Quebrando com padrões de beleza na escola a partir d     o conteúdo de Funções Inorgânicas: uma proposta didática Química antirracista

Breaking beauty standards at school based on the content of Inorganic Functions: a didactic proposal Anti-racist Chemistry

Rompiendo estándares de belleza en la escuela a partir del contenido de Funciones Inorgánicas: una propuesta didáctica Química Antirracista

 

Rita de Cássia Silva Di Pace (ritasdipace@gmail.com)

 Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Brasil

https://orcid.org/0009-0005-6584-1075

 

Eduardo Gomes Onofre (eduonofre@gmail.com)

Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0773-5080

 

Keliana Dantas Santos (keliana.santos@ifpb.edu.br)

Instituto Federal da Paraíba – IFPB, Brasil

https://orcid.org/0009-0006-0711-9209

Resumo

A escola ainda reforça estereótipos que acentuam o preconceito e o racismo contra o corpo e, principalmente, o cabelo negro. Por isso, é preciso pensar na influência que esse espaço traz ao contribuir com ampliação e reprodução desses discursos. Em razão a isto, objetivamos propor uma Sequência Didática que estabeleça uma relação entre conhecimentos científicos e as relações étnico-raciais. A atividade proposta consiste em rodas de conversa mediante o uso de situações-problema e leitura de rótulos que podem ser desenvolvidas em turmas de Ensino Médio, com o objetivo de estabelecer correlações entre o conteúdo químico de Funções Inorgânicas através do padrão de beleza e a cultura do alisamento. Diante disso, este trabalho pode colaborar com a (re)construção da aprendizagem, desenvolvimento das identidades sociais, bem como favorecer o processo de humanização dos estudantes, viabilizando a efetivação da Lei Federal 10.639/03, o empoderamento negro e a formação do cidadão através de uma prática antirracista.

                                                                                    

Palavras-chave: educação antirracista; ensino de Química; direitos humanos; funções inorgânicas.

 

Abstract

The school still reinforces stereotypes that accentuate prejudice and racism against the body and, mainly, black hair. Therefore, it is necessary to think about the influence that this space brings by contributing to the expansion and reproduction of these discourses. For this reason, we aim to propose a Didactic Sequence that establishes a relationship between scientific knowledge and ethnic-racial relations. The proposed activity consists of conversation circles through the use of problem-situations and reading of labels that can be taught in high school classes, which aims to establish correlations between the chemical content of Inorganic Functions through the beauty standard and the culture of straightening. Given this, this work can collaborate with the (re)construction of learning, development of social identities, as well as favoring the process of humanization of students, enabling the implementation of Federal Law 10.639/03, black empowerment and citizen training through of an anti-racist practice.

Keywords: curly hair; anti-racist education; chemistry teaching; human rights.

 

Resumen

La escuela aún refuerza estereotipos que acentúan los prejuicios y el racismo contra el cuerpo y, principalmente, el cabello negro. Por tanto, es necesario pensar en la influencia que trae este espacio al contribuir a la expansión y reproducción de estos discursos. Por ello, pretendemos proponer una Secuencia Didáctica que establezca una relación entre el conocimiento científico y las relaciones étnico-raciales. La actividad propuesta consiste en círculos de conversación mediante el uso de situaciones problemáticas y lectura de etiquetas que se pueden enseñar en las clases de secundaria, la cual tiene como objetivo establecer correlaciones entre el contenido químico de Funciones Inorgánicas a través del estándar de belleza y la cultura del alisado. Ante esto, este trabajo puede colaborar con la (re)construcción de aprendizajes, desarrollo de identidades sociales, así como favorecer el proceso de humanización de los estudiantes, posibilitando la implementación de la Ley Federal 10.639/03, el empoderamiento negro y la formación ciudadana a través de una práctica antirracista.

 

Palabras-clave: cabello rizado; educación antirracista; enseñanza de la química; derechos humanos.

