Governança dos Bens Comuns para o Desenvolvimento Regional: o caso do Mosaico de Jacupiranga no Vale do Ribeira/SP
Aparecida Mendes Cardoso [1]
Markus Erwin Brose [2]
Jose Antônio Moraes do Nascimento [3]
Resumo
O presente estudo tem como objetivo compreender de que forma a criação do Mosaico de Jacupiranga (Mojac) pode ser interpretada como uma forma de governança orientada ao bem comum, considerando a perspectiva do desenvolvimento sustentável, os conflitos fundiários e a atuação das comunidades locais, em especial as quilombolas, no território do Vale do Ribeira/SP. A análise fundamenta-se em referencial teórico sobre governança compartilhada e no levantamento documental de legislações, políticas públicas e reportagens, além de entrevistas com nove atores diretamente envolvidos no Mojac, entre eles, representantes de comunidades tradicionais e quilombolas, gestores locais e agricultores. Contou-se ainda com a observação in loco de duas comunidades quilombolas da região. O estudo partiu da compreensão de que os conflitos no território não decorrem apenas da oposição de interesses, mas da histórica negação de direitos territoriais e culturais das populações locais. Os resultados apontam que, embora o Mojac represente um esforço relevante de coordenação entre diferentes setores e intenções como a conservação ambiental e o uso sustentável dos recursos, sua efetividade é comprometida por desafios estruturais. Destacam-se a limitada representatividade nos conselhos gestores, dificuldades de acesso das comunidades quilombolas e tradicionais aos espaços de decisão, escassez de recursos e conflitos entre conservação e práticas econômicas locais. Conclui-se que o Mojac constitui uma iniciativa promissora, mas ainda necessita superar barreiras institucionais e fortalecer sua base participativa para consolidar-se como modelo de governança voltado ao bem comum, capaz de integrar conservação ambiental e reconhecimento dos modos de vida quilombolas e tradicionais no Vale do Ribeira.
Palavras-chave: Ostrom; Áreas Preservadas com Comunidades; Gestão de Conflitos.
Governance of Common Bens for Regional Development: the case of Jacupiranga Mosaic in Vale do Ribeira/SP
Abstract
The present study aims to understand how the creation of the Jacupiranga Mosaic (Mojac) can be interpreted as a form of governance oriented toward the common good, considering sustainable development, land tenure conflicts, and the role of local communities, especially quilombola communities, in the Vale do Ribeira region, São Paulo. The analysis is grounded in theoretical frameworks on shared governance and based on a documentary survey of legislation, public policies, and news reports, as well as interviews with nine actors directly involved in the Mojac, including representatives of traditional and quilombola communities, local managers, and farmers. The study also involved in situ observation of two quilombola communities in the region. The study assumes that territorial conflicts stem not only from opposing interests but also from the historical denial of territorial and cultural rights of local populations. The results indicate that, although the Mojac represents a significant effort to coordinate different sectors and objectives such as environmental conservation and sustainable resource use, its effectiveness is constrained by structural challenges. These include limited representativeness in management councils, difficulties for quilombola and traditional communities to access decision-making spaces, scarce resources, and conflicts between conservation goals and local economic practices. It is concluded that the Mojac constitutes a promising initiative but still needs to overcome institutional barriers and strengthen its participatory base to consolidate itself as a governance model oriented toward the common good, capable of integrating environmental conservation with recognition of quilombola and traditional ways of life in the Vale do Ribeira.
Keywords: Ostrom; Protected Areas with Communities; Conflict Management.
1 Introdução
A presente pesquisa tem como objetivo compreender de que forma a criação do Mosaico de Jacupiranga (Mojac) pode ser interpretada como uma forma de governança orientada ao bem comum, considerando a perspectiva do desenvolvimento sustentável, os conflitos fundiários e a atuação das comunidades locais, em especial as quilombolas, no território do Vale do Ribeira/SP.
Situado no sul do Estado de São Paulo, o Mojac configura-se como um experimento singular de gestão territorial e ambiental que busca conciliar a conservação da biodiversidade com a permanência e os direitos das comunidades tradicionais (quilombolas, indígenas, caiçaras e agricultores familiares). Essa região abriga o maior remanescente contínuo de Mata Atlântica do país, com mais de 2 milhões de hectares, e foi reconhecida como Patrimônio Natural da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em 1999 e como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro em 2018 (Rezende, 2025).
A criação do antigo Parque Estadual de Jacupiranga (PEJ), em 1969, marcou o início de uma política preservacionista que, embora buscasse conter o desmatamento, desconsiderou a presença histórica das populações tradicionais, gerando conflitos fundiários e sociais (Saori, 2018; Bim, 2012). A delimitação do parque sem consulta prévia às comunidades impôs restrições às práticas de subsistência e aprofundou vulnerabilidades sociais, sem, contudo, conter a degradação ambiental decorrente da expansão da pecuária e do desmatamento (Bim; Furlan, 2013).
Diante da ineficácia desse modelo, o Governo do Estado de São Paulo instituiu, em 2005, um Grupo de Trabalho Intersecretarial para revisar os limites do PEJ e propor a criação de um mosaico de unidades de conservação que conciliasse preservação ambiental e presença humana. O resultado foi a promulgação da Lei nº 12.810/2008, que formalizou o Mojac. Ainda assim, os conflitos não foram plenamente superados. O modelo de conservação segue tensionado entre os interesses do Estado e os modos de vida tradicionais (Rotondaro; Bonilha, 2021), enquanto categorias restritivas de uso continuam limitando formas autônomas e sustentáveis de gestão dos recursos naturais.
Nesse contexto, torna-se relevante analisar a criação do Mojac à luz das proposições de Elinor Ostrom (1990) sobre a governança dos bens comuns. Para a autora, comunidades locais podem desenvolver regras e instituições eficazes de manejo sustentável, desde que respeitados princípios como a definição clara de fronteiras, a participação dos usuários nas decisões coletivas e a existência de mecanismos de resolução de conflitos.
