A “cola” como instrumento de ‘Segurança e Autoconfiança’ no processo avaliativo da disciplina de Fisiologia Humana

The cheating as an instrument of 'Security and Self-confidence' in the evaluation process of the Human Physiology course

Hacer trampa como instrumento de 'Seguridad y Autoconfianza' en el proceso de evaluación de la asignatura de Fisiología Humana

 

Luciano Luz Gonzaga (gonzaga@bioqmed.ufrj.br, Secretaria do Estado de Educação do Estado do Rio de Janeiro- SEEDUC, Brasil), https://orcid.org/0000-0002-4001-3813

 

Andréa Velloso (velloso.a@gmail.com, Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro- CECIERJ, Brasil), https://orcid.org/0000-0001-9755-885X

 

Resumo

A prática de “colar” nas avaliações parece estar associada a uma estratégia do estudante em evitar o baixo rendimento nas avaliações quantofrênicas e o medo do fracasso. Diante do fato, compreende-se que o conteúdo expresso na cola talvez seja o que o estudante tenha menos segurança. Assim, este trabalho tem como intento investigar a utilização da cola, por estudantes de Enfermagem, na avaliação de Fisiologia Humana, como possível instrumento de suporte emocional, assim como identificar os conteúdos que apresentaram maiores dificuldades de apreensão e, dessa forma, repensar a prática pedagógica. Trata-se de pesquisa básica, de abordagem quali-quantitativa, do tipo exploratória. A metodologia utilizada para a análise dos relatos de experiência foi a Técnica do Discurso do Sujeito Coletivo. Os resultados apontaram discursos ancorados na Ideia Central ‘Segurança e Autoconfiança’ e dificuldades de aprendizagem em conteúdos específicos dos sistemas digestório, respiratório e renal. Desconstruir o estereótipo aversivo em relação ao uso de anotações (“cola”) no momento da prova, pode ressignificá-la como um instrumento de suporte emocional e, principalmente, de identificação dos conteúdos que os estudantes apresentam maior dificuldade de apreensão, indicando um bom caminho para repensar a prática pedagógica.

Palavras-chave: “Cola” na avaliação; Suporte emocional; Memória; Segurança.

 

Abstract

The practice of “cheating” in assessments seems to be associated with a student strategy to avoid low performance in quantaphrenic assessments and the fear of failure. Given this fact, it is understood that the content expressed in the cheat sheet is perhaps what the student is least confident about. Thus, this work aims to investigate the use of glue, by Nursing students, in the assessment of Human Physiology, as a possible instrument of emotional support, as well as identifying the contents that presented greater difficulties in understanding and, in this way, rethinking the practice pedagogical. This is basic research, with a qualitative-quantitative approach, of an exploratory type. The methodology used to analyze the experience reports was the Collective Subject Discourse Technique. The results pointed to speeches anchored in the Central Idea ‘Security and Self-Confidence’ and learning difficulties in specific content on the digestive, respiratory and renal systems. Deconstructing the aversive stereotype regarding the use of notes (“cheat”) at the time of the test, can re-signify it as an instrument of emotional support and, mainly, of identifying content that students have greater difficulty in understanding, indicating a good way to rethink pedagogical practice.

Keywords: Cheating on assessments; Emotional support; Memory; Security

 

Resumen

La práctica de “hacer trampa” en las evaluaciones parece estar asociada a una estrategia de los estudiantes para evitar el bajo rendimiento en las evaluaciones cuantafrénicas y el miedo al fracaso. Ante este hecho, se entiende que el contenido expresado en la chuleta es quizás en lo que menos confía el estudiante. Así, este trabajo tiene como objetivo investigar el uso del pegamento, por parte de estudiantes de Enfermería, en la evaluación de Fisiología Humana, como posible instrumento de apoyo emocional, así como identificar los contenidos que presentaron mayores dificultades para comprender y, de esta manera, repensar. la práctica pedagógica. Se trata de una investigación básica, con enfoque cuali-cuantitativo, de tipo exploratorio. La metodología utilizada para analizar los relatos de experiencia fue la Técnica del Discurso del Sujeto Colectivo. Los resultados señalaron discursos anclados en la Idea Central 'Seguridad y Autoconfianza' y dificultades de aprendizaje en contenidos específicos sobre los sistemas digestivo, respiratorio y renal. Deconstruir el estereotipo aversivo respecto al uso de apuntes (“trampa”) al momento de la prueba, puede resignificarlo como un instrumento de apoyo emocional y, principalmente, de identificación de contenidos que los estudiantes tienen mayor dificultad en comprender, indicando un buen desempeño. Una manera de repensar la práctica pedagógica.

