Análise de uma prática pedagógica para o Ensino de Zoologia no Ensino Médio: construindo uma coleção entomológica

Analysis of a pedagogical practice for teaching Zoology in high School: building an entomological box

Análisis de una práctica pedagógica para la enseñanza de la zoología em secundaria: la construcción de una caja entomológica

 

Marllon Moreti de Souza Rosa (marllonmoretti6@gmail.com)

Universidade Estadual de Londrina, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-1006-0950

 

Wellington Donizet Ferreira (wellingtondonizet@gmail.com)

Instituto Federal do Amapá, Brasil

https://orcid.org/000-0003-2357-5547

 

Resumo

O presente artigo tem como objetivo relatar e analisar uma prática pedagógica para o ensino de zoologia valendo-se da elaboração de uma coleção entomológica em uma turma do Ensino Médio. A prática foi desenvolvida em uma escola estadual do Norte do Paraná, Brasil; e dividida em dois momentos: apresentação e discussão do grupo Arthropoda, dentro da sala de aula; coleta de animais no jardim do colégio e montagem de caixas entomológicas. Após a prática, os estudantes responderam a um questionário aberto, cujas respostas foram analisadas por meio da Análise de Conteúdo Temática. Os resultados revelaram que a prática teve impactos significativos para os estudantes, aumentando a motivação, interesse e curiosidade. No entanto, alguns estudantes expressaram sentimentos negativos, como medo e desconforto em relação aos insetos. A análise das respostas indicou a importância de abordagens pedagógicas sensíveis às emoções e reações individuais dos alunos.

Palavras-chave: caixas entomológicas; ensino de biologia; práticas pedagógicas.

 

Abstract

The aim of this paper is to report and analyze a pedagogical practice for teaching Zoology based on the construction of entomological boxes developed in a state school in northern Paraná, Brazil. The class was divided into two parts: (i) the presentation and discussion of Arthropoda in the classroom; (ii) collecting animals in the school garden and the elaboration of entomological boxes. After the practice, the students answered an open questionnaire, and the answers were analyzed using Thematic Content Analysis. The results revealed that the practice had a significant impact on the students, increasing their motivation, interest, and curiosity. However, some students expressed negative feelings, such as fear and discomfort in relation to insects. Analysis of the responses indicated the importance of pedagogical approaches that are sensitive to students' individual emotions and reactions.

Keywords: entomological boxes; biology teaching; pedagogical practices.

 

Resumen

Este trabajo tiene como objetivo relatar y analizar una práctica pedagógica para la enseñanza de la Zoología basada en la construcción de cajas entomológicas; desarrollada en una escuela estatal del norte de Paraná, Brasil. La clase se dividió en dos partes: (i) presentación y discusión del grupo Arthropoda en el aula; (ii) recolección de animales en el jardín de la escuela y elaboración de cajas entomológicas. Tras la práctica, los alumnos respondieron a un cuestionario abierto, cuyas respuestas se analizaron mediante el Análisis Temático de Contenido. Los resultados revelaron que la práctica tuvo un impacto significativo en los alumnos, aumentando su motivación, interés y curiosidad. Sin embargo, algunos estudiantes expresaron sentimientos negativos, como miedo e incomodidad en relación con los insectos. El análisis de las respuestas indicó la importancia de enfoques pedagógicos sensibles a las emociones y reacciones individuales de los alumnos.

Palabras-clave: caja entomológica; enseñanza de biología; prácticas pedagógicas.

 

 

INTRODUÇÃO

Quando pensamos na Educação Biológica (EB) nos deparamos com alguns obstáculos epistemológicos importantes, como a hiperdisciplinarização do conhecimento e as disputas pela constituição de uma Ciência Biológica autônoma (Nascimento Jr., 2010). Nesse sentido, é frequente que a EB seja desenvolvida de forma fragmentada, desconsiderando, inclusive, a evolução como o eixo integrador desse campo investigativo (Colli et al., 2021). Um caminho possível para a superação desse problema é o desenvolvimento de práticas pedagógicas contextualizadas, que partem dos conhecimentos prévios dos estudantes e articule os diversos campos que perpassam a Biologia (Duré et al., 2018). Um dos temas presentes nos currículos escolares e que permite o resgate dos conhecimentos prévios, biológicos e tradicionais, e a articulação de diferentes subáreas das Ciências Biológicas é a Zoologia (Silva; Costa, 2018).