O Mojac, ao incorporar interesses ambientais, culturais, econômicos e sociais, representa uma tentativa concreta de construir um modelo de governança que transcenda a dicotomia entre preservação e uso, buscando formas de convivência e corresponsabilidade. A análise realizada neste estudo parte do entendimento de que os conflitos no território não resultam apenas de interesses opostos, mas da ausência histórica de reconhecimento dos direitos territoriais e culturais das populações tradicionais.
Como metodologia, foi realizado levantamento documental de decretos, portarias, leis e políticas públicas, além de reportagens e matérias publicadas na última década, que forneceram informações relevantes sobre o Mojac. Também foram conduzidas entrevistas com atores sociais diretamente envolvidos nas transformações do mosaico e nos conflitos emergentes. Ao todo, foram realizadas nove entrevistas: uma com o coordenador dos projetos de restauração ecológica no Mojac, uma com representante quilombola, cinco com gestores locais e duas com agricultores.
Atualmente, são reconhecidas 34 comunidades quilombolas no Vale do Ribeira. [4] A entrevista com o representante quilombola ocorreu em uma das comunidades mais estruturadas e de maior relevância regional, frequentemente tomada como referência para compreender dinâmicas sociais e necessidades comuns. Para ampliar a análise, realizaram-se visitas exploratórias a outras duas comunidades, o que possibilitou captar parte da diversidade e especificidade existentes. Apesar dos desafios logísticos e de comunicação, essas visitas contribuíram para enriquecer a compreensão das condições que atravessam o conjunto das comunidades quilombolas do território. A triangulação entre entrevistas, documentos e observações de campo possibilitou interpretações mais consistentes dos resultados.
2 A perspectiva de desenvolvimento sustentável orientativa das ações na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica no Mosaico Jacupiranga/Vale do Rio Ribeira
Nesta etapa da pesquisa, adota-se uma abordagem orientada pelo paradigma do desenvolvimento sustentável para analisar criticamente as ações implementadas no Mojac e no Vale do Rio Ribeira. A análise parte de entrevistas com atores sociais diretamente envolvidos nas transformações da última década na região, complementada por um exame documental que inclui Decretos, Portarias, Leis, Políticas Públicas e registros na imprensa. O objetivo é compreender as dinâmicas, os avanços e os desafios enfrentados na conciliação entre conservação ambiental, desenvolvimento econômico e inclusão social.
Um dos depoimentos centrais para este estudo foi concedido pelo coordenador dos projetos de restauração ecológica no Mojac, engenheiro agrícola, especialista em gestão de unidades de conservação, mestre em Geografia Física pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente pesquisador do Instituto Florestal de São Paulo e doutorando na UNESP/Sorocaba. Com mais de 12 anos de atuação em projetos de restauração ecológica no MOJAC, coordenou iniciativas que recuperaram mais de 700 hectares de áreas degradadas. Durante a entrevista realizada para esta pesquisa, o coordenador descreveu o processo de criação do Mosaico como uma “jornada de aprendizado”, na qual os diversos atores envolvidos, especialmente as comunidades locais, passaram por uma curva de adaptação e compreensão das novas possibilidades e limitações do território.
Entre os principais avanços apontados pelo coordenador, destaca-se a demarcação das áreas de conservação, o que favoreceu a elaboração de acordos coletivos e permitiu uma participação comunitária mais efetiva nos processos decisórios. Essa reorganização territorial contribuiu para dar início a práticas sustentáveis como o plantio da palmeira juçara e a implementação de agroflorestas, iniciativas que, embora de longo prazo, começam a gerar frutos socioeconômicos e ambientais. Um exemplo simbólico foi a transformação de um antigo prostíbulo às margens da rodovia BR em um restaurante, empreendimento que passou a empregar moradores da região e só foi possível devido à mudança do status da área de parque para Área de Proteção Ambiental (APA), o que permitiu um uso mais flexível da terra.
Essas mudanças refletem uma tentativa de equilibrar conservação e desenvolvimento, promovendo a inclusão social por meio do estímulo à economia local. Para o referido coordenador, essa flexibilização foi fundamental para gerar novas oportunidades econômicas dentro de um modelo sustentável. A gestão integrada, segundo ele, é essencial para garantir que as decisões respeitem os limites ambientais, mas também acolham as necessidades das comunidades.
Além dos resultados econômicos, outras transformações relatadas pelo coordenador incluem a melhoria das moradias e da infraestrutura local, assim como mudanças comportamentais e culturais. Antes, práticas ilegais como o desmatamento e o tráfico de animais silvestres eram naturalizadas por parte da população. Os resultados da entrevista ainda demonstraram a presença de redes de apoio e fiscalização informal entre os próprios moradores, voltadas à proteção da biodiversidade, incluindo espécies ameaçadas como o papagaio-do-peito-roxo e plantas nativas como a juçara. Esse engajamento crescente sinaliza uma importante elevação da consciência ambiental, fundamental para a perenidade das políticas implementadas.
Ainda assim, é necessário manter uma postura crítica diante das limitações estruturais do modelo atual. O estudo de Silva Jr. (2016) já alertava para a falta de articulação política que comprometeu os resultados de diversas iniciativas territoriais no Vale do Ribeira. Apesar de algumas experiências positivas no fortalecimento da agricultura familiar e na elaboração de planos territoriais participativos, os resultados ficaram aquém do esperado. O autor defende a necessidade de se repensar as políticas públicas sob a ótica da nova ruralidade, aliada a uma abordagem crítica do ecodesenvolvimento e do desenvolvimento territorial sustentável.
A perspectiva otimista do coordenador que participou desta pesquisa precisa ser balanceada com uma visão realista dos riscos associados à flexibilização das normas ambientais, que podem, se malconduzidas, comprometer os objetivos de longo prazo da conservação. Há o risco de que empreendimentos econômicos passem a dominar a agenda, deslocando a centralidade do equilíbrio socioambiental.
O Gestor-Chefe da Unidade de Conservação da APA Quilombolas do Mojac, também concedeu entrevista para a pesquisa e reforçou a importância de uma abordagem integrada, que considere simultaneamente os pilares ambiental, social e cultural. Para ele, os desafios do território incluem a preservação da cultura local, o combate à pobreza e a proteção dos ecossistemas da Mata Atlântica. O gestor-chefe destaca que, embora o discurso oficial sobre sustentabilidade esteja presente nas diretrizes da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, é fundamental que ele se traduza em ações concretas. Isso demanda mecanismos de participação comunitária eficazes e uma redistribuição justa dos benefícios gerados, além de um compromisso firme do poder público.
