A botânica no ensino fundamental: o que esperar a partir da BNCC?
Botany in elementary education: what to expect from BNCC?
Botánicaen la escuelaprimaria: ¿Quéesperar del BNCC?
Magna Misleiza Rodrigues Medeiros(misleizarmedeiros@hotmail.com)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
https://orcid.org/0009-0008-5720-5556
Leonardo Alcântara Alves(leonardo.alcantara@ifrn.edu.br)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte
https://orcid.org/0000-0003-4650-3140
Resumo
O processo de ensino dos conteúdos biológicos é permeado por desafios, sendo esta área repleta de abstração e termos científicos distantes da realidade do aluno. Dentre os conteúdos que possuem tais questões, destaca-se a botânica, subsidiando a criação do termo cegueira botânica. Utilizando-se desta problemática percebemos a necessidade em refletir sobre os aspectos que regem as questões de currículo sobre o tema realizando uma análise na Base Nacional Curricular Comum, investigando o que o documento propõe acerca do ensino da botânica para o Ensino Fundamental II e quais as possíveis consequências. A partir da análise do conteúdo, foi possível perceber que os conteúdos de botânica estão, dentro da base, inclusos dentro da mesma unidade didática em todos os anos de ensino. Foi possível ainda perceber a diminuição dos conteúdos, estando estes compactados em: biologia celular, ecologia, impactos ambientais e reprodução. Baseado nisto, conclui-se que a BNCC apresenta conteúdos vegetais de modo reduzidos, estando, na maioria dos casos, sendo contextualizado com os animais. Foi perceptível ainda a ausência de conteúdos que servem de subsídio para o estudo de áreas que vão além da biologia, o que abre possibilidades para outros estudos que investiguem a botânica dentro da nova configuração curricular.
Palavras-chave: Ensino de botânica; BNCC; currículo.
Abstract
The process of teaching biological content is permeated by challenges, as this area is full of abstraction and scientific terms far from the student's reality. Among the contents that address such issues, botany stands out, supporting the creation of the term botanical blindness. Using this problem, we realized the need to reflect on the aspects that govern the curriculum issues on the subject, carrying out an analysis in the Common National Curriculum Base, investigating what the document proposes about the teaching of botany for Elementary School II and what are the possible consequences. From the content analysis, it was possible to see that botany contents are, within the base, included within the same teaching unit in all years of teaching. It was also possible to notice a decrease in content, which was compacted into: cell biology, ecology, environmental impacts and reproduction. Based on this, it is concluded that the BNCC presents reduced plant content, being, in most cases, contextualized with animals. It was also noticeable the absence of content that serves as support for the study of areas that go beyond biology, which opens up possibilities for other studies that investigate botany within the new curricular configuration.
Keywords: Teaching botany; BNCC; curriculum.
Resumen
El proceso de enseñanza de contenidos biológicos está permeado de desafíos, ya que esta área está llena de abstracciones y términos científicos alejados de la realidad del estudiante. Entre los contenidos que abordan tales temas destaca la botánica, sustentando la creación del término ceguera botánica. A partir de este problema, nos dimos cuenta de la necesidad de reflexionar sobre los aspectos que rigen las cuestiones curriculares de la materia, realizando un análisis en la Base Curricular Nacional Común, investigando qué propone el documento sobre la enseñanza de la botánica para la Escuela Primaria II y cuáles son las posibles consecuencias. Del análisis de contenido se pudo observar que los contenidos de botánica están, dentro de la base, incluidos dentro de la misma unidad didáctica en todos los años de enseñanza. También se pudo notar una disminución en el contenido, que se compactó en: biología celular, ecología, impactos ambientales y reproducción. Con base en esto, se concluye que el BNCC presenta un reducido contenido vegetal, estando, en la mayoría de los casos, contextualizado con los animales. También se notó la ausencia de contenidos que sirvan de apoyo al estudio de áreas que vayan más allá de la biología, lo que abre posibilidades para otros estudios que investiguen la botánica dentro de la nueva configuración curricular.
Palabras-clave: Enseñanza de botánica; BNCC; plan de estudios.
INTRODUÇÃO
Muito se tem discutido e estudado acerca da educação e de como os conteúdos estão sendo trabalhados dentro da sala de aula. Os desafios são inúmeros, de modo que vão desde a relação existente entre professores e alunos, até a forma como essas aulas estão acontecendo. De acordo com Nicola e Paniz (2016, p. 356) “na atualidade, a educação ainda apresenta inúmeras características de um ensino tradicional, onde o professor é visto como detentor do saber, enquanto os alunos são considerados sujeitos passivos no processo de ensino e aprendizagem”. No formato de professor como detentor de todo conhecimento, o que se observa é uma tendência no afastamento dos próprios estudantes do processo de ensino e aprendizagem, trazendo desta forma, inúmeros prejuízos. Ainda de acordo com Nicola (2016), sendo os alunos tratados como depósito de conhecimentos, com o passar do tempo observa-se a perda de interesse dos mesmos pelo conteúdo, pois encontram-se em uma realidade pouco diversificada nas aulas e/ou atividades a que são submetidos.
Nesse contexto, o processo de ensino das ciências da natureza, incluindo a biologia, é considerado como árduo e desafiador, uma vez que esta área de ensino se apresenta como repleta de abstração, de modo que o que é ensinado torna-se distante da vivência dos alunos, os impossibilitando até mesmo de encontrar uma significação naquilo que lhes é passado. Exemplo que materializa tal ponto e que trazemos em nosso texto de forma mais direcionada é o conteúdo de botânica, área dentro da biologia responsável pelo estudo dos vegetais.
Arrais et al. (2014, p. 5409), investigando as práticas docentes para o ensino das plantas, corrobora com o citado quando afirma que “o ensino de botânica é marcado por diversos problemas, a exemplo da falta de interesse dos discentes por este tipo de conteúdo”. O que de fato se observa é o distanciamento que ocorre entre seres humanos e plantas. Foi neste contexto que Wandersee e Schussler (2002) apresentaram à comunidade científica de ensino o termo “cegueira botânica” que, segundo os mesmos, pode ser sustentado por a) à incapacidade de reconhecer a importância das plantas na biosfera e no nosso cotidiano; b) a dificuldade em perceber os aspectos estéticos e biológicos exclusivos das plantas; c) achar que as plantas são seres inferiores aos animais, portanto, não merecedores de atenção equivalente. Porém, muito embora a situação atual que a botânica se encontra hoje seja subvalorizada, o estudo da mesma é de suma importância, uma vez que o contexto da sua inserção perfaz aspectos ambientais, de saúde, alimentares, dentre outros.
Salatino e Buckerigde (2016, p.177) apontam ainda que “na atualidade, grande parte das pessoas que passam pelos ensinos fundamental e médio vê a botânica de modo diferente”. Tais escritos são utilizados para fazer menção à forma como os alunos enxergam as plantas se comparada a outros assuntos vistos também nesses níveis de ensino. A botânica é hoje pragmatizada como matéria escolar árida, entediante e fora do contexto moderno. Visto isso, o que de fato deveria ser motivo de enquietamento era o Ensino de Botânica, de modo a torná-la significante para o aluno, desconstruindo aquilo que lhe é posto atualmente.
Baseado nos escritos já realizados e publicados (Arrais et al., 2014;Wandersee;Schussler, 2002; Salatino;Buckerigde, 2016, entre outros), observa-se ainda que existem lacunas nos conteúdos no tocante das relações existentes entre os vegetais e os seres humanos, de forma mais específica, trabalhando diretamente como a existência e preservação de um interferem na vida do outro, considerando ainda a relação de interdependência existente entre esses dois grupos de seres vivos.
Ao considerar as metodologias, a utilização de uma linguagem, assim como métodos que são frequentes no cotidiano do aluno, seriam possíveis estratégias atrativas para esse público, uma vez que, a principal dificuldade encontrada hoje é aversão existente, como apontam os estudos.
Utilizando-se desta problemática percebemos uma necessidade intensa em refletir sobre os aspectos que regem as questões de currículo sobre o tema, onde propomos iniciar esta reflexão acerca do currículo no âmbito da educação brasileira, de modo a ensaiar uma solução para os problemas postos, especialmente, neste escrito, a questão do estudo das plantas. Decidimos realizar essa investigação elencando categorias, baseada na análise de conteúdo de Bardin, de modo a discutir a democracia envolvida na escolha dos conteúdos e quais as possíveis consequências para esta área de estudo após a implementação do documento.
Debater sobre currículos para o ensino no Brasil, de acordo com Macedo (2014) e Larroyd e Duso (2022), vem em consonância com o debate acerca de uma base comum a todos. Se assumir uma visão mais ampla da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), historicamente a mesma já aparece em meados dos anos 80 e com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, esse fato se consolida. Mais tarde, documentos como, Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e Plano Nacional de Educação (PNE) reforçam o que a LDB já sinalizava, ou seja, a materialização de uma base (Duarte; Calixto; Ferreira, 2022).
As demandas criadas para a educação foram várias durante o período que sucede a LDB, porém, o que permanece é a sua tendência no que diz respeito à centralização do currículo, prevalecendo, assim, uma ideia de base comum como garantia de uma educação de qualidade. Em 2009, de acordo com Macedo (2014), a defesa da base foi retomada, de modo que foi lançado pelo Ministério da Educação (MEC) o Programa Currículo em Movimento, que contava com a participação da comunidade acadêmica do campo do currículo, com o intuito de construir um documento que seja capaz de organizar o currículo e referenciar os conteúdos as quais devem ser trabalhados, assegurando assim uma base comum da educação básica no país.
De um modo geral, o que se observa é que desde o princípio a construção da base se coloca como participativa, onde a colaboração de comunidades é fator relevante. Porém, um ponto a ser refletivo e que tem sido bastante discutido nos estudos sobre a mesma é a forma como essa participação tem sido feita e qual o seu sentido democrático. A problematização de tal ponto é discutida por Chantal Mouffe (2003) e Alice Casimiro Lopes (2012), que buscam apresentar o conceito de democracia dentro dos currículos e como essas são efetivamente implementadas dentro da política educacional. Levantamos tal discussão pelo fato de almejar compreender quais os princípios utilizados para a escolha de conteúdos dentro da BNCC e até que ponto tais princípios são democráticos.
Este conceito de democracia é amplamente discutido por Mouffe (2003) a partir de uma visão de sociedade democrática. Para tanto, a autora apresenta duas vertentes que tratam a democracia como aquilo que é de fato concretizado nas sociedades e, em contrapartida, como aquilo que deveria ser. Vale ressaltar que o objetivo aqui não se concentra em eleger um lado, mas sim, tomar posse da democracia de modo conceitual.
Para definir duplamente o “fenômeno”, Mouffe (2003) considera inicialmente a sociedade democrática como algo pacífico e harmonioso, livre de conflitos e alicerçado em um consenso a partir de uma interpretação única. O segundo ponto de vista apresentado assume a sociedade democrática como passíveis de múltiplas visões conflituosas, livres de expressões, com possibilidades de escolhas. Compreender a democracia dentro do contexto atual nos leva a projetar interpretações do campo educacional, especificamente na BNCC no que compete à escolha dos conteúdos a serem lecionados.
Baseado no que se é visto hoje, as relações que se dizem democráticas são construídas a base de poder, de modo que a ordem é dada a partir de uma direção que vai “de cima para baixo” onde, no campo educacional, o professor apenas recebe as decisões que são tomadas a partir de membros superiores.
Lopes (2012) preocupa-se exatamente com a discussão das democracias dentro das políticas de currículo, o que nos possibilita tomar posse de como funciona, por exemplo, a escolha dos conteúdos para ser trabalhado dentro da base. Esse é ponto de interesse, uma vez que o presente trabalho tem por objetivo investigar quais as possíveis mudanças e consequências que a BNCC traz para a botânica no Ensino Fundamental a partir dos conteúdos que foram selecionados para serem trabalhados.
METODOLOGIA
Como já mencionado, o presente trabalho se apresenta como uma proposta de reflexão acerca da BNCC no que compete os conteúdos de botânica para o Ensino Fundamental e, deste modo, compreender quais as possíveis consequências e o que se esperar deste documento. Como quadro teórico para discussão de tais pontos, fizemos uso de forma preponderante de textos produzidos por Chantal Mouffe(2003), Alice Casimiro Lopes (2012) e Elizabeth Macedo (2014), que apresentam pontos sobre a democracia nas políticas de currículos educacionais e representações.
Como abordagem, utilizamos a pesquisa do tipo qualitativa, que possui dentre suas características, como afirma Bogdan (1994), a descrição para representar os resultados, assim como analisar os dados de forma indutiva, onde o objetivo não é comprovar hipóteses, mas sim considerar todo o percurso realizado na coleta de dados.
A metodologia empregada para análise dos dados foi baseada na “Análise de Conteúdo” popularizada por Laurence Bardin (2011) e utilizada em inúmeros estudos, a qual ocorre por meio de criação de categorias que objetivam responder à questão proposta. De acordo com Santos (2012, p.383), fazendo uso dos escritos de Bardin, a técnica consiste em “um conjunto de instrumentos de cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos (conteúdos e continentes) extremamente diversificados”. Sobre essa técnica são necessárias algumas etapas de execução para análise do conteúdo, que são organizadas em três fases. Estas vão desde a pré-análise, a exploração do material e, por fim, o tratamento dos resultados, sua inferência e interpretação por parte dos pesquisadores.
Visto isso, foi realizada uma análise do documento da Base Nacional Curricular Comum para o Ensino Fundamental através de duas categorias elencadas. A primeira categoria busca analisar a distribuição dos conteúdos vegetais dentro das unidades didáticas que o documento apresenta. Já na segunda categoria o foco de análise consiste no conteúdo vegetal que cada ano incluso dentro do Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano) traz. Após analisadas e discutidas tais categorias, o escrito realiza um diálogo entre aquilo que foi encontrado com ideias de autores da área que discutem a questão de democracia dentro da produção de currículos para a política educacional.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O ensino de Ciências da Natureza, desde os documentos que regem a organização educacional até os estudos desenvolvidos na área apresenta-se como tarefa desafiadora e árdua. É possível ratificar tal ponto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), onde é afirmado que os conteúdos, que são de grande variedade, têm sido conduzidos de forma desinteressante e pouco compreensível por parte dos alunos. Visto isso, é considerável investigar como os conteúdos biológicos, especificamente de cunho vegetal tem se apresentado na nova proposta organizacional da educação da BNCC.
Através de uma leitura inicial acerca do documento em discussão é possível observar uma justificativa para o estudo da área de Ciências da Natureza, que está alicerçada na intencionalidade de promover o letramento científico, que segundo Mamede e Zimmermann (2005) referem-se “à importância de preparar o indivíduo para a vida em uma sociedade científica e tecnológica, na qual o conhecimento assume um papel essencial, dentro de uma perspectiva crítica da ciência e da tecnologia”. É possível ainda perceber que no texto introdutório, a base comum para o estudo das Ciências da Natureza concentra-se em fornecer ao aluno capacidade de debater sobre diferentes temas, fornecendo-o uma formação integral, que vai além dos conteúdos pré-estabelecidos. Outro ponto abordado diz respeito ao aspecto visional do estudante através de uma perspectiva sustentável, apontando que “Espera-se, desse modo, possibilitar que esses alunos tenham um novo olhar sobre o mundo que os cerca, como também façam escolhas e intervenções conscientes e pautadas nos princípios da sustentabilidade e do bem comum” (Brasil, 2017). Baseado nos pontos apontados, percebe-se a relevância que o estudo dos vegetais possui, sendo assim, crucial incluí-los na base.
Para subsidiar a análise dos conteúdos as categorias estabelecidas foram possíveis o estabelecimento de categorias. Inicialmente, realizaremos a discussão com base no estabelecimento das unidades didáticas que o documento apresenta para o estudo de Ciências da Natureza das séries que compreendem o Fundamental II, estando inclusa os anos do 6º ao 9º. Essa categoria foi elencada pela percepção que tivemos da separação das áreas de ensino que ocorrerá na divisão das três unidades, o que compromete a interdisciplinaridade do processo de ensino e aprendizagem. A segunda categoria estabelecida consiste em analisar os conteúdos botânicos que foram eleitos para compor a base. A escolha de tal se deu pelo fato de ser perceptível a redução dos conteúdos selecionados, se comparado com os Parâmetros Curriculares Nacionais, a qual funciona atualmente como documento norteador.
Acerca das unidades didáticas, o documento apresenta três, que recebem as denominações de acordo com os objetivos levantados e conteúdos abordados. O que se observa dentro do estudo de botânica é que nos quatro anos de ensino analisados o mesmo só se apresenta dentro da mesma unidade, a qual recebe o título “Vida e Evolução”. De acordo com o próprio documento, esta unidade temática propõe o estudo de questões relacionadas aos seres vivos (incluindo os seres humanos), suas características e necessidades, e a vida como fenômeno natural e social, os elementos essenciais à sua manutenção e à compreensão dos processos evolutivos que geram a diversidade de formas de vida no planeta. Estudam-se características dos ecossistemas destacando-se as interações dos seres vivos com outros seres vivos e com os fatores não vivos do ambiente, com destaque para as interações que os seres humanos estabelecem entre si e com os demais seres vivos e elementos não vivos do ambiente. Abordam-se, ainda, a importância da preservação da biodiversidade e como ela se distribui nos principais ecossistemas brasileiros (Brasil, 2017, p.324).
Considerando as atribuições para essa unidade é possível compreender a inclusão de pontos que necessitam de conceitos vegetais, sendo indissociável o estudo das plantas com os demais conteúdos que a unidade propõe. É sabido que as plantas podem estar inclusas em diferentes subáreas de conhecimento biológico e até mesmo de áreas de conhecimento distintas, como as ciências humanas. Estudar, por exemplo, características econômicas e históricas de um determinado povo requerem, por hora, conhecimentos que advém dos vegetais. Salatino e Buckeridge (2016) estudando a cegueira botânica despertam justamente para esse ponto, ao discutir o valor cultural e econômico que estas apresentam. Ainda analisando o que a unidade didática se propõe, é possível observar lacunas em pontos específicos da botânica, se comparado com o que é proposto dentro dos Parâmetros Nacionais Curriculares para o Ensino Fundamental. Pontos como “os processos de transporte de água, de materiais do solo, de substâncias e estruturas vivas (sementes, por exemplo) por diferentes agentes em um ambiente, ou entre ambientes, também podem ser enfocados” e ainda “pode ser interessante a investigação de um local cultivado — jardim, pomar, horta etc.— comparativamente ao estudo de um campo abandonado” (Brasil, 1998). Com esse comparativo é possível concluir que tais lacunas geram prejuízo para o ensino de botânica, uma vez que se perde a especificidade do que é apontado como objetivo da unidade didática retirando o direcionamento que era previamente dado às discussões apresentadas.
Para embasar a discussão das lacunas existentes em um comparativo dos dois documentos utilizaremos de estudos e pontos levantados por Pereira; Costa e Cunha (2015) em um ensaio intitulado como- Uma base a base: quando o currículo precisa ser tudo. que discute o texto de Guiomar Namo de Mello, Currículo da Educação Básica no Brasil: concepções e política, publicado em 2014. Não é pretensão do texto em questão utilizar-se dos mesmos objetivos da autora Guiomar. O que se almeja na verdade é compreender o que é currículo e o que, de acordo com os seus conceitos, é fundamental para compô-lo, para que de fato se possa compreender o motivo pelo qual a botânica foi atenuada, de forma significante no texto introdutório da unidade didática.
O que se percebe inicialmente é a dificuldade em definir o que venha a ser currículo. Mesmo embora a dificuldade na precisão de tal, Mello (2014 p.1) a define de modo simplista como “tudo aquilo que uma sociedade considera necessário que os alunos aprendam”. Porém, o questionamento posterior a tal definição é – o que é de fato necessário? Como definir, de forma coesa o que deve conter cada unidade didática que compõe a BNCC? Buscando equilibrar tais questionamentos, o consenso empregado por ora para tal essencialidade é um contrapondo que vai desde direcionamento no conhecimento e outra centrada no aluno, para que em seguida possa estabelecer um critério definido do que vem a ser essencial. Agregando-se aos dois critérios pré-citados, Pereira, Costa e Cunha (2015), citando Mello (2014), apresentam a ideia de currículo por competências onde, segundo a mesma “... incorporar aquilo que define como potencial produtivo das outras duas concepções”. Trazendo essa definição para a realidade de BNCC o que observa é um seguimento ao que Mello (2014) afirma ser ideal. O que nos inquieta é compreender quais os critérios utilizados para a construção do texto introdutório que os aproximam da definição de currículo apresentada por Mello (2014). A preocupação é a atenuação dos conteúdos, principalmente se comparado ao PCN, deixando de fora conteúdos fundamentais, inclusive para facilitação na compreensão de conteúdos de outras áreas.
Discutiremos de modo mais específico os conteúdos relacionados à botânica que estão compreendidos dentro da unidade temática amplamente discutida nas secções anteriores deste estudo. Elencamos aqui outra categoria de análise para posse dos resultados objetivados.
Realizando uma análise cronológica no quesito de ano dentro do nível de Ensino Fundamental II percebe-se a presença de conteúdos que estão relacionados às plantas, embora nenhum termo vegetal apareça de forma clara (Quadro 1).
Quadro 1 - Conteúdos botânicos distribuídos por ano do ensino fundamental dentro da BNCC
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ANO DE ENSINO |
UNIDADE DIDÁTICA |
CONTEÚDOS |
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6º ano |
Vida e Evolução |
Biologia celular |
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7º ano |
Vida e Evolução |
Ecologia e impactos ambientais |
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8º ano |
Vida e Evolução |
Reprodução |
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9º ano |
Vida e Evolução |
Impactos ambientais causados pelo homem |
Fonte: autores (2024).
Analisando o 6º ano o que observa é uma orientação para estudo dos aspectos celulares. A proposta apresentada pretende realizar os estudos celulares animal e vegetal acoplado, o que causa receio, uma vez que dentro do espaço educacional existe uma tendência, por parte dos professores, a eleger conteúdos ligados aos animais como “mais importantes”. Salatino e Buckeridge (2016) utilizando-se de afirmações publicadas por Flannery (1991) apontam que o mesmo admite se interessar mais por animais do que por plantas, alegando que diferentemente das plantas, os animais possuem a capacidade de reação, movimentação e pensamentos. Essas citações demonstram falta de conhecimento acerca desses seres vivos, uma vez que estes são capazes de desenvolver reações e outros processos metabólicos, que passam despercebidos pela falta de estudo. No 7º ano é possível perceber os conteúdos vegetais serem trabalhados através de um contexto interdisciplinar, realizando um elo com aspectos ecológicos e de impactos ambientais. Com isso concluímos que segue o mesmo padrão da série de ensino anterior. A botânica aparece, porém nas entrelinhas. O fato preocupante neste nível é a ausência de estudos botânicos anteriores que forneceriam subsídios para entender as plantas em um contexto interdisciplinar.
Analisando o 8º ano temos um quadro semelhante ao 6º ano, onde o conteúdo é citado dentro da base de modo geral, fornecendo possibilidades para aprofundamento. Embora o conteúdo seja historicamente mais exemplificado com animais, pois se trata de reprodução, é no documento a única vez que o termo “planta” tem sido empregado dentro das habilidades definidas. Por fim, no 9º ano, o último inserido dentro do Ensino Fundamental II o quadro apresenta-se como inquietante no quesito botânico. Realizando um paralelo com os PCN para o Ensino Fundamental é possível encontrar dentro deste ano de ensino conteúdos que dizem respeito à fotossíntese, conhecido assunto vegetal de suma importância para compreender esses seres e mencionar a essencialidade dos mesmos para a vida na terra. Como habilidade estabelecida no documento o que se observa é a restrição de possibilidades para se trabalhar esse conteúdo, sendo está resumido em estudar as plantas são através dos impactos ambientes causados pelo homem.
Visto as distribuições conteudista de acordo com o novo documento utilizamos de Lopes (2012) para nos inquietarmos em relação à construção curricular da base. Voltamos a falar nesta secção sobre o caráter democrático que foi estabelecido para tal. Até que ponto existe representatividade de quem realmente sofrerá com esses impactos? De acordo com a autora, “um maior caráter democrático é associado à capacidade de a política representar os interesses de professores e alunos, torná-los participantes da produção de textos políticos” (Lopes, 2012, p.702). Mas até que ponto há garantia que esse caráter democrático foi exercido? Ainda de acordo com a autora a representação dentro da produção do currículo ocorre mediante dois aspectos – o dos textos políticos, que irão fazer a representação das demandas sociais, e o dos autores dos textos, que representam de fato essas demandas que devem ser inclusas. O problema é que o que parece ser consensual, baseado nos dois paralelos apresentados, mostra-se cada vez mais repleto de nuances e distante da dicotomia teoria-prática. Outro ponto discutido por Lopes (2012), utilizando Hall (2003) é a questão do descentramento das identidades dos sujeitos políticos. Como é possível inserir em uma política interesse de um determinado grupo se componentes deste não são considerados? Lopes (2012, p.703) afirma que “em uma perspectiva moderna, considera-se que a democracia política é garantida por uma transparência nos processos de representação, de maneira que o representante seja aquele que expresse plenamente as demandas dos representados”. Essa pontuação corrobora com a linha de discussão que a autora vem realizando. A garantia da representação dos professores e dos alunos não é dada e assim, o documento apresenta lacunas no que compete o estudo dos vegetais.
A proposta para o ensino de botânica que vem sendo apresentada pode vir repleta de problemas não só para o ensino de biologia. O que se percebe é a ausência de conteúdos fundamentais sobre plantas que possuem alcances imensuráveis no âmbito conteudista, assim como no âmbito de formação cidadã. A falta de apontamentos claros e objetivo na distribuição desses conteúdos entre os anos de ensino os deixam mais a mercê da desvalorização, o que só contribuí para os resultados que se tem hoje sobre a subvalorização dos conteúdos vegetais em detrimentos dos demais. A base, por ora, realizando a seleção de forma a incluir os conteúdos vegetais que são passíveis de contextualização, assim como, aqueles que fornecem aos alunos informações que apresentam os vegetais como essenciais a vida, estariam de fato contribuindo para torna o conhecimento comum a todos. Porém, com o foi analisado, percebe-se apenas uma redução do conteúdo, o minguando, na maioria das vezes, como associado aos conteúdos animais.
CONSIDERAÇÕES
Pela análise realizada até aqui, é possível concluir a diminuição dos conteúdos vegetais dentro do novo documento educacional. O que se observa é a sua presença de forma contextualizada com os demais, estando presente em apenas uma unidade didática, a qual está intitulada como “vida e ambiente”.
As consequências para tal cenário estão intimamente relacionadas à redução de conceitos específicos das plantas, afetando a compreensão de conteúdos presentes em diferentes áreas, porém, que são passíveis de contextualização.Outra implicação observada neste estudo é que a BNCC fortalecerá, de acordo com sua estrutura, o fenômeno recentemente denominado como cegueira botânica, afastando cada vez mais os alunos, assim como os professores, desses seres vivos que são essenciais para a vida animal da terra.
A partir daí, fazemos um questionamento: O que se esperar de uma nova configuração curricular que míngua um conteúdo que se relaciona com aspectos de ciência, saúde e tecnologia? É possível refletir que a priori os aspectos ambientais passarão a assumir um caráter de dificuldade para se lecionar, assim como os aspectos nutricionais contidos nas habilidades elencadas. Vale ressaltar que esse estudo abre possibilidades para outros que possam analisar ainda de forma mais ampliada às deficiências que essa nova estrutura curricular traz para o ensino da botânica.
Recebido em: 21/03/2024
Aceito em: 27/12/2024
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