A visão de estudantes do Ensino Médio sobre Ciência Tecnologia Sociedade: algumas discussões a partir da prática

High School Students' Perspectives on Science Technology Society: Some Discussions Based on Practice

La visión de los estudiantes de Secundaria sobre Ciencia Tecnología Sociedad: algunas discusiones a partir de la práctica.

 

Lucas Carvalho Pacheco (lclucascarvalhopacheco@gmail.com)

Colégio Coeducar, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-3992-2243

 

Resumo

O Movimento Ciência Tecnologia Sociedade (CTS) busca problematizar e democratizar processos decisórios que envolvem temas relacionados à Ciência e à Tecnologia. Nessa perspectiva, o problema que permeia este artigo é: Qual é a visão de estudantes do Ensino Médio sobre “Ciência Tecnologia Sociedade”? Para respondê-lo, foi realizado um estudo com abordagem predominantemente qualitativa, no itinerário formativo “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, em uma cooperativa educacional, localizada no município de Caçapava do Sul/RS. Os instrumentos de coleta de dados foram: produção dos estudantes e diário da prática pedagógica. De forma geral, esta pesquisa evidenciou que as principais concepções dos estudantes sobre CTS são: i) desenvolvimento linear de progresso, especialmente no que tange ao Desenvolvimento Tecnológico ocasionar, necessariamente, um Desenvolvimento Social e uma melhor qualidade de vida; ii) a Ciência só existe se ocorrer experimentação/observação; iii) a Ciência está associada apenas à Física, Química e Biologia; iv) a Ciência é neutra; v) a Tecnologia é, em suma, um sinônimo de instrumentos modernos/contemporâneos; vi) a Sociedade é uma reunião de pessoas que se relacionam. Tais resultados demonstram a necessidade de uma educação científica crítica-problematizadora na educação básica.

Palavras-chave: Percepções; Educação Científica; CTS; Ensino Médio.

 

Abstract

The STS movement seeks to problematize and democratize decision-making processes involving issues related to Science and Technology. In this perspective, the problem that permeates this study is: what are the conceptions of high school students about "Science Technology Society"? To answer this research problem, a study with a predominantly qualitative approach was carried out in the formative itinerary "Science, Technology and Society" at an educational cooperative located in the Caçapava do Sul city, in the state of Rio Grande do Sul. The data collection instruments were: student productions and educator reports. Overall, this research has shown that the main conceptions of students about STS are: i) Linear development of progress, especially concerning Technological Development necessarily leading to Social Development and improved quality of life; ii) Science only exists if experimentation/observation occurs; iii) Science is associated only with Physics, Chemistry, and Biology; iv) Science is neutral; v) Technology is modern/contemporary apparatus; vi) Society is a gathering of people who relate to each other. These results demonstrate the need for a critical-problematizing scientific education in basic education.

Keywords: Perceptions; Scientific Education; STS; High School.

 

Resumen

El Movimiento CTS busca problematizar y democratizar procesos de toma de decisiones que involucran temas relacionados con la Ciencia y la Tecnología. En esta perspectiva, el problema que permea este estudio es: ¿cuáles son las concepciones de estudiantes de Educación Secundaria sobre "Ciencia, Tecnología, Sociedad"? Para responder a este problema de investigación, se realizó un estudio con enfoque predominantemente cualitativo, en el itinerario formativo "Ciencia, Tecnología y Sociedad", en una cooperativa educativa ubicada en el municipio de Caçapava do Sul/RS. Los instrumentos de recolección de datos fueron: producción de los estudiantes y relato del educador. En general, esta investigación evidenció que las principales concepciones de los estudiantes sobre CTS son: i) Desarrollo lineal de progreso, especialmente en lo que respecta a que el Desarrollo Tecnológico ocasione, necesariamente, un Desarrollo Social y una mejor calidad de vida; ii) La Ciencia solo existe si ocurre experimentación/observación; iii) La Ciencia está asociada solo a Física, Química y Biología; iv) La Ciencia es neutral; v) La Tecnología son aparatos modernos/contemporáneos; vi) La Sociedad es una reunión de personas que se relacionan. Tales resultados demuestran la necesidad de una educación científica crítica-problematizadora en la educación básica.

 

Palabras-clave: Percepciones; Educación Científica; CTS; Educación secundária.