Essa visão é corroborada pela representante da comunidade de Iporanga (SP) e membro do conselho do Mojac. Em sua entrevista, expressou preocupações quanto à limitação de áreas disponíveis para a agricultura de subsistência, devido às restrições impostas pelas zonas de parque. Para a representante, as alternativas sustentáveis ainda são insuficientes ou inadequadas para substituir práticas tradicionais, o que compromete a autonomia e a segurança alimentar de muitas famílias da região. Tal depoimento evidencia que, embora o discurso da sustentabilidade esteja presente, sua implementação ainda não alcançou todos os segmentos sociais de forma equitativa.
Portanto, os avanços observados, como os projetos de restauração ecológica, o estímulo à agroecologia, a valorização de espécies nativas e a reorganização territorial, são inegáveis. No entanto, os relatos também apontam para contradições e limitações que ainda precisam ser enfrentadas. O desafio é transformar a lógica da gestão ambiental em um processo genuinamente participativo, que seja capaz de harmonizar a proteção da biodiversidade com o direito das populações tradicionais e rurais ao território e ao desenvolvimento.
No Vale do Ribeira, as Reservas Extrativistas (RESEX) constituem unidades fundamentais para entender a implementação da governança orientada ao bem comum. A análise das RESEX permite observar variações na abrangência e especificidade dos aspectos ambientais, socioeconômicos e culturais, bem como nas formas de uso e ocupação do território. Tais informações evidenciam como diferentes áreas do Mojac lidam com a preservação ambiental e o desenvolvimento sustentável, incluindo a proteção dos ecossistemas e o fortalecimento das comunidades tradicionais. Assim, o estudo das RESEX oferece subsídios para compreender os desafios e potencialidades da gestão territorial participativa (Quadro 1).
Quadro 1: Análise de cenários das RESEX Mandira, Auati Paraná, Ouro Preto, Cururupu, Rio Xingu e Soure
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Mandira (1.175) |
Auati Paraná (146.950) |
Rio Xingu (303.841) |
Ouro Preto (204.583) |
Cururupu (186.053) |
Soure (29.578) |
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Continuidade do Cenário Atual, pessimista, otimista |
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Cenário ótimo, mais provável, ruim |
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Cenários Principais (atual, acesso à educação e saúde, diversificando fontes de renda, construção da UHE Belo Monte) |
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Cenário bom, ruim |
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Ausente |
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Fonte: São Paulo (2020).
Verifica-se que a RESEX Mandira, por exemplo, trabalha com três perspectivas principais: a continuidade do estado atual, uma projeção pessimista e outra otimista. Esse tripé analítico permite antever desdobramentos variados e preparar estratégias adaptativas. Já a RESEX Auati-Paraná adota uma classificação semelhante, distinguindo entre cenários ótimos, mais prováveis e ruins, o que demonstra uma tentativa de incorporar diferentes níveis de incerteza ao planejamento.
Por outro lado, a RESEX Rio Xingu introduz uma perspectiva mais temática e contextualizada, considerando possibilidades principais como a manutenção do status atual, a ampliação do acesso à educação e saúde, a diversificação das fontes de renda, além da análise dos impactos decorrentes da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A RESEX Ouro Preto, por sua vez, também trabalha com projeções positivas e negativas, mas de forma mais sintética. Em contraste, as RESEX Cururupu e Soure não apresentam, nos documentos analisados, qualquer análise de futuros possíveis, o que indica uma ausência de planejamento estratégico mais sistemático nessas áreas (São Paulo, 2018; São Paulo, 2020).
Essa heterogeneidade nas abordagens revela uma tendência das RESEX em adaptar seus diagnósticos prospectivos conforme os contextos e as prioridades locais. No entanto, também evidencia uma lacuna preocupante em termos de padronização metodológica, acompanhamento técnico e apoio governamental para a elaboração de planos de longo prazo. A ausência de cenários futuros pode dificultar a capacidade de resposta das comunidades extrativistas diante de mudanças socioambientais e econômicas inesperadas, limitando a eficácia da gestão territorial.
No contexto do Vale do Ribeira, o Mojac representa uma iniciativa relevante de articulação entre conservação e desenvolvimento sustentável. A partir da reconfiguração institucional de antigas unidades de conservação e da criação de novas categorias de manejo, como as Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e as RESEX Mandira e Auati Paraná, o Mojac passou a promover uma nova lógica de gestão territorial, mais inclusiva e adaptativa.
As ações do Mojac têm contribuído significativamente para a proteção ambiental e para a promoção de um desenvolvimento sustentável local. A implementação do projeto resultou em maior equilíbrio entre as demandas de conservação e as necessidades das populações tradicionais, criando um ambiente favorável à prosperidade das comunidades locais sem abrir mão da proteção dos recursos naturais. Durante a entrevista realizada para esta pesquisa, o coordenador dos projetos de restauração ecológica no Mojac afirmou que grande parte do êxito do Mojac está associada ao esforço conjunto da sociedade civil organizada e da gestão local, embora critique a atuação da direção da Fundação Florestal, que não teria cumprido integralmente suas responsabilidades institucionais.
Um dos principais gargalos apontados pelo coordenador diz respeito à insuficiência de investimentos por parte do governo estadual. Embora programas como o Conexão Mata Atlântica forneçam suporte técnico e financeiro para atividades sustentáveis, como a certificação de produtos e assistência técnica, ainda há lacunas na implementação de políticas estruturantes, como habitação, infraestrutura básica e fomento rural. Isso limita o alcance das ações e perpetua vulnerabilidades socioeconômicas nas comunidades atendidas.
Por outro lado, há avanços concretos que demonstram o potencial transformador do Mojac. A mudança de status de algumas áreas de parque para unidades de uso sustentável permitiu, por exemplo, que organizações como a Sempre Viva Organização Feminista (SOF) implementassem projetos de produção e comercialização de hortaliças orgânicas, antes inviáveis sob a rígida regulamentação dos parques. Além disso, entidades como a Iniciativa Verde, o Instituto de Desenvolvimento Sociocultural (IDESC), Coopera Floresta, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e outras, têm atuado em parceria com as comunidades, oferecendo capacitação e suporte técnico.
