Contribuições ao ensino de ciências na cibercultura a partir da tecnodiversidade e da territorialidade

Contributions to science teaching in cyberculture based on technodiversity and territoriality

Aportes a la enseñanza de las ciencias en la cibercultura desde la tecnodiversidad y la territorialidad

 

Maiara Lenine Bakalarczyk Corrêa (mai.bcorrea@gmail.com)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

https://orcid.org/0000-0001-9738-6189

 

Cintia Inês Boll (cintia.boll@ufrgs.br)

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-1089-3271

 

Resumo

Os estudos e as discussões em torno do ensino de Ciências e da própria educação como um todo indicam a importância da contextualização dos conhecimentos e a busca por meios para tornar esses conhecimentos significativos para o tempo presente, constituído por uma cultura digital. Nesse sentido, o presente artigo busca aproximar conceitos de outras áreas, incluindo a instalação (Arte), a territorialidade (Geografia), a tecnodiversidade (Filosofia e Tecnologia) e a duração (Metafísica), articulando-os com os processos de construção e de comunicação de aprendizagens em Ciências, propondo que reconhecer e valorizar esses elementos nas produções estudantis contribui para uma formação integral dos estudantes. Para tal, foi realizada uma pesquisa qualitativa de natureza básica, apoiada centralmente nas ideias dos autores Henri Bergson, Yuk Hui, André Lemos e Sylviane Leprun. Desse modo, entende-se que à medida que se assumem processos autorais em enunciações estéticas como meios de instalação do estudante no espaço escolar, é possível favorecer uma dialogicidade que transcende e entrecruza territorialidades, bem como fortalece o desenvolvimento de habilidades que contribuem para a formação integral desses estudantes imersos em um contexto de cultura digital.                                                                         

Palavras-chave: Tecnodiversidade; Territorialidade; Ensino de Ciências; Autoria.

 

Abstract

Studies and discussions in Science teaching and education itself emphasize the crucial role of contextualizing knowledge within the current digital culture. In this sense, this article aims to synthetize concepts from other areas, such as installation (Art), territoriality (Geography), technodiversity (Philosophy and Technology) and duration (Metaphysics), articulating them with the processes of constructing and communicating Science learning. The article argues that recognizing and valuing these elements in student works contributes to their integral education. To this end, qualitative research of a basic nature was carried out, anchored in the theories of Henri Bergson, Yuk Hui, André Lemos and Sylviane Leprun. It is understood that to the extent that authorial processes are assumed in aesthetic enunciations as means of installing the student in the educational space. It is possible to favor a dialogic approach that transcends territorialities, and strengths the development of skills that contribute to the comprehensive training of these students immersed in a context of digital culture.

Keywords: Technodiversity; Territoriality; Science teaching; Authorship.

 

Resumen

Los estudios y discusiones en torno a la enseñanza de las ciencias y a la educación misma en su conjunto indican la importancia de contextualizar el conocimiento y la búsqueda por formas de hacerlo significativo para el tiempo actual constituido por una cultura digital. En este sentido, este artículo busca acercar conceptos de otras áreas, entre ellos instalación (Arte), territorialidad (Geografía), tecnodiversidad (Filosofía y Tecnología) y duración (Metafísica), articulándolos con los procesos de construcción y comunicación del aprendizaje en Ciencia, proponiendo que reconocer y valorar estos elementos en las producciones estudiantiles contribuye a la formación integral de los estudiantes. Para ello se realizó una investigación cualitativa de carácter básico, basada centralmente en las ideas de los autores Henri Bergson, Yuk Hui, André Lemos y Sylviane Leprun. De esta manera, se entiende que, a medida que se asuman procesos autorales en las enunciaciones estéticas como medios para instalar al estudiante en el espacio escolar, es posible favorecer una dialogicidad que trascienda y cruce las territorialidades, así como fortalecer el desarrollo de habilidades que contribuyan a la formación integral de estos estudiantes inmersos en un contexto de cultura digital.

Palabras-clave: Tecnodiversidad; Territorialidad; Enseñanza de las Ciencias; Autoría.

 

 

INTRODUÇÃO

Ensinar e aprender, como construções sociais, vão sendo modificados em simbiose com as transformações culturais. Essa mutualidade da cultura só existe em decorrência das construções e significações dos indivíduos, que criam e recriam artefatos, dando-lhes maior ou menor significação (Baratto; Crespo, 2013; Williams, 1975). Se a sociedade convergiu para uma organização de conhecimento e comunicação em rede, denominada cultura digital ou cibercultura, foi a partir de movimentos e abstrações que geraram instalações dos indivíduos no mundo que transcenderam a cultura até então vigente para novos espaços que, no contexto atual, são cada vez mais digitais (Lévy, 1999; Boll, 2013).

A sociedade em rede e conectada nos aproxima com facilidade e rapidez de outras territorialidades expressas por diversas e singulares formas de enunciação. Nas produções que transitam nas redes de internet, um olhar atento pode perceber que essas enunciações estão repletas por processos autorais e criativos, linguagens próprias, busca de inserção nos contextos e instalação no mundo. Esses elementos, que podem ser percebidos talvez com mais clareza no mundo digital, não existem somente nesse espaço, mas são parte de quem esses indivíduos são e, como tal, adentram outros tantos espaços, como o escolar.