 

 

APRESENTAÇÃO E ASPECTOS TEÓRICOS

As discussões acerca do Movimento Ciência Tecnologia Sociedade (CTS) iniciaram em meados do século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Nesse momento histórico, com o triunfo da bomba atômica, percebeu-se a necessidade de debater as implicações da Ciência e da Tecnologia na Sociedade. Segundo García et al. (2003, p. 120)

[a] concepção clássica das relações entre a ciência e a tecnologia com a sociedade é uma concepção essencialista e triunfalista, que pode resumir-se em uma simples equação, o chamado “modelo linear de progresso”: + ciência = + tecnologia = + riqueza = + bem-estar social.

Não obstante, Auler (2007) coloca que o Movimento CTS emergiu a partir das críticas ao modelo linear/tradicional de progresso, em que o desenvolvimento científico resulta em um desenvolvimento tecnológico, o qual resulta em desenvolvimento econômico e este, por sua vez, ocasiona um desenvolvimento social, conforme a ilustração de Pacheco e Mortari (2022) demonstra a seguir:

Fonte: Pacheco e Mortari, 2022.

Figura 1 – Modelo linear/tradicional de progresso, conforme Auler (2007).

Nesse modelo, “a função do público [Sociedade] [...] está em observar, aguardar e acompanhar o desenvolvimento e as conclusões obtidas pelos cientistas, recebendo os produtos e os usando de maneira benéfica em sua vida cotidiana” (Rosa; Strieder, 2018, p. 5). Com isso, o Movimento CTS passou a contrariar decisões tecnocráticas e exigir decisões mais democráticas. Nesse sentido, Auler (2007) associa o movimento CTS à superação de três mitos, sendo eles: i) superação do modelo de decisões tecnocráticas; ii) superação da perspectiva salvacionista/redentora atribuída à Ciência-Tecnologia; e iii) superação do Determinismo Tecnológico.

O modelo de decisões tecnocráticas está alicerçado na crença de que os técnicos (experts em determinada área) irão solucionar todos os problemas do planeta, inclusive os sociais. Dessa forma, elimina-se o sujeito do processo científico-tecnológico. Já a perspectiva salvacionista/redentora atribuída à Ciência-Tecnologia está associada à compreensão, bastante disseminada, de que o desenvolvimento científico-tecnológico irá resolver todos os problemas existentes nos dias atuais, resultando em um bem-estar social. Por fim, o determinismo tecnológico distancia o campo da tecnologia de influências sociais, ou seja, a sociedade não pode mudar o processo de desenvolvimento tecnológico, pois o mesmo é irreversível e inexorável (Auler, 2007).

Ademais, esse movimento teve repercussão em diferentes regiões do planeta, resultando em algumas “vertentes”. Na Europa, surgiu e teve motivações no ambiente acadêmico. Já nos Estados Unidos, o movimento foi “centrado mais nas consequências sociais (e ambientais) dos produtos tecnológicos, descuidando geralmente dos antecedentes sociais de tais produtos” (Cerezo, 2002, p. 8). Assim sendo, nos EUA, o movimento teve um caráter mais ativista, ligado a movimentos sociais. Por fim, na América Latina, o movimento foi denominado de Pensamento Latino-Americano em CTS (PLACTS). Para Dagnino (2003), o PLACTS

[...] caracteriza-se não somente por questionar as consequências sociais do desenvolvimento CT ou seus antecedentes, mas, principalmente, por criticar o modelo de Política Científica e Tecnológica (PCT) adotado nos países de “Primeiro Mundo” e, assim, contrário às necessidades regionais (Strieder, 2012, p. 25, apud Dagnino, 2003).

A partir dos estudos de García et al. (2003), Strieder (2012) ressalta que

[...] os estudos em Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) abrangem uma diversidade de programas filosóficos, sociológicos e históricos, os quais, enfatizando a dimensão social da ciência e tecnologia, compartilham certo núcleo comum:

- o rechaço da imagem da ciência como atividade pura e neutra;

- a crítica à concepção de tecnologia como ciência aplicada e neutra;

- a promoção da participação pública na tomada de decisão (Strieder, 1996, p. 25, apud García et al., 1996)