Outro aspecto relevante é a reorganização fundiária e territorial. A regularização das posses e a delimitação clara das áreas protegidas ajudaram a reduzir drasticamente o desmatamento. Segundo Bim (2012), houve uma redução estimada de 80% na prática ilegal, resultado direto da maior previsibilidade das regras, do uso de tecnologias de monitoramento como imagens de satélite e sistemas de informação geográfica (SIG), e da presença ostensiva da polícia ambiental. A mudança de percepção da população em relação ao Estado, que passou de inimigo a parceiro, foi um fator fundamental nesse processo.
Salienta-se que o planejamento do Mojac entre 2019 e 2025 foi estruturado em três fases, organizadas por setor: Sul, Norte e Centro (Figura 1). Cada fase corresponde à elaboração e execução de planos de manejo específicos, totalizando 14 documentos ao fim do período. O planejamento escalonado visou permitir maior controle e efetividade na implementação das ações. No entanto, o ano de 2024 representou um desafio estratégico, dado que houve sobreposição das fases dos setores Norte e Centro, exigindo maior articulação institucional e alocação eficiente de recursos (São Paulo, 2024).
Figura 1: Planos de Manejo Mojac (2019 – 2025)

Fonte: São Paulo (2024).
Importante mencionar que a partir da análise realizada foi possível que nos últimos cinco anos, o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Vale do Ribeira foi atualizado quatro vezes, baseando-se nos resultados anuais da região. No entanto, essas atualizações ainda refletem uma abordagem predominantemente tecnocrática, que não considera adequadamente as especificidades de cada território. Apesar da retórica de promover a participação popular por meio de conselhos, na prática, percebe-se que isso ainda está longe de se tornar uma realidade efetiva. A eficácia dos planos elaborados pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional em atender às necessidades locais e em promover desenvolvimento sustentável depende crucialmente do engajamento genuíno e da participação efetiva das comunidades locais.
A análise das políticas e ações implementadas no contexto do Mojac e das RESEX evidencia um progresso significativo na integração entre conservação ambiental e desenvolvimento sustentável. O avanço na clareza das demarcações, a participação comunitária e as iniciativas de manejo sustentável, como o plantio de espécies nativas e a preservação da biodiversidade, indicam uma transformação positiva nas práticas locais.
No entanto, os desafios persistem, especialmente no que diz respeito à articulação política e à implementação eficaz das estratégias de desenvolvimento sustentável. Acredita-se que para garantir a continuidade desses progressos e o fortalecimento das comunidades locais, é essencial promover uma abordagem mais integrada e articulada, que considere as necessidades econômicas e sociais dos moradores ao mesmo tempo em que preserva os recursos naturais para as gerações futuras.
3 Conflitos fundiários de uso e ocupação de terras
O território é compreendido como espaço de disputas e conflitos, socialmente construído e historicamente ocupado. No contexto do Mojac observam-se contradições resultantes da coexistência entre atividades agroindustriais (especialmente a cultura da banana), mineração e desafios socioeconômicos, em meio a processos de conservação ambiental. A análise da formação territorial por meio dos sistemas agrários e de uma abordagem dialética materialista permite interpretar criticamente as dinâmicas de uso e ocupação da terra, considerando a cronologia e os modos de vida das populações tradicionais (Lombardi, 2016; Neves; Okumura, 2005).
A gestão territorial no Mojac ganha destaque com o processo de recategorização do antigo Parque Estadual de Jacupiranga. Em entrevista realizada para esta pesquisa, o coordenador de projetos de recuperação do Mojac, um dos articuladores do processo, afirmou que o parque foi subdividido em três grandes áreas, cada uma com seu respectivo conselho regional, entre eles o Núcleo Cedro (Figura 2). De acordo com o coordenador, em 2005, houve um momento crítico com o veto de um projeto de lei que impactaria o parque. Isso levou à formação de um grupo de trabalho que discutiu diretrizes alternativas, promovendo reuniões participativas e mapeamentos comunitários por meio da cartografia participativa, envolvendo conselheiros e moradores.
Figura 2: Regionalização do MOJAC

Fonte: São Paulo (2021).
Diante da presença de mais de 8 mil moradores no interior do parque, as opções eram a remoção forçada, que se mostrava inviável social e politicamente, ou a recategorização, transformando áreas ocupadas em outras categorias de Unidades de Conservação (UCs), como RDS, RESEX ou APA. Essa medida visava legalizar a permanência dos moradores, garantindo que nenhuma área deixasse de ser protegida ambientalmente, mas adaptando o regime de conservação às realidades locais. Como resultado, o parque, inicialmente com 150 mil hectares, foi ampliado para 154 mil hectares de proteção integral, compensando as áreas habitadas com a incorporação de terras públicas não ocupadas.
O processo envolveu a realização de um cadastro georreferenciado em 2006, identificando 2.133 pontos de ocupação,[5] o que permitiu um melhor planejamento das novas UCs. A transformação territorial buscou equilibrar conservação e desenvolvimento sustentável, valorizando a permanência humana associada a práticas produtivas de baixo impacto. Aproximadamente 85% dos moradores foram transferidos para RDS ou APA, com regras mais flexíveis e adaptadas, enquanto apenas 15% permaneceram em áreas de parque com restrições ambientais mais rigorosas.
O coordenador de projetos de restauração do Mojac informou em entrevista que a recategorização permitiu ressignificar um território antes marcado por conflitos e opressão em um espaço de diálogo, sustentabilidade e dignidade para as populações locais. O processo contou com reuniões contínuas e levantamentos detalhados, oferecendo base sólida para a gestão integrada e participativa da região.
Do ponto de vista teórico, essa experiência pode ser analisada à luz dos princípios de Elinor Ostrom (2005) sobre a governança dos bens comuns. Ostrom (2005) argumenta que comunidades locais, quando envolvidas ativamente na criação de regras de uso e na fiscalização dos recursos, são capazes de gerir de forma sustentável seus bens comuns, desde que contem com apoio institucional e mecanismos de resolução de conflitos.