Palabras-clave:Trampa” en la evaluación; Apoyo emocional; Memoria; Seguridad.

 

INTRODUÇÃO

De acordo com o Tratado de Fisiologia Médica (Guyton; Hall, 2022, p. 3), “a ciência da fisiologia humana tenta explicar as características e mecanismos específicos do corpo humano que o tornam um ser vivo [...], vincula as ciências básicas à medicina e integra várias funções das células, tecidos e órgãos às funções do ser humano vivo”.

 No âmbito da pesquisa, a disciplina de Fisiologia Humana do curso de Enfermagem possui uma carga horária de 80h e apresenta como objetivo geral o estudo dos mecanismos que regulam a atividade funcional da célula e dos sistemas biológicos que participam da homeostasia do corpo humano. Como específicos: i) compreender o funcionamento entre os diferentes e interligados sistemas biológicos (Dessen; Guedea, 2005); ii) relacionar o estudo da Fisiologia Humana com a futura atividade clínica na área de Enfermagem (De Souza; Passaglia; Cárnio, 2018) e iii) permitir que o futuro enfermeiro seja capaz de descrever os processos fisiológicos que integram as atividades dos diversos sistemas corporais (Da Silva; Diniz, 2021).

Segundo Henrique (2022, p. 15), a disciplina de Fisiologia Humana compõe uma das disciplinas mais difíceis do ciclo básico nos cursos de saúde, pois “sua complexidade também traz desafios para os professores, para ensinar e abordar os temas de forma a trazer bons resultados na aprendizagem”, bem como a excessiva quantidade de estruturas relacionadas a diversas funções constituem um árduo desafio no processo de ancoragem para os estudantes (Borsekowsky et al., 2021).

Diante desse contexto de desafios, inseguranças quanto aos conteúdos supostamente aprendidos e memorização excessiva de estruturas e suas respectivas funções, podem levar os estudantes a burlarem a integridade acadêmica, usando a “cola” durante as avaliações? A cola pode ser um instrumento de suporte emocional no momento da avaliação?

“Colar” significa agir desonestamente ou injustamente para obter vantagem em avaliações acadêmicas (Abrantes, 2008). Para outros autores "configura-se como uma modalidade de pesquisa considerada como ilícita, uma vez que é desautorizada por normas institucionais ou mesmo por diretrizes estabelecidas pelo docente" (Iocohama, 2004, p. 26). Para Rangel (2001), entretanto, trata-se de um fenômeno psicossocial, pois "no cerne de suas razões, estão presentes processos de transferência de classificações e notas atribuídas pela avaliação escolar [...] Os valores expressos em notas podem ser ampliados para englobar o valor que a própria pessoa se atribui" (Rangel, 2001, p. 83). Rettinger e Gallant (2022) fizeram uma revisão de literatura dos últimos 30 anos de pesquisas sobre o ato de colar e a integridade acadêmica e apontaram que a maior parte estudos estão voltados para identificação, prevenção ou detecção da má conduta.  Questões éticas e a ilicitude do ato de colar são abordadas em estudos intervencionistas, onde o foco está sempre no ato de estabelecer códigos de conduta e suas respectivas sanções.  Poucos são os estudos que investigam os motivos que levam os estudantes a usarem a cola e estes se resumem a estudos que autorizam o uso da mesma em momentos de avaliação como um estímulo para que o aluno estude com antecedência, como é o caso relatado por Brizzi et al.,2023. Compreender o uso da “cola” para além de um ato ilícito praticado por estudantes no momento de uma avaliação se faz necessário para ocupar uma lacuna da literatura.