Nesse sentido, o presente artigo se propõe a refletir e discutir como o ensino de Ciências[1] e a própria educação podem ser potencializados ao serem explorados processos de instalação, tecnodiversidade, territorialidade e autoria na construção de aprendizagens de modo a ancorar uma formação integral dos estudantes[2].

Desse modo, o artigo está estruturado em cinco seções, incluindo essa introdução, seguida pela apresentação dos percursos metodológicos. A terceira seção se propõe a compreender o contexto do ensino de Ciências e discutir possibilidades no contexto de cultura digital, e a quarta seção relaciona conceitos como instalação, territorialidade, tecnodiversidade e duração em seus enlaces com a aprendizagem e a educação. Por fim, a quinta seção é composta por algumas considerações sem pretensão de cessá-las.

 

PERCURSOS METODOLÓGICOS

Com a intenção de pensar a construção de um ensino de Ciências e uma educação de modo geral autorais e significativos, esse artigo construiu-se por meio da interlocução com alguns conceitos como a instalação (Arte), a territorialidade (Geografia), a tecnodiversidade (Filosofia e Tecnologia) e a duração (Metafísica), reconhecendo-os como parte dos processos de aprendizagem e da própria educação. A partir disso, ao considerar o ensino de Ciências dentro do contexto cultural e educacional, propõe-se que a percepção e a valorização desses fatores expressos pelos a(u)tores dos processos educativos contribuem para uma formação integral dos estudantes em que os mesmos possam reconhecer-se como parte e todo na sua construção.

As discussões que compõem esse artigo foram construídas a partir dos conceitos já citados de autores como Henri Bergson, Yuk Hui, André Lemos e Sylviane Leprun. Os autores em questão não limitam essas discussões, mas convidam outros autores, como Claire Bishop, Massimo Canevacci, Pierre Levy e Lucia Helena Sasseron, a somarem seus entendimentos, ao passo que são também convidados a qualificar a escrita desse artigo. Desse modo, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa, de natureza básica, desenvolvendo os conceitos propostos em sua aproximação com os processos de construção e manifestação de aprendizagens e com a própria educação.

Para fortalecer a compreensão dos conceitos e enriquecer a discussão, ampliando-a no sentido de criar interlocuções com a educação, a cultura digital e o ensino de Ciências, as autoras selecionaram outras obras cujos conceitos já eram conhecidos para contribuir com as discussões apresentadas. Desse modo, a construção desse artigo encontra suporte em um reconhecimento dos estudantes em sua integralidade a partir de suas cosmotécnicas manifestadas ao longo de suas aprendizagens enunciadas esteticamente e convidando-nos à sua apreciação.

 

PENSANDO O ENSINO DE CIÊNCIAS NA PERSPECTIVA DA CIBERCULTURA

Na década de 60, o ensino de Ciências era pautado por um princípio de neutralidade, e seu ensino formal debruçava-se sobre a quantidade de conhecimentos teóricos que o estudante podia ter acesso, em um entendimento de que quanto mais conceitos fossem trabalhados em aula, mais efetiva e ampla seria a aprendizagem. Já na década de 70, ocorreu uma mudança nessa perspectiva, em grande parte fruto de um momento histórico de crise econômica. Assim, o ensino de Ciências começou a ser pensado de forma relacionada ao desenvolvimento tecnológico, surgindo, então, o movimento CTS (Ciências, Tecnologia e Sociedade). A partir disso, a compreensão sobre o mundo científico passou a estar ligada à tecnologia e à sociedade (Krasilchik, 1992; Santos, 2007). Essa mudança foi um marco importante, visto que a Ciência não é algo deslocado do mundo, mas sim fruto da ação dos indivíduos que são cidadãos do mundo. Nesse sentido, percebe-se o quanto as produções da Ciência interferem na conformação social e nos recursos disponibilizados às pessoas, seja no acesso a medicamentos e novas tecnologias, como as utilizadas na produção e na disseminação de conhecimentos e informações que são utilizadas pela maioria da população, incluindo os estudantes.

Desse modo, pensar o ensino de Ciências hoje está atrelado a reconhecer o quanto a Ciência, a tecnologia e a sociedade estão entrelaçadas, estabelecendo uma simbiose que molda a vida e as relações como as conhecemos. Pautar o ensino de Ciências nessa tríade é importante para a construção de uma formação que reconhece o impacto do conhecimento científico e sua difusão no desenvolvimento tecnológico da nação, bem como para a construção de uma sociedade em que os indivíduos se percebam corresponsáveis por essas relações.

Alguns documentos orientam o ensino de Ciências nas redes de ensino do Brasil, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Os PCNs foram publicados em 1997 e 1998 e apresentam diretrizes para ancorar o trabalho docente na educação básica, citando que “os objetivos de Ciências Naturais no ensino fundamental são concebidos para que o aluno desenvolva competências que lhe permitam compreender o mundo e atuar como indivíduo e como cidadão, utilizando conhecimentos de natureza científica e tecnológica” (Brasil, 1997, p. 31).

A BNCC, por sua vez, é um dos documentos orientadores mais recentes para a educação básica brasileira, homologada em dezembro de 2017. Esse documento constitui uma referência normativa para as redes de ensino do país através da apresentação das competências e das habilidades que devem ser desenvolvidas. O documento menciona que a área da Ciências da Natureza do ensino fundamental “tem um compromisso com o desenvolvimento do letramento científico, que envolve a capacidade de compreender e interpretar o mundo (natural, social e tecnológico), mas também de transformá-lo com base nos aportes teóricos e processuais das ciências” (Brasil, 2018, p. 321).