A experiência do Mojac reflete esse modelo de governança policêntrica e colaborativa, especialmente nos conselhos regionais e no uso de ferramentas participativas como a cartografia. Contudo, o coordenador alerta para a fragilidade do apoio estatal contínuo, elemento considerado por Ostrom (2005) como essencial para a sustentabilidade da gestão comunitária. Sem esse suporte, existe o risco de estagnação e de retrocessos nos avanços conquistados.
Outro desafio enfrentado foi a redefinição das divisas do parque. O processo envolveu dificuldades técnicas e políticas, como situações em que apenas parte de uma propriedade saía do parque, gerando inseguranças jurídicas e disputas. Além disso, conflitos com grandes fazendeiros que tentaram excluir suas terras das áreas protegidas foram significativos, especialmente aqueles que haviam desmatado áreas sem cumprir funções sociais ou ambientais. A resistência às pressões externas privilegiou os pequenos agricultores e comunidades tradicionais, conforme previsto na legislação brasileira sobre a função socioambiental da terra.
Nesse sentido, a abordagem adotada no Mojac ressoa com as ideias de Jacobs (2009), que destaca a importância da diversidade, da convivência e das conexões sociais no espaço urbano e rural, além da necessidade de proteger os modos de vida que garantem vitalidade aos territórios. Também se aproxima da visão de Habraken (2000), para quem o território público deve ser compreendido em diferentes escalas e com flexibilidade para acomodar os diferentes usos, desde que respeitados princípios coletivos.
Atualmente, os principais conflitos no Mojac não se dão mais entre Estado e comunidade, mas entre comunidades e grandes produtores agropecuários, especialmente pecuaristas. Na entrevista, o coordenador ainda relatou a existência de fazendas com até 700 hectares de gado dentro de áreas protegidas, o que prejudica a recuperação ambiental e gera novos embates. Isso evidencia a dificuldade de conciliar interesses do agronegócio com os princípios da sustentabilidade, exigindo políticas públicas mais rigorosas e estratégias eficazes de mediação.
A experiência do Mojac, portanto, exemplifica um modelo de governança territorial que combina conhecimento técnico, participação social, respeito aos direitos das populações locais e preocupação com a conservação dos recursos naturais. Ao proteger os pequenos produtores e promover o uso sustentável da terra, essa iniciativa se alinha com os princípios de Ostrom (1990) sobre gestão comunitária dos recursos, revelando que soluções colaborativas e territorializadas são possíveis mesmo em contextos marcados por conflitos históricos e desigualdades.
3.1 As comunidades do Mosaico e a recategorização do território
Os resultados desta pesquisa demonstraram que o Vale do Ribeira enfrenta desafios socioeconômicos e ambientais, que são especialmente visíveis nas comunidades locais que habitam a região. Grande parte do território do Vale é coberto por unidades de conservação, como RDS e RESEX, que cobrem até 80% da área de alguns municípios, como Iporanga. Estas unidades foram criadas para preservar a Mata Atlântica, um dos maiores remanescentes florestais do Brasil, mas também impõem sérias restrições ao uso da terra, afetando diretamente as práticas tradicionais de cultivo e a produção agropecuária. Esse cenário limita as alternativas de subsistência das populações locais e gera conflitos fundiários, especialmente nas áreas onde há sobreposição de interesses entre grandes proprietários de terras e as comunidades tradicionais.
De acordo com as entrevistas realizadas com o Gestor-Chefe da Unidade de Conservação da APA Quilombolas e com o membro do conselho do Mojac e morador do Bairro Andorinha em Barra do Turvo, as comunidades que habitam essas áreas enfrentam um dilema: de um lado, a preservação ambiental e, de outro, a luta por meios de subsistência. O conflito entre os grandes proprietários, que buscam expandir suas atividades agropecuárias, e os pequenos agricultores, que tentam garantir suas terras e modos de vida, é um dos aspectos centrais desse problema. Além disso, a falta de regularização fundiária agrava ainda mais a situação, com ocupações ilegais e venda irregular de terras. Isso ocorre em locais como o município de Cajati, onde a troca de ocupantes e a falta de titulação complicam os processos de regularização fundiária, resultando em um aumento dos conflitos.
A análise de Silva Jr. (2016) sobre as políticas territoriais no Vale do Ribeira revela que, apesar de esforços governamentais para fortalecer os agricultores familiares e mobilizar a sociedade civil, a falta de articulação política entre os diversos níveis de governo dificultou a implementação efetiva do Projeto Vale do Ribeira Sustentável. Como resultado, a participação popular foi fragilizada, e a desmobilização social contribuiu para a ineficácia das políticas públicas na região. As ações realizadas até o momento têm mostrado resultados limitados e, em muitos casos, frustraram as expectativas da população local.
O estudo de Mendes Júnior (2007) aponta que a abordagem de conservação adotada nas unidades de conservação, influenciada por modelos internacionais, como o modelo americano de áreas naturais, exclui as populações tradicionais da gestão dos territórios, desconsiderando o papel fundamental que essas comunidades desempenham na preservação ambiental. Mendes Júnior (2007) argumenta que as populações tradicionais têm impactos ambientais limitados, possuem conhecimentos adequados para manejar seus ambientes e poderiam contribuir de forma significativa para a conservação e o desenvolvimento sustentável da região.
Nesse sentido, durante a entrevista para esta pesquisa o coordenador de projetos de restauração do Mojac propôs a criação de um fundo de indenização para compensar os moradores que desejarem sair das áreas de conservação como possível solução para o problema fundiário. Esse fundo permitiria que os moradores recebessem uma compensação justa por suas terras, evitando a venda irregular e possibilitando a recuperação ambiental das áreas desocupadas. Embora essa proposta tenha mostrado resultados positivos em alguns casos, a implementação efetiva das soluções continua sendo um desafio.