Adaptar a abordagem em relação às avaliações acadêmicas é crucial para promover o bem-estar psicológico dos estudantes e impulsionar o alcance de seus objetivos acadêmicos e aspirações (Zeidner, 1998). A forma como os estudantes se envolve nas tarefas, lidam com os estressores e superam os desafios do ambiente escolar contribui para sua resiliência motivacional nesse domínio (Pitzer; Skinner, 2016). Dentro desse contexto, as avaliações surgem como um dos principais estressores que podem comprometer ou ameaçar a competência acadêmica do aluno (Gonzaga; Enumo, 2018).

Na opinião de Marquesin e Benevides (2011, p.10), a prática de colar em uma avaliação é compreendida como “um subterfúgio para os alunos competirem com a alta cobrança de terem boas notas” ou, de acordo com Alves e Corio (2020, p. 141), “é utilizar informações por meio de fontes não autorizadas [...] a fim de suprir lacunas na aprendizagem do conteúdo envolvido e/ou de obter vantagens em notas”.

Nesse propósito, parece que a prática de colar nas avaliações está associada a uma estratégia do estudante em evitar o baixo rendimento nas avaliações meramente quantofrênicas (Pranowo; Santoso, 2021), pois não privilegiam o desempenho integral do educando, mas apenas o momento do processo avaliativo. Dessa forma, a visão de avaliação parece ir à direção contrária às palavras elencadas por Freire (1987) quando afirma que: “a avaliação é meio e nunca fim do processo de ensino. Nunca se deve se comprometer em ajuizar, mas reconhecer, no processo de ensino a aprendizagem e a formação de culturas e valores” (p. 46).

Mesmo sendo a cola considerada uma prática condenável do ponto de vista ético, parece haver uma cultura de transgressão ao modelo de avaliação do tipo ‘decoreba’ e no poder autocrático do professor. Ademais, colar na prova parece representar uma fuga da imagem de fracasso, desinteresse pelo conteúdo ou uma atitude de enfrentamento contra o sistema pautado na reprodução (Alves; Corio, 2020). De Souza (2016) acrescenta que a cola pode ser entendida pelo estudante como uma estratégia de defesa diante de uma avaliação que desperta uma forte carga emocional, ansiedade, medo da nota baixa, da reprovação, gerando nervosismo, dúvidas, insegurança e esquecimento. E é neste sentido que os estudos precisam ser aprofundados, por compreendermos que o conteúdo expresso na cola talvez seja o que o estudante tenha menos segurança e que a avaliação compõe um dos momentos de maior nível de ansiedade e estresse (Lucio et al., 2019), esta pesquisa almeja debruçar de forma exploratória sobre a utilização da cola na avaliação, buscando identificar a possiblidade desse instrumento como suporte emocional no processo avaliativo e identificar quais os conteúdos foram os que mais apresentaram dificuldades pelos estudantes.

 

METODOLOGIA

O trabalho foi realizado no segundo semestre de 2022 com estudantes do segundo período da graduação em Enfermagem, na disciplina de Fisiologia Humana. As aulas aconteciam nas segundas-feiras com duração de 4h. Trata-se de uma pesquisa básica, de abordagem quali-quantitativa e do tipo exploratória.

  Foram explorados os conteúdos sobre os sistemas respiratório, digestório e urinário em uma prova com questões discursivas e objetivas. A distribuição dos conteúdos pode ser vista no Quadro 1.

 

Quadro 1 – Organização dos conteúdos dos sistemas respiratório, digestório e renal. Curso de Enfermagem, segundo semestre de 2022.