 

INTRODUÇÃO

Desde o nosso nascimento, a ideia do “ser bonito” nos acompanha e molda, muitas vezes, quem nós somos e qual o espaço que ocupamos no mundo. Muitas vezes, ao longo de nossa vida, modificamos nossa percepção sobre esse conceito de beleza, sofrendo fortes influências de mídias, de nossa família, assim como outros contextos socioculturais que perpassamos (Camilo; Alvarenga; Ellery, 2012).

Um desses espaços é o ambiente escolar, em que o indivíduo desde a infância realiza um dos seus principais contatos sociais, uma convivência importante e fundamental para seu desenvolvimento humano. Entretanto, também é nesse ambiente em que crianças, sobretudo negras, vivenciam experiências nocivas, ao passarem por estigmas sociais relacionados ao cabelo, a pele, dentre outros traços étnicos (Gomes, 2002).

Quando falamos de cabelo, ainda se percebe uma conotação clara na sociedade brasileira: a existência do cabelo “ruim” e do cabelo “bom”. Essa noção eurocêntrica foi posta à frente da cultura brasileira desde a escravidão. A definição desses dois tipos de cabelo, segundo Quintão (2013), diz respeito ao tipo de textura e curvatura que ele apresenta. O cabelo “bom” está diretamente relacionado à textura dos cabelos de pessoas brancas, que em maioria tem aspectos de fibra lisa, enquanto o cabelo “ruim” refere-se à textura de pessoas negras, possuindo uma fibra mais encaracolada ou crespa.

Ademais, uma das soluções encontradas pela comunidade negra para tentar cessar o racismo e ser aceito na sociedade foi aderir a cultura do alisamento. É possível observar na utilização de cremes alisantes que utilizam substâncias nocivas como hidróxido de sódio, formaldeído, ácido tioglicólico, o desenvolvimento de inúmeras reações químicas que acontecem ao entrar em contato com nosso cabelo, os quais podem causar danos à saúde do indivíduo, além de promover um apagamento de sua identidade racial, contexto esse que pode ser refletido no cotidiano da escola (Kohler, 2011).

Ainda sobre o estigma da estética negra, Almeida (2019) ressalta que o racismo é uma das causas da “domesticação de culturas e de corpos” e a ocorrência da violência e até mesmo do aniquilamento desses grupos segregados, pode tornar a acontecer. Almeida (2019, p.46) aponta inclusive que “o racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional”.

No âmbito escolar ainda encontramos conflitos entre sujeitos do universo escolar em virtude dos estereótipos referente ao cabelo crespo. A lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em todos os níveis do sistema escolar brasileiro (Brasil, 2003), veio para agir nessa lacuna do racismo estrutural e incentivar um currículo multicultural. Porém, as constantes falhas acabam dificultando o seu foco na valorização da comunidade negra e na diminuição da cultura do embranquecimento social que atravessa o âmbito educacional, o que acaba por protelar ainda mais a ação da mesma, assim como sua eficácia (Santos, 2014).

Para Moreira e Candau (2003) a pluralidade e a diferença são dois segmentos da cultura que a escola ainda continua com dificuldades de desenvolver e operar. Para facilitar essa prática pedagógica culturalmente orientada é preciso reconhecer a escola como uma instituição formadora de saberes científicos, culturais e sociais, é também pensar na influência que esse espaço traz ao contribuir com o desenvolvimento e construção das identidades sociais e como a educação, sob uma perspectiva mais ampliada, pode favorecer o processo de humanização, sem deixar de lado os processos educativos em espaços não-escolares. Esses processos podem ser projetos culturais de desenvolvimento pessoal e social que podem ocorrer em espaços como comunidades, penitenciárias, empresas e organizações não governamentais.

Entretanto, precisamos refletir: Os professores estão capacitados para incluir a lei 10.639/03 em sua prática pedagógica? Há de fato um currículo multicultural presente nos espaços escolares? Como os estudantes negros e brancos encaram essa questão estética e identitária em sala de aula? Diante disto, é preciso que haja um cuidado nas intervenções escolares pois, como aponta Gomes (2002, p. 43), “a maneira como a escola, assim como a nossa sociedade, vê o negro e a negra e emitem opiniões sobre o seu corpo, o seu cabelo e sua estética deixa marcas profundas na vida desses sujeitos”.

Em atenção a este cenário, bem como considerando a importância de promover a aproximação dos estudantes com temas que se vinculam às suas vivências e práticas culturais relevantes, reconhecemos nesta proposta que os aspectos relacionados à cultura do alisamento, sobretudo a influência do padrão de beleza na sociedade, apresentam-se como tema sociocultural de grande relevância. Atenta-se para o fato de que a maioria da população brasileira é preto ou pardo e sofre(u) discriminação por conta de suas feições.

Assim, este artigo tem por objetivo traçar uma proposta didática visando fomentar o diálogo entre o conteúdo químico de Funções Inorgânicas e a Educação em Direitos Humanos (EDH), relacionando os produtos capilares alisantes com o padrão de beleza imposto desde o eurocentrismo e ampliado através do racismo.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Havendo a compreensão dos objetivos, é importante explicitar os motivos que nos conduziram a escolher o alisamento capilar em cabelos crespos como tema sociocultural norteador da proposta didática elaborada. Tal proposta traz uma inquietação, principalmente pelo seu atributo antropológico e social, muito frequente em pesquisas da área de Ciências Humanas, mas com poucas abordagens no ensino de Química.

O processo de construção identitária da comunidade negra, principalmente em mulheres negras, baseado na relação que desenvolvem com seus cabelos crespos e/ou cacheados, é marcado diretamente por preconceitos e discriminações referente às questões étnico-raciais, as quais interferem de forma expressiva no processo de construção social, geram conflitos e atrapalham o reconhecimento e a construção da identidade negra, principalmente na escola (Gomes, 2002).

O que se encontra contido na estética capilar extrapola outras percepções, como afirma Gomes (2001, p. 7), quando revela que “o cabelo é, um corpo social, uma forma de expressão e linguagem”. Reconhecemos que tecer relações com este cenário, a partir de uma abordagem científica sob a perspectiva da EDH, nos possibilita refletir múltiplas dimensões (políticas, econômicas, históricas, sociais e científicas), favorecendo a construção de conhecimentos químicos relevantes aos estudantes (Candau; Sacavino, 2013).

Assim, na busca por traçar uma proposta didática que se alinhe aos encaminhamentos enunciados no contexto da EDH, pensamos tal produção a partir dos pressupostos teórico-metodológicos preconizados por Candau e Sacavino (2013). O trabalho destes dois autores propõe relacionar os conteúdos científicos com questões sociais, de forma mais humanizada, promovendo uma cidadania ativa e participante, uma formação de sujeitos de direito e o empoderamento de grupos sociais.

Para o planejamento da sequência didática, buscamos aportes em Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002), que utilizam três momentos pedagógicos para a organização das ações, a saber: problematização inicial, organização do conhecimento e aplicação do conhecimento. A etapa da problematização inicial consiste em identificar os conhecimentos prévios dos estudantes acerca do tema trabalhado e analisar as possíveis limitações e potencialidades dessa compreensão.

A segunda etapa, que é a organização de conhecimento, corresponde ao desenvolvimento das intervenções pedagógicas pensadas, que estabelece a relação direta dos conceitos e definições com a questão sociocultural abordada. Por último, a aplicação do conhecimento tem o objetivo de abordar sistematicamente os saberes construídos e problematizados pelo aluno desde o primeiro momento (Delizoicov; Angotti; Pernambuco, 2002).

ENTRE A EXCLUSÃO E A LIBERDADE: O CABELO COMO SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA NA LUTA ANTIRRACISTA EM SALA DE AULA

A busca do “cabelo ideal”, uma imposição construída historicamente através da ideia de supremacia branca, impõe aos sujeitos negros um padrão estético branco de beleza, também chamado por Almeida (2019) de “branqueamento”, principalmente nas mulheres negras.

Essa transformação estética se dá através de produtos químicos comumente manipulados por cabeleireiras em salões de beleza. Procedimentos como “pente quente”, escovas progressivas e relaxamentos modificam a textura do cabelo crespo, deixando-o totalmente liso (Kohler, 2011). Essa modificação recai sobre o processo identitário do negro brasileiro ao longo da história, pois é nesse momento que esses sujeitos usam esses procedimentos capilares como passaporte para serem aceitos pela sociedade (Gomes, 2006).

A partir do século XX as técnicas de alisamento foram sendo aperfeiçoadas. Substâncias como hidróxido de sódio e tioglicolato foram utilizados em produtos capilares na década de 1940 a 1950. Logo depois, em 1978, o hidróxido de guanidina começou a ser utilizado na composição desses produtos. O alisamento capilar, popularmente conhecido no Brasil como escova progressiva, tem esse nome devido a substância utilizada no processo de modificação dos fios (Dias et. al, 2007).

O formol, formaldeído e glutaraldeído são substâncias químicas que começaram, a partir dos anos 2000, a serem incluídas nesses procedimentos, o qual se tornaram bem populares entre os brasileiros, principalmente entre a comunidade negra. Entretanto, devido à alta concentração dessas substâncias supracitadas presentes em cremes alisantes (muitos sem a devida regulamentação), após a aplicação no cabelo diversas pessoas obtiveram problemas de saúde, tais como queimaduras no couro cabelo, vermelhidão e até problemas respiratórios (Kohler, 2011).

Em virtude destes procedimentos estéticos altamente danosos à população, um grande alerta sobre o formol foi instaurado no país no ano de 2005, necessitando de uma melhor investigação da situação por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), contudo, somente em quatro anos depois que o órgão brasileiro proibiu sua comercialização em estabelecimentos como drogarias, farmácias, supermercados e lojas de conveniências, mantendo a concentração de 0,2%, apenas como conservante:

Art. 1° Fica proibida a exposição, a venda e a entrega ao Consumo de formol ou de formaldeído (solução a 37%) em drogaria, farmácia, supermercado, armazém e empório, loja de conveniência e drugstore.

Art. 2º A adição de formol ou de formaldeído a produto cosmético acabado em salões de beleza ou qualquer outro estabelecimento acarreta riscos à saúde da população, contraria o disposto na regulamentação de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes e configura infração sanitária nos termos da Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977, sem prejuízo das responsabilidades civil, administrativa e penal cabíveis (Anvisa, 2009, s. p.).

Esses fundamentos, de acordo com Alonso e Renovato (2015), ressaltam a importância em desenvolver o tema do cabelo relacionando o empoderamento e identidade negra nas escolas, pois o mesmo se faz presente na vivência dos alunos. Esse contexto permite discussões e debates coletivos no âmbito da interdisciplinaridade, contemplando o Ensino de Ciências (Química, Física e Biologia), como também possibilita a interseccionalidade nesses espaços, pois trabalha as questões sociais, culturais e históricas de beleza e raça.

Alonso e Renovato (2015) ainda ressaltam que essa temática rompe com o ensino linear, ou seja, desvia-se um pouco do ensino tradicional e amplia as fronteiras do saber, desenvolvendo assim, novos conhecimentos. Gomes (2002, p. 47) nos alerta quando ressalta que “a escola pode atuar tanto na reprodução de estereótipos sobre o negro, o corpo e o cabelo, quanto na superação dos mesmos.”. Nessa direção, Lima e colaboradores reiteram:

A escola como âmbito de formação educacional institucional precisa se tornar um espaço não apenas de aprendizagem conteudista, mas assim como recomendação dos próprios documentos que norteiam a educação, a escola precisa ser um espaço plural e esta pluralidade abarca as compreensões sobre a nossa estrutura social que muitas vezes se pauta na negação do racismo, das questões étnico-raciais e da cultura africana (Lima et. al, 2020, p. 148).

A transição capilar chega e se mostra como uma resposta à imposição do padrão de beleza ariana perpetuada com o racismo. É através desse processo que o pertencimento étnico-racial fará parte da vivência desses sujeitos, bem como poderão reconhecer e construir uma nova estética, uma nova percepção do que é bonito, do que é ser negro na sociedade.

Entretanto, esse não é um processo tão fácil assim, como ressalta Gomes (2003, p. 171) "construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros". Falar e estudar sobre a transição capilar e a questão étnico-racial no âmbito escolar possibilita e favorece, segundo Gomes (2003), além do debate e das discussões sobre a discriminação racial no Brasil e o preconceito, o desenvolvimento de metodologias de ensino (como sequências didáticas) que auxiliem os estudantes na compreensão da estética negra na construção da identidade étnico-racial.

Pinheiro, Rodrigues e Amauro (2016) nos encorajam a ter um olhar mais cuidadoso para com o currículo escolar, objetivando sempre sua construção sob uma perspectiva multicultural. Para os autores, é fundamental que sejam inseridos temas relacionados as orientações da Lei 10.639/03 no âmbito escolar, além de favorecer aos docentes, uma formação adequada para a realização das propostas pedagógicas.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DE DADOS

Entendendo a temática sociocultural pensada, assim como as disposições metodológicas, a produção dessa Sequência Didática (SD), organizada no quadro 1, foi modelada a partir da competência específica 2, alinhada a habilidade EM13CNT207 requeridas na BNCC (Brasil, 2018), sendo direcionada para aplicação em turmas do 2º e 3º anos do Ensino Médio, por apresentar o conteúdo químico de Funções Inorgânicas como tema científico primário. As estratégias da SD também foram desenvolvidas a partir de elementos fundamentais trazidos por Oliveira e Queiroz (2015), que trabalham na articulação de temas científicos comprometidos com a EDH, sobretudo com as relações étnico-raciais.

Quadro 1 - Descrição das estratégias metodológicas de acordo com os momentos pedagógicos.

Momentos Pedagógicos

Desenvolvimento das estratégias

 

 

 

Problematização Inicial

1° momento - Construção de saberes: Será proposto aos estudantes resolver em grupo situações-problemas distribuídos aleatoriamente. Aspectos sobre os conceitos das funções inorgânicas, suas principais características e a função do pH devem ser discutidos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Organização do Conhecimento

2° momento: O cabelo crespo e o padrão de beleza: o alisamento é a solução? Esse momento deve ser pensado para apresentar notícias de casos envolvendo danos causados por alisamentos capilares que utilizam substâncias tóxicas: hidróxido de sódio, ácido tioglicolato e formol, fazendo uma relação com o padrão de beleza que emergiu com o eurocentrismo, desencadeando o racismo estrutural (Almeida, 2019). Os conceitos de substâncias ácidas, básicas e salinas presentes em cremes capilares e alisantes deverão ser discutidos.

3° momento: Identidade a afirmação: a transição capilar como um ato de ressignificação: Para esse momento, será proposta a leitura de rótulos de produtos capilares trazidos pelos próprios alunos a fim de analisar e identificar a presença das funções inorgânicas, como também desmistificar a ausência de química nesses produtos, presentes em discursos sociais e em propagandas. Aspectos sobre o empoderamento negro e o impacto da transição capilar na autoestima de mulheres negras com o uso de cremes nesse processo de transformação deverão ser discutidos. Recomenda-se que seja através de rodas de conversa.

 

 

Aplicação do Conhecimento

4° momento: Empoderamento na prática: Para tal momento será proposta uma atividade artística livre (mural interativo, música, peça de teatro, pintura, entre outros), na qual os estudantes, colaborativamente, apresentarão seu entendimento sobre os conceitos científicos e sociais construídos ao longo desta proposta didática (Candau; Sacavino, 2013).

Fonte: Elaboração própria, 2023.

No primeiro momento, que introduz a problematização inicial, buscamos através de situações-problema (Piccoli, 2016), além de desenvolver habilidades como ler e resolver problemas, implementar uma mudança de postura diante da aprendizagem dos alunos, encorajando-os para se tornarem protagonistas de seu próprio conhecimento (Chassot, 2014; Filgueiras; Silveira; Vasconcelos, 2023).

Nessa proposta inicial é necessário que os estudantes possam relacionar os tipos de funções inorgânicas com o cabelo e produtos capilares, assim como a influência do pH na química do cabelo. Para auxiliar na resolução de tais questões, os estudantes poderão utilizar livros e sites na internet, bem como o(a) professor(a) pode acrescentar algum material de apoio mais direcionado na resolução das questões.

Quadro 2 - Descrição das situações-problemas utilizados na Problematização Inicial.

Situações-Problema sobre Alisamento Capilar

 

 

 

1

Caio pediu ajuda a sua mãe para mudar de visual, pois teria sua cerimônia de formatura no dia seguinte. Queria um penteado moderno com franja lisa que viu na internet, então a mãe pediu à cabeleireira que utilizasse em Caio o mesmo creme que ela utilizava há anos: um creme alisante que continha hidróxido de sódio que, segundo ela, era menos agressivo que formol e ia ficar bonito. No entanto, no procedimento, Caio fazia várias queixas à cabeleireira pois sentia a cabeça queimar e coçar muito. Depois que finalizou o alisamento, percebeu que uma parte de seu couro cabeludo havia queimado. Por que Caio sentiu a cabeça queimar e coçar durante o procedimento? Sobre a afirmação da mãe de Caio, o hidróxido de sódio é mesmo menos agressivo que o formol? Por quê? Caio poderia adquirir algum problema de saúde depois desse alisamento com hidróxido de sódio? Se sim, qual(is)?

2

Carol cansou de ouvir de seus colegas que seu cabelo era de “bucha” e resolveu ir em um salão de beleza para alisar seus cabelos crespos. Ao falar com o cabeleireiro, pediu para que ele utilizasse um creme alisante menos danoso ao cabelo. Entretanto, o cabeleireiro lhe disse que, para que houvesse um resultado satisfatório, precisaria de um creme alisante mais forte, que continha ácido tioglicólico e que poderia causar mais danos ao fio de cabelo. Ela aceitou a proposta do cabeleireiro, mas não conseguiu terminar o procedimento, pois sentiu-se muito mal com o cheiro forte do produto, além de seu cabelo começar a ficar quebradiço a ponto de cair. Por que Carol passou tão mal com esse procedimento capilar? Se Carol tivesse continuado com o alisamento, o que poderia acontecer?

Fonte: Elaboração própria, 2023.

No segundo momento, ainda sob a perspectiva da organização do conhecimento, concerne demonstrar, através de notícias recentes, os perigos do uso indevido de produtos para alisar cabelos, como o formaldeído e o hidróxido de sódio, os quais muitas vezes não são esclarecidos no ato do procedimento e acaba por danificar a saúde capilar e humana, sobretudo a saúde das mulheres. Logo após, interessa apresentar aspectos históricos, sociais e econômicos da cultura do alisamento e sua relação com o padrão de beleza imposto pelo eurocentrismo.

Partindo para o terceiro momento, recomendamos que esta etapa seja realizada em duas partes: 1) a identificação de funções inorgânicas em rótulos de produtos capilares e a representação desses produtos em propagandas; 2) perspectivas sobre o uso de cremes capilares na transição capilar e a relação do empoderamento negro com a construção da autoestima da mulher negra.

Nessa primeira parte, através de rótulos trazidos pelos próprios estudantes, faz-se necessário realizar a leitura dos rótulos de forma conjunta e, logo após, efetuar a análise desses produtos para a identificação de substâncias ácidas, básicas e salinas. O(a) professor(a) poderá levar outros rótulos de produtos capilares. Recomenda-se que tais rótulos sejam direcionados a cremes alisantes, a fim de fazer uma comparação em relação às substâncias ativas presentes na maioria dos cremes deste tipo.