O Movimento CTS reverberou em diversas áreas, dentre elas o campo educacional, no qual foi denominado de “Educação CTS” ou “Enfoque CTS”. Para Auler (2023), a Educação CTS tem como principal propósito democratizar os processos decisórios que envolvem temas relacionados à Ciência e Tecnologia. Contudo, “a democracia pressupõe que os cidadãos, e não só seus representantes políticos, tenham a capacidade de entender alternativas e, com tal base, expressar opiniões e, em cada caso, tomar decisões bem fundamentadas” (García et al., 2003, p. 144). Nesse sentido, na perspectiva da Educação CTS

[...] o objetivo geral do professor é a promoção de uma atitude criativa, crítica e ilustrada, na perspectiva de construir coletivamente a aula e em geral os espaços de aprendizagem. Em tal “construção coletiva” trata-se, mais do que manejar informações, de articular conhecimentos, argumentos e contra-argumentos, baseados em problemas compartilhados, nesse caso relacionados com as implicações do desenvolvimento científico-tecnológico (García et al., 2003, p. 149).

Nesse sentido, diversos estudos discutem a inserção do movimento CTS no campo educacional, especialmente a partir de uma perspectiva crítico-emancipatória (Oliveira; Guimarães; Lorenzetti, 2016; Cardoso; Strieder, 2023; Pacheco; Muenchen, 2024). Em específico, neste artigo, busca-se discutir os diferentes olhares sobre “Ciência Tecnologia Sociedade” sob a óptica de estudantes de Ensino Médio de uma cooperativa educacional do interior do Rio Grande do Sul. Em suma, este estudo torna-se relevante por refletir as percepções de estudantes do Ensino Médio sobre CTS, contribuindo para futuras inserções curriculares-metodológicas nesta perspectiva.

CONTEXTO E PERCUSO METODOLÓGICO

O presente estudo foi desenvolvido no contexto do Ensino Médio regular, em uma cooperativa educacional, localizada no município de Caçapava do Sul/RS. A instituição possui 240 estudantes distribuídos em turmas de ensino fundamental e médio. No âmbito do Ensino Médio, há 44 estudantes em três turmas, sendo 20 estudantes do 1º ano, 12 estudantes do 2º ano e 12 estudantes do 3º ano.

A partir da Lei n.° 13.415/2017, a instituição reestruturou a sua matriz curricular em 2022. Nesta nova matriz, os estudantes optam por trilhas de aprofundamento, formadas por disciplinas específicas de cada área. Por exemplo, a trilha de Ciências Exatas e da Natureza contém disciplinas, como Lógica Matemática, Geometria Aplicada, Desenvolvimento Sustentável e Ciência, Tecnologia e Sociedade – a qual é focalizada neste estudo.

A disciplina de Ciência, Tecnologia e Sociedade tem uma carga horária semanal de 1 hora/aula, de 50 minutos. Os eixos estruturantes da disciplina, de acordo com sua ementa, são: i) investigação científica; ii) processos criativos; iii) mediação e intervenção sociocultural e iv) empreendedorismo. Ainda, a ementa dispõe dos propósitos da disciplina para cada um dos anos do Ensino Médio, de acordo com o quadro a seguir.

Quadro 1 – Propósitos da disciplina “Ciência, Tecnologia e Sociedade” para cada ano do Ensino Médio

1º ano

2º ano

3º ano

Desafios que exigem a investigação, análise, argumentação e criatividade dos estudantes na construção de algo relevante e transformador para si e seu entorno. Para tal, há a necessidade apresentar ou revisitar conceitos, dando ênfase à pesquisa (teórico/ prática), conhecendo e utilizando a metodologia científica para investigar grandes descobertas científicas, suas consequentes aplicações tecnológicas e os impactos no município.

Analisar de que forma as descobertas científicas e suas aplicações tecnológicas pesquisadas anteriormente relacionam-se ao desenvolvimento da sociedade e mapear possíveis desafios trazidos por estas descobertas.

Propor soluções criativas para que o desenvolvimento científico esteja atrelado de forma mais efetiva ao desenvolvimento social do mundo contemporâneo, avaliando possibilidades de redução de impactos sobre o meio ambiente, tendo em vista o cenário mundial.

Fonte: Coeducar, 2022.

Por conta das trilhas de aprofundamento serem optativas, as turmas são divididas, com base nos itinerários formativos escolhidos. Dessa forma, os estudantes que estão matriculados na disciplina de CTS são: 7 alunos do 3º ano, 4 alunos do 2º ano e 10 alunos do 1º ano, todos do Ensino Médio. Ainda, deve-se salientar que o professor da disciplina (em todas as turmas) associou-se este ano na escola. Sendo assim, o regente não tinha conhecimento do que havia sido desenvolvido em sala de aula em anos anteriores.

O professor regente optou por realizar, no primeiro trimestre do ano, discussões iniciais acerca da visão dos estudantes sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade. Nesse sentido, o presente estudo emerge das três primeiras aulas do ano letivo de 2024, descritas no quadro a seguir.

Quadro 2 – Descrição das aulas ministradas na disciplina de “Ciência, Tecnologia e Sociedade”

Nº da aula

Descrição do encontro

01

Neste encontro, iniciou-se a problematização inicial da disciplina, em que os estudantes tiveram que responder às seguintes questões:

a) O que você compreende por Ciência Tecnologia Sociedade?

b) O que você espera desta disciplina?

02

Neste encontro, foi realizada uma dinâmica, ainda no momento de problematização inicial.

Dinâmica[1]: Foram entregues três papéis pequenos aos estudantes, os quais tinham que expor em uma palavra o que representava Ciência, em outro papel o que representava Tecnologia e, em outro, o que representava Sociedade. Após todos escreverem, foram distribuídos os papéis que representavam Ciência. Cada estudante teve que justificar o porquê daquela palavra representar Ciência para algum colega. Posteriormente, o estudante que escreveu a palavra deveria expor sua justificativa. Esse mesmo procedimento foi realizado para as palavras que representavam Tecnologia e Sociedade.

03

Continuação da dinâmica: Neste encontro, os estudantes realizaram um “mapa” com todas as palavras escritas por eles, buscando relações entre elas que representem o significado (na concepção deles) de Ciência Tecnologia Sociedade.

Fonte: Autores.

Diante do contexto apresentado nos parágrafos anteriores, o problema que permeia este estudo é: Qual é a visão de estudantes do Ensino Médio sobre “Ciência Tecnologia Sociedade”? Para respondê-lo, foi realizado um estudo com abordagem predominantemente qualitativa. A abordagem qualitativa caracteriza-se pela

[..] objetivação do fenômeno; hierarquização das ações de descrever, compreender, explicar, precisão das relações entre o global e o local em determinado fenômeno; observância das diferenças entre o mundo social e o mundo natural; respeito ao caráter interativo entre os objetivos buscados pelos investigadores, suas orientações teóricas e seus dados empíricos; busca de resultados os mais fidedignos possíveis; oposição ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa para todas as ciências (Silveira; Córdova, 2009, p. 32).

Como instrumentos de coleta de dados, por sua vez, foram utilizadas as produções dos estudantes (desenvolvidas ao longo dos encontros expostos no quadro 2) e o relato do educador da disciplina, realizado a partir da construção de diários da prática pedagógica (Paniz, 2007). Os excertos coletados nesses instrumentos foram identificados pelo sistema alfanumérico, PEn_Un ou RE_Un, sendo PE1_U1 o primeiro excerto da produção do estudante 1, e RE_U1 o primeiro excerto do relato do educador.

A COMPREENSÃO DE ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO SOBRE CIÊNCIA TECNOLOGIA SOCIEDADE

A partir da análise das respostas proferidas durante a problematização proposta na primeira aula (Quadro 2), observou-se que os alunos de todos os anos possuem uma concepção de desenvolvimento linear de progresso, como é apresentado no seguinte relato do educador:

De forma geral, evidenciei que os estudantes de todos os anos possuem uma compreensão limitada maior de CTS, pois a maioria das respostas expostas na problematização inicial consideram que a tecnologia é apenas uma aplicação da ciência e que o desenvolvimento da sociedade é fruto do desenvolvimento científico e tecnológico. Ainda, um ponto que me chamou atenção foi que os estudantes do 3º ano tinham uma compreensão tão acrítica quanto os estudantes do 1º ano. Acredito que isso represente uma falta de organização da disciplina em anos anteriores, que realmente abordassem a perspectiva crítica do movimento CTS (RE_U2).  

Os achados presentes nesse excerto, que foi retirado dos diários da prática pedagógica, vão em direção às unidades de significado das produções dos estudantes a seguir:

A ideia é tentar relacionar as 3 coisas [Ciência, Tecnologia e Sociedade], ciência trazendo a teoria, tecnologia a prática da teoria e sociedade questionando como essa tecnologia afeta a vida humana (PE18_U1).