Sistema biológico

Conteúdo

 

 

Respiratório

Ventilação pulmonar

Circulação pulmonar

Princípios da troca gasosa

Insuficiência respiratória: SARS COVID-19

Hipóxia e Hipercapnia

 

 

 

Digestório

Princípios gerais da função digestiva

Funções secretoras

Digestão e absorção

 

 

 

Urinário

Anatomia funcional dos rins e formação da urina

Equilíbrio ácido-base

Diuréticos e doenças renais

Fonte: dos autores, 2023 (adaptado de Gyton; Hall, 2021).

 

A turma era composta de 30 estudantes, dos quais: 26 (86,7%) pertencem ao sexo feminino, 24 (80%) se declaravam negros (as) e possuíam uma média de idade igual a 21,7 anos (Desv. Pad= 4,58), revelando ser um grupo jovem que se encontrara no início da vida universitária.

Uma parcela significativa dos estudantes reside e/ou trabalha próximos à universidade, localizada no município de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro. Devido a sua privilegiada localização na região, a IES recebe estudantes provenientes dos 13 municípios que compõem a Baixada Fluminense (Fig. 1).

 

Fonte: Agência de Notícias das Favelas – ANF, 2018.

Figura 1 – Distribuição dos municípios que compõem a região da Baixada Fluminense no estado do Rio de Janeiro, Brasil.

 

Com a antecedência de uma semana ao dia da prova final foi informado aos estudantes que poderiam trazer uma cola com dimensões que não ultrapassassem a palma da mão e que, ao final da avaliação, fosse entregue ao professor de forma anônima. As dimensões das colas tinham, no máximo, 7cm de comprimento e 10cm de largura (Fig. 2).

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

Figura 2 – Cola realizada por um dos estudantes com os conteúdos dos sistemas respiratório, digestório e renal.

 

De um total de 30 estudantes, somente sete (23%) escolheram não trazer a cola consigo. Para os estudantes que trouxeram a cola (77%), foi apresentada a seguinte pergunta: "Qual foi a sensação de utilizar a cola de maneira legítima durante a prova?" As respostas foram registradas no canto inferior direito da prova, conforme ilustrado na Figura 3.

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

Figura 3 – Qual a experiência de utilizar a cola, de forma lícita, durante a prova?

Na Figura: A experiência de trazer a cola foi perfeita, é muito útil e ajudou a resgatar tudo

o que eu estudei e por motivos de nervosismo poderia esquecer e perder o ponto.

Ao humano professor! Obrigada (sic).

 

 

Para a análise das respostas das estudantes acerca da experiência de utilizar a cola durante o momento avaliativo, optamos pela Técnica do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC. Caracteriza-se por uma técnica que permite, através de procedimentos sistemáticos e padronizados, agregar depoimentos sem reduzi-los a quantidades. Trata-se da construção de um painel de representações sociais que buscam resgatar o pensamento coletivo a partir dos depoimentos/respostas coletados. Extrai-se de cada depoimento as Ideias Centrais ou Ancoragens e as suas correspondentes Expressões Chave; com as Ideias Centrais/Ancoragens e Expressões Chave semelhantes compõe-se um ou vários discursos-síntese composto pelos conteúdos e argumentos que conformam opiniões semelhantes” (Lefèvre, Lefèvre, 2010, p. 17). Deve ser regido na primeira pessoa do singular, com vistas a produzir no receptor o efeito de ser a opinião de um único sujeito (Lefèvre; Lefèvre, 2006).

Em relação ao aspecto quantitativo do DSC,

A quantidade, portanto, diz respeito ao número ou percentual de pessoas, ou, mais precisamente, de respostas de pessoas, que contribuem, com sua parte ou seu quinhão, para a constituição de um discurso entendido como um desdobramento de uma ideia em seus conteúdos e argumentos correspondentes. Os dados quantitativos não se referem, portanto, à frequência das ideias centrais, mas, mais precisamente, à frequência de respostas que contribuíram para a construção de um DSC [...] (Lefèvre et al., 2003, p. 74).

Neste intento, consideramos o DSC específico para o grupo social dessa pesquisa (estudantes de Enfermagem) aquele que apresentou um percentual igual ou superior a 50% de respostas ancoradas em uma mesma Ideia Central. As respostas que não compuseram o DSC foram analisadas separadamente, reproduzidas na íntegra o teor das falas (discurso direto).

No que tange aos conteúdos programáticos da avaliação, buscamos identificar as frequências absolutas com que apareciam nas colas, isto é, procuramos contabilizar o número de vezes que um mesmo conteúdo se repetia nas 23 colas e, em seguida, com o auxílio do programa AIDECAT presente no EVOC 2003® buscamos “estabelecer índices estatísticos que [representassem] a força de associação entre esses pares e, a partir dos valores encontrados, elaborar diversos tipos de representações gráficas (árvores, redes, agrupamentos diversos) [...]” (Robredo; Cunha, 1998, p.11). Uma vez obtida essas informações, utilizamos o software Cmaptools® (IHMC, Florida) para construção do gráfico de coocorrência.

 

RESULTADOS

Em relação à pergunta indutora acerca da experiência de utilizar a cola durante a prova, identificamos que, dos 23 (77%) participantes, 12 (52%) tiveram suas respostas ancoradas na Ideia Central ‘Segurança e Autoconfiança’ (Quadro 2).

 

Quadro 2- Discurso do Sujeito Coletivo para a IC ‘Segurança e Autoconfiança’ entre estudantes de Enfermagem, na disciplina de Fisiologia Humana.

Ideia Central

DSC

%

 

 

 

Segurança e Autoconfiança

Além de deixar mais seguro, me deixou mais confortável no momento da prova. No nervosismo esquecemos de algo que estudamos e sabemos. Apesar de saber tudo que estava lá, me deu maior segurança. A dinâmica aplicada em prova em muito ajudou na autoconfiança a respeito dos conteúdos adquiridos. Sempre que eu tinha dúvida, o papelzinho me salvava. Ajudou a resgatar tudo o que eu estudei. Por motivos de nervosismo, poderia esquecer e perder o ponto.

 

 

 

 

 

52

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

 

Conforme afirmara Hutz e Zanon (2011, p. 41), “a autoestima representa um aspecto avaliativo do autoconceito e consiste num conjunto de pensamentos e sentimentos referentes a si mesmo”. Portanto, “quando sua manifestação é positiva geralmente o indivíduo se sente confiante, competente e possuidor de valor pessoal” (Aprile, 2013, p.37).

Sentir-se confiante é um aspecto relevante no processo avaliativo, visto que o inverso gera baixa autoestima, ansiedade, medo e frustração, isto é, um conjunto de situações emocionais desastrosas que proporciona graves prejuízos no desempenho das diversas funções cognitivas, tais como: memória, atenção e funções executivas (Pereira; Silva, 2021; Santos; Vasques; De Azevedo, 2022).

Outro aspecto importante, mencionado pelo Discurso do Sujeito Coletivo, complementar ou quase similar à autoconfiança, refere-se ao fato de ‘sentir-se seguro, mesmo sabendo as respostas da prova’.  Nessa circunstância, ter tido a cola disponível, mesmo não havendo a necessidade de utilizá-la, permitiu ao estudante a condição de tranquilidade – requisito primordial para a evocação de memórias declarativas, pois segundo Abreu Rodrigues (2022, p. 8), “a tranquilidade favorece a habilidade de se concentrar, usar a memória, visualizar, a formação de hábitos, entre outros”.

Ao contrário de uma prova com consulta, a utilização da cola, com dimensões limitadas, possibilita que o estudante escreva somente os conteúdos que apresentarem maior grau de dificuldade, servindo, inclusive, para que o professor possa rever a sua prática e identificar quais os conteúdos obtiveram maior frequência entre os estudantes. Entretanto, essa mudança na prática docente requer uma concepção de avaliação alinhada a uma perspectiva formativa, rompendo   com   a   concepção   classificatória   no   sentido de promover   a aprendizagem (Bozzato, 2021). Nesse intento, identificamos, para cada sistema biológico, as principais dificuldades apresentadas pelos nossos estudantes, a saber:

Sistema digestório

A fisiologia do sistema digestório humano compreende as etapas de transformação e absorção do alimento, envolvendo as estruturas como a boca, faringe, esôfago, estômago, intestino delgado, intestino grosso, reto e ânus. Além dessas estruturas, há a presença de glândulas como o “fígado (órgão responsável pela biotransformação de substâncias através de reações enzimáticas), vesícula biliar (armazena a bílis- emulsificadora de gorduras), pâncreas (produção de insulina e glucagon) e glândulas salivares (produção de saliva)” (Teixeira, 2021, p. 58).