Na segunda parte cabe fazer uma discussão sobre os aspectos do empoderamento negro e o impacto da transição capilar na autoestima de mulheres negras. O(a) professor(a) poderá mediar uma roda de conversa com algumas perguntas norteadoras, relacionando a conscientização do uso de alisantes e como se encontra disposto a estética negra atualmente. O estabelecimento deste diálogo favorecerá aos estudantes um entendimento quanto ao conceito de força e características das funções inorgânicas, a importância da leitura de rótulos antes de qualquer procedimento capilar, como também a relevância de uma educação antirracista que favoreça a construção de identidades multiculturais. 

No que diz respeito a aplicação do conhecimento, última etapa da nossa SD, propomos o desenvolvimento de uma atividade de cunho livre, na qual os alunos poderão descrever/demonstrar através de elementos da arte, como paródia musical, desenho, cordel, peça de teatro, mural interativo etc., a relação dos conceitos científicos presentes nas funções inorgânicas com a cultura do alisamento, bem como a influência do racismo na estética negra e seu empoderamento. Quanto à avaliação, o(a) professor(a) poderá considerar o processo de forma continuada, se atentando à participação e interação nas aulas, como também no desenvolvimento da atividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, destaca-se que tecer relações a partir de uma abordagem científica e sob a perspectiva de Direitos Humanos nos possibilita refletir e trabalhar múltiplas dimensões (políticas, econômicas, históricas, sociais e científicas), favorecendo a construção de saberes científicos e sociais relevantes aos estudantes. Nesse sentido, ressaltamos aqui a importância do papel do(a) professor(a) nesse processo de ensino e aprendizagem, que precisa conduzir os alunos como sujeitos centrais, além de oportunizar reflexões sobre direitos humanos, a construção de sua identidade e o reconhecimento da diversidade social, cultural e econômica implicadas ao tema proposto. 

Diante disso, a presente SD proposta neste trabalho apresenta-se como um instrumento pedagógico promissor para uma prática docente mais humanizada, o qual pode contribuir para o entendimento de conceitos das Funções Inorgânicas através do estudo da cultura do alisamento, prática herdada do padrão de beleza hegemônico. Portanto, almejamos com esta proposta didática fortalecer o empoderamento negro diante dos desafios que o racismo impõe todos os dias, enfatizando sua importância na sociedade, principalmente sua estética. Esperamos também que esse estudo possa contribuir com trabalhos futuros que se relacionem, dentro dessa temática social, com a Lei 10.639/03, bem como com a formação inicial e continuada de professores(as) no ensino de Química.

 

 Recebido em: 20/09/2023

Aceito em: 17/04/2024

 

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Pólen, 2019.

ALONSO, Camila Panzetti; RENOVATO, Rogério Dias. Alisamento Capilar: uma proposta interdisciplinar para o Ensino em Saúde e Ciências. In: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, 5., 2015, Águas de Lindóia. Anais [...] Águas de Lindóia: Abrapec, 2015.

ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução-RDC no 36 de 17 de junho de 2009. Dispõe sobre a proibida a exposição, a venda e a entrega ao consumo de formol ou de formaldeído (solução a 37%) em drogaria, farmácia, supermercado, armazém e empório, loja de conveniência e drugstore. Brasília: Diário Oficial da União; seção 1; n. 114; 18 jun. 2009.

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 10 jan. 2003, Brasília: Imprensa Nacional, 2003.

CANDAU, Vera Maria Ferrão; SACAVINO, Susana Beatriz. Educação em direitos humanos e formação de educadores. Educação, [S. l.], v. 36, n. 1, 2013. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/12319. Acesso em: 15 nov. 2023.

CAMILO, Carolina Campos; ALVARENGA, Janaína Campos. As mudanças nos conceitos de beleza: uma reflexão filosófica. 2012. 53f. Trabalho de Conclusão de Curso (Estética e Cosmetologia) - Universidade do Vale do Itajaí, Balneário Camboriú, 2012..