A partir da Ciência surgiu a tecnologia, a tecnologia amplia a Ciência e tudo isso é aplicado na sociedade (PE09_U2).

Com base na unidade PE18_U1, observa-se que o estudante do 3º ano compreende a ciência como um meio de trazer a teoria para a sociedade, enquanto a tecnologia é apenas a prática que advém da teoria proposta pela ciência. Já a unidade PE09_U2, referente a um estudante do 1º ano, sugere que a tecnologia “surgiu” da ciência, ou seja, não existiria tecnologia se não houvesse ciência. Ainda, neste último excerto, percebe-se a concepção de que a tecnologia amplia a ciência, logo ciência também é produzida a partir do desenvolvimento tecnológico. Assim, essas respostas, expostas pelos estudantes na primeira aula, vão ao encontro do “modelo/desenvolvimento linear de progresso”, discutido nas primeiras páginas deste artigo.

Ademais, evidencia-se que não há discrepância das concepções de ciência entre os estudantes do 1º ano e do 3º ano do ensino médio. Nesse sentido, os estudos de Silva (2010, p. 626) apontam que “[...] as concepções de ciências tanto do aluno ingressante como concluinte pouco diferem entre si. Esse fato aponta para uma possível ineficiência de discussões nesse sentido em ambas as instâncias de ensino”.

Em relação à dinâmica proposta na aula 2, descrita no quadro 2, os estudantes participaram ativamente do processo. Nessa dinâmica, em um papel, eles deveriam escrever uma palavra que representasse Ciência, outra que representasse Tecnologia e uma terceira que representasse Sociedade. As respostas dos estudantes podem ser conferidas no quadro abaixo:

Quadro 3 – Respostas apresentadas pelos estudantes na dinâmica inicial

 

1º ano

2º ano

3º ano

Ciência

Estudo (4x)

Natureza (2x)

Explicar

Universo

Conhecimento

Conhecimento

Inovação

Metodologia

Pesquisa

Natureza

Pesquisa

Experimento

Estudo (2x)

Revolucionária

Observação

Tecnologia

Modernidade

IA

Internet

Avanços

Inovação

Evolução

Programação

Energia (2x)

Evolução

Ferramentas

Futuro

Criação

Aprimoramento (2x)

Inovações (2x)

Avanço

Dias atuais

Globalização

Desenvolvimento

Sociedade

Pessoas (4x)

Cultura

Povo (2x)

Democracia

Convivência

 

 

Humano

Relações

Ligações

Conjunto

Inclusão

Comunicação

Pessoas

Cooperação

Comunidade

Relações

Cultura

Fonte: Autores.

A partir do quadro 3, percebe-se que a representação de “Ciência” construída pelos estudantes mostra-se limitada às questões de “natureza”, “universo” e “estudo”. A nuvem de palavras a seguir visa elucidar melhor essa representação realizada por eles:

Fonte: Autores.

Figura 2 – Nuvem de palavras com a representação de “Ciência” para os estudantes

Após os estudantes representarem com palavras, foi realizada uma roda, em que cada um precisou justificar suas respostas. Sobre isso, o educador da turma relata que

[o]bservei que a maior parte dos estudantes representou a Ciência como algo positivo, neutro e que envolve a observação e experimentação, ou seja, não há Ciência se não for realizada no laboratório ou com observação de um fenômeno na natureza. Com isso, os estudantes compreendem que a Ciência é, apenas, a Ciência da Natureza (RE_U4).

            No excerto anterior, registra-se o papel central da observação e da experimentação na concepção de Ciência dos estudantes do Ensino Médio. A partir disso, forma-se uma nova: Ciência é Física, Química e Biologia. Essa nova concepção é estabelecida, especialmente, pelo fato de não conseguirem imaginar a observação e experimentação em áreas, como as Ciências Sociais e Humanas, Matemática, Linguagens, entre outras. Essas evidências vão ao encontro da pesquisa de Silva (2010, p. 625), que investigou 80 estudantes iniciantes e concluintes do Ensino Médio, sendo 43 cursistas do 1° ano e 37 alunos do 3° ano. Na análise do autor,

[...] a primeira afirmação (Para se provar uma teoria científica, é necessária a utilização de um experimento no final do processo.) diz respeito à necessidade de um experimento na produção do conhecimento científico, ou, então, a presença do experimento crucial que valida uma teoria científica. Nota-se que aproximadamente 20 alunos ingressantes (46%) concordam plenamente com essa afirmação. Já, investigando os alunos concluintes, o seu total que concordam plenamente com a afirmação são de 14 alunos (45%).

            Assim sendo, ressalta-se a necessidade de, na educação básica, promover discussões epistemológicas, ou seja, sobre a forma como o conhecimento científico é produzido e disseminado. Uma educação científica crítica não é possível sem a realização de debates nesse sentido em sala de aula.

            Com base nas representações apresentadas pelos estudantes, constata-se, ainda, uma concepção positivista da ciência, que conforme Cachapuz (2022), foi construída a partir de três pilares, a saber:

Os três pilares clássicos em que assentou a construção da ciência positivista, aquela que historicamente se construiu em ruptura com o senso comum, já não chegam: o laboratório (lato senso) como espaço operatório privilegiado de produção do conhecimento, a linguagem como instrumento de simbolização e de comunicação desse conhecimento e ainda a comunidade científica como instrumento de legitimação do mesmo. E não foi fácil essa ruptura já que, no dizer de Heraclito de Éfeso, a natureza gosta de se ocultar. A questão não é o que está a mais, mas sim o que está a menos. O que está a menos é reconhecer a historicidade da epistemologia e a relatividade do objeto científico, que não é mais absoluto (Cachapuz, 2022, p.66, grifo nosso).

            O autor salienta a importância do reconhecimento do papel do sujeito e as interferências do ser humano na ciência, pois é uma descolonização epistêmica. Nesse sentido, é pertinente uma educação em ciências que trabalhe o processo de desenvolvimento dos conhecimentos científicos, não apenas as aplicações, mas também as implicações (Cachapuz, 2022). 

            As representações realizadas pelos estudantes acerca de “Tecnologia”, por sua vez, podem ser visualizadas a partir do quadro 3 ou da nuvem de palavras (Figura 3).

Fonte: Autores.

Figura 3 – Nuvem de palavras com a representação de “Tecnologia” para os estudantes

A partir das representações anteriores, pode-se verificar a sobressaliência de palavras, como “inovação”, “avanços”, “aprimoramento” e “desenvolvimento” e “modernidade”. De forma geral, os dados mostram uma concepção de tecnologia em que represente apenas coisas atuais ou modernas, a exemplo da inteligência artificial, da Internet e da programação.

Ao longo das discussões sobre a tecnologia, percebi que todos estavam com uma compreensão de tecnologia associada à modernidade/dias atuais, em que apenas é tecnologia celulares, computadores, videogames, dentre outros aparelhos eletrônicos. Alguns poucos estudantes compreendiam tecnologia como “ferramenta” que visava à praticidade, desde a história antiga. Ainda, observei que eles não colocavam aspectos negativos atribuídos à Tecnologia, como se ela fosse uma marcha ao progresso, sempre uma evolução. Nesse sentido, questionei-os: o que é evolução? É sempre para melhor? Então, eles expuseram que a tecnologia surge para melhorar a vida das pessoas, aumentar a capacidade de se realizar um trabalho/uma atividade (RE_U5).       

            Com base no excerto RE_U5, nota-se que na concepção dos estudantes do ensino médio, a tecnologia está atrelada ao desenvolvimento social. Em outras palavras, quanto mais tecnologia existir, maior será a capacidade de produção e, por conseguinte, melhor será a qualidade de vida. Essa ideia está vinculada ao mito do Determinismo Tecnológico, que conforme Auler (2007, p. 180),

[e]m linhas gerais, há duas teses definidoras do determinismo tecnológico: – A mudança tecnológica é a causa da mudança social, considerando-se que a tecnologia define os limites do que uma sociedade pode fazer. Assim, a inovação tecnológica aparece como o fator principal da mudança social; – A tecnologia é autônoma e independente das influências sociais. Sendo o desenvolvimento científico-tecnológico apresentado como irreversível, inexorável, representando a marcha do progresso, exclui a possibilidade de alterar o ritmo das coisas. A participação da sociedade em nada alteraria o andamento do processo. Nesta compreensão está presente a ideia da inevitabilidade do processo e do progresso, alijando a sociedade da participação em decisões que envolvem seu destino.