Em nossa pesquisa, identificamos que a regulação dos hormônios do trato gastrointestinal (TGI) e a atuação das enzimas digestivas corresponderam as principais dificuldades encontradas pelas estudantes da nossa pesquisa (Fig.4).

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

 

Figura 4 – Principais dificuldades encontradas pelas estudantes de enfermagem ao sistema digestório.

 

 

Parece que a atuação dos hormônios na mucosa gastrointestinal em resposta à presença do alimento foi algo que os estudantes não compreenderam ou talvez a abordagem dada tenha sido superficial ou, de acordo com Martho e colaboradores (2022, p. 611), possivelmente as aulas foram “baseadas apenas na morfologia e função dos diferentes órgãos e glândulas”.  Abordagem esta que não preconiza “a contextualização do ensino, mas sim a memorização de nomes e conceitos, o que resulta em um ensino linear e desmotivador”.

A análise de coocorrência (Fig.5) identificou que quem teve dificuldade de apreensão dos conteúdos dos hormônios do TGI também encontrou obstáculo em entender o papel das enzimas digestivas.

 

 

Fonte: dados da pesquisa, 2023.

 

Figura 5 – Análise de coocorrência das principais dificuldades encontradas pelas estudantes de Enfermagem ao sistema digestório.

 

 

Compreender e discernir aceca da natureza e o papel modulador dos principais hormônios, como: secretina, gastrina, colecistocinina, peptídio inibidor gástrico e peptídeo vasoativo intestinal nas funções digestivas, bem como a sua relação de feedback com as glândulas exócrinas parece ter sido uma das barreiras ao entendimento da digestão e absorção do alimento no trato digestório. Nesse contexto, pensamos o quanto propor atividades diferenciadas, abordando de forma significativa as funções secretoras do TGI possam permitir maior domínio do discente ao tema e, por conseguinte, maior segurança.

Sistema Respiratório

De acordo com Guyton e Hall (2021), a finalidade do sistema respiratório consiste em fornecer oxigênio aos tecidos e remover dióxido de carbono, tendo quatro particularidades: (1) ventilação pulmonar, (2) difusão de oxigênio e gás carbônico entre os alvéolos e o sangue, (3) transporte dos gases e (4) regulação da ventilação.

Nesta pesquisa, identificamos que a diminuição das taxas de oxigênio nos tecidos (hipoxemia) e a relação deste intervento na infecção pelo vírus SARS-CoV-2 foram as principais dificuldades elencadas pelos estudantes (Fig. 6).

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

 

Figura 6 – Principais dificuldades encontradas pelas estudantes de enfermagem ao sistema respiratório.

 

É possível que o fenômeno conhecido pela medicina como hipoxemia silenciosa evidenciada em pessoas que se encontram em “fases críticas de doenças respiratórias, a baixa saturação e a hipoxemia [que] deveriam resultar em desconforto na respiração, alteração do nível de consciência ou até falência de órgãos” (Amaral de Brito et al., 2020, p. 5), não foram constatados em alguns pacientes infectados pelo SARS- CoV-2 durante a pandemia. Constituindo, portanto, um enigma para o ensino de Fisiologia Humana (Hentsch, 2022).

  Na análise de coocorrência (Fig. 7), identificamos uma forte relação da fisiologia da ventilação pulmonar com a diminuição das taxas de oxigênio no sangue, revelando, portanto, maior dificuldade de compreensão dos estudantes acerca da fisiologia da hipoxemia, basicamente do tipo hipoxêmica.