Portanto, a situação no Vale do Ribeira e no Mosaico de Jacupiranga destaca a complexidade dos conflitos entre conservação ambiental e as necessidades socioeconômicas das populações locais. A falta de uma coordenação eficaz entre os governos e a adoção de modelos de conservação excludentes têm perpetuado os desafios enfrentados pela região. Uma reavaliação das estratégias de desenvolvimento e conservação, que inclua as populações tradicionais como agentes ativos no processo, é essencial para garantir o equilíbrio entre a preservação da natureza e a promoção de alternativas sustentáveis para as comunidades locais. A proposta do coordenador de um fundo de indenização surge como uma solução viável para resolver a questão fundiária, ao mesmo tempo em que contribui para a recuperação ambiental e a melhoria das condições de vida das populações locais.
3.2 Comunidades quilombolas e a regularização fundiária de seus territórios
Ao investigar a região do Vale do Ribeira verificou-se que abriga 34 dessas comunidades, cada uma com suas particularidades e desafios. No entanto, devido a limitações de tempo, recursos e à própria complexidade do território, optou-se por aprofundar a pesquisa em uma única comunidade. Ao analisar as comunidades foi verificado que essa era a maior e mais organizada, sendo um ponto de referência importante para entender as dinâmicas e necessidades comuns aos quilombolas do Vale do Ribeira.
A organização e a infraestrutura relativamente desenvolvidas dessa comunidade proporcionaram um campo ideal para a coleta de dados e para observar práticas de autogestão e interação com políticas públicas, indicando formas de governança de bens comuns, conforme os princípios de Ostrom (1990), como definição de limites claros, participação coletiva e monitoramento compartilhado dos recursos naturais. Os resultados dessa etapa são baseados na análise documental, na entrevista realizada com uma liderança de uma comunidade quilombola, o Gestor-Chefe da Unidade de Conservação da APA Quilombolas, e em visitas in loco em outras duas comunidades quilombolas do Mojac, Poça e Mandira. A análise dessas comunidades possibilitou compreender as dinâmicas territoriais e as interações com políticas públicas na região.
Salienta-se que a caracterização das comunidades é atestada pela própria comunidade, visando garantir a posse da terra e a reprodução física, social, econômica e cultural do grupo. O processo de reconhecimento também leva em consideração critérios indicados pelos próprios grupos. No que diz respeito à ocupação da terra para o cultivo de banana e à extração de palmito, essas atividades econômicas ampliaram as fazendas e geraram conflitos fundiários na região, demonstrando a necessidade de regras coletivas, mecanismos de monitoramento e sanções graduais, elementos centrais na teoria de Ostrom (1990), para garantir o uso sustentável e equitativo dos recursos comunitários.
As comunidades quilombolas, principalmente aquelas em terras devolutas, enfrentaram desafios legais até a criação de um ordenamento jurídico estadual que abordasse suas terras. Essas comunidades têm raízes antigas, com um histórico de uso efetivo ao longo de muitos anos (Silva, 2010). A investigação sobre as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, com foco na regularização fundiária de seus territórios, revelou a complexidade e a diversidade dos desafios enfrentados por esses grupos.
A presença de uma liderança estável e acessível na primeira comunidade quilombola facilitou o engajamento contínuo e garantiu a coleta de informações consistentes ao longo do período de pesquisa. O fato de essa comunidade contar com programas e projetos específicos também justificou a escolha, pois permitiu analisar sua implementação e impacto, gerando informações valiosas sobre as políticas de desenvolvimento regional e preservação ambiental.
Silva (2010) destaca que as compartimentações do território desempenham um papel crucial na compreensão de seus usos. Essas divisões podem refletir tanto usos dominantes, como é o caso das divisões político-administrativas criadas para o exercício do poder estatal, quanto usos subalternos, como as compartimentações quilombolas. Suzuki e Martins (2015) abordam o contexto de conflito enfrentado pelas comunidades quilombolas da Poça e do Mandira, localizadas no Vale do Ribeira paulista. Ambas as comunidades buscam o reconhecimento de suas terras e a garantia de permanência de seus moradores. Esses desafios foram mencionados pelo Gestor-Chefe da Unidade de Conservação da APA Quilombolas, que destacou que as comunidades quilombolas enfrentam desafios em relação à posse e ao uso da terra, muitas vezes resultantes de processos históricos de discriminação e exclusão.
O Gestor-Chefe menciona que a regularização fundiária dessas terras é fundamental para garantir os direitos territoriais e a autonomia dessas comunidades, reforçando a importância da governança local dos bens comuns, na qual a comunidade participa da tomada de decisões sobre uso, preservação e acesso aos recursos, alinhado aos oito princípios de Ostrom (1990). No entanto, observa que o processo de regularização fundiária muitas vezes é lento e complexo, envolvendo diversos órgãos e instâncias governamentais. Pode-se depreender que a luta das comunidades quilombolas por reconhecimento territorial está profundamente ligada a questões históricas de discriminação e exclusão, e que a compartimentação territorial imposta pelo Estado muitas vezes reflete o exercício do poder dominante sobre os usos da terra.
Essa realidade se manifesta na lenta e burocrática regularização fundiária, que impede as comunidades de exercerem plenamente seus direitos sobre as terras que habitam. O caso das comunidades da Poça e do Mandira, no Vale do Ribeira, visitadas por esta pesquisadora, exemplifica essa situação, onde o conflito pela posse da terra e a busca por autonomia ainda são questões centrais. A regularização dessas terras, além de garantir a segurança jurídica, é crucial para promover a preservação cultural e o desenvolvimento econômico dessas comunidades, mas o processo enfrenta inúmeros obstáculos que atrasam a resolução dos conflitos fundiários.
No caso da comunidade da Poça, embora um laudo antropológico tenha reconhecido o território como sendo de uma comunidade quilombola, o título de propriedade coletiva das terras ainda não foi obtido. O conflito reside no fato de que as terras atualmente pertencem a proprietários que não são reconhecidos nem pela comunidade nem como remanescentes de quilombo. A discussão envolve a expropriação dessas terras pelo Estado e sua posterior concessão aos quilombolas, o que fragmenta o espaço da comunidade afrodescendente (Suzuki; Martins, 2015).
Já a comunidade do Mandira passou por um processo de organização e luta para a criação de uma reserva extrativista na área ocupada. Isso permitiu uma melhor inserção no mercado, principalmente através da criação da Cooperativa dos Produtores de Ostra da Cananéia (Cooperostra).[6] No entanto, essa maior inserção no mercado também resultou em uma maior subordinação aos anseios e desejos urbanos, fragilizando a comunidade e suas relações com o ambiente em que estão inseridos (Suzuki; Martins, 2015).