O ensino de Zoologia possibilita a compreensão da diversidade da vida, fornecendo aos estudantes uma base sólida para a apropriação dos temas relacionados às Ciências Biológicas, entrelaçando assuntos voltados à ecologia, evolução, fisiologia e aspectos biotecnológicos, socioeconômicos e médicos que envolvem animais (Hernawati et al., 2018). Esses conhecimentos, em uma abordagem articulada, possibilitam o desenvolvimento do pensamento crítico, habilidades de observação e análise, bem como conscientização e sensibilidade em relação as questões ambientais, conforme apontam Hernawati e colaboradores (2018). Ainda, de acordo com Alves, Santos, Araújo e Leite (2022), o ensino de zoologia, geralmente, é de difícil compreensão por parte dos estudantes, devido às abordagens tradicionais, repetitivas e desinteressantes. Nessa direção, modelos didáticos alternativos ao tecnicismo podem apresentar grande eficiência no processo de ensino e aprendizagem de zoologia, principalmente em relação à entomologia, como demonstra o estudo de Vale e Silva (2019).

Uma prática pedagógica capaz de integrar os diversos conhecimentos e motivar os estudantes em relação ao processo educativo em zoologia é a construção de coleções zoológicas didáticas, entre estas as coleções entomológicas (Guimarães-Brasil et al., 2017; João et al., 2022). A construção de uma coleção entomológica envolve a coleta, fixação, montagem e organização de insetos em uma caixa de madeira, com objetivos de posterior observação, estudo ou exposição dos exemplares. Trata-se de uma atividade teórico-prática que inclui a construção de fichas técnicas, identificação e discussão das relações de parentescos entre esses animais. De acordo com Guimarães-Brasil e colaboradores (2017), a atividade prática pode auxiliar significativamente na motivação e interesse dos estudantes durante as aulas de zoologia. Especificamente, a construção de caixas entomológicas pode promover aulas em conexão com a realidade local, gerando o desenvolvimento de habilidades e competências relacionadas à prática científica, estímulo à curiosidade e investigação, abordagem interdisciplinar e aumento de engajamento dos estudantes.

Diante do exposto, o presente trabalho tem como objetivo relatar e analisar uma prática pedagógica para o ensino de entomologia a partir da construção de caixas entomológicas em uma turma do segundo ano do ensino médio de uma escola estadual do Norte do Paraná, Brasil.

 

PERCURSO METODOLÓGICO

Este é um trabalho com abordagem qualitativa, perspectiva metodológica utilizada quando os dados analisados não são, necessariamente, quantificáveis, considerando o pesquisador um sujeito ativo que se propõe, dentre as possibilidades, investigar a “experiência humana [...] entendendo que as pessoas interagem, interpretam e constroem sentidos” (Oliveira, 2008, p. 3). Essa construção de sentidos é materializada na medida em que o sujeito externaliza suas apropriações, apresentando, por meio do discurso, que é a articulação entre o plano objetivo e geral (significado social) e o plano singular e subjetivo (sentido atribuído pelo sujeito) (Vygotsky, 2001). Assim, para a coleta de dados, utilizamos dois instrumentos: a) observação-participante e registro em diário de bordo; b) questionário aberto. Os registros do diário de bordo foram utilizados como fundamento para a análise das respostas dos estudantes ao questionário.