            Nesse mito, cabe à sociedade exclusivamente o papel de usufruir os aparatos científicos e/ou tecnológicos que são produzidos por técnicos/experts, isto é, a tecnologia torna-se um mero instrumento a ser utilizado, sem realizar uma crítica contundente (Oliveira; Guimarães; Lorenzetti, 2016). Somado a isso, o educador relata que,

[a]lém de atrelar o desenvolvimento tecnológico ao desenvolvimento social, observei que ao longo das discussões, mesmo não estando explicitamente nas palavras representadas, os estudantes tinham a concepção de que a tecnologia é uma mera aplicação da Ciência (RE_ U6).

Nesse sentido, Niniluoto (1997) oferece cinco classificações de diferentes pontos de vistas no que concerne às relações entre Ciência e Tecnologia, sendo elas: i) ciência seria redutível à tecnologia; ii) tecnologia seria redutível à ciência; iii) ciência e tecnologia são a mesma coisa; iv) ciência e tecnologia são independentes; v) há uma interação entre ciência e tecnologia. Com base nessa classificação, García et al. (2003) destacam que

[o] ponto de vista mais amplamente aceito sobre a relação ciência- tecnologia é o que conceitua a tecnologia como ciência aplicada, sendo, portanto, a tecnologia redutível à ciência. Este ponto de vista é subjacente ao modelo linear do desenvolvimento que tem influenciado políticas públicas de ciência e tecnologia até tempos recentes. Tal conceito tem estado presente também, ainda que às vezes de modo implícito, na filosofia da ciência. Afirmar que a tecnologia é ciência aplicada é afirmar que: i) uma tecnologia é principalmente um conjunto de regras tecnológicas; ii) as regras tecnológicas são consequências dedutíveis das leis científicas; iii) desenvolvimento tecnológico depende da investigação científica (García et al., 2003, p. 40).

            Diante dos resultados expostos, evidencia-se que o ponto de vista dos estudantes está mais relacionado à “Tecnologia redutível à Ciência”. Nesse sentido, ressalta-se a importância de discutir, em sala de aula, o caráter sistêmico da Tecnologia, ou seja, defini-la não apenas como um aparato, mas como um sistema, algo próximo do que García et al. (2003) fazem: 

De maneira mais precisa, podemos definir tentativamente a tecnologia como uma coleção de sistemas projetados para realizar alguma função. Fala-se então de tecnologia como sistema e não somente como artefato, para incluir tanto instrumentos materiais como tecnologias de caráter organizativo (sistemas impositivos, de saúde ou educativos, que podem estar fundamentados no conhecimento científico) (García et al., 2003, p. 44).

A seguir, na Figura 4, pode-se melhor visualizar as representações realizadas pelos estudantes sobre “Sociedade”.

 

 

Fonte: Autores.

Figura 4 – Nuvem de palavras com a representação de “Sociedade” para os estudantes

Com base nas representações dos estudantes e no relato do educador, evidencia-se uma concepção de “Sociedade” pouco crítica, com destaque para palavras, como “pessoas”, “povo” e “humano”.

Em todas as turmas, as discussões no que se refere à “Sociedade” foram vazias e sem aprofundamentos. De maneira geral, os estudantes compreendem a sociedade como seres humanos que têm relações/ligações/cultura, porém eles não realizaram nenhuma problematização acerca destas relações ou sobre a forma que as culturas se comunicam. Um dos estudantes até explanou “sociedade é só um monte de pessoas” (RE_U7).

O excerto RE_U7 mostra que a concepção dos estudantes de “Sociedade” é de uma reunião de pessoas que se relacionam, porém não há um aprofundamento acerca da forma como essas relações ocorrem, tampouco uma relação/aproximação entre ciência e tecnologia nas discussões sobre sociedade.