Ambos os casos mostram caminhos distintos trilhados por comunidades com origens étnicas semelhantes, mas com mediações diferentes com o ambiente em que vivem. A luta pela posse da terra e a permanência dos indivíduos estão intimamente ligadas ao processo de mobilização do trabalho. Essas relações e processos têm implicações para o futuro das comunidades quilombolas da Poça e do Mandira, bem como para o Vale do Ribeira e para o Brasil como um todo. Suzuki e Martins (2015) destacam a importância dessas comunidades e de suas lutas no contexto social, econômico e cultural mais amplo.
Scatamacchia, Ceravolo e Demartini (1994) ressaltam a importância do cadastramento como uma ferramenta fundamental na proteção do patrimônio arqueológico, destacando que qualquer projeto de preservação e gerenciamento de sítios arqueológicos deve começar com um levantamento sistemático. De acordo com os autores, esse levantamento pode levar anos e sem a pesquisa e divulgação dos dados, todo esse trabalho não teria significado para a comunidade local.
Nesse sentido, a arqueologia deve ser vista como algo de interesse público e, portanto, estão desenvolvendo um programa de gerenciamento do patrimônio arqueológico, paralelamente ao programa de cadastro. Esse programa inclui propostas museológicas e educacionais para a divulgação e uso social dos sítios arqueológicos. A partir disso, percebe-se que o cadastramento sistemático dos sítios arqueológicos é o primeiro passo para qualquer pesquisa na área e deve ser uma prioridade em qualquer programa de arqueologia no Brasil.
Pode-se dizer que somente o conhecimento do patrimônio arqueológico pode possibilitar o estabelecimento de políticas adequadas de proteção e preservação. Portanto, o cadastramento dos sítios deve ser uma responsabilidade dos arqueólogos atuais, visando garantir que a próxima geração tenha material para estudar. De acordo com Paes (2019), no Vale do Ribeira, os camponeses negros do Médio Ribeira desbravaram áreas florestadas e cultivaram arroz ao longo dos rios. A região enfrentou desafios relacionados à preservação ambiental e à construção de barragens.
Outra ameaça enfrentada pelos moradores da região foi a construção de barragens ao longo do rio Ribeira de Iguape, que gerou intensos debates desde a década de 1930. Os camponeses negros do Médio Ribeira se mobilizaram e se autoidentificaram como quilombolas, buscando garantir a propriedade de suas terras, conforme assegurado pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, surgiram as comunidades remanescentes de quilombo, como Pedro Cubas, Sapatu, Nhunguara, São Pedro, Galvão, Ivaporunduva, entre outras. Em 1994, as comunidades negras da região pleitearam o reconhecimento e a titulação de suas terras junto à Justiça Federal de São Paulo, o que intensificou os contatos entre essas comunidades e os diferentes órgãos do Estado (Paes, 2019).
Carvalho (2006) verificou em seu estudo que as comunidades quilombolas São Pedro e Galvão, do ponto de vista da história dos dois grupos, são um processo contínuo e não um estado estático. Sua unidade de origem foi construída através de uma série de alianças com pessoas de fora, que incluíram alguns e excluíram outros. Através de “dramas sociais” e disputas expressas em acusações místicas, eles negociam tensões e democratizam o direito de acusar. A unidade é solidificada por meio de projetos e reforçada por rituais religiosos e políticos. Dessa forma, a identidade nos bairros é compreendida como um processo histórico e, ao mesmo tempo, uma estratégia política para a composição de sujeitos sociais.
Em sua pesquisa, Rosa (2007) destaca que a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) obteve a concessão de uso para a Usina Hidrelétrica de Tijuco Alto em 1988 e conduziu seus próprios estudos de impacto ambiental. Após a conclusão desses estudos, a empresa recebeu autorização para explorar os recursos do Rio Ribeira em 1989. Com o apoio da Diocese de Registro e da Cáritas Francesa, missionárias elaboraram um projeto para proteger 2 mil famílias ameaçadas de despejo e outras 100 mil pessoas afetadas pela construção da hidrelétrica de Tijuco Alto.
Silva (2010) descreve a complexa situação fundiária na região do Vale do Ribeira de Iguape e no litoral sul do estado de São Paulo. Ele destaca a coexistência de diversas formas de uso e organização do espaço, incluindo posseiros, grileiros, grandes e pequenos proprietários, companhias mineradoras, reflorestadoras, terras devolutas e remanescentes de quilombos. A falta de reconhecimento legal das terras ocupadas pelos quilombos criou problemas fundiários, especialmente no médio vale do rio Ribeira, onde grupos negros vivem em bairros rurais sem amparo legal. O Decreto n. 4.887/2003 trouxe inovações importantes, conferindo proteção jurídica especial às comunidades quilombolas. Ele define critérios para reconhecimento, autoatribuição étnico-racial, trajetória histórica própria e relação específica com o território.
Diante disso, é possível afirmar que o desenvolvimento sustentável no Vale do Ribeira passa por um delicado equilíbrio entre a proteção dos direitos territoriais das comunidades quilombolas e a necessidade de manejo adequado dos recursos naturais, sendo a governança coletiva, baseada em regras acordadas e monitoramento participativo, um componente essencial para assegurar a sustentabilidade e equidade no uso dos bens comuns. As políticas de preservação ambiental e o desenvolvimento econômico precisam ser repensados de forma a incluir as comunidades tradicionais como protagonistas, garantindo que suas práticas culturais e modos de vida sejam preservados e respeitados.
Os resultados verificados reafirmam que a proteção e a preservação do patrimônio cultural e territorial das comunidades quilombolas são fundamentais para o desenvolvimento sustentável e inclusivo da região. A regularização fundiária, aliada a políticas de desenvolvimento que valorizem as práticas tradicionais e a autonomia das comunidades, é essencial para assegurar a justiça social e o respeito aos direitos humanos no Vale do Ribeira.