A aula foi realizada em uma turma do segundo ano do Ensino Médio de um Colégio Estadual no Norte do Paraná. A turma em questão possuía 34 estudantes, sendo que todos participaram da prática. Previamente, apresentamos o grupo Arthropoda e seus principais componentes (Insecta, Chelicerata, “Crustacea” e Myriapoda), abordando as características gerais de cada grupo. Após esse momento, exemplos de caixas entomológicas foram apresentadas à turma por meio de fotografias – explicitando-se como elas foram montadas e propondo que os estudantes pudessem fabricar suas próprias coleções de insetos.

Após essa etapa, os estudantes foram divididos em cinco grupos para que realizassem a coleta de insetos (e outros artrópodes) no jardim do colégio e, posteriormente, montassem suas coleções entomológicas. Após essa atividade, foi aplicado um questionário com questões abertas, apresentadas no Quadro 1.

 

Quadro 1 Questionário aberto aplicado aos estudantes a partir da prática desenvolvida.

1. Quais suas impressões sobre a atividade de construção de caixa entomológica?

2. Como você se sentiu durante a realização da atividade?

3. O que você aprendeu com a construção da caixa entomológica, coleta dos insetos e discussão com os colegas?

4. Aponte pontos positivos e negativos da prática.

Fonte: Autores, 2024.

 

As respostas ao questionário foram analisadas à luz da Análise de Conteúdo Temática proposta por Minayo (1998), que consiste na unitarização das falas dos estudantes de acordo com as similaridades entre si e a frequência, constituindo Unidades de Contexto (UC) e Unidades de Registro (UR) a posteriori. Destaca-se que a investigação foi conduzida em uma turma onde um dos autores atua como professor responsável. A pesquisa foi autorizada pelo Diretor Geral do colégio, os estudantes maiores de idade responderam a um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com todas as informações referentes à pesquisa e aos riscos. Os estudantes menores, assinaram um Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Relato das aulas

A prática aconteceu em dois momentos: um primeiro momento, na sala de aula, a partir de aulas expositivas-dialogadas, articulando fotos dos animais com os conhecimentos dos estudantes a respeito desses grupos; em um segundo momento, no jardim do colégio, onde foi realizada a coleta de insetos, e outros artrópodes, para a montagem da coleção entomológica.

O primeiro momento começou com a apresentação, pelo professor, do grupo Arthropoda, expondo imagens de animais mais comuns, como formigas, abelhas, borboletas e aranhas. Após o reconhecimento destes animais, as características gerais do grupo foram discutidas. A interação foi estimulada com perguntas que resgatavam conhecimentos prévios dos estudantes, como exemplo: “Vocês já viram esses animais em algum lugar?”, “Como vocês se sentem ao encontrarem esses bichos?”, etc. A partir das respostas dos estudantes, a aula foi conduzida, sendo possível trabalhar os conceitos necessários para a compreensão do grupo.

Após esse momento, foi apresentado aos estudantes uma forma de organizar e estudar esses insetos por meio da construção de uma coleção entomológica. Depois de discutir as possibilidades de construção da caixa, a turma foi dividida em cinco grupos, e os estudantes foram levados até o jardim do colégio para a coleta dos animais. Equipados com pinças, caixas de papelão e recipientes plásticos, os alunos, sempre supervisionados pelo professor, exploraram o ambiente em busca de artrópodes para compor suas caixas entomológicas – conforme mostrado na Figura 1.

Foi perceptível, a partir da observação-participante, que a diversidade biológica do jardim gerou curiosidade e surpresa nos estudantes, principalmente quando perceberam, nos animais, as características gerais de cada grupo discutido em sala. Eles conseguiram, durante a coleta, identificar os quatro grupos, apontando as características específica de cada um deles.

Após a coleta, os grupos reuniram-se em sala de aula para montar as caixas entomológicas, seguindo as orientações do professor responsável. O cuidado com os espécimes, a organização e a etiquetagem foram enfatizadas, promovendo não apenas a compreensão científica, mas também o cuidado com a biodiversidade local (Figura 1: e-f). Ao final da atividade, os estudantes foram desafiados a refletir sobre a experiência por meio do questionário.

 

Fonte: autores, 2024.

Figura 1 – Coleta de insetos e outros artrópodes e montagem da caixa entomológica: a–d. estudantes no jardim do colégio realizando a procura e coleta dos exemplares, com o auxílio de pinças; e–f. caixas entomológicas produzidas.

 

Análise e Discussão das falas dos estudantes

Após análise das falas dos estudantes, percebemos que as respostas da questão 1 e questão 2 apresentaram pouca divergência em relação à questão 4, pois os pontos positivos e negativos apontados pelos estudantes estiveram relacionados com como se sentiram durante a aula. Por isso, unimos as respostas das questões 1, 2 e 4 em uma única Unidade de Contexto (UC1. Impressões e Sentimentos). Dentro da UC1, constituímos duas Unidades de Registro: UR1.1. Sentimentos positivos; UR1.2. Sentimentos negativos. A segunda Unidade de Contexto identificada refere-se às respostas referentes à Questão 3, que denominamos de UC2. Efetividade da prática. Para a UC2, constituímos duas Unidades de Registro: UR2.1. Pontos positivos; UR2.2. Pontos a serem melhorados. Como as UC e suas respectivas UR estão fortemente articuladas, decidimos realizar a discussão desses dados de modo integral, sem separá-las em seções. Abaixo, apresentamos um quadro com as UC e suas respectivas UR (as falas dos estudantes estão em itálico, pois se trata da transcrição íntegra das respostas):

 

Quadro 2 – Unidades de contexto (UC), unidades de registro (UR) e registros relacionados a prática pedagógica desenvolvida.

Unidades de Contexto

Unidades de Registro

Registros

UC1. Impressões e Sentimentos

UR1.1. Sentimentos positivos

 

29 registros

E1: “Gostei muito da aula, nunca imaginei que no jardim da escola teriam tantos bichos... encontrei tesourinha, besouro, aranha e até piolho de cobra. Muito louco, podia fazer mais vezes”.

E2: “A atividade foi muito boa, porque não imaginei que tinha tanto inseto no jardim da escola, foi doido porque a gente passa lá todo dia e faz educação física e nunca vi esses bichos. Quero mais aulas assim”.

E3: “Eu nunca tinha prestado atenção nos insetos desse jeito, mas essa aula fez eu mudar essa visão. Eu fiquei um pouco brava porque a gente pegou uma formiga e deu trabalho, aí quando a gente colocou uma aranha junto, a aranha comeu a formiga kkkk mas isso foi legal, porque foi como o professor disse que aranhas são predadoras fortes”.

UR1.2. Sentimentos negativos

5 registros

E34: “A aula foi até legal porque saímos da sala, mas eu confesso que não gostei muito porque tenho bastante medo de insetos e esses bicho. Então não aproveitei muito, porque só meu grupo pegou os inseto, eu só observei”.

E28: “Sinceramente eu não gosto de inseto, então a aula foi um pouco difícil pra mim. Eu tive medo de ficar pegando nos bichos, então acho que seria melhor se a gente pudesse pegar outros animais além de inseto, tipo lagartixa, eu vi umas três”.

E12: “A ideia da aula foi interessante, o professor sempre tenta fazer umas coisas diferentes, mas eu não me senti a vontade com os insetos, tenho um pouco de nojo e medo. Acho que pras próximas aulas, seria legal ter mais opções de bichos”.

UC2. Efetividade da prática

UR2.1. Pontos positivos

29 registros

E6: “Foi muito legal, porque a gente meio que criou um trabalho de equipe de cada um pegar pelo menos um bicho, aí teve pessoas no meu grupo que normalmente não faz nada, mas que dessa vez pegou até mais bicho que eu que sempre fiz tudo. Isso é bom porque motiva fazer trabalho em grupo, esse eu gostei, no geral eu não gosto”.

E16: “Foi bigode fessor... foi da hora ver os bichos de perto, podia ter mais aula assim”.

E20: “Foi motivador, porque fugiu daquele negócio de ficar sempre na sala, fez eu prestar mais atenção por causa da dinâmica”.

UR2.2 Pontos a serem melhorados

5 registros

E12: “Eu acho que poderia ter uma atividade diferente pra quem tem medo, porque os meninos ficaram assustando a gente, ameaçando jogar bicho na gente, daí eu acho que quem tem bastante medo como eu poderia ajudar com outra coisa pra não precisar ir no mato pegar os bicho”.

E10: “Eu tenho medo desses bichos, então foi difícil pra mim, ficou pior com os comentários dos colegas, que ficaram rindo e fazendo gracinha. Podia ter pensado em outra coisa pra gente que tem medo fazer porque aí não fica pressionado a mexer com os bichos”.

E8: “Foi até legal a aula mas fiquei desconfortável com alguns colegas fazendo brincadeiras”.

Fonte: Autores, 2024.

 

A partir das respostas dos estudantes, foi possível perceber que a construção da caixa entomológica apresentou impactos notáveis nos alunos, contribuindo para a motivação, o interesse e a curiosidade, elementos apontados por Pires e Razera (2021) como importantes quando utilizamos essa prática no Ensino Médio. Essas práticas se tornam ainda mais importantes quando nos deparamos com o Novo Ensino Médio (NEM), que fragmenta e aliena o conhecimento científico.

De acordo com Selles e Oliveira (2022), a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trouxeram desafios à estabilidade da disciplina escolar de Biologia. De acordo com as autoras, essas mudanças partem de uma lógica neoliberal que visa não apenas reconfigurar as estruturas curriculares, mas também influenciar as práticas e a formação docente. A imposição de uma estrutura curricular padronizada, alinhada à BNCC, pode limitar a capacidade dos professores de desenvolverem práticas pedagógicas que englobem as diversidades locais e as necessidades dos estudantes.

Diante disso, a construção de aulas contextualizadas é apresentada como uma forma de resistência ativa, permitindo que os professores, mesmo diante das mudanças impostas, continuem a exercer sua criatividade, a adaptar o currículo de acordo com as necessidades específica de seus alunos e a manter a vitalidade da disciplina escolar de Biologia.

A partir disso, as falas presentes na UR1.1 nos permitem refletir sobre como abordagens pedagógicas que estimulam o interesse, a curiosidade e a transformação da percepção ambiental podem ser significativas. Esses resultados reforçam a importância do caráter investigativo durante as aulas, pois o exercício ativo dos estudantes pode aprimorar a compreensão dos conceitos e o estabelecimento de relações que resistem à constante hiperdisciplinarização do currículo, como apontado por Selles e Oliveira (2022). O interesse pela prática e mudança na percepção ambiental dos estudantes pode ser observado na fala de E3:

E3: “Eu nunca tinha prestado atenção nos insetos desse jeito, mas essa aula fez eu mudar essa visão. Eu fiquei um pouco brava porque a gente pegou uma formiga e deu trabalho, aí quando a gente colocou uma aranha junto, a aranha comeu a formiga kkkk mas isso foi legal, porque foi como o professor disse que aranhas são predadoras fortes”.

Analisar criticamente o currículo implica entender que as disciplinas escolares representam a “organização do conjunto das atividades nucleares distribuídas nos espaços escolares” (Saviani, 2003, p. 18), indo além da simples transmissão de conhecimentos científicos na academia. Nesse contexto, é crucial perceber que a Biologia escolar não pode ser meramente a Biologia científica adaptada para fins instrucionais, vez que ciência e educação são complexos sociais distintos, embora interligados.

A confusão entre os campos da ciência e do ensino, longe de ser acidental, muitas vezes decorre das tentativas dos professores de obterem o reconhecimento concedido ao meio acadêmico (Goodson, 1990), já que a educação – no contexto neoliberal – é fortemente desvalorizada. Essa intersecção entre ciência e educação torna-se problemática, pois a hegemonia científica frequentemente adota a abordagem fria do positivismo lógico, contribuindo para a reprodução de aulas desprovidas de sensibilidade e cuidado. O desafio reside em evitar a mera adaptação da biologia científica para o ambiente educacional, reconhecendo a necessidade de uma abordagem pedagógica que vá além da simples transposição de conteúdo (Marandino et al., 2009; Malanchen; Anjos, 2013). Nessa direção, Marandino, Selles e Ferreira (2009, p. 64) afirmam que existe uma tensão entre a biologia escolar e a biologia científica, e

uma forma de evidenciar essa tensão é analisar como as versões do BSCS divulgaram a teoria da evolução na sociedade, ao mesmo tempo que contribuíram para que a comunidade de biólogos estabelecesse seus territórios de ação acadêmica. [...] No Brasil, as traduções do material do BSCS tornaram-se uma referência para gerações de professores, que foram, progressivamente, abandonando as tradições da História Natural.  [...] Se considerarmos como as versões do BSCS veiculam a teoria evolutiva, identificando-a com o caráter modernizador das Ciências Biológicas, podemos perceber quanto o estudo dessa teoria potencializa uma melhor compreensão das relações entre as comunidades acadêmicas e as comunidades educacionais no surgimento da disciplina escolar Biologia.

Essa discussão nos leva à UR1.2, que abriga os sentimentos negativos em relação à prática pedagógica. Os sentimentos negativos destacados foram medo e desconforto em relação aos insetos, sentimentos comuns que expressam representações sociais de grupos sociais leigos em relação à Zoologia (Trindade et al., 2012). Embora a atividade tenha sido bem recebida pela maior parte da turma, é importante que nos debrucemos, também, sobre os aspectos negativos, a fim de contemplar o máximo de variáveis possíveis durante a execução de uma aula. Destacamos a necessidade de se considerar as diferentes reações e emoções dos estudantes quando planejamos nossas práticas pedagógicas, uma consideração que expressa a amorosidade necessária para uma aprendizagem significativa (Cunha, 2023). No excerto de E34, podemos observar a necessidade para o cuidado com as emoções dos estudantes ao planejar uma prática pedagógica:

E34: “A aula foi até legal porque saímos da sala, mas eu confesso que não gostei muito porque tenho bastante medo de insetos e esses bicho. Então não aproveitei muito, porque só meu grupo pegou os inseto, eu só observei”.

Explorar o ambiente natural da escola a partir do jardim e coletar insetos, e outros artrópodes, pode ser empolgante para a maioria dos estudantes, como a UR1.1 demonstra, pois permite um contato mais direto com a biodiversidade e promove uma compreensão mais próxima dos grupos estudados. Todavia, é fundamental que as aulas sejam cuidadosamente planejadas para garantir que todos os estudantes se sintam confortáveis e incluídos. Esse sentimento de inclusão pode favorecer a interação social e a articulação dos diferentes tipos de conhecimentos necessários para o desenvolvimento do que Vygotsky chama de funções psicológicas superiores (Tosta, 2012), ou seja, o desenvolvimento da linguagem, do pensamento conceitual, da resolução de problemas e do autocontrole, que são pilares fundantes da aprendizagem.

Ainda, os dados ressaltam a importância de equilibrar a exploração da natureza com as preocupações, impressões e sentimentos individuais dos estudantes. Esse equilíbrio só é possível quando avaliamos nossas práticas e olhamos para os elementos negativos, pois a reflexão crítica reforça o posicionamento de que o ensino deve ser sensível às diferentes reações dos alunos e adaptado para atender às necessidades dos sujeitos (Silva; Garcez, 2017).