Entre as competências gerais para a educação básica apresentadas na BNCC, estão a valorização do conhecimento construído historicamente, a utilização de variadas manifestações artísticas e culturais, bem como a comunicação por diversas linguagens, o uso das tecnologias digitais de forma crítica, a valorização da diversidade de saberes, a capacidade argumentativa e a atuação autônoma e responsável. Tais competências perpassam todas as áreas do conhecimento, incluindo as Ciências da Natureza, as Ciências Humanas, as Linguagens e a Matemática (Brasil, 2018).

Reconhecendo um entrelaçamento entre os produtos da Ciência e a vida das pessoas, a Unesco compreende a importância de que se estabeleça um envolvimento social (escola e comunidade) para uma formação científica de todos os cidadãos:

O ensino de Ciências é fundamental para a plena realização do ser humano e a sua integração social. Continuar aceitando que grande parte da população não receba formação científica de qualidade agravará as desigualdades do país e significará seu atraso no mundo globalizado (Unesco, 2005, p. 2).

O ensino de Ciências, então, abarca uma grande diversidade de conhecimentos que se relacionam, exigindo a elaboração do pensamento para a resolução de problemas e a compreensão sobre as vidas no planeta. Para que esses conhecimentos tenham sentido para os estudantes, é importante contextualizá-los, fazendo-os perceber o quanto a cultura, a história, a sociedade e a vida humana estão cercadas pelo conhecimento científico. Nesse sentido, Pozo e Crespo (2009) entendem que, ao ensinar Ciências, é necessário desenvolver uma capacidade de organização, de interpretação e de reflexão sobre os conhecimentos científicos, de tal modo que seja possível compreender como essas relações se estabelecem. Saviani (1996) percebe, além disso, que ensinar Ciências inclui também aspectos atitudinais, o que corrobora um princípio de uma formação integral dos estudantes que são cidadãos do mundo e devem conhecer as demandas atuais e conseguir agir sobre as mesmas de forma crítica e consciente (Maldaner, 2007).

Portanto, o ensino de Ciências deve ir além dos conhecimentos e experiências didáticas da disciplina e ser construído para explorar práticas investigativas e a tentativa de intervenções que possam contribuir na resolução de problemas (Maldaner, 2007). Nessa construção, os processos de ensino e aprendizagem podem incorporar observação, reflexão, comunicação, cooperação, entre outros, almejando um modelo educacional que permita formar os estudantes dialogicamente para além do contexto escolar, considerando-os como cidadãos que produzem sentidos nos ambientes que ocupam.

Logo, o espaço escolar precisa incluir momentos para a fala, a escuta, a troca e a expressão, que favorecem a dialogicidade. Deve-se “criar espaços para a construção de conhecimentos que permitam aos alunos compreender o mundo em que vivem e atuar neste como cidadãos da sociedade do conhecimento” (Costa e Venturi, 2012, p. 419).

Aprender Ciências, então,

[...] envolve a introdução das crianças e adolescentes a uma forma diferente de pensar sobre o mundo natural e de explicá-lo; é tornar-se socializado, em maior ou menor grau, nas práticas da comunidade científica, com seus objetivos específicos, suas maneiras de ver o mundo e suas formas de dar suporte às assertivas do conhecimento. Antes que isso possa acontecer, no entanto, os indivíduos precisam engajar-se em um processo pessoal de construção e de atribuição de significados. Caracterizado dessa maneira, aprender ciências envolve tanto processos pessoais como sociais (Driver et al., 1999, p. 36).

Os conhecimentos teóricos e científicos podem encontrar um caminho significativo de se fazerem compreensíveis ao estudante no momento em que ele pode sair do lugar de ouvinte e transitar por tantos outros lugares. Contudo, se anteriormente a cultura escolar influenciava a abordagem dos conteúdos, hoje tem-se também a influência dos estudantes e de sua cultura. Não basta, então, pensar em quais conteúdos serão trabalhados, mas de que forma e quais estratégias podem contribuir para significá-los (Sasseron, 2018).

É verdade que “a escola não pode mais proporcionar toda a informação relevante, pois esta é muito mais móvel e flexível do que a própria escola; o que ela pode fazer é formar os alunos para que possam ter acesso a ela e dar-lhe sentido” (Pozo; Crespo, 2009, p. 24). O atual contexto de cultura digital alterou a forma e a velocidade de acesso às informações, incluindo as de esfera científica. Assim, a produção de conteúdos hoje também se apresenta em espaços de mobilidade e ubiquidade mediados pelas tecnologias digitais (Boll; Ramos; Real apud Mill, 2018).

Ensinar e aprender, como parte da cultura de uma sociedade, sofreram mudanças simbioticamente. O conhecimento já não está apenas no espaço físico escolar, mas ultrapassa fronteiras. Os estudantes que estão na escola também são autores em diversas redes físicas e digitais, onde estabelecem suas formas de comunicação que incorporam os cincos sentidos e, por vezes, os transcendem. Esses jovens criam comunidades nessas redes, onde desenvolvem outras habilidades para as quais nem sempre a escola direciona seu olhar. Habilidades que atravessam a arte, as linguagens, o movimento.

Entender que a escola é parte da sociedade e, portanto, (deve) sofre(r) mudanças junto dela, é importante para entender que as configurações da escola também deveriam se alterar para se aproximar desse novo indivíduo social – aprendente permanente em todos os tempos e espaços. Não que antes da evolução tecnológica não fôssemos todos potenciais aprendentes permanentes, mas o acesso às novas tecnologias criou um espaço para que esses jovens “mostrem-se” e comuniquem-se com seus pares com menos barreiras. Estamos nos referindo a uma grande parcela de jovens que possuem acesso a recursos digitais, sem que sejam ignorados aqueles que não usufruem desse mesmo acesso ou aqueles que não ocupam esses espaços virtuais com a mesma desenvoltura.

Como seres humanos, esses jovens são diversos, apresentam interesses únicos, se comunicam de formas distintas, mas acabam por encontrar nesses espaços digitais um ecossistema de comunicação veloz, em que não apenas um tipo de comunicação é aceito, por isso, muitas vezes, estes acabam sendo seus lugares de manifestação com “menos amarras”. Observa-se, então, que o “aumento da diversidade cultural e linguística ocasionados pela globalização e explosão midiática impactou na ampliação dos ‘letramentos científicos’”, gerando os denominados multiletramentos, que abarcam essas diferentes linguagens, incorporando escrita, oralidade, música, dança, gesto, territorialização (Vale; Coelho; Venuto, 2020, p. 15).

É importante reconhecer, também, que os espaços virtuais se tornaram rapidamente espaços sociais – neles se conversa, se empreende, se divulga arte, se dissemina notícias, se divulga pesquisas. Nesse espaço social, assim como em qualquer outro, é possível observar dificuldades em se fazer entender, em entender o que é falado ou escrito, em reconhecer a habilidade do outro, em dissipar desinformações. Se a educação deve preparar para a vida, é relevante perceber que os espaços virtuais são parte da vida de muitos estudantes que estão em processo de formação nas escolas. Considerando que na atual conjuntura cultural os meios digitais são meios de comunicação, de trabalho e de lazer, e a escola é o espaço formal para a formação dos jovens, observa-se a relevância de considerar as competências digitais e mobilizar a consciência e a criticidade nos processos formativos, tanto no ensino de Ciências quanto de outras áreas, visto que enquanto cidadãos eles são parte e todo.

Gutiérrez (2011) conceitua competência digital como um conjunto de conhecimentos, capacidades e valores a serem considerados para que seja possível utilizar as tecnologias para busca, acesso, organização e compartilhamento de informações. Mas além dos aspectos tecnológicos, os aspectos informacionais e comunicativos também passam a ser considerados em tempos de cultura digital. Ferrari (2012) ainda aponta a colaboração, a autonomia, a flexibilidade, o consumo e o empoderamento, sendo que esses conceitos foram sendo constituídos à medida que as tecnologias digitais de informação e comunicação desencadearam mudanças sociais.

Percebendo as mudanças sofridas no próprio entendimento do que são as competências digitais em decorrência da mutualidade social e da evolução dos próprios recursos tecnológicos, revela-se o quanto essas competências se entrelaçam com a própria vida das pessoas – lazer, trabalho, comunicação. Portanto, estão além de habilidades técnicas para o uso mecânico de uma tecnologia, incluindo uma postura de criticidade com relação às formas de uso dessas tecnologias (Rocha et al., 2019). As tecnologias são produtos culturais e sociais, tornando-se imperativo reconhecer que a sociedade acaba dando forma a elas, à medida que refletem valores e interesses das pessoas (Castells, 1999). Daí a importância de uma formação escolar que possibilite aos estudantes reconhecerem-se como parte dessa sociedade tecnológica e em rede, onde suas formas de uso das tecnologias refletem socialmente e podem ser determinantes na construção da sociedade.

Se nós produzimos a sociedade na mesma medida em que ela nos produz,

[...] ciência, tecnologia, arte, educação, sendo produtos produzidos pela sociedade, fazem parte do complexo conjunto cultural, incidindo, enquanto produto, sobre o conjunto concreto ou virtual dos seus produtores, e isso independentemente da possibilidade, ou não, de acesso, de determinado segmento, a esses produtos, uma vez que todos os segmentos são partes constituintes da totalidade cultural e por ela são afetados (Axt, 2002, p. 36).

Não se trata aqui de enaltecer os recursos digitais como produtos permeados apenas por vantagens, mas de reconhecer que esses recursos permitiram que o conhecimento pudesse chegar a novos lugares, e as redes de conhecimento puderam ser ampliadas em decorrência dessa ausência de fronteiras possibilitadas pela internet. O que se percebe é o fortalecimento de uma dialogia no espaço virtual, onde ocorre uma troca de forma contínua entre uma pessoa e outra, entre pessoa e imagem, entre pessoa e som, entre pessoa e tantos outros sentidos que podem ser explorados nesse espaço. A ideia central aqui é compreender como essas habilidades e formas de se comunicar e de se instalar no mundo estão dentro das salas de aulas, constituindo formas de ser e de estar e, portanto, formas de conhecer e de aprender.

Entretanto, se desejamos a construção individualizada e coletiva de conhecimentos, por que não consideramos a riqueza da individualidade e da diversidade desses estudantes que já aprendem e se comunicam de formas singulares mesmo antes de adentrarem esses espaços institucionalizados de aprender? Fazê-lo não constituiria um meio de criar espaços dialógicos de ensino e aprendizagem?

Caminhar nesse sentido é compreender que a dialogia “se constitui na multivocalidade e na produção de sentidos que se entrecruzam com outros sentidos e, nessa dialogia, a tecnologia pode ser usada como suporte quando pensada para além de um contato homem-máquina, homem-informação” (Corrêa; Boll, 2023, p. 15). Considerar essas multivocalidades que se apresentam nas interações e nas construções dos estudantes é uma forma de enriquecer o ambiente escolar e considerá-lo para além de si mesmo, é construir um ensino em que se permite encontrar sentido não somente no espaço escolar. Ou seja, é transcender a memória e a reprodução para desafiar a autoria, a criatividade e a compreensão.

 

A INSTALAÇÃO, A DURAÇÃO, A TECNODIVERSIDADE E A TERRITORIALIDADE EM SEUS ATRAVESSAMENTOS COM A EDUCAÇÃO

Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe (Bergson, 1999, p. 14).

O campo da arte utiliza um conceito chamado instalação para se referir a formas singulares de ocupação de espaços (Leprun, 1999) ou, ainda, a "um espaço visual em que o espectador está absorvido", em um entendimento de lugar que transcende a visualidade (Bishop, 2005, p. 6). Nesse sentido, uma instalação existe no espaço que ocupa, mesmo que seu âmago derive de outro ou outros espaços. Portanto, uma instalação artística ocupa um determinado espaço e, para além disso, se entrelaça ao corpo do espectador que frequenta esse espaço – meramente por observar ou permitindo-se interagir com ele. Esses espaços podem ser os mais diversos possíveis, em esferas físicas ou virtuais, onde diversas obras podem ser instaladas (Oliveira, 2018).

Ao pensar a instalação artística, penamos na própria manifestação dos estudantes quando recebem uma liberdade, um estímulo ou um desafio de comunicação que se permita ir além da escrita. A utilização do corpo, do movimento, da arte, da criatividade, da criação material, constitui-se como artefato cultural próprio de uma realidade escolar que ousa se entrelaçar às vivências e influências dos estudantes em outros espaços, próprios da sua constituição enquanto indivíduo que habita diversos lugares. A arte está além de um único sentido – geralmente a visão – incorporando materiais, ações, palavra, corpo, em uma aproximação entre vida e arte, onde a manifestação artística é uma das formas de externalizar as incorporações da própria vida (Leprun, 1999).

A arte se faz presente nos estudantes que criam constantemente formas de comunicação própria dentro de grupos distintos e, em tempos de cibercultura, se dissipam pelo mundo através das ondas eletromagnéticas das redes de internet. Os estudantes ocupam espaços físicos e virtuais, criando redes de comunicação em que podem vivenciar seus interesses e também descobrir novas realidades. O quanto de arte existe nessa ocupação? Os estudantes instalam sua linguagem e seus interesses em espaços cada vez mais amplos. Tais habilidades revelam suas potencialidades na construção de territórios e de aprendizagens que podem ocorrer de forma organizada em ambientes escolares, mas também de forma espontânea e aleatória através da construção de redes físicas ou virtuais.

Segundo Santos (2007), a territorialidade humana refere-se às relações das pessoas ou de grupos em um meio que lhes sirva como referência, sendo que nessa relação estão envolvidos o pertencimento e as ações que ocorrem nesse território. Ainda que no conceito geográfico territorialidade constitua um comportamento espacial, para Sack (1986), a territorialidade incorpora um uso mutável de um espaço que se constitui historicamente. Portanto, se constrói socialmente a partir de intencionalidades, seja uma territorialização concreta/física ou abstrata/virtual. Desse modo, compreende-se a territorialidade no enlace entre formas e conteúdo que transcendem a delimitação e a comunicação de fronteiras (Santos, 2007).

O ciberespaço, fortalecido por um contexto de cultura digital, evidencia essa transcendência de fronteiras territoriais. Porém, essa existência de um espaço virtual não desfaz a territorialidade física, uma vez que, "toda a nossa experiência é fundada em lugares e por mais que as novas tecnologias sejam sofisticadas e permitam ações à distância, nossa experiência é sempre locativa" (Lemos, 2009, p. 31). A instalação do estudante no mundo, seja ele físico ou virtual, estabelece nele uma identidade cultural que está atrelada à sua percepção do mundo e sua relação com o outro. A evolução tecnológica não desfaz essa identidade cultural, mas permite o estabelecimento de novos significados.

Para Lemos (2009, p. 92),

Devemos definir os lugares, de agora em diante, como uma complexidade de dimensões físicas, simbólicas, econômicas, políticas, aliadas a bancos de dados eletrônicos, dispositivos e sensores sem fio, portáteis e eletrônicos, ativados a partir da localização e da movimentação do usuário. Esta nova territorialidade compõe, nos lugares, o território informacional.

A cultura digital, então, através do ciberespaço, constitui um território recombinante em que são elaborados diversos territórios comunicacionais e informacionais, favorecidos pela evolução tecnológica (Lemos, 2009). De tal forma, o território digital permite um encontro de distintos territórios onde é possível tanto acessar informações quanto produzi-las, sendo que essas produções se manifestam por múltiplos tipos de linguagens, que evidenciam habilidades e cosmotécnicas dos estudantes. Por meio disso, os estudantes podem estabelecer redes colaborativas, exibindo sua capacidade à medida que utilizam essas redes como meio de instalação no mundo.

Indiscutivelmente, essas redes informacionais virtuais exigem muito cuidado e muita responsabilidade de seu emissor, assim como consciência e criticidade diante da infinidade de estímulos e informações que chegam até ele. Porém, a intenção aqui é reconhecer a capacidade de instalação no mundo desses jovens que são parte das instituições escolares e, também, (futuros) cidadãos do mundo, “multivíduos” (Canevacci, 2009) com formas diversas de se instalarem em diferentes espaços. Essa realidade é parte de quem eles são, de modo que é interessante pensar na riqueza e na diversidade que isso pode incorporar ao ambiente escolar.

Discutimos esse entendimento de territorialidade para pensar as manifestações e instalações dos estudantes nos seus processos de construção de conhecimento, troca de informações e relações dentro e fora da sala de aula, como meios de territorializar esses espaços. Nesse sentido, percebemos o potencial pedagógico de reconhecer essas formas de expressar conhecimentos como meios de ocupação do espaço escolar que emergem a territorialização desses estudantes. Na medida que territorializam esse espaço, manifestam plasticidade, estéticas e ideologias entrelaçadas às suas formas de conhecer e estar no mundo, em que a arte está presente não exclusivamente em desenhos/pinturas, mas na linguagem, na postura, no olhar observador, na apreciação daquilo que se constrói ou se comunica. Entendemos que, na mesma medida que a escola deve ser um espaço pensado para o estudante, esse estudante também deve ser estimulado a se instalar e compor esse espaço.

Oliveira (2018, p. 5) reforça a relação entre a criação e o espaço ao mencionar que “uma mesma instalação, enquanto intenção criadora de um artista, sofre alterações ao ocupar diferentes lugares” ou ainda "os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles" (Bergson, 1999, p. 15). De modo que, quando a estrutura escolar favorece espaços para a criação dos estudantes, ela cria novas possibilidades que não seriam criadas nos demais espaços vivenciados por eles.

Um exemplo de instalação e territorialização de espaços observados nas grandes cidades é o grafite (Venturelli, 2007). Através dele, alguns grupos deixam suas “marcas” e constituem territórios comunitários de expressão artísticas. Pelo olhar da arte, constituem formas pessoais e criativas de “falar” e ocupar o espaço com aquilo que faz sentido para eles – é uma forma de instalarem-se na cidade e fazerem-se ser “vistos”. Ali há uma expressão de linguagem própria de um grupo que, através da arte, se comunica com outros grupos e tomam aquele espaço como seu. Sob o olhar estético, há um grupo criando sua metrópole comunicacional por onde expressa fetiches, individualidades e coletividades, na medida que utiliza os traços de grafite como atratores para aquilo que deseja expressar, aquilo que anseia fazer “ouvir” (Canevacci, 2008).

Nesse sentido, entendemos que incluir e perceber as produções estudantis (palavra, desenho, voz, movimento, cards, informativos, vídeos, música, maquetes, etc.) como manifestações estéticas que unem conhecimento, técnica, plasticidade e expressão individual de quem são esses estudantes na ocupação do espaço escolar constituem um rico “material” para avaliar e para reconhecer as construções de aprendizagens. À medida que expressam aprendizagens nas construções escolares, esses estudantes também expressam singularidades, concepções de mundo, linguagens, ou seja, “a dicotomia entre coisa e criatura se faz indistinta, penetrada, alterada” (Canevacci, 2008, p. 17).

Assim como Couchot (1998) indica para a arte, na educação a técnica é importante, criando negociações entre o “nós” e o “eu”, que se estabelecem internamente nos estudantes, mas também na dialogicidade das relações em sala de aula. Tal qual na arte, na educação e nos processos de ensino e aprendizagem também existe um jogo entre as técnicas e o indivíduo que opera essas técnicas, entendendo que elas são carregadas de experiências estéticas e filosóficas que interferem e sofrem interferência na e das percepções de mundo (Couchot, 2003; Hui, 2020). Desse modo, mais do que formas de produzir algo, as técnicas incorporam formas de perceber e se instalar no mundo (Couchot, 2003; Hui, 2020).

Percebe-se a existência de uma tecnodiversidade, na medida que são diversas as reminiscências dos indivíduos e de suas localidades agindo sobre suas produções, constituindo suas formas de ver e de construir conhecimento, arte e produtos (Hui, 2020). Assim, compreendemos que os processos educativos devem explorar as diferentes cosmotécnicas dos estudantes como forma de fortalecer a sala de aula como um espaço dialógico de aprender, em que uma técnica não é superior à outra e sim um meio de enriquecimento de outras técnicas, no sentido de reconhecer e valorizar a tecnodiversidade presente nesse espaço. Hui (2020) considera Ciência, Tecnologia e Arte como meios atravessados por cosmotécnicas, constituindo evidências de uma tecnodiversidade. Nesse contexto tecnodiverso, a constituição de uma cultura digital é um produto das criações das pessoas a partir de suas técnicas individuais e coletivas, que, assim como a educação, devem ser pensadas na contracorrente de uma unificação ou de uma uniformização, construindo um caminho onde a diversidade filosófica, estética e tecnológica encontre meios para se expressar e entrecruzar.

O conceito de duração de Henri Bergson contribui para as discussões aqui propostas. Bergson entende a duração como uma consciência interna própria do ser humano em que os momentos e as vivências prolongam-se uns sobre os outros, tornando-se uma coisa só, sem a possibilidade de distinção entre eles. Para o autor, “as circunstâncias podem ainda ser as mesmas, mas já não é sobre a mesma pessoa que agem, porque a encontram num novo momento da sua história” (Bergson, 2001, p. 17).

De tal modo, pensar a duração segundo Bergson é pensar a própria aprendizagem e o contexto de cultura digital, pois a duração prolonga o que foi vivido e experienciado, pensando antes no que se está construindo no presente, elaborando uma relação que já não permite determinar o que é passado e o que é presente, uma vez que o primeiro se instaura no segundo de forma indissociada, sendo dele parte e todo, em que as instaurações e internalizações do ser humano constituem aquilo que ele é (Bergson, 2001). A partir disso, podemos pensar que as instaurações dos estudantes se inscrevem nas aprendizagens que eles estão construindo, sendo impossível dissociar o que foi daquilo que já se construiu.

Ao criar instalações nos espaços, além de comunicar e expressar suas referências e suas produções, o estudante está elaborando durações em si. Ou seja, suas instalações refletem aquilo que esse estudante fez “durar” e que em um momento futuro já não se tratará da mesma produção, pois novos processos internos de duração serão elaborados, interferindo naquilo que virá a instalar. Bergson (2001, p. 21) expõe essa compreensão ao dizer que “quanto mais aprofundarmos a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo”. Invenção, criação e elaboração constituem aprendizagens que são refletidas na construção de produtos e da própria cultura.

Trazendo brevemente Freire (2015) para essa discussão, o autor entende que a educação se faz e se refaz constantemente por meio de sua práxis, e esses processos de permanência e mudança se entrecruzam e inserem-se um no outro, construindo uma duração (Bergson, 2001) em si mesma e na consciência dos estudantes. Deseja-se um caminhar muito além da permanência estagnada do fazer educacional e das formas de aprender rumo a uma problematização em torno da mudança que permite novas inscrições no mundo, novas instalações no espaço e novas instaurações nas aprendizagens. Parte e todo, dentro e fora, perdem sentido na concepção bergsoniana, uma vez que estão intimamente ligados e interferem-se mutuamente a ponto de serem um entrelace de todos esses sentidos. Da mesma forma, isso acontece nos processos de construção de aprendizagens em que antes e agora, dentro e fora, parte e todo, se misturam na significação dos conhecimentos e no estabelecimento de relações entre eles e as vivências.

O conhecimento não está em um ou em outro lugar, mas imerso nos diversos espaços e na própria interação humana, que favorece a troca e a transformação seja na relação humano-humano, seja na relação humano-máquina (Bakhtin, 2009). Nesse entendimento, o conhecimento se constrói o tempo todo – na escola, nas residências, nas redes online, nas rodas de conversa entre amigos –, a aprendizagem se move e se faz ubíqua, acompanha o estudante e ocupa os espaços. Essa aprendizagem móvel e ubíqua, favorecida pelo contexto de cultura digital, tal qual as próprias tecnologias, é marcada por um tempo que não cessa, que não se esgota. A busca por informações, a curiosidade e o desejo pelo conhecimento não estão limitados a um horário ou a determinado local, pois são próprios da existência humana, ou seja, lhe acompanham em todos os aspectos de sua vida (Santaella apud Mill, 2018; Boll; Ramos; Real apud Mill, 2018).

Dada essa realidade, percebe-se uma singularidade de olhares pesquisadores de si para o mundo, que se movem em constância e são capazes de construir conhecimento e produzir manifestações sobre suas descobertas em múltiplas formas, seja em comunicação oral ou escrita, seja em uma linguagem corporal ou artística. Ainda que essas manifestações ocorram de forma contínua, podendo ser mais ou menos clara conforme o olhar daquele que observa, em ambientes formais de ensino como a escola são criados momentos de parada (Bergson, 2006) impostos pelo cronograma de cada disciplina do currículo, permitindo a observação de uma linha esteticamente produzida para que as produções das aprendizagens possam ser apreciadas (Boll, 2013).

O desejo comunicativo acaba por ser imobilizado em um dispositivo móvel ou em uma produção escolar (Boll, 2013) e, com isso, as individualidades dos estudantes construtores de aprendizagens encontram meios para se multiplicar à medida que intercambiam com outras produções – o que enriquece as cosmotécnicas. O que foi imobilizado compõe estilos e revela as formas de ver, sentir e estar no mundo, elaborando, então, uma enunciação estética do estudante (Boll, 2013).

Segundo Lemos e Josgrilberg (2009), essa mobilidade comunicacional, favorecida também pelos recursos digitais, desloca corpos e objetos assim como pensamentos e aprendizagens, criando fluxos comunicativos em rede. O ciberespaço se constrói como um reflexo da sociedade em rede, em que os fluxos estabelecidos elaboram novas formas de se relacionar e de aprender. Assim como o ciberespaço reflete essa sociedade em rede, a proposição é de que a escola também se constitua como tal: espaço dialógico e orgânico de trocas e de apreciação estética das instalações elaboradas individual ou coletivamente pelos estudantes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito se fala sobre uma construção dialógica da escola e de um ensino de Ciências contextualizado que permita ao estudante se reconhecer como parte determinante de suas realidades. Ainda assim, essa está longe de ser uma tarefa fácil, não existindo para ela nenhum manual, por mais que já tenham havido tentativas de elaborá-los. Realidades distintas exigem contextualizações diferentes a fim de que a aproximação entre conhecimento teórico e realidade possa encontrar sentido.

O estudante, que é cidadão do mundo, se instala na escola e na sociedade, criando territórios físicos e virtuais onde utiliza diversas linguagens e cosmotécnicas para expressar conhecimentos e abstrações da realidade. Ao se instalar, busca fazer durar esse conhecimento, permitindo a ele a mutualidade que é própria das aprendizagens e da vida. As formas singulares de ser e estar no mundo, incorporando-o e nele construindo territorialidades, são interpostas pelos constructos da Ciência e pelas dinâmicas da vida nesse planeta. Entendemos que, para pensar um ensino de Ciências autoral e contextualizado, é importante incorporar todas essas nuances que são próprias desses estudantes que, antes mesmo de estarem na escola, já estão no mundo.

Pode-se observar que,

Enquanto os professores não veem, os alunos parecem estar sempre um pouco mais desejosos da pluralidade dialógica que a comunicação contemporânea tem lhes oferecido e permitido visualizar: a estética singularizada de seu próprio olhar e próprio enunciar. A escola precisa poder apreciar a enunciação estética, quando for o caso, valorizando o processo de criação do aluno (Boll, 2013, p. 108).

A partir das discussões e aproximações apresentadas neste artigo, entendemos que existe uma potência criadora e autoral própria dos a(u)tores da escola. Uma potência que busca se instalar nesse e em outros espaços (incluindo espaços virtuais) por formas singulares, utilizando voz, palavra, arte, movimento e interatividade através de uma variedade de cosmotécnicas que derivam e também se expressam na criação e recriação de territorialidades. Na construção da territorialidade escolar, essas singularidades permitem o fortalecimento da dialogicidade tanto na comunicação quanto nos processos de construção de aprendizagens. Ao comunicarem e se instalarem, esses estudantes enunciam-se esteticamente e convidam outros à apreciação de suas produções territoriais e escolares. Reconhecer, provocar e valorizar esses elementos constitui forma potente de perceber e avaliar aprendizagens à medida que reconhece as diferentes cosmotécnicas como formas autorais de aprender e de extravasar o que foi instalado dentro de si.

Propomos, então, que perceber elementos como instalação, territorialidade, duração e tecnodiversidade na apropriação pelos estudantes dos espaços escolares e na comunicação de suas aprendizagens pode contribuir para elaborar um ensino de Ciências em perspectivas de um ensino integral e dialógico. Entender a integralidade desses estudantes passa por percebê-los e desafiá-los para além de uma unificação escolar, para além de um único tipo de linguagem. Passa por reconhecê-los em suas enunciações estéticas, permitindo a eles instalarem-se nesse espaço de forma plural.

Esse olhar sobre a educação e os processos de ensino e aprendizagem pode contribuir na elaboração de um ensino de Ciências mais significativo à medida que percebe e valoriza a tecnodiversidade nas construções e comunicações dos estudantes e se permite usufruir dessa diversidade para conceber novas e múltiplas interpretações de mundo e da própria Ciência. A diversidade comunicativa, a enunciação estética e as cosmotécnicas hoje podem ser percebidas em diversas páginas do Instagram, por exemplo, onde o conhecimento e as concepções de mundo são compartilhados por meio da elaboração de posts informativos ou sátiras. Os posts apresentam ao observador meios de instalação através de uma produção estética, que se constitui como um atrator em tentativas de estabelecer uma dialogicidade que transcende e entrecruza territorialidades.

Tratam-se de enunciações estéticas construídas a partir das heterogeneidades dos estudantes que conseguem dar corpo a diferentes vozes, engendrados pelo que foi interiorizado e encontrando meios de se fazer durar. Essa corporificação de vozes produz formas de expressão e aguça a contemplação do olhar observador, de modo a provocar um movimento de narrativas, estimulando a dialogicidade (Boll, 2013).

Se, como referenciava Freire (2015), a educação não pode contentar-se em ser mero mecanismo de repetição de conceitos, mas em criar meios de possibilitar que todos compreendam e reflitam sobre a própria realidade, temos nas enunciações estéticas comunicativas em redes físicas e virtuais um meio para pensar, refletir e compreender relações e desafios, onde essas enunciações muitas vezes atuam como atratores para um determinado conhecimento ou problemática. Ao fornecer verdadeiro espaço para a tecnodiversidade, os estudantes são aproximados e desafiados na compreensão de diferentes linguagens e concepções, contribuindo para uma formação mais ampla.

 

Recebido em: 10/06/2023

Aceito em: 17/04/2024

 

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[1] As normas da Língua Portuguesa determinam o uso facultativo de letra maiúscula para nomes de disciplinas. Optamos por utilizar a letra maiúscula para nos referir a Ciências, reconhecendo-a como uma área de ensino e de conhecimentos

[2] Utilizaremos a palavra estudante como referência a qualquer indivíduo que estuda, que aprende, em qualquer espaço, seja ele escolar ou não. Estudante é o aluno e o professor, assim como qualquer outro indivíduo que aprende nos diversos espaços da sociedade.