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

 

Figura 7 – Análise de coocorrência das principais dificuldades encontradas pelas estudantes de enfermagem ao sistema respiratório.

 

A hipoxemia hipoxêmica caracteriza-se pela deficiência de oxigênio no sangue arterial devido à queda da pressão parcial de oxigênio alveolar (PO2), situação comum em pessoas com asma, pneumonia e em doenças pulmonares obstrutivas crônicas – DPOC (Do Carmo Carvalho et al., 2022). Diante do fato, pensamos o quanto o estudo da biofísica da pressão transpulmonar precise ser melhor explorado durante as aulas de fisiologia.

Sistema urinário

A fisiologia do sistema urinário compreende em excretar metabólitos nocivos ao corpo ou produtos que se encontram em excesso, assim como: controlar e regular a osmolidade, o pH e a pressão arterial. Entre os estudantes da pesquisa, a eritropoietina (glicoproteína produzida pelos rins que atua na estimulação e no controle de produção das hemácias) foi a principal dificuldade apontada (Fig. 8).

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

Figura 8 Principais dificuldades encontradas pelos estudantes de Enfermagem ao sistema urinário

 

Em pacientes renais crônicos é comum o desenvolvimento de anemia em função da baixa produção de eritropoietina que não estimula, de forma eficiente, a medula óssea a produzir hemácias. Nesse sentido, parece que essa relação hematopoiética dos rins foi mal compreendida ou apresentada de forma superficial gerando insegurança aos estudantes.

Ao investigar a ocorrência simultânea da eritropoietina com outro conteúdo do sistema urinário, verificamos que a homeostase do íon hidrogênio aparece com maior frequência (Fig. 9).

 

Fonte: Dados da pesquisa, 2023.

Figura 9 – Análise de coocorrência das principais dificuldades encontradas pelos estudantes de Enfermagem ao sistema urinário.

 

 

A regulação do íon hidrogênio é fundamental para a compreensão da maioria das atividades enzimáticas e o estado das proteínas do organismo, sendo necessário, para tal intento, o funcionamento adequado dos sistemas metabólico e respiratório (Sánchez-Díaz et al., 2019; Ribeiro; Vador; Menêses, 2022). Nesse propósito, talvez a falta ou o pouco conhecimento dos estudantes acerca das reações químicas na compreensão dos sistemas de tamponamento do corpo humano seja um fator que comprometa a ancoragem sobre o tema, exigindo do professor maior ênfase na sua abordagem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo exploratório realizado sugere a não banalização do uso da cola, mas sim o seu uso como um instrumento de suporte emocional e de identificação dos conteúdos que oferecem maiores dificuldades de apreensão pelos estudantes. O nível de estresse, de insegurança e de ansiedade (nervosismo) relatado pelos alunos foi minimizado com a possibilidade de consultar informações, por eles produzidas, no momento da prova, indicando que a “cola”, mesmo não sendo utilizada em alguns casos ofereceu um suporte emocional ao aluno, no sentido de poder contar com um “lembrete” e não somente com a sua memória em uma situação de estresse. Entendemos que atitude pode desconstruir estereótipos aversivos em relação ao da “cola”. Além disso, a análise posterior dos textos das “colas” indicou ao professor os conteúdos que os estudantes apresentavam maior dificuldade, levando-o a replanejar suas aulas.  

Os dados sugerem que os estudantes ao optarem por fazer anotações apenas sobre os tópicos em que enfrentaram maiores dificuldades podem ter tido um efeito tranquilizador durante o período de avaliação. Isso possivelmente ajuda a reduzir a sensação de sobrecarga causada pela pressão do momento de avaliação e contribui para que o professor reveja a sua prática no que tange à transmissão dos conteúdos. Entretanto, requer uma concepção de avaliação alinhada a uma perspectiva formativa, rompendo   com   a   concepção   classificatória   no   sentido de promover a aprendizagem.

 

Recebido em: 15/08/2023

Aceito em: 05/04/2024

 

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