CHASSOT, Attico I. Para que(m) é útil o ensino? Canoas: Editora da ULBRA, 2004.

DELIZOICOV, Demetrio; ANGOTTI, José André; PERNAMBUCO, Marta Maria. Ensino de Ciências: Fundamentos e Métodos. São Paulo: Cortez, 2002.

DIAS, Tânia Cristina; BABY, André Rolim; KANEKO, Telma. Mary; VELASCO, Maria Valéria Robles. Relaxing/straightening of Afro-ethnic hair: historical overview. Journal of Cosmetic Dermatology, Nova Iorque, v. 6. p. 2–5, 2007.

FILGUEIRAS, Joyce; SILVEIRA, Felipe Alves; VASCONCELOS, Ana. Karine Portela. Uma Sequência Didática nos conceitos correlatos ao estudo da vitamina C presente nas polpas de frutas. Revista Insignare Scientia - RIS, v. 6, n. 4, p. 97-120, 10 jul. 2023.

GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas, v. 35, n. 2, mar-abr, p. 57-63, 1995.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Autêntica Editora, 2006.

GOMES, Nilma Lino. Educação, identidade negra e formação de professores/as: um olhar sobre o corpo negro e o cabelo crespo. Revista Educação e Pesquisa. v.29, n.1, p.167-182. 2003.

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Revista Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012.

GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 21, p. 45-51, set./dez. 2002.

KÖHLER, Rita de Cássia Oliveira. A química da estética capilar como temática no ensino de química e na capacitação dos profissionais da beleza. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2011.

LIMA, Rafaela; FONSECA, Larissa da Conceição; GOIS, Lucas dos Santos; JESUS, Rildo Sena de. Tessituras no Ensino de Química: interfaces para abordagem das questões étnico-raciais na sala de aula. Revista Insignare Scientia, Cerro Largo, v. 3, n. 5, p. 137-151, dez. 2020.

MÓNICO, Lisete; ALFERES, Valetim; PARREIRA, Pedro; CASTRO, Paulo Alexandre. A Observação Participante enquanto metodologia de investigação qualitativa. Revista Investigação Qualitativa em Ciências Sociais, Ludomedia, v. 3, p. 1-10, 2017.

MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa; CANDAU, Vera Maria. Educação escolar e cultura(s): construindo caminhos. Rev. Bras. Educ. [online], n. 23, p. 156-168, 2003.

MOURA, Adriana Ferro; LIMA, Maria Glória. Roda de conversa: um instrumento metodológico possível. Revista Temas em Educação, João Pessoa, v. 23, n. 1, p. 98-106, jan. - jun. 2014.

OLIVEIRA, Roberto Dalmo Varallo Lima de; QUEIROZ, Glória Regina Pessoa Campelo. Olhares sobre a (in) diferença: forma-se professores de ciências a partir de uma perspectiva de educação em direitos humanos. São Paulo: Editora Livraria da Física. 2015.

PICCOLI, Flávia. Aprendizagem baseada em problemas: uma estratégia para o ensino de química no ensino médio. 2016. 90f. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016.

PINHEIRO, Juliano Soares; FILHO, Guimes Rodrigues; AMAURO, Nicéa Quintino. Educação das Relações Étnico-raciais e o ensino de Química: ações de um grupo Pibid-Química. In: OLIVEIRA, Roberto Dalmo Varallo Lima de; QUEIROZ, Glória Regina Pessoa Campelo. Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências. São Paulo: Livraria da Física, 2016, p. 131-155. 

QUINTÃO, Adriana Maria Penna. 2013. O que ela tem na cabeça?: Um estudo sobre o cabelo como performance identitária. 2013. 196f. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2013.

RICHARDSON, Roberto Jarry. Pesquisa Social: Métodos e Técnicas. São Paulo: Atlas. 2007.

SANTOS, Eliziane Sasso dos. O Estado e a Lei 10.639/03: compensação ou reparação. 1ed. Córdoba: Red FORSA, 2014, v. 1, p. 133-146.