            No terceiro encontro, destinado à continuação da dinâmica, os estudantes tiveram que relacionar as palavras escritas por eles nos três campos C, T e S. De acordo com o educador,

[a]s relações não foram realizadas pelos estudantes, até tinham relações, porém entre poucas palavras. De forma geral, eles expuseram os três campos separados, ou seja, as relações ocorriam entre palavras da Ciência, entre as palavras da Tecnologia e entre as palavras da Sociedade, mas não entre os três campos. Esta experiência me fez refletir sobre a formação que os estudantes tiveram, pois este fato ocorreu em todos os anos. Nesse sentido, acredito que a disciplina deve ser estruturada de forma a discutir algumas relações acríticas realizadas. Por exemplo, estudantes do 3º ano colocaram que a globalização ocasiona, necessariamente, em uma inclusão. Apenas uma estudante discordou e disse “Eu não concordo que a globalização sempre gera uma inclusão. Na verdade, quase sempre gera a exclusão de algum grupo” (RE_U9).

            O excerto RE_U9 expõe que, para os estudantes, Ciência, Tecnologia e Sociedade são campos dependentes um do outro, ao mesmo tempo em que não há relações entre eles. Em suma, a Tecnologia só existirá se tiver Ciência, porém para a Ciência há uma representação que se difere da representação de Tecnologia, e da mesma forma para a Sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada vez mais estudos apontam a necessidade de discutir aspectos epistemológicos desde a Educação Básica, almejando uma educação científica crítica-problematizadora. Contudo, muitos desses estudos focalizam a natureza da Ciência e deixam à margem as implicações da Ciência e Tecnologia na Sociedade, em uma vertente próxima da Educação CTS.

Já os estudos da Educação CTS buscam, muitas vezes, sistematizar ou relatar experiências pedagógicas com base em uma temática ou problemática social. Tais experiências são consideráveis e respeitáveis, uma vez que, na maioria das vezes, almejam uma transformação da realidade dos estudantes. No entanto, essas experiências acabam, frequentemente, não problematizando a concepção dos estudantes acerca dos três campos (Ciência, Tecnologia e Sociedade), seja por questões temporais, seja por questões organizacionais ou estruturais da instituição e/ou do docente.

Nessa perspectiva, salienta-se o contexto privilegiado deste estudo, em que a instituição de ensino fornece aos seus estudantes o itinerário formativo “Ciência, Tecnologia e Sociedade”. Ainda que sucintas, a realização de discussões, como as que ocorreram, são de grande valia para o desenvolvimento de uma compreensão crítica da Ciência e da Tecnologia e de suas implicações na sociedade.

Com base nas discussões realizadas anteriormente, buscou-se discutir os diferentes olhares sobre “Ciência Tecnologia Sociedade” sob a óptica de estudantes do Ensino Médio. De forma geral, esta pesquisa concluiu que as principais concepções são: i) desenvolvimento linear de progresso, especialmente no que tange ao Desenvolvimento Tecnológico ocasionar, necessariamente, um Desenvolvimento Social e uma melhor qualidade de vida; ii) a Ciência envolve experimentação/observação; iii) a Ciência está associada apenas à Física, Química e Biologia; iv) a Ciência é neutra; v) a Tecnologia é vista como apenas os instrumentos modernos/contemporâneos; vi) a Sociedade é uma reunião de pessoas que se relacionam.

Além das concepções expostas anteriormente, destaca-se o fato de os estudantes de todos os anos possuírem uma visão acrítica e neutra da Ciência e da Tecnologia. Dessa forma, evidenciou-se uma falta de debates e/ou discussões acerca de Ciência, Tecnologia e Sociedade tanto por parte dos ingressantes quanto dos concluintes do Ensino Médio.

Por fim, incentiva-se o desenvolvimento de mais estudos e práticas pedagógicas que debatam as relações CTS em sala de aula. O contexto de itinerários formativos e de projetos extraclasse, especialmente aqueles associados à Iniciação Científica na Educação Básica podem favorecer experiências, como a investigada neste estudo.     

 

Recebido em: 13/04/2024

Aceito em: 11/12/2024

 

REFERÊNCIAS

AULER, Décio. Articulação entre pressupostos do educador Paulo Freire e do movimento CTS: novos caminhos para a educação em ciências. Contexto e Educação. v. 22, n. 77, p. 167- 188, 2007.

AULER, Décio. Seminário: Cuidado! Um cavalo viciado tende a voltar para o mesmo lugar. PPGEMEF/UFSM/Santa Maria/RS, 2023.

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[1] Esta dinâmica foi uma reprodução. A primeira vez que o professor da disciplina teve contato com a dinâmica foi ao longo da disciplina de pós-graduação “Ciência, Tecnologia e Sociedade”, ministrada pela Prof.ª Dr.a Cristiane Muenchen.