Efeito cascata das políticas educacionais a partir da BNCC: concepções de docentes de Ciências da Natureza sobre a construção do documento orientador curricular de Santa Maria/RS (DOC/SM)

Cascade effect of BNCC's educational policies: conceptions of Natural Sciences teachers of the Santa Maria/RS curriculum guiding document (DOC/SM)

Efecto cascada de las políticas educativas del BNCC: concepciones de los docentes Ciencias Naturales en la construcción del documento orientador curricular de Santa Maria/RS (DOC/SM)

 

Kélli Renata Corrêa de Mattos (kellic.mattos@gmail.com)

Universidade Federal de Santa Maria, Brasil.  

https://orcid.org/0000-0002-4671-3247

Micheli Bordoli Amestoy (micheliamestoy@gmail.com)

Universidade Federal de Santa Maria, Brasil.  

https://orcid.org/0000-0002-5687-5311

Luiz Caldeira Brant de Tolentino-Neto (luiz.neto@ufsm.br) 

Universidade Federal de Santa Maria, Brasil.  

https://orcid.org/0000-0001-6170-1722

 

Resumo

Este estudo trata da formulação de novas políticas educacionais posteriores à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especificamente políticas curriculares como o Documento Orientador Curricular do município de Santa Maria (DOC/SM), no estado do Rio Grande do Sul (RS). Diante disso, o texto tem o objetivo de apresentar aspectos relevantes na concepção de professores de Ciências da Natureza (CN) sobre a BNCC e a construção do DOC/SM. Para tanto, foram realizadas entrevistas com docentes de CN envolvidos no processo de construção do documento orientador territorial. A análise fundamenta-se nos pressupostos teóricos-metodológicos do Ciclo de Políticas e da Análise de Conteúdo, que subsidiou a elaboração das seguintes categorias: I) Representatividades; II) Resistências e III) Formações. Pode-se compreender com o estudo como a verticalização das políticas educacionais expropria os meios de atuação docente, pois mesmo diante dos esforços em contextualizar as especificidades locais na política territorial, em nenhum momento, foi possível desvincular-se do que a Base [idealizada e construída à distância] assegura como essencial para a aprendizagem dos estudantes.

Palavras-chave: Políticas públicas educacionais; Ciclo de políticas; Currículo; Educação básica.

 

Abstract

This study deals with the formulation of new educational policies after the National Common Curriculum Base (BNCC), specifically curricular policies such as the Curricular Guiding Document of the municipality of Santa Maria (DOC/SM), in the state of Rio Grande do Sul (RS). Given this, the text aims to present relevant aspects in the conception of Natural Sciences (NC) teachers about the BNCC and the construction of the DOC/SM. To this end, interviews were carried out with NC teachers involved in the process of constructing the territorial guiding document. The analysis is based on the theoretical-methodological assumptions of the Political Cycle and Content Analysis, which supported the elaboration of the following categories: I) Representativeness; II) Resistance and III) Training. It is possible to understand with the study how the verticalization of educational policies expropriates the means of teaching, because even in the face of efforts to contextualize local specificities in territorial policy, at no point was it possible to detach from what the Base [idealized and constructed at a distance] ensure as essential for student learning.

Keywords: Educational public policies; Political cycle; Curriculum; Basic education.

 

Resumen

Este estudio aborda la formulación de nuevas políticas educativas posteriores a la Base Curricular Nacional Común (BNCC), específicamente políticas curriculares como el Documento de Orientación Curricular del municipio de Santa María (DOC/SM), en el estado de Rio Grande do Sul. (RS). Ante esto, el texto tiene como objetivo presentar aspectos relevantes en los conceptos de los docentes de Ciencias Naturales (CN) sobre el BNCC y en la construcción del DOC/SM. Para ello se realizaron entrevistas a docentes del CN involucrados en el proceso de elaboración del documento de gobernanza territorial. El análisis se fundamenta en los supuestos teórico-metodológicos del Ciclo de Políticas y Análisis de Contenido, que sustentaron el desarrollo de las siguientes categorías: I) Representatividad; II) Resistencia y III) Entrenamiento. Es posible comprender con el estudio cómo la verticalización de las políticas educativas expropia los medios de enseñanza, porque incluso frente a los esfuerzos por contextualizar las especificidades locales en la política territorial, en ningún momento fue posible desprenderse de lo que la Base [idealizó] y construido de forma remota] garantiza que sea esencial para el aprendizaje de los estudiantes.

Palabras-clave: Políticas públicas educativas; Ciclo de políticas; Currículum; Educación básica.

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017 para o Ensino Fundamental (EF) e em 2018 para o Ensino Médio (EM), representa um novo modelo curricular para toda a educação básica brasileira. Trata-se de uma política de uniformização dos conhecimentos a serem ensinados em todo o território nacional que tem como idealizador, predominantemente, o setor empresarial, o qual busca evidenciar que esse modelo garante os direitos de aprendizagem dos estudantes (Martins; Ferreira, 2022). A BNCC, enquanto proposta de ensino, prevê uma aprendizagem em espiral, em que os mesmos conhecimentos são abordados ao longo dos anos, porém em diferentes níveis de aprofundamento (Branco et al., 2019). Dessa forma, acredita-se que um currículo mínimo não garante direitos, mas reduz os horizontes, tanto para a prática docente, quanto para a aprendizagem dos discentes.