Quando questionados sobre os pontos positivos, os estudantes apresentaram elementos importantes, como a dinâmica, trabalho em equipe e protagonismo. Cohen e Lotan (2017) afirmam que o trabalho em equipe é uma boa alternativa para salas de aula heterogêneas, que possuem estudantes mais empenhados e estudantes desinteressados, pois o trabalho em grupo pode criar uma instância de diálogo entre alunos com diferentes perfis, produzindo um resultado positivo. A fala de E6 demonstra esses elementos:

E6: “Foi muito legal, porque a gente meio que criou um trabalho de equipe de cada um pegar pelo menos um bicho, aí teve pessoas no meu grupo que normalmente não faz nada, mas que dessa vez pegou até mais bicho que eu que sempre fiz tudo. Isso é bom porque motiva fazer trabalho em grupo, esse eu gostei, no geral eu não gosto”.

Outro ponto positivo foi o entusiasmo gerado pelo contato direto com os insetos. A experiência de ver os animais para além de fotografias proporcionou uma aprendizagem concreta, despertando a curiosidade dos estudantes e tornando o aprendizado mais significativo, uma vez que causou enfrentamentos entre os conhecimentos prévios e os conceitos científicos apresentados em sala (Guimarães-Brasil et al., 2017). Esse contato com a natureza é um recurso pedagógico valioso, considerando que permite aos alunos explorarem a realidade de forma mais próxima e real, o que pode estimular o interesse pelas aulas e pela ciência de modo geral.

Outro aspecto positivo foi a dinâmica da aula e a quebra da rotina como fatores motivadores, aspectos importantes para a aprendizagem, já que a dinâmica é capaz de conquistar a atenção do estudante (Oenning; Oliveira, 2011). Isso demonstra a importância da utilização de metodologias alternativas de ensino, estratégias capazes de superar a monotonia do ensino tradicional (Rosa et al., 2022).

Os pontos negativos apontados pelos estudantes estão em consonância com os sentimentos e impressões negativos apresentados durante a prática, pautando-se no medo e receio em relação aos insetos. Outro elemento considerado negativo foi o comportamento de alguns colegas durante as práticas, com brincadeiras excessivas que criaram um ambiente desconfortável para esses estudantes. Os sentimentos negativos associados aos pontos negativos da aula podem ser demonstrados na fala de E10:

E10: “Eu tenho medo desses bichos, então foi difícil pra mim, ficou pior com os comentários dos colegas, que ficaram rindo e fazendo gracinha. Podia ter pensado em outra coisa pra gente que tem medo fazer porque aí não fica pressionado a mexer com os bichos”.

Para determinados estudantes, a experiência foi desagradável, gerando uma insegurança. Novamente, esses relatos destacam a importância de se considerar as emoções e sentimentos durante a elaboração da prática, pois o que pode ser instigante e positivo para alguns, pode ser negativo para outros. Nesse sentido, é fundamental a construção de alternativas inclusivas que garantam a inclusão desses estudantes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar os dados coletados dos estudantes, identificamos pontos positivos e negativos em relação à atividade que nos conduziram a reflexões críticas sobre a abordagem pedagógica adotada. A construção da caixa estimulou a motivação, o interesse e a curiosidade dos estudantes, aproximando-os do ambiente e reforçando os conceitos abordados em sala de aula. Contudo, a mesma prática gerou sentimentos negativos em alguns estudantes, especialmente medo e desconforto em relação aos insetos e outros artrópodes coletados.

  Diante disso, fica evidente a importância de uma prática pedagógica sensível às diferentes emoções e reações dos alunos. A inclusão de alternativas e a promoção de um ambiente de respeito e cooperação deve ser fundamental quando pensamos nesse tipo de atividade, para que busquemos uma aprendizagem significativa e inclusiva. Por fim, este trabalho contribui para a reflexão sobre as aulas de Zoologia, ressaltando a importância de metodologias alternativas que despertem o interesse dos alunos e estimulem a exploração do mundo natural de forma ativa e crítica.

 

Recebido em: 27/01/2024

Aceito em: 13/08/2024

 

REFERÊNCIAS

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