fazer no tempo. Não me arrependo de ter feito as aulas, por exemplo, da ciência forense, que eu tinha que estudar os crimes. Mas talvez eu faria a aula diferente, ou faria outras coisas. Depois que a gente faz, a gente percebe melhor, quando faz uma análise. Mas aí, no outro ano, não tinha mais essa disciplina. Entendeu? Então, passou. Passou e é isso. Então, se você... É uma experiência nova, enriquecedora. Então, essa parte da biomimética eu não sabia. Que é inspirado na natureza, né? Não tinha nem ideia. Então assim, a gente aprende também, ao ensinar. Mas assim, eu não deixaria de pegar por ter sido uma experiência válida (PQ1.PT6Q11.1, grifos nossos).
Considerando esse âmago, especialmente acerca da dissonância entre as promessas e a realidade do NEM em MS, Benites, Santos e Calixto (2024, p. 15-16) discorrem:
Os desafios do NEM se revelam no confrontamento entre o “canto da sereia”, que propaga promessas doces, e a realidade do sistema educacional, amarga. Desse choque afloram incontáveis dimensões questionáveis e zonas limitantes. Embora a proposta apresente ideias atrativas, como a personalização do aprendizado e maior autonomia para os estudantes, a realidade de sua implementação mostra dificuldades significativas. A falta de recursos adequados, a formação insuficiente dos professores e a desorganização curricular resultam em uma qualidade de ensino que muitas vezes não corresponde às expectativas. Assim, é fundamental a revogação do NEM para superar essas limitações e garantir que os objetivos educacionais sejam realmente alcançados.
Ante ao exposto argumentamos que a distância entre o que foi prometido e o que foi vivido marcou a implementação do NEM. Com improvisos e frustrações, educadores e estudantes seguiram “fazendo o que dá”, lidando com mudanças sem o suporte necessário. Repensar o NEM exige ouvir quem esteve na linha de frente e aprender com os tropeços do caminho.
Categoria inicial N: reforma enquanto erro ou progresso
Esta categoria aborda compreensões mais amplas sobre o NEM, considerando seus possíveis desdobramentos no cenário educacional. Permite refletir sobre o lugar dessa reforma na trajetória da Educação Básica, ponderando seus efeitos, permanências e a forma como poderá ser interpretada ao longo do tempo. Nesse ínterim, PQ1 apresenta uma perspectiva construída a partir da vivência contínua com o NEM, destacando aspectos ligados à adaptação, desafios enfrentados no início da implementação e à possibilidade de uma consolidação futura. Nas suas palavras:
Depende do ponto de vista. Eu acho que o começo foi muito turbulento, por conta dessa implementação forçada [...]Então, eu acho que, com o tempo, esses impactos negativos vão sendo minimizados. Vai ter quem reclame do NEM a vida inteira? Vai. Mas vai ser assim mesmo (PQ1.PT6Q15.1, grifos nossos).
Entretanto, como argumentam Lima e Gomes (2022, p. 334), precisamos de um “efetivo acompanhamento de como essas políticas vão se concretizar, sobretudo, de forma a garantir o princípio da equidade”. Ante ao exposto, argumentamos que a reforma chegou sem preparo e impôs mudanças aceleradas, exigindo que professores e alunos aprendessem enquanto faziam. Se, por um lado, revelou fragilidades nas escolhas e na implementação, por outro, também abriu espaço para repensar práticas e promover ajustes. O tempo, nesse contexto, pode transformar um erro inicial em oportunidade de avanço.
Diante dessa conjectura, compreendemos, a partir dos movimentos interpretativos tecidos nas categorias intermediárias que estruturam esse artigo, que o fenômeno do IF, no NEM, perpassa dimensões estruturantes do/no campo curricular tais como as disputas por um território e a constituição de identidades (Arroyo, 2013; Silva, 2015). Nesse processo emerge a demanda por interpretar quais intenções modulam as propostas que vivenciamos no espaço escolar. Mais do que respostas que categorizem/tipifiquem/definam o currículo precisamos abrir espaço ao questionamento.
Tal como nos provoca Berticelli (2005), seria potente compreender o currículo como texto, hermenéia do mundo. Conforme elucida:
O currículo é, a um tempo e numa direção, interpretação de mundo. Na direção oposta, conhecer determinado currículo é interpretá-lo. É um caminho de duas mãos. Através dele, vai-se a um mundo determinado. Interpretando-o, recupera-se o mundo que nele foi produzido (representações simbólicas, transgressões, jogos de poder, lugares de escolhas, inclusões, exclusões, produtos de uma lógica explícita, resultados de 'lógicas clandestinas', vontades explícitas, imposições discursivas como efeitos da linguagem do próprio currículo) (Berticelli, 2005, p. 35).
Nessa paisagem a compreensão do currículo pode estar no movimento desafiador de interpretação do/no texto que constitui o currículo, no qual antes de ser resposta ao mundo é uma pergunta. Entender o currículo como texto envolve para além de pensar outras formas de tocar a partitura, construir outras partituras.
REFLEXÕES DE CULMINÂNCIA
Nesse momento retomamos nossa intencionalidade de investigação, que se centrou em compreender o fenômeno IF, vinculado ao NEM em MS, a partir das percepções de professoras de Química. Desse movimento emergem pistas, que esboçam uma paisagem interpretativa do IF no NEM. Como primeira pista aflora o entendimento de que o NEM, sustentado pelo discurso da flexibilização e da formação integral, é apresentado como uma proposta de ampliação de escolhas para os estudantes e de inovação metodológica para os docentes. No entanto, ao chegar às escolas, essa promessa se vê atravessada por limitações estruturais, improvisações e uma lógica de implementação apressada. A personalização anunciada se reduz a opções restritas; a autonomia do aluno, a decisões mal orientadas; e a inovação pedagógica, à sobrecarga do professor. Assim, o que deveria ser um itinerário torna-se um desvio de sentido, revelando a distância entre o projeto e sua vivência cotidiana. As acepções do NEM, portanto, oscilam entre o ideal normativo e a realidade escolar concreta, em que a intencionalidade formativa se dilui diante da ausência de condições para sua efetivação.
Na segunda pista compreendemos que a implementação dos IF produziu efeitos que extrapolam o campo pedagógico: afetou rotinas, relações e sentidos atribuídos à escola. A distância entre o prometido e o vivido gerou frustrações, mas também expôs fragilidades estruturais há muito negligenciadas. Reconhecer esses impactos não significa negar a proposta, mas encarar seus limites como ponto de partida para revisões necessárias. Só há avanço real quando há escuta, flexibilidade e disposição institucional para reconstruir com base na experiência.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel Gonzáles. Currículo, território em disputa. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
BENITES, Maria Tereza Greff; SANTOS, Elka Monaliza da Silva; CALIXTO, Vivian dos Santos. Contos acerca dos/nos encantos e desencantos da/na reforma do “Novo Ensino Médio”: o que se mostra da/na percepção de professores de Química em formação. Revista de Iniciação à Docência, [S. l.], v. 9, n. 1, p. e15420; 1–21, 2024.
BERTICELLI, Ireno Antônio. Currículo como Prática nas Reentrâncias da Hermenêutica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 30, n. 1, p. 23-48, 2005.
BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. Pesquisa qualitativa segundo a visão fenomenológica. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Lei nº 13.415, Reforma do Ensino Médio de 16 de fevereiro de 2017.
CALIXTO, Vivian dos Santos. Novo Ensino Médio e o Pensamento Crítico: da fotografia à cena de um filme. Poiésis, v. 17, n. e, p. 78–98, 2023.
CÁSSIO, Fernando; GOULART, Débora Cristina. A implementação do Novo Ensino Médio nos estados: das promessas da reforma ao ensino médio nem-nem. Retratos Da Escola, n. 16, v. 35, p. 285–293, 2022.
COMPIANI, Mauricio. Comparações entre a BNCC atual e a versão da consulta ampla, item ciências da natureza. Ciência em Foco, v. 11, n. 1, p. 91-106, 2018.
FÁVERO, Altair Alberto, CENTENARO, Junior Bufon; SANTOS, Antônio Pereira dos. A ilusão da liberdade de escolha: O problema da “customização” do currículo dos itinerários formativos da Reforma do Ensino Médio. Educação Por Escrito, n. 13, v. 1, e43171, 2022.
LIMA, Maria Conceção Silva; GOMES, Danyella Jakelyne Lucas. Novo Ensino Médio em Pernambuco: construção do currículo a partir dos itinerários formativos. Retratos da Escola, [S. l.], v. 16, n. 35, p. 315–336, 2022.
MATO GROSSO DO SUL. Resolução SED No 3.958, de 16 de dezembro de 2021. Dispõe sobre a organização curricular do Ensino Médio em Tempo Integral para as escolas do Programa de Educação em Tempo Integral, denominado “Escola da Autoria”, da Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul, e dá outras providências. Diário Oficial Eletrônico, MS, n. 10.710, 2021.
MORAES, Roque; GALIAZZI, Maria do Carmo. Análise Textual Discursiva. 3 ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2016.
SACRISTÁN, José Gimeno. O que significa currículo? In: SACRISTÁN, J. G. Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013, p. 16-35.
SÁNCHEZ GAMBOA, Silvio. Pesquisa em Educação: métodos e epistemologias. 1a. ed.SC: Argos, 2007.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3. ed. Belo Horizonte: Autentica, 2015.
SÜSSEKIND, Maria Luiza. A BNCC e o “novo” Ensino Médio: reformas arrogantes, indolentes e malévolas. Retratos da Escola, [S. l.], v. 13, n. 25, p. 91–107, 2019.
VIEGAS, Elis Regina dos Santos; DOMINGUES, Alex Torres; LIMA, Meire Helen dos Santos. A Base Nacional Comum Curricular e os itinerários formativos no Ensino Médio: reflexões sobre rede estadual do Mato Grosso do Sul. Educação e Fronteiras, Dourados, v. 14, n. esp.1, p. e024010, 2024.
[1]Grupo de Estudos e Pesquisa Horizontes Compreensivos na Educação em Ciências e Química – GEPHCECQ - http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/641067.
[2] O número entre os parênteses representa a quantidade de unidades de significado que se vincula a categoria.
[3] O código se estrutura mediante a seguinte lógica: PQ1, refere-se a Professora de Química, acrescido de um numeral para identificar a qual das três professoras a fala se vincula; PT2 articula-se a parte do roteiro de entrevista, expresso no Quadro 1; Q2.1, contempla a questão e a unidade de significado selecionada. Nesse ínterim, a fala de PQ1.PT2Q2.1 vincula-se a Professora de Química 1, em resposta a segunda questão da parte dois do questionário, na sua primeira unidade de significado.