4 Considerações finais
A criação do Mojac pode ser compreendida como uma tentativa significativa de governança voltada ao bem comum, que visa integrar as diversas demandas e promover a gestão equilibrada dos recursos naturais no Vale do Ribeira. O Mojac representa um esforço para alinhar diferentes interesses de comunidades tradicionais e quilombolas, agricultores, autoridades governamentais e organizações ambientais, em torno de um modelo de gestão compartilhada, baseado na conservação ambiental e no uso sustentável dos recursos. No entanto, a eficácia desse modelo de governança ainda depende de desafios estruturais que precisam ser superados, especialmente no que diz respeito à participação efetiva das comunidades locais e à implementação mais eficiente das políticas públicas.
A dinâmica de governança no Mojac enfrenta obstáculos importantes, como a falta de uma representação equitativa nos conselhos gestores, o que se deve, em parte, à extensão territorial da região e à dificuldade de acesso das populações mais distantes dos centros de decisão. Isso leva à predominância de um grupo restrito de representantes, limitando a diversidade e a inclusão no processo de tomada de decisões. Essa ausência de uma participação mais ampla e diversificada compromete a legitimidade das decisões e enfraquece o processo de governança, especialmente no que se refere às demandas e práticas das comunidades quilombolas, já que não reflete adequadamente as necessidades e os interesses de todos os grupos envolvidos. A falta de recursos e o baixo apoio financeiro também dificultam a efetividade da gestão, especialmente no que tange à implementação de ações práticas, como a fiscalização e a aplicação de políticas ambientais.
Além disso, as tensões geradas pelos conflitos de interesse entre os diferentes atores sociais revelam as complexidades envolvidas na governança do Mojac. Por um lado, existe a necessidade de garantir a preservação dos ecossistemas, especialmente áreas de alta relevância ambiental, como os manguezais. Por outro, os moradores da região, que historicamente dependem de atividades econômicas como a agropecuária e o extrativismo, demandam a ampliação de áreas para a expansão dessas práticas. A resistência a essa abordagem conservacionista, em muitos casos, está diretamente relacionada à necessidade de sustento das comunidades quilombolas e tradicionais, bem como ao desejo de manter suas formas culturais e modos de vida históricos.
A criação do Mojac, embora tenha sido uma resposta às reivindicações locais e um avanço em termos de governança ambiental, ainda enfrenta dificuldades significativas em sua implementação. O equilíbrio entre a preservação e o desenvolvimento econômico continua sendo um desafio premente. A tentativa de alinhar esses dois interesses, por meio de políticas públicas que atendam tanto à conservação ambiental quanto às necessidades de desenvolvimento das comunidades quilombolas e tradicionais, é uma tarefa complexa. Para que o Mojac se estabeleça como uma governança eficaz orientada ao bem comum, será necessário superar as limitações organizacionais e financeiras, garantindo que todos os atores, especialmente as comunidades históricas do território, tenham participação efetiva nas decisões que afetam diretamente seu futuro e a preservação de seus modos de vida.
O processo de governança no Mojac também precisa ser mais transparente, com a disponibilização de dados atualizados que permitam avaliar a eficácia das ações implementadas, os impactos gerados e as melhorias na gestão do território. A falta de informações claras sobre os resultados do Mojac ao longo dos anos compromete a capacidade de realizar ajustes necessários nas estratégias adotadas e dificulta a mobilização de recursos e apoio para iniciativas futuras. Dessa forma, a criação do Mojac como modelo de governança depende de um processo contínuo de aprendizado, adaptação e fortalecimento das capacidades locais, além de uma maior integração das políticas públicas voltadas à conservação com as necessidades de desenvolvimento sustentável e preservação cultural das comunidades quilombolas e tradicionais envolvidas.
5 Agradecimentos
Agradeço a ajuda de todos os entrevistados e aos meus orientadores, que pacientemente me auxiliaram nessa jornada de estudos.
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[1] Doutora em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Brasil. Centro Universitário do Vale do Ribeira. Professora. cida_mc@hotmail.com; Registro-SP. https://orcid.org/0009-0009-3312-5233. http://lattes.cnpq.br/7956600237017322. Financiamento Próprio
[1] Doutor em Sociologia pela Universidade de Osnabrück/Alemanha. Universidade de Santa Cruz do Sul. Departamento de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional. Professor. markus@unisc.br; Santa Cruz do Sul RS. https://orcid.org/0000-0003-0539-8292 http://lattes.cnpq.br/4962360402048291
[1] Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Brasil. Universidade de Santa Cruz do Sul. Departamento de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional. Professor. josenasc@unisc.br; Santa Cruz do Sul. https://orcid.org/0000-0002-0083-1918 http://lattes.cnpq.br/5702280555509548
[1] Doutora em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Brasil. Centro Universitário do Vale do Ribeira. Professora. cida_mc@hotmail.com; Registro-SP. https://orcid.org/0009-0009-3312-5233. http://lattes.cnpq.br/7956600237017322. Financiamento Próprio
[2] Doutor em Sociologia pela Universidade de Osnabrück/Alemanha. Universidade de Santa Cruz do Sul. Departamento de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional. Professor. markus@unisc.br; Santa Cruz do Sul RS. https://orcid.org/0000-0003-0539-8292 http://lattes.cnpq.br/4962360402048291
[3] Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Brasil. Universidade de Santa Cruz do Sul. Departamento de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional. Professor. josenasc@unisc.br; Santa Cruz do Sul. https://orcid.org/0000-0002-0083-1918 http://lattes.cnpq.br/5702280555509548
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[4] Em Eldorado estão Poça (2008), Engenho (2014), Abobral Margem Esquerda, Sapatu (2001), Bananal Pequeno, Pedro Cubas de Cima (2003), Pedro Cubas de Baixo (1998), Ostras (2018), André Lopes (2001), Nhunguara (2001), Ivaporunduva (1998), Galvão (2001), São Pedro (1998), além da Abobral Margem Direita, com reconhecimento aguardando publicação. Em Iporanga, constam Pilões (1998), Maria Rosa (1998), Nhunguara (2001), Praia Grande (2002), Porto Velho (2003), Bombas (2014), Anta Gorda, Rio da Cláudia, Jurumirim, Castelhanos, Galvão (2001), São Pedro (1998), Ribeirão, Piririca (2018) e Desidério. Em Registro, encