Da história à alimentação: proposta de uma sequência didática para o ensino das plantas alimentícias

From history to food: proposal of a didactic sequence for teaching food

De la historia a la alimentación: propuesta de una secuencia didáctica para la enseñanza de las plantas alimenticias

 

Flávia Martho Landinho (flavia.martho@ufabc.edu.br)

Universidade Federal do ABC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-9160-3418

 

Marcia Helena Alvim (marcia.alvim@ufabc.edu.br

Universidade Federal do ABC, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0904-5032

 

Fernanda Franzolin (fernanda.franzolin@ufabc.edu.br)

Universidade Federal do ABC, Brasil

https://orcid.org/0000-0001-8808-9107

 

 

Resumo

Devido à dinamicidade do mundo, a alimentação natural tem sido substituída por uma alimentação monótona e industrializada. Assuntos de alimentação e saúde estão presentes nos currículos escolares e, consequentemente, nas salas de aula. Nesse contexto, apresentamos uma sequência didática para abordar a temática de plantas alimentícias pautada em uma perspectiva socioecológica da saúde, na história das Ciências e na pedagogia decolonial. A sequência didática foi construída a partir de trechos do manuscrito da História das plantas alimentares e de gozo do Brasil escrito pelo farmacêutico e naturalista Theodoro Peckolt na época do Brasil Imperial. Os detalhes de cada aula da sequência didática proposta para estudantes do Ensino Médio foram descritos, e para sua elaboração consideramos as dimensões da abordagem histórica no ensino de Ciências: a epistemológica, a sociocultural e a da práxis. Espera-se que essa sequência didática possa fomentar a valorização de diversos saberes e o reconhecimento de alimentos nativos do Brasil.

Palavras-chave: sequência didática; pedagogia decolonial; história das Ciências; plantas alimentícias.

 

Abstract

Due to the dynamics of the world, natural feeding has been replaced by both monotonous and industrialized food. Food and health issues are present in school curriculum and, consequently, in classrooms. In this context, we present a didactic sequence to address the theme of food plants based on a socioecological perspective of health, the history of science and decolonial pedagogy. The didactic sequence was built from excerpts from the manuscript of História das plantas alimentares e de gozo do Brasil written by the pharmacist and naturalist Theodoro Peckolt in the period of imperial Brazil. The details of each class of the didactic sequence proposed for high school students were described, and for the elaboration of the didactic sequence we consider the dimensions of the historical approach in the teaching of science that would be: epistemological, sociocultural and praxis. This didactic sequence is expected to foster the appreciation of various knowledge and the recognition of native foods in Brazil.

Keywords: didactic sequence; decolonial pedagogy; science history; food plants.

 

Resumen

Debido a la dinámica del mundo, la alimentación natural ha sido reemplazada por una dieta monótona e industrializada. Los problemas de alimentos y salud están presentes en los planes de estudio escolares y, en consecuencia, en las aulas. En este contexto, presentamos una secuencia didáctica para abordar el tema de las plantas alimenticias basadas en una perspectiva socioecológica de la salud, la historia de las ciencias y la pedagogía decolonial. La secuencia didáctica se construyó a partir de extractos del manuscrito História das plantas alimentares e de gozo do Brasil escrito por el farmacéutico y naturalista Theodoro Peckolt en la época de Imperial Brasil. Se describieron los detalles de cada clase de la secuencia didáctica propuesta para estudiantes de secundaria, y para la elaboración de la secuencia didáctica consideramos las dimensiones del enfoque histórico en la enseñanza científica que sería: epistemológico, sociocultural y praxis. Se espera que esta secuencia didáctica fomente la apreciación de varios conocimientos y el reconocimiento de los alimentos nativos en Brasil.

Palabras-clave: secuencia didáctica; pedagogía decolonial; historia de la ciencia; plantas alimenticias.

 

 

INTRODUÇÃO

A alimentação natural foi gradativamente substituída por uma alimentação industrializada, caracterizada por um alto teor energético e pouco valor nutritivo, devido à dinamicidade do mundo (Abreu et al., 2001). Os aprendizados sobre alimentação se iniciam no âmbito familiar e depois são abordados no contexto escolar, tendo em vista que essa temática está presente nos currículos escolares e os estudantes realizam pelo menos uma refeição na escola. Assim, ao pensarmos nessa temática dentro da escola surgem as seguintes questões: Quais discursos sobre alimentação têm prevalecido nas escolas? Quais discursos são silenciados?