Nesse sentido, o cenário educacional brasileiro tem vivenciado uma sequência de mudanças na esfera das políticas públicas educacionais, como nas políticas dos livros didáticos, de formações e de avaliações, que buscam constantemente meios de ‘encaixes’ à BNCC (Hypólito, 2019). Com esse delineamento, percebe-se a influência dessa política em diferentes frentes (Branco; Zanatta, 2021). Assim, destaca-se a indução de novas políticas de currículo em todo o país, que iniciou com a adaptação dos currículos estaduais e, posteriormente, municipais. Diante do exposto, o presente estudo aborda o efeito cascata ocorrido pela necessidade da elaboração de currículos que atendam às demandas da Base nos estados (2018) e municípios (2019) do Brasil. 

No estado do Rio Grande do Sul (RS), em 2018, foi elaborado o Referencial Curricular Gaúcho (RCG), um currículo construído a partir da BNCC, que buscou agregar conhecimentos específicos do território gaúcho. A partir da construção dessa política, os municípios do RS possuíam a BNCC (nacional) e o RCG (estadual) como orientações curriculares e, em 2019, o município de Santa Maria (SM), situado na região central do estado, elaborou sua política territorial (DOC/SM). Nesse processo colaborativo, foi realizada a apreciação dos documentos orientadores vigentes (BNCC e RCG), de forma a delinear a construção de uma política do território de SM com habilidades específicas.  

Na figura 1, pode-se observar o efeito cascata em pauta na escrita, que tem início com a BNCC, perpassa pelo RCG, seguido da elaboração do DOC/SM, em 2019. 

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Fonte: Autores, 2022.

Figura 1 – Hierarquia de elaboração curricular (Nacional - Estadual – Municipal)

 

Observa-se com a figura acima a sistematização da proposta do estudo que tem como foco a construção do DOC/SM, porém esse modelo hierárquico, que parte do currículo nacional-macro até o municipal-micro, reflete também a realidade do país no que tange a construção das políticas curriculares subsequentes a BNCC (Brasil, 2020a). 

Ao longo da construção da BNCC não se manteve o diálogo aberto com a comunidade escolar e com importantes representantes nacionais da área do ensino e da educação (Aguiar, 2018). Ademais, no decorrer da elaboração da BNCC importantes sociedades da área de Ciências da Natureza (CN), se opuseram ao modelo curricular da BNCC, porém não tiveram suas reivindicações acolhidas pelos idealizadores da política (Mattos; Tolentino-Neto; Amestoy, 2021). No que se refere a proposta do documento para o ensino de ciências, evidencia-se 

as ausências e o reducionismo de temas relevantes à formação crítica social dos estudantes, de modo a evidenciar as influências da frente conservadora, a ponto de um documento que diz assegurar os direitos de aprendizagem dos cidadãos, não oferecer, no ensino de ciências, acesso à temas como: Educação Ambiental e Sexualidade de forma consensual e fundamentada (Mattos; Amestoy; Tolentino-Neto, 2022. p. 33, grifo dos autores).

   Diante disso, constata-se o movimento histórico de consolidação vertical das políticas educacionais que são idealizadas e construídas por ‘especialistas’ que não são os reais interessados e impactados pelas mudanças geradas. Assim, defende-se o potencial de momentos de construção curricular pela comunidade escolar, dando a devida credibilidade a voz dos docentes, no caso deste estudo, aos docentes da área de CN.

É nessa perspectiva que este estudo se justifica, uma vez que o processo de assimilação dessas políticas que chegam “prontas” aos profissionais é complexo, especialmente quando há a necessidade de construção de novos documentos alicerçados às orientações recém-materializadas (Freitas, 2018; Mattos, 2021). Diante do exposto, essa escrita tem como objetivo apresentar aspectos relevantes na concepção de docentes de CN sobre a construção do DOC/SM, elaborado a partir do RCG e da BNCC.

 

PERCURSO METODOLÓGICO 

Este texto trata-se de um recorte de uma pesquisa de Mestrado concluída em 2021, registrada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)[1], da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Consiste em uma pesquisa qualitativa, com coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas, com três professoras de CN da rede municipal de ensino de SM. Os principais critérios de escolha das docentes para participação no estudo, foram: I) a área de formação em CN; II) a participação ativa na construção do DOC/SM e III) a atuação na comissão de sistematização da área de CN do DOC/SM. Destaca-se que uma das professoras entrevistadas atuava no momento como coordenadora pedagógica na Secretaria de Município da Educação (SMED) de SM, cumprindo um papel de gestora do processo de construção do DOC/SM. Assim, no decorrer do texto, ela foi identificada como (Gestora, 2020), enquanto as demais professoras foram identificadas como (P1) e (P2).

No que se refere à análise dos dados, recorreu-se ao referencial teórico-metodológico do Ciclo de Políticas de Stephen Ball e colaboradores (Ball; Bowe; Gold, 1992; Ball, 1994). Esse referencial proporciona um olhar desde a gênese até os efeitos das políticas educacionais, a partir de três principais contextos analíticos: o Contexto de Influência; o Contexto de Produção de Texto e o Contexto da Prática (Mainardes, 2006). Este estudo leva em consideração os dois primeiros contextos, sendo que o Contexto de Influência é caracterizado pela contextualização do cenário das políticas públicas que embasaram o DOC/SM, especialmente a BNCC e o RCG; enquanto o Contexto de Produção de Texto, principal foco desta pesquisa, refere-se, especificamente, ao processo de construção do texto político do DOC/SM (2019-2020).

Os dados produzidos com as entrevistas das docentes foram categorizados com base na Análise de Conteúdo de Bardin (2011). Essa análise consiste em três etapas principais: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Esse processo analítico permite a formação de categorias, por meio de unidades de registros, neste caso constituídas de recortes semânticos dos dados, isto é, da identificação de temas frequentes nas entrevistas. As categorias recebem um título genérico que permite a representação simplificada dos dados brutos (Bardin, 2011). As concepções das professoras de CN sobre a construção do DOC/SM revelam-se em três categorias: I) Representatividades, II) Resistências e III) Formações. As categorias apresentadas serão discutidas nas seções a seguir, na ordem em que foram elencadas no texto, o que não representa qualquer tipo de ordem de valores das narrativas, mas apenas um critério adotado para sistematização da escrita. 

 

REPRESENTATIVIDADES NA ELABORAÇÃO DA POLÍTICA TERRITORIAL

A partir da análise das entrevistas, é possível identificar ênfase na fala das docentes sobre a representação por esferas/redes de ensino e, assim, a discussão será organizada neste formato, em consonância com a narrativa das entrevistadas. O território de SM conta com diversas instituições de ensino de todas as redes: municipal, estadual, federal e particular. No que se refere à rede Federal, de acordo com a Gestora, houve a participação do Colégio Militar de Santa Maria e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A UFSM abriga três unidades de educação básica: a Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo, o Colégio Técnico-Industrial de Santa Maria (CTISM) e o Colégio Politécnico. Além da gestora, as professoras entrevistadas também destacaram a participação da rede federal, relatando que “da universidade, sentimos essa participação ativa, essa preocupação em contribuir” (P1, 2019). 

Em contrapartida, a participação da rede privada não ficou tão evidente para as professoras nos encontros e audiências, porém a Gestora relatou que houve significativa participação e envolvimento do Sindicato do Ensino Privado - patronal (SINEPE/RS) e dos professores(as) da rede privada. O SINEPE/RS fez “questionários com os professores da rede particular [...] esse questionário foi respondido e eles nos encaminharam essas considerações” (Gestora, 2020). Esse método de trabalho, por meio de questionários, também foi adotado pela SMED para participação dos professores(as) dos anos iniciais da rede municipal. Conforme a fala da Gestora a seguir, isso contribuiu para a participação de diversas comunidades e proporcionou a democratização do processo de construção da política local, mesmo sem a presencialidade nos encontros e audiências:

O questionário não era enviado só para um professor, era enviado para escola. Então eu enviei questionário para EMEF ‘x’, então a EMEF ‘x’ se sentava com grupo total de professores e faziam as considerações acerca de concepções escolares, o que eles entendem por educação, educação integral, todas aquelas temáticas que têm ali no início dos cadernos. Todos os materiais, eram encaminhados para nós e [...] a gente fazia uma compilação daquele material todo (Gestora, 2020).

Desse modo, as redes de ensino privada, federal e municipal puderam participar, seja de forma presencial, nos encontros, ou por meio de discussões no âmbito escolar, com a devolutiva dos questionários/formulários enviados. Por outro lado, foram unânimes as percepções das entrevistadas a respeito da rede Estadual: “não tivemos muita contribuição, a rede estadual nos falou: nós temos o RCG, ponto” (Gestora, 2020). A ausência de representatividade da esfera estadual foi notada também pela P2 (2020), que entendeu que os únicos professores do estado que estavam presentes nas discussões eram também do município, uma vez que “eles não tinham interesse na construção desse documento, porque a rede estadual entendeu que, tendo o RCG, eles iam se pautar pelo RCG, que era um documento estadual”.

Nesse mesmo viés, a P1 descreve a sua percepção quanto à participação da rede estadual, quando sinaliza a falta de entrosamento durante o processo:

Foi algo mais para ver como é, não senti um entrosamento, de pertencer, de tomar para si. Não senti isso, participaram, mas não da forma como talvez precisaria. Mas eu não sei como é que fica a questão do território, como eles são do estado, talvez o RCG seja deles, não o DOC (P1, 2019, grifo dos autores).

A partir dos fragmentos de falas destacados, nota-se a representação de um entendimento equivocado difundindo entre os participantes, sobre a existência de uma exclusividade e individualidade dos documentos orientadores - municipal (DOC) e estadual (RCG). Desmistificar essa ideia foi apontado pela gestora como uma das principais dificuldades ao longo do processo de construção curricular:

Trabalhar com todas as redes, dizendo: gente, vocês fazem parte de um Sistema Municipal e o Sistema Municipal vai trabalhar com o Documento Orientador Curricular. Isso para mim foi mais difícil. Para mim essa foi a maior dificuldade, [...] ter esse entendimento das diferentes redes que de fato, elas compõem um sistema e dentro do sistema a gente tem que ter uma unidade curricular (Gestora, 2020, grifo dos autores). 

Dessa forma, como o DOC tem a função de orientar todas as instituições de ensino que estão no território de SM, a gestora compreende e denomina-o como pertencente ao 'Sistema Educacional de SM'. Acredita-se que a falta de entendimento demonstrado por algumas redes de ensino, tenha contribuído para uma participação não expressiva, em especial da esfera Estadual. Apesar do edital de chamamento para a construção coletiva do documento ter direcionado o convite para todos os públicos das redes de ensino, esse não foi o entendimento de algumas redes (Gestora, 2020). 

Outro fator que, segundo as entrevistadas, interferiu na falta de participação dos professores(as), independente da rede de ensino e das respectivas áreas de atuação, foi a jornada e condições de trabalho docente, como destacado a seguir:

Todo o trabalho que a gente fez, a gente fez dentro do nosso horário de trabalho. Então, por exemplo, enquanto eu estava lá trabalhando, eu tinha que deixar atividades na escola, porque era meu horário de trabalho na escola [...] tinha que me dividir. Esse pessoal que participou das comissões, de toda a constituição desse documento deixava uma vaga lá na sua escola em aberto, porque eu tinha que estar lá dando aula, mas na verdade eu estava trabalhando lá na secretaria. [...] então, talvez por isso, a gente não teve mais participação dos colegas, porque eu acho que os colegas teriam muito a contribuir, até gostariam de contribuir mais ainda na construção (P1, 2019, grifo dos autores).

Além disso, a professora relata mais um obstáculo para a participação do professor nas políticas públicas, fator limitante e até mesmo determinante para a ausência dos docentes na elaboração dos documentos orientadores: a falta de articulação entre a escola e a rede promotora da construção das políticas. Essa interação tem papel fundamental para que ocorra uma cooperação de toda a comunidade escolar na formulação das políticas educacionais, de modo que os docentes tenham a experiência de contribuir ativamente em todo o processo de elaboração.

Eu por exemplo, eu atrasei os conteúdos, porque eu não podia estar em sala de aula, porque eu tinha que estar lá na construção do DOC. Tanto que, depois que passou a minha área eu não fui mais liberada da escola. Então, talvez, tenha havido uma falha de comunicação da secretaria – escola, para que a escola tivesse mais compreensão. [...] A gente não consegue ser liberada para quase nada, e quando a gente consegue uma liberação da escola, é com toda a escola caindo em cima de ti, é aquela pressão (P1, 2019, grifo dos autores).

Diante desses excertos, percebe-se o quanto e como esses fatores limitantes geram defasagens na elaboração de políticas de currículo. Isso pode ocorrer porque não há qualquer tipo de incentivo para que os professores participem da construção de políticas educacionais, pelo contrário, quando eles conseguem liberação da escola para esses fins, acabam sofrendo danos posteriores, como cobranças, pressão e responsabilização indevida (Barreiros; Drummond, 2021). Considera-se de extrema relevância a atuação dos docentes de todas as redes que compõem o sistema educacional do território na política local, porque os atores envolvidos “trazem tipos particulares de sensibilidades, perspectivas, métodos e interesses para dentro do processo político” (Ball, 2018, p. 4).

Outro aspecto limitante apontado pela professora P2 (2019) refere-se à resistência dos professores(as) de SM à construção do DOC/SM, tendo em vista que o município já havia trabalhado em um documento orientador, no ano de 2015. A resistência - questão emergente nas falas das entrevistadas - será apresentada no subitem, a seguir.

 

AS MANIFESTAÇÕES DE RESISTÊNCIA DOS DOCENTES

As diferentes formas de resistência demonstradas por professores(as) da rede municipal de SM foram demonstradas em duas principais causas aparentes: a falta de conhecimento sobre a BNCC e o entendimento de que as Orientações Curriculares Municipais (OCM), construídas em 2015, ainda eram as adequadas. No entanto, embora essas orientações tenham sido construídas de forma democrática pelos professores(as) do município, não puderam ser mantidas, pois não estavam em consonância com a BNCC.

Sabe-se que, ao longo da construção da BNCC, representações acadêmicas e escolares fizeram-se resistência por meio de posicionamentos/manifestações contrárias ao documento (Aguiar, 2018; Mattos; Amestoy; Tolentino-neto, 2021). A exemplo, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), em 2016, realizou uma campanha nomeada: Aqui já tem currículo: o que construímos na escola (Anped, 2016). A crítica recai sobre a perspectiva de que o conceito de currículo é polissêmico e não reducionista, portanto, não condiz com uma lista de conteúdos/habilidades construída por um grupo seleto de “especialistas”, mas sim com um currículo articulado pela comunidade escolar, visando a formação da identidade dos estudantes. Assim, a campanha buscou dar voz aos professores de todo o Brasil, que narraram por meio de vídeos as suas experiências curriculares e demonstraram insatisfação com a construção de um currículo nacional.

A maioria dos professores que participaram da construção do DOC/SM ainda não tinham conhecimento do que se tratava a BNCC. Desse modo, não tinham, naquele momento, propriedade para discutir a construção de um documento orientador municipal, pois ainda desconheciam o documento nacional que rege os demais. Destaca-se que os professores não tiveram nenhum tipo de formação continuada para compreender a BNCC e as mudanças decorrentes dela, conforme relato da gestora, a seguir:

A ideia era que de fato essas discussões da Base já deviam ter sido feitas. E essas discussões não foram feitas em 2018, com os professores da rede municipal, não foram porque eu estava enquanto professora e nós chegávamos nas nossas formações, nós questionávamos, tá, mas e isso? Não, mas isso já foi discutido em outro momento. Não, não foi discutido em nenhum momento (Gestora, 2020, grifo dos autores).

Com isso, os professores(as) não tomaram conhecimento do documento da Base e todas as mudanças que ele representava no cenário educacional. Na ocasião em que os docentes começaram a participar dos encontros para construir o DOC/SM, depararam-se com a magnitude da mudança curricular causada pela BNCC, até então desconhecida. Esse confronto gerou resistência e significativa apreensão, especialmente no que diz respeito à transição de conteúdos, como aponta a professora a respeito da disciplina de ciências:

Eu me vejo muito aflita. [...] Quem entrar no primeiro ano agora, vai dar tudo certo. Mas quem já está no segundo em diante agora, do 2º ao 9º, por esses oito anos agora, vai ter uma disparidade gigantesca dos conteúdos. Em três anos eles vão ver o que viam em quatro, por professores que não são formados na área. Assim como eu não sou formada em Geografia e vou ter que trabalhar Geografia, não sou formada em Física e vou ter que trabalhar Física, não sou formada em Química, mas já trabalho Química e vou ter que trabalhar mais. Então vai ser difícil, eu acredito que vou levar uns três anos para conseguir me inteirar com segurança. Vai ser estudo, estudo e estudo. É começar do zero (P1, 2019, grifo dos autores).

Nesse sentido, destaca-se em particular, o componente de ciências, em que as mudanças dos conteúdos foram consideradas radicais pelos docentes, como expressa a professora entrevistada

Misturou tudo, então essa construção desse raciocínio para o pessoal da área de ciências é: apaga tudo e nós vamos ter que reconstruir essa organização mental - nossa, do professor - porque agora a gente tem Química, Física e Biologia entrelaçados, nos 4 anos, um pouquinho de cada coisa em cada ano. Essa construção, na verdade, tem que ser desconstruída, desfeita para que a gente consiga achar um caminho para introduzir os assuntos no 6º para dar sequência no 7º, no 8º e no 9º (P2, 2020, grifo dos autores).

   Assim, no primeiro momento os docentes após reconhecer a BNCC, tiveram o ímpeto de usar a construção de currículo local como mecanismo para mitigar as defasagens identificadas na política nacional. Porém, esse não era o propósito do movimento de construção do DOC/SM, que se destinou a inclusão das habilidades específicas do território, sem qualquer poder de modificação do que já estava previsto pela BNCC. Com esse entendimento consolidado, as docentes de CN, optaram por realizar inclusões sucintas e específicas, de modo que o documento de ciências conta “com um total de 6 habilidades territoriais, distribuídas em: duas habilidades no 6º ano, três habilidades no 7º ano, uma no 8º ano e nenhuma no 9º ano” (Mattos, 2021, p. 97).

  A exemplo das habilidades de ciências para SM, destaca-se: reconhecer os sítios paleontológicos da região central do RS, buscando centros de apoio (Ex: Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica - CAPPA). Por meio desse exemplo, pode-se observar que as docentes se ocuparam em incluir realmente habilidades pertinentes ao território, cumprindo o propósito de um currículo local.

Porém, além disso, muitos professores ainda estavam atrelados às orientações estabelecidas pelas OCM, de 2015. Essas orientações apresentavam: “os conteúdos que deveriam ser trabalhados em cada um dos anos e o que deveríamos introduzir, aprofundar e consolidar, eram essas as perspectivas” (Gestora, 2020). Trata-se de um documento construído democraticamente e amplamente aceito pelos professores, já que eles puderam expressar e oficializar concordâncias a respeito dos conjuntos de conteúdos abordados em cada ano.

Então, em 2015 eles tiveram que iniciar nesse documento e aí em 2017 a gente teve uma homologação de uma BNCC, que ia contra muita coisa que estava nessas orientações curriculares. E agora em 2019 a gente vem com um Documento Orientador Curricular, isso causou uma certa confusão na cabeça dos colegas de fato, e eles entenderam que quando se criasse um, eu não digo motim e nem rebelião, mas que quando eles travassem não! Eu não vou fazer isso, nós [gestão] voltaríamos atrás. Só que não podia, a gente não podia voltar atrás (Gestora, 2020, grifo dos autores).

Essa resistência docente relatada pela gestora também é descrita por uma das professoras, que fez parte da construção do DOC/SM:

Na verdade, a gente teve que se apegar com quem aceitou essa mudança, com quem, nem digo aceitar, porque eu também tenho as minhas ressalvas com relação a muitas coisas que mudaram no nosso currículo, mas não tinha o que fazer! Ia adiantar a gente ficar ali resistindo a uma coisa que já era lei? Que já tinha força de lei? Não. (P2, 2020, grifo dos autores). 

Percebe-se que a P2, decidiu não se opor à BNCC juntamente aos demais docentes, por entender que o momento se destinava a construção do DOC/SM e não mais a interpor-se à Base que já estava homologada desde 2017 para o EF. Mesmo assumindo esse posicionamento, ressalta que possui “muitas ressalvas” com o documento, quando afirma compreender a crítica dos colegas. Diante disso, entende-se que a necessidade desse novo olhar para organização curricular foi um exercício difícil, mas necessário para construção do DOC/SM.

Ademais, as entrevistadas destacam que a resistência à Base, não se tratava de uma crítica direta ao documento, mas da falta de flexibilidade imposta pela política nacional, pois as habilidades da Base deveriam ser mantidas no DOC/SM, sem modificações. Dessa forma, os docentes precisaram acatar as habilidades já postas e acrescentar somente habilidades específicas do território de SM.  Diante disso, percebe-se que, embora a construção do documento local tenha ocorrido de modo democrático, a autonomia dos docentes na elaboração ficou comprometida pelo controle exercido pela BNCC.

 

PROCESSOS FORMATIVOS PARA AS POLÍTICAS CURRICULARES

A formação foi tema central da fala das professoras entrevistadas, porém se trata de formações com diferentes propostas e intenções. Elenca-se, no quadro 1, a seguir, as três principais formações destacadas ao longo do processo de construção do DOC/SM.

Quadro 1 – Enfoques sobre formações emergentes das entrevistas

Formações

Recebida

Refere-se à formação realizada pela SEDUC, pela FAMURS e pela UNDIME para elaboração do DOC/SM, direcionada à equipe da regional AMCENTRO (Gestora, 2020);

Promovida

Refere-se à formação proposta pela SMED, tanto para representantes de todos os municípios da AMCENTRO, como para os participantes da construção do DOC/SM (Gestora, 2020; P2, 2020);

Necessária

Refere-se a uma formação idealizada/futura, que auxilie os professores a compreenderem a BNCC (P1, 2019; P2, 2020).

Fonte: Autores, 2022.

A formação recebida teve início após um edital de chamamento de professores e gestores de todas as áreas e etapas de ensino, para composição da equipe regional:

A ideia, era que a equipe Regional que se inscrevesse neste edital, pudesse fazer formação e passar essa formação para elaboração do Documento Orientador Municipal para os municípios da região, por isso que eu falo equipe Regional. Então nós teríamos uma equipe para a região central, pertencentes à AMCENTRO, que é Associação dos Municípios da Região Central do Rio Grande do Sul (Gestora, 2020).

A AMCENTRO é uma das regionais da União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), da qual Santa Maria faz parte juntamente com outros 33 municípios da região. Estabeleceu-se, então, um cronograma de formações para os representantes das regionais do RS, a fim de que as orientações fossem repassadas para todos os municípios que compõem cada uma das regionais:

Esse cronograma acabou não sendo seguido. Porque não teve adesão dos Municípios para as equipes de formação. Foi muito difícil conseguir fechar as equipes e por questões financeiras também da SEDUC acabou atrasando um pouquinho esse processo, de modo que nós teríamos uma formação de 4 dias seguidos em Porto Alegre em abril [de 2019]. Essa formação foi reduzida, nós tivemos uma formação no mês de maio, foi aqui em São Sepé, um dia inteiro e depois a gente teve uma outra, se eu não me engano foi em julho ou agosto em São LeopoldoNós tivemos esses dois encontros oficiais (Gestora, 2020, grifo dos autores).

Em relação ao suporte financeiro, destaca-se que, nesse edital não estava previsto nenhum tipo de auxílio financeiro por parte dos representantes oficiais. Pelo contrário, estava previsto que a mantenedora (federal, estadual ou municipal) de cada representante seria a responsável pelos custos que a comissão tivesse.  Em relação a isso, o município atendeu às demandas dos professores representantes da esfera municipal que participaram das formações:

Nós professores da rede Municipal, nós íamos para as formações, pedindo diária para a Prefeitura Municipal. Então quem bancava as nossas diárias de fato era a prefeitura municipal, mas era só de fato diária para alimentação, transporte e esse tipo de coisa. Nós não ganhamos nenhum retorno, não tivemos nenhum retorno financeiro com esse processo (Gestora, 2020, grifo dos autores).  

Com o auxílio financeiro, os professores e gestores puderam participar das formações. O primeiro encontro ocorreu no município de São Sepé e foi conduzido pelo então representante da SEDUC:

Ele na época era o diretor de ensino e currículo da SEDUC e tinha mais duas moças que faziam parte da equipe formadora estadual, que era um contrato com a UERGS. [...] o estado fez um contrato com a UERGS, para que a UERGS tivesse uma equipe de formadores e essa equipe de formadores se distribuísse nas regiões para passar essa informação nas Regionais, no caso para nós, para nós repassarmos para os colegas (Gestora, 2020, grifo dos autores).

A equipe regional contava com representantes de vários municípios, como a gestora afirma e complementa: “Dentro dessa equipe nós tínhamos uma pessoa que prestava conta para a SEDUC, a UNDIME e a FAMURS, então nós tínhamos essas três instituições que estavam delineando esse processo” (Gestora, 2020).

Após a formação com esses representantes oficiais, tornou-se incumbência da equipe levar as informações para os demais colegas da AMCENTRO. A cidade de Santa Maria promoveu um encontro, no qual compareceram representantes de 31 dos 33 municípios que fazem parte da Associação. Nesse encontro, estiveram presentes desde secretários de educação dos municípios, até o presidente do Conselho Municipal de Educação e demais representantes das Secretarias de Educação no Município (Gestora, 2020).

As formações promovidas pela SMED ocorreram de acordo com as orientações dos representantes oficiais. Desse modo, a equipe que recebeu a primeira formação deveria replicá-la para os demais:

Todo o material que foi utilizado em São Sepé, foi encaminhado para a gente. Aqui em Santa Maria nós tínhamos que apresentar aquele material, os slides que eles mandaram nós tínhamos que apresentar aqui. Nós adaptamos o restante do material para nossa realidade, para realidade dos professores que nós iríamos trabalhar, a nossa forma de trabalho. Quando terminamos a formação, todo esse material foi encaminhado junto das listas de presença, enquanto prestação de contas para esses três órgãos de formação, para UNDIME, para SEDUC e para FAMURS (Gestora, 2020, grifo dos autores). 

Assim, todas as informações passadas na primeira formação pelos representantes oficiais, foram repassadas para os representantes municipais:

O que nos foi passado pela Seduc foi: vocês não apresentam a necessidade, a obrigação de fazer o documento orientador curricular, vocês não têm essa necessidade, se vocês não quiserem fazer, não há problema nenhum. E o que acontece é que muitos municípios pensaram:  bom, não temos essa obrigação, então o que, que nós vamos fazer, nós vamos estudar o Referencial Curricular Gaúcho e ponto, é o que nós vamos fazer.  Outros municípios, mesmo tendo essa perspectiva, pensaram: vamos dar uma pensada. Porque existem de fato especificidades, mas a grande maioria dos nossos municípios não fizeram (Gestora, 2020, grifo dos autores).

Um dos municípios que optou por construir o seu documento municipal, desde o primeiro edital de chamamento foi Santa Maria, justamente por compreender que o município tem um complexo sistema educacional e, assim, poderia envolver diferentes redes/esferas de ensino em sua construção, a fim de que o documento representasse o território santamariense. A gestora relata em detalhes como a comissão articuladora de SM encarou com seriedade a construção do DOC/SM desde o princípio: 

Exatamente por entender que Santa Maria tem especificidades, porque Santa Maria tem um olhar diferente, por exemplo para educação do Campo. Tem concepções próprias, em termos educacionais. E isso nos impulsionou, vamos trabalhar o Documento Orientador Curricular. A gente entendeu que tinha que fazer audiências públicas, não podia ser um negócio fechado a quatro paredes, não! A gente entendeu que tinha que ser de fato um processo complexo como o todo. E aí a gente pediu uma prorrogação de prazo para o Conselho Municipal, que nos concedeu essa prorrogação de prazo (Gestora, 2020, grifo dos autores).

Com o DOC/SM já finalizado, em agosto/2019, foi promovida a segunda e última formação pelos representantes oficiais. Essa formação ocorreu na cidade de São Leopoldo-RS, sendo destinada a toda a equipe regional. Nessa formação, o diretor geral da FAMURS comunica a obrigatoriedade da construção do DOC, no sentido de que, se os municípios não construíssem os seus documentos, não teriam determinados repasses de verbas federais, ou seja, sofreriam essa “penalidade”. Diante da informação contrária ao que se sabia sobre a construção do DOC, a SMED de Santa Maria promoveu um encontro a fim de esclarecer aos demais municípios da AMCENTRO as novas informações:

A gente fez outro encontro aqui em Santa Maria, mais uma vez, com a Regional, a AMCENTRO e disse: gente, teremos que fazer. E aí muitos colegas da região se assustaram um pouco e tiveram que correr, a pessoa que fez o primeiro encontro conosco foi retirada da SEDUC, ele foi reencaminhado para diretor de Coordenadoria e saiu da SEDUC, daí teve essas trocas de informação e aí o pessoal daqui começou a trabalhar nisso também, da região, das outras cidades, para terminar esse documento no prazo esgotado que eles tinham e certamente não foi feito os mesmos processos que ocorreram aqui em Santa Maria (Gestora, 2020, grifo dos autores).

A gestora entende que muitos municípios só deram início ao seu documento por conta da ameaça de corte de verbas e, como essa informação chegou tardiamente, dispuseram de um período ainda mais curto para a elaboração. Todavia, muitos municípios da região contam com apenas uma ou duas escolas, o que pode ter facilitado o processo de discussão e elaboração da política. 

De todo modo, questiona-se: que “autonomia” é essa cedida aos sistemas, que lhes impôs a obrigatoriedade sob pena de sofrerem cortes? Além de cercear a escolha dos municípios em elaborar ou não seu documento territorial, o equívoco gerado com a informação incorreta sobre a obrigatoriedade gerou tensão e a precarização da construção de documentos nos municípios que começaram a construção tardiamente. Esse fato desencadeou outra problemática: a contratação de empresas predatórias para elaboração desses currículos, que se valem de momentos de insegurança da gestão pública para lucrar com a educação. Lamentavelmente, uma empresa que não possui propriedade sobre o contexto local, construiu o currículo de pelo menos um terço dos municípios da AMCENTRO (Mattos; Amestoy; Tolentino-neto, 2023). 

 Em SM, a construção não teve qualquer interferência empresarial e, quando questionadas a respeito da dinâmica da construção do DOC/SM, as professoras apontaram para um ambiente favorável à discussão, conforme mostra o fragmento de fala a seguir:

a gente teve muito espaço, muita abertura de participação, enquanto comissão de formação. Eu entendo assim, que ele foi um documento completo, de qualidade, um documento que, de certa forma, veio a contribuir para o município dada a minha visão na minha área, eu acho que ele permitiu que as áreas, tivessem a possibilidade de acrescer o que a Base deixou a desejar, principalmente no âmbito territorial, que é a função do DOC, ele é territorial. Então eu acho que nesse sentido ele é um documento completo e veio a auxiliar, a complementar as faltas que a gente sentia na Base Nacional e no próprio RCG (P1, 2019, grifo dos autores).

Mesmo havendo total liberdade de discussão das habilidades que compuseram o DOC, sua construção foi marcada pelas amarras presentes na BNCC como, por exemplo, as competências prescritas em âmbito nacional. Por isso, quando o assunto é formação continuada de professores, a BNCC se torna pauta, e na formação inicial não é diferente.

Foi nessa perspectiva que, desde 2019, foi homologada a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). A formação continuada também foi envolvida no alinhamento com a formulação da Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada) em 2020 (Brasil, 2019; Brasil, 2020b).

Mas, afinal, o que seria uma formação necessária? Durante a construção do DOC/SM, os professores manifestaram o que consideravam como uma formação necessária, a P1 (2019), relata o pedido de formações voltadas para “a preparação para a Base [...] que as formações sejam por área.  O professor vai precisar, eu acho que agora o fundamental é mais tempo de formação”.

Os professores desejavam compreender, de forma clara e objetiva, o que lhes competia naquele momento, em relação às alterações dos conteúdos. Então, as formações por área eram importantes, mas também era preciso compreender a relevância da interdisciplinaridade nas formações e da troca de saberes pedagógicos entre os professores:

As professoras dos anos iniciais precisam se reunir com o pessoal de ciências para conversar, porque eles não têm formação para trabalhar essa parte técnica, que antes a gente trabalhava com eles no 6º e no 7º. Então, isso é interdisciplinaridade também, porque estamos trabalhando com um profissional que tem outra formação, que tem uma visão pedagógica, porque o profissional dos anos iniciais é pedagogo. Vamos precisar conversar com o profissional e ele vai dizer de que forma ele vai abordar esses assuntos (P2, 2020, grifo dos autores).

De acordo com a gestora, no momento da entrevista, havia uma projeção para o ano de 2021, por conta da pandemia do COVID-19, de que o ensino na rede municipal seria híbrido, com aulas remotas e presenciais, o que se confirmou posteriormente. A gestora acrescenta que as formações ocorrerão, pois elas são responsabilidade e obrigação do município: “O que deve estar no plano de formação do ano que vem [2021] é a implementação, continuar a implementação desses documentos, fomentar essa discussão nas escolas” (Gestora, 2020). 

Desde a entrevista com a gestora, os prazos foram revistos, por conta do distanciamento social, uma das principais medidas de combate ao coronavírus. Porém, ela acreditava que: “2022 é o nosso deadline, para estar 100% no Documento Orientador Curricular do território de Santa Maria” (Gestora, 2020). A gestora foi assertiva quando sinalizou em 2020, que essas formações não ocorreriam antes de 2022, devido à pandemia. O que de fato, se confirmou com formações retornando a pauta apenas em 2022. 

O Guia de Implementação da BNCC (Brasil, 2020a), apresenta sua proposta de formação:

Por meio da normatização, do nominalismo, da hierarquização e do enfraquecimento da autonomia e do protagonismo docente. Além disso, os documentos tendem ao verticalismo, à antecipação das ideias e das ações, culminando em uma reforma controladora, que busca o consenso e a anulação da crítica. Ao procederem dessa forma, os referidos documentos atacam a autonomia docente, cuja condição é vital ao processo formativo (Fogaça; Neuvald, 2021, p. 1820).

Assim, os rumos das formações ainda parecem difusos, porém, sabe-se do alinhamento já previsto para a legitimação e cumprimento integral da BNCC, o que acaba por dificultar um escape dessa lógica. Todavia, não inviabiliza as tentativas, mesmo que pontuais, de resistência à padronização, uma vez que, mesmo diante dos diversos mecanismos de controle, acredita-se que o currículo em sua essência - aquele formador da identidade dos cidadãos - é construído na escola, portanto, não pode ser reduzido a uma única política. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Sendo o processo de construção curricular posterior à BNCC, o pano de fundo desta escrita se remonta ao objetivo traçado de apresentar alguns aspectos relevantes na concepção de docentes de CN sobre a construção do DOC/SM. A partir desse objetivo, alguns pontos puderam ser discutidos por meio das professoras entrevistadas, o que revelou uma dificuldade interna do processo de construção do DOC/SM de incluir os docentes para atuação na produção do texto de políticas. Porém, entende-se que essa resistência reflete a instabilidade que o país tem em relação às políticas públicas. Ademais, esse histórico de políticas educacionais descontinuadas repercutiu, e ainda repercute, em professores descrentes, tanto que a BNCC seria usual, quanto na importância de envolver-se na construção de currículos oriundos dela.  

Dessa forma, é possível perceber que os docentes não se sentem parte dessas mudanças, portanto, considerar a presença deles na construção de um currículo que deveria estar totalmente alinhado à BNCC, é como legitimar algo que nunca partiu deles. A construção da parte diversificada da BNCC um exemplo disso, pois sistemas de ensino, sob ameaças de sanções iminentes, percebem-se pressionados a mudanças curriculares sob a falsa ótica da oportunidade de ser protagonista docente divulgada pela mídia e cobrada pela sociedade. A autonomia cedida aos sistemas, redes e escolas, em nenhum momento pôde, de fato, afastar-se das competências estabelecidas pela Base. Assim, seria essa uma autonomia real, velada ou vigiada?

Em SM, foi decidido pela formulação de um documento único, em que os professores teriam em mãos a BNCC- RCG- DOC/SM. Em outras palavras, ao adaptar-se ao DOC/SM, os professores estariam também cumprindo a BNCC, uma vez que não é possível se desvencilhar das competências e habilidades já estabelecidas pelo documento nacional. Os resultados dessa explanação refletem o que a literatura tem anunciado: uma severa restrição da atuação docente nas políticas educacionais. Com as discussões tecidas no texto, observa-se que as docentes de CN, realizaram com êxito o que lhes cabia, no sentido de construção do DOC/SM, contudo se tivessem maior liberdade teriam a oportunidade de atuar de forma mais satisfatória na elaboração da política local. 

 Assim, segue o questionamento sobre que espécie de autonomia é cedida aos docentes frente a essas políticas de currículo: uma autonomia duvidosa dentro de um discurso estereotipado de protagonismo docente o qual interpela os sujeitos, porém não os permite colocar em xeque a política basilar? Essas são considerações preocupantes quando constatado que a profissão de professor caminha por meandros que não favorecem a articulação entre o profissionalismo e a profissionalidade.

Além disso, soma-se a essas questões o prazo aligeirado e os equívocos de comunicação ocorridos ao longo das formações recebidas, o que fez com que alguns municípios da AMCENTRO não tivessem a oportunidade de construir os documentos de forma tão democrática e transparente, como ocorreu em SM. Essas turbulências durante os processos de construções curriculares tornam-se um verdadeiro ‘abre-alas’ para a aquisição de documentos prontos, construídos e vendidos por empresas, que se valem de momentos de intensa cobrança dos sistemas para consolidar-se no mercado educacional. 

Assim, compreende-se a importância dos esforços da rede municipal de SM que, mesmo diante das limitações, orientou o processo de construção do DOC/SM e pensou em meios para garantir que a voz dos docentes, que de fato conhecem e fazem parte do contexto, fosse ouvida e reconhecida como componente formador da política territorial. Diante do exposto, espera-se que os professores tenham a oportunidade de envolvimento na construção das políticas educacionais com verdadeira autonomia.  Assim, almeja-se por políticas que reflitam os anseios e reivindicações dos docentes, de forma que a prática e a realidade social sejam consideradas nessas redações. 

AGRADECIMENTOS

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências (PPgECi).

 

Recebido em: 01/02/2024

Aceito em: 01/08/2024

 

REFERÊNCIAS

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[1] Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE), número 23081.052763/2022-01.