Os discursos sobre alimentação na sala de aula têm como foco os saberes científicos e, infelizmente, outros saberes são silenciados. Isso ocorre por conta da existência de um currículo eurocêntrico, ou seja, um currículo que impõe um modo de ser (Almeida, 2019; Sacavino, 2016).

 Segundo Dussel (2009), a Ciência ocidental opera através de dicotomias e não com a diversidade. Somada a isso, ocorre uma autoproclamação do que é Ciência pela Europa, tentando trazer uma “universalidade-mundialidade”. Desse modo, acontece uma subalternização de saberes, prejudicando, assim, o rompimento das relações hierárquicas e dicotômicas entre o Norte e o Sul Global (Walsh; Oliveira; Candau, 2018). Isso indica que ocorre um apagamento e um silenciamento de conhecimentos, simbolicamente denominados de “conhecimentos do Sul”. Esse não é um conceito geográfico, mas sim político, pois tem como propósito o “[...] reconhecimento de uma variedade enorme de epistemologias, a Ocidente e a Oriente, a Norte e a Sul, a nível local, global, nacional, em que as diferenças sejam horizontais e não verticais” (Santos; Araújo; Baumgarten, 2016, p. 18). A percepção desse eurocentrismo nos currículos e consequentemente nas salas de aula, e a resistência a ele, recebeu o termo de “giro decolonial”. Esse, proposto por Nelson Maldonado em 2005, concretiza-se por meio de propostas pedagógicas que objetivam uma emancipação dos educandos, para que assim se possa “desatar o nó, aprender a desaprender, e aprender a reaprender a cada passo” (Mignolo, 2008, p. 305).

Pensando, especificamente, em saberes relacionados à alimentação, os modelos de agricultura impostos aos países do Sul pelos países do Norte têm contribuído para destruir uma diversidade alimentar, padronizar paladares, diminuir a imensa biodiversidade e, até mesmo, extinguir espécies que podem ser comestíveis, com elevado teor de nutrientes e propriedades medicinais. A substituição da agricultura tradicional pela agricultura moderna colonizadora certamente tem colaborado para o silenciamento de saberes tradicionais, resultando assim na denominação deles como “não científicos” e “primitivos” (Almeida, 2019). Diante disso, o presente artigo tem como objetivo propor uma sequência didática (SD) sobre plantas alimentícias que articule história da Ciência com pedagogia decolonial a partir de trechos do manuscrito de Theodoro Peckolt. Espera-se que essa SD possa fomentar a valorização e o reconhecimento de alimentos nativos do Brasil.

 

HISTÓRIA DA CIÊNCIA ARTICULADA À PEDAGOGIA DECOLONIAL

A temática da alimentação já fazia parte dos currículos por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) na área da saúde, publicados em 1998. Em 2017, os PCNs foram substituídos pelos Temas Contemporâneos Transversais (TCT) e, novamente, a temática da alimentação está presente na área da saúde com a nomenclatura de Educação Alimentar e Nutricional (Brasil, 2019). Em vista disso, percebe-se a relevância dos aspectos da saúde e da alimentação nos currículos e, consequentemente, nas propostas educativas presentes nas escolas.

A literatura vem apontando que ações educativas em saúde ainda estão centradas nos aspectos biológicos e carecem de abordagens que envolvam aspectos sociais, históricos e políticos (Venturi, 2018; Buss; Filho, 2007; Mohr; Schall, 1992; Santos; Araújo, 2020; Araújo; Bianchi; Boff, 2021). Desse modo, é necessário se desvencilhar de ações pontuais que consideram apenas os aspectos biológicos da saúde e do ato alimentar para emergirem ações educativas que oportunizem o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes. Segundo Venturi (2018), existem três abordagens da educação em saúde que são: biomédica, comportamental e socioecológica. A abordagem biomédica é a mais utilizada nos currículos e, consequentemente, nas escolas, e nessa abordagem a saúde é vista meramente como a ausência de doença. Já a abordagem comportamental visa a alteração de padrões comportamentais que expõem o indivíduo a riscos como, por exemplo, tabagismo, inatividade física e alimentação não saudável. Por fim, a abordagem socioecológica, que tem sido a mais indicada para tratar de temáticas relacionadas à saúde, considera a saúde como completo bem-estar físico, mental e social, sendo essa a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Diante disso, nos deparamos com as perguntas: Como ensinar sobre alimentação em uma abordagem socioecológica? Como promover um ensino sobre alimentação na perspectiva decolonial? Com o intuito de respondê-las, este trabalho buscou elaborar uma SD que permitisse abordar a alimentação tanto em uma perspectiva socioecológica quanto decolonial. Para isso, utilizamos uma abordagem histórica no ensino de Ciências pautada em um dos manuscritos de Theodoro Peckolt,

No que se refere à inserção da História das Ciências (HC) na sala de aula, é possível afirmar que ela tem a capacidade de fomentar “uma educação científica problematizadora, crítica e cidadã, rompendo com o ensino de Ciências tradicional” (Rocha; Alvim, 2020, p. 491). Quando a educação científica não está articulada aos aspectos históricos, essa se torna acrítica e a-histórica. Nela, a Ciência é vista de forma linear, irrefutável, pautada na filosofia positivista e com um único método universal.

Forato, Pietrocola e Martins (2011) indicam que um dos desafios da inserção da HC consiste na geração de pseudo-histórias, que são apresentações de narrativas distorcidas, descontextualizadas e até mesmo tendenciosas. Ainda, segundo esses autores, existem indícios para se reconhecer as pseudo-histórias, tais como: visões romantizadas que valorizam alguns “heróis” (por exemplo, o famoso relato da maçã de Newton), ausência de erros nas narrativas e conclusões que não consideram os aspectos políticos, sociais e históricos. Deste modo, partilhamos da ideia de que

o ensino escolarizado das ciências não deve se limitar ao desenvolvimento de uma capacidade aguçada para fazer exercícios e responder questionários fechados sobre certos conteúdos, mas também envolver a construção de uma cultura científica, fazendo com que o estudante adquira noções sólidas sobre o que as ciências produzem, quais seus objetos de estudo, como elas se desenvolvem historicamente e como se relacionam no mundo contemporâneo com as esferas social, econômica e política (Alvim; Zanotello, 2014, p. 350).

Assim sendo, buscamos subsídios na HC para a construção de uma SD para o ensino das plantas alimentícias a partir de um manuscrito de Theodoro Peckolt.

 

THEODORO PECKOLT: NATURALISTA DO BRASIL IMPERIAL 

Em novembro de 1847 chegou ao Brasil o naturalista alemão Theodoro Peckolt, que analisou folhas, flores e cascas de diversas espécies de plantas medicinais e alimentícias, principalmente pertencentes à Mata Atlântica (Santos, 2005). Peckolt veio para o Brasil influenciado por August Wihelm Eicher (1839-1887) e Karl Friedrich Phillip von Martius (1794-1868). Peckolt tinha por objetivo o estudo da flora e o envio do material coletado para von Martius para completar a maior obra botânica brasileira, Flora Brasiliensis (1840-1906).

Vale relembrar que a expedição científica liderada por von Martius ocorreu com a vinda da arquiduquesa Leopoldina da Áustria para o Brasil, pois ela iria se casar com o príncipe D. Pedro de Alcântara, futuro imperador do Brasil. Salientamos que a imperatriz Leopoldina tinha enorme interesse pelas Ciências naturais e contribuiu para os estudos científicos no Brasil. Infelizmente, pouco é mencionado sobre a dedicação de Leopoldina ao desenvolvimento científico, sendo lembrada apenas “[...] por suas características físicas, seus filhos, sua curta vida no Brasil e seus dramas matrimoniais; quando na verdade ela esteve diretamente relacionada com o desenvolvimento das Ciências naturais no Brasil no início do século XIX” (Silva, 2018, p. 13).

Assim, junto com Leopoldina, desembarcaram botânicos, cientistas, zoólogos e artistas, dentre eles von Martius (Santos; Pinto; Alencastro, 1998). Martius e outros naturalistas e cientistas desembarcaram no Brasil em 1817, e durante cerca de três anos (1817-1820) percorreram os biomas do Brasil, o que resultou na monumental obra Flora Brasiliensis. Ao retornar para Munique, von Martius e seu companheiro Johann Baptist von Spix começaram a sistematizar os achados da expedição. Porém, von Martius teve que continuar a escrita das publicações sem o companheiro Spix, que faleceu em 1826. Desse modo, no período de 1840 e 1906 foi produzida a obra Flora brasiliensis, resultado dessa expedição ao Brasil. Como Peckolt veio para o Brasil em 1847, influenciado por von Martius, ele contribui para a revisão da Flora brasiliensis.

Peckolt não foi responsável apenas pelo envio de materiais para a Flora brasiliensis, mas também sistematizou as tradições de usos e manejo das plantas pelos grupos indígenas. Isso indica que os povos indígenas desempenharam uma importante contribuição na história da Ciência no Brasil. Tal contribuição está relacionada, por exemplo, ao conhecimento de plantas medicinais e alimentícias. Santos, Pinto e Alencastro (1998) citam a espécie Jaborandi (Pilocarpus jaborandi), que já era utilizada pelos indígenas para fins medicinais, e a partir de estudos químicos constatou-se possuir um alcaloide chamado pilocarpina que auxilia no tratamento do glaucoma.

O Brasil possui uma rica diversidade de etnias que é fundamental para a conservação da biodiversidade. Assim, os povos indígenas são diversificados e não homogeneizados, e possuem uma forma própria de produzir conhecimentos que, por ser diferente da eurocêntrica, têm seus saberes considerados inferiores (Ndlovu, 2017). Contudo, o conhecimento indígena no espaço escolar é primordial para que ações pautadas na educação para biodiversidade sejam duradouras e não pontuais. Franzolin, Garcia e Bizzo (2020) relatam que “a rica variedade de frutas e vegetais da floresta disponíveis nas cidades, às vezes é pouco reconhecida como parte do rico patrimônio indígena” (2020, p. 9).

Diante disso, defendemos que a alimentação humana deve ser reconhecida como um patrimônio cultural e histórico e não apenas como um ato biológico. Peckolt, em suas viagens pelo Brasil, analisou as propriedades químicas e farmacêuticas das espécies da flora, e também coletou informações sobre a utilização e nomes populares de algumas delas. Na obra História das plantas alimentares e de gozo do Brasil (1871 a 1884) Peckolt, se preocupou em organizar as plantas descritas em ordem alfabética de acordo com o nome popular, e não científico, com o intuito de atingir um público maior, e destacou que uma mesma planta poderia ter diferentes nomes populares dependendo da regionalidade. Indubitavelmente, a obra de Peckolt foi um grandioso registro dos alimentos consumidos no século XIX. Assim, almejando o reconhecimento da alimentação como um patrimônio histórico e cultural, neste trabalho focamos em propostas de atividades que utilizam trechos da obra História das plantas alimentares e de gozo do Brasil, pois esse manuscrito é um importante registro da biodiversidade de espécies com potencial alimentício.

 

SEQUÊNCIA DIDÁTICA PROPOSTA

A SD proposta neste trabalho sobre plantas alimentícias foi baseada nas dimensões da abordagem histórica no ensino de Ciências segundo Oliveira e Alvim (2021), que seriam a epistemológica, a sociocultural e a da práxis. Esses autores indicam que apesar de cada uma dessas dimensões possuir suas especificidades, elas são indissociáveis.

A dimensão epistemológica corresponde aos modos de produção e da prática da Ciência. Em outras palavras, refere-se à Natureza da Ciência. Já a dimensão sociocultural indica que a Ciência não é neutra, pois é resultado de um contexto social, cultural e político. Essa dimensão permite que o estudante compreenda que o saber científico não é superior a outros saberes ditos “inferiores”. Caso contrário, existirá uma relação de dominação, ao invés da dialogicidade, entre o saber científico e o saber tradicional proveniente dos estudantes. Por fim, a dimensão da práxis corresponde à incorporação da historicidade por meio de temas geradores, pois esses temas contribuem para uma aproximação com a realidade dos estudantes (Oliveira; Alvim, 2021; Santos; Oliosi, 2013). Diante dessas três dimensões, foram elaborados os objetivos específicos da SD, presentes no quadro 1, com o tema gerador “Plantas Alimentícias” que pode ser trabalhado nas disciplinas de Biologia, Química e História para estudantes do 1º ano do Ensino Médio.

 

Quadro 1 – Objetivos específicos da sequência didática sobre “Plantas Alimentícias” considerando dimensões da abordagem histórica do ensino de Ciências.

Dimensão

Objetivos

Espera-se que estudantes sejam capazes de:

Epistemológica

- Compreender como a prática da Ciência se modifica no decorrer da história ao conhecer alguns trechos da obra História das plantas alimentares e de gozo do Brasil.

- Compreender a classificação biológica e da composição química de algumas plantas alimentícias de forma integrada e contextualizada.

 

Sociocultural

- Compreender a importância da biodiversidade cultural para a biodiversidade alimentícia.

- Entender o papel dos indígenas na identificação de plantas com potencial alimentício.

- Refletir sobre o impacto dos interesses do imperador na produção científica.

 

Práxis

- Valorizar outras formas de conhecimento que não seja apenas o científico.

- Promover o ensino da Biologia, Química e História a partir do tema gerador Plantas Alimentícias.

- Contribuir para um ensino contextualizado sobre plantas alimentícias a partir de abordagens históricas.

 

Fonte: as autoras, 2023.

 

A seguir, serão descritos em detalhes os procedimentos de cada aula, sendo que a partir dessa SD é possível atrelar conteúdos presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Médio (Brasil, 2017). A SD tem um total de 5 aulas e destaca-se que as atividades propostas são sugestões, sendo que o professor da Educação Básica pode fazer adaptações de acordo com o cotidiano escolar.

Primeira aula

Para iniciar a aula, o professor pode dividir a turma em quatro grupos e distribuir um trecho da obra História das Plantas Alimentares e de Gozo do Brasil, presente na Figura 1.

 

Figura 1 - Trecho da obra a ser utilizado na aula introdutória História das Plantas Alimentares e de Gozo do Brasil[1].

 

Após a leitura, sugere-se que os grupos respondam às seguintes questões: qual a importância dos relatos dos viajantes naturalistas para o Brasil? De onde vinham os viajantes? Quais seriam as riquezas mencionadas no trecho? O que estava acontecendo no Brasil em 1845? Posteriormente, cada grupo pode relatar suas respostas para os demais grupos e o professor irá anotar na lousa as principais ideias trazidas pelos estudantes. Em seguida, o professor possivelmente complementa as informações e introduz os estudos do farmacêutico Theodoro Peckolt, podendo, para isso, se basear nos conhecimentos introduzidos neste artigo na subseção “Theodoro Peckolt: Naturalista do Brasil Imperial”. Ao final da aula, propõe-se que os estudantes anotem as espécies de vegetais que consumiram durante o período de um dia. Essa lista será utilizada na próxima aula para problematizar a pouca variedade de espécies consumidas na alimentação. Também servirá para o professor verificar se aparecerá o nome dos seguintes vegetais: araçá, amora, araruta e mandioca, pois são espécies que serão estudadas na quarta aula e que estão presentes no estudo de Peckolt.

Segunda aula

Com a lista dos alimentos consumidos pelos estudantes por um período de um dia, sugere-se a realização de uma roda de conversa para discussão das seguintes questões: Quais dessas espécies são nativas do Brasil? Por que o brasileiro tem uma alimentação monótona? Como a imigração das plantas pelos continentes contribuiu para a padronização da alimentação? O objetivo dessa aula é promover uma reflexão sobre a diversidade de espécies relatadas no estudo de Peckolt[2] e a pouca variedade consumida no dia a dia. A população brasileira é privilegiada com uma rica biodiversidade, porém sua dieta é composta por poucas espécies de vegetais. Para aprofundar essas discussões é sugerida a leitura de uma matéria publicada em uma revista de divulgação científica intitulada As plantas viajantes: a imigração dos alimentos pelos mares[3]. Como atividade extraclasse pode ser pedida a elaboração de um mapa conceitual com os principais tópicos aprendidos na aula.

Terceira aula

A proposta desta aula é compreender que os conhecimentos indígenas foram importantes para os estudos de Peckolt, pois ele sistematizou alguns desses costumes populares. Ademais, sempre que possível ele indicava não apenas o nome científico, mas também o nome popular utilizado pelos indígenas. Para introduzir essa relação entre conhecimentos, povos indígenas e expedições, sugerimos a utilização de um trecho da obra de Peckolt (Figura 2) que relata o preparo de um suco à base de mandioca pelos indígenas.

 

Figura 2 - Trecho da obra de Peckolt para demonstrar como o conhecimento indígena é relatado em História das Plantas Alimentares e de Gozo do Brasil.

 

A partir desse trecho, o professor pode questionar os estudantes com as seguintes perguntas: Como os conhecimentos indígenas foram relatados no trecho? Esse relato possui uma visão eurocêntrica? Como a extinção das línguas indígenas afeta a produção de conhecimentos? Após essas reflexões, sugere-se a exibição do vídeo chamado Revitalização de línguas indígenas - A identidade de um povo[4] elaborado pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Unicamp, com duração de 13 minutos. Depois da exposição do vídeo, o professor pode destacar que a extinção em massa de línguas resulta na perda de conhecimentos que poderiam ser utilizados para o desenvolvimento de fármacos, cujos potenciais ainda são desconhecidos pela Ciência, mas já são de conhecimento de povos indígenas. Também sugere-se mencionar que com o intuito da preservação linguística a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) definiram o período de 2022 a 2032 como Década Internacional das Línguas Indígenas. Somado a isso, pode-se comentar a exploração ilegal dos recursos naturais presentes no território brasileiro e o conhecimento tradicional. É possível exemplificar citando alguns casos de biopirataria como a do cacau e do cupuaçu. Por fim, como atividade extraclasse, a proposta é a criação de seis frases sobre os assuntos aprendidos na aula.

Quarta aula

Para essa aula, a sugestão é dividir a turma em quatro grupos e distribuir para cada grupo trechos sobre uma espécie de planta alimentícia escritos na obra de Peckolt, apresentados nas figuras 3, 4, 5 e 6. Foram escolhidas quatro espécies de plantas nativas do Brasil que são: araçá, amora-do-mato, araruta e mandioca.

 

Figura 3 - Trechos da obra de Theodoro Peckolt sobre a araçá (imagem: Flickr / by: Frutos atrativos do Cerrado / Licença: CC by-NC-AS[5])

 

 

Figura 4 - Trechos da obra de Theodoro Peckolt sobre a amora-do-mato (Imagem: amora-do-mato /  Public domain pictures/ by: Karen Arnold / Licença: CC0 Public Domain[6])

 

 

Figura 5- Trechos da obra de Theodoro Peckolt sobre a araruta (Imagem:  istock / by: Susansam / licença: padrão[7])

 

 

Figura 6 - Trechos da obra de Theodoro Peckolt sobre a mandioca
(Imagem: Flickr/ by: Artur Corumba / Licença: CC by-NC-AS[8])

 

 

A partir desses trechos é recomendado que os estudantes construam um texto com as seguintes informações: nomes populares, localização no território brasileiro, classificação botânica, propriedades e benefícios nutricionais, receitas, prevenção de quais doenças e curiosidades. Para auxiliar os aspectos biológicos das espécies de plantas podem ser utilizados os sites Flora e Funga do Brasil e Species Link.[9]

Quinta aula

Na última aula, a sugestão é os estudantes adaptarem os textos construídos na aula anterior, a partir das informações das plantas descritas por Theodoro Peckolt, em um roteiro para a gravação de um podcast que pode ser disponibilizado nas redes sociais das escolas. Sugere-se que o podcast tenha no mínimo 4 minutos e no máximo 8 minutos. É recomendável que os aspectos biológicos dessas espécies de plantas sejam permeados por assuntos discutidos nas aulas anteriores, em especial sobre a contribuição dos saberes indígenas para os estudos de naturalistas, colaborando, assim, para um ensino contextualizado que possa incorporar uma diversidade de saberes. Para construção dos podcasts podem ser utilizados aplicativos como Anchor e Spreaker Podcast Studio. [10]

Estratégias de avaliação

Sugere-se que a avaliação seja contínua, pois propicia um ensino menos propedêutico e mais formativo (Zabala, 2015). A proposta possibilita considerar os conhecimentos prévios dos estudantes favorecendo uma relação do estudante com o conteúdo a ser ensinado. Ao mesmo tempo, o professor pode utilizar esses conhecimentos como ponto de partida para o planejamento das suas aulas. Ademais, como forma avaliativa é possível considerar os registros individuais, a elaboração de mapas conceituais, a construção do podcast em grupo, a participação em aula e as discussões em grupos. Somado a isso, destacamos que as estratégias didáticas propostas na SD visam a superação mecânica e tecnicista da transmissão de conhecimentos, contribuindo assim para a formação de cidadãos éticos, humanizados e reflexivos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi indicada neste texto a possibilidade de unir a HC com a pedagogia decolonial para a promoção de um ensino de saúde pautado na abordagem socioecológica. Assim, ao darmos protagonismo aos alimentos nativos, contribuímos não apenas para a preservação da biodiversidade, mas também da sociodiversidade, favorecendo assim, o reconhecimento dos saberes indígenas presente em diversos momentos da SD. Por exemplo, na primeira, terceira e quarta aulas, ao propormos a leitura de trechos do manuscrito de Peckolt, esperamos que os estudantes possam compreender que os povos indígenas contribuíram no processo de construção do conhecimento, pois muitas espécies de plantas já eram utilizadas para fins alimentícios e medicinais.

Conforme indicado pela literatura (Almeida, 2019; Sacavino, 2016; Walsh; Oliveira; Candau, 2018), ainda predomina o enaltecimento dos saberes ocidentalizados e um apagamento da diversidade de etnias. Na terceira aula, é possível gerar discussões sobre apropriação de conhecimentos tradicionais indígenas, enquanto, na segunda aula, é evidenciado o paradigma entre heterogeneidade na natureza e homogeneidade no prato. Também, ao propormos o vídeo Revitalização de línguas indígenas como recurso didático, nosso intuito é destacar que por trás de uma linguagem indígena existe uma diversidade de saberes que ao invés de ser inferiorizado deve ser valorizado. 

Ao elaborarmos uma SD baseada nas três abordagens propostas por Oliveira e Alvim (2021), a epistemológica, a sociocultural e a da práxis, esperamos contribuir para o rompimento de visões equivocadas que consideram os povos indígenas como selvagens e cruéis. Esperamos que a SD proposta traga reflexões aos estudantes e professores sobre a necessidade de descolonizar o prato e valorizar mais alimentos nativos da nossa terra.

Alvim e Zanotello (2014) indicam que no ensino de Ciências é fundamental o entendimento de como a prática científica se desenvolve historicamente. Assim, atrelar os conteúdos biológicos com um manuscrito da época do Brasil Imperial possibilita ao professor auxiliar os estudantes na compreensão de que a construção do conhecimento é uma atividade coletiva permeada por aspectos culturais, históricos e sociais.

 

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, processo nº 2021/14475-7, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP); processo nº 2016/05843-4, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

 

Recebido em: 13/10/2023

Aceito em: 17/05/2024

 

REFERÊNCIAS    

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ZABALA, A. A prática educativa: como ensinar. Penso Editora, 2015.



[1] Foi mantido o padrão linguístico no manuscrito de Theodoro Peckolt escrito na época do Brasil Imperial.

[2] Na obra de Peckolt existe um índice alfabético com as espécies presentes no manuscrito. A obra completa História das Plantas Alimentares e de Gozo do Brasil pode ser acessada em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3904.

 

[3] Texto disponível em: https://super.abril.com.br/historia/as-plantas-viajantes-a-imigracao-dos-alimentos-pelos-mares/.

[4] Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lGw5RT5X1Vw.

[5] Disponível em: https://www.flickr.com/photos/frutosatrativoscerrado/16429652151. Acesso em 12 abr. 2023.

[6]Disponível em: https://www.publicdomainpictures.net/pt/view-image.php?image=98375&picture=ripening-blackberries. Acesso em: 12 abr. 2023.

 

[7] Disponível em: https://www.istockphoto.com/br/foto/arrowroot-gm465947864-59484200. Acesso em 12 abr. 2023.

[8] Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tckbrz/2527797409. Acesso em: 12 abr. 2023

[9] Link do site Flora e Funga do Brasil: https://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora/listaBrasil/PrincipalUC/PrincipalUC.do;jsessionid=F38C63C1942B56F1C54A7005616C1114#CondicaoTaxonCP

Link do site Species Link: https://specieslink.net/

[10] Link para baixar o aplicativo Anchor: https://play.google.com/store/apps/details?id=fm.anchor.android&hl=pt_BR&gl=US&pli=1

Link para baixar o aplicativo Spreaker Podcast Studio: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.spreaker.android.studio&hl=pt_BR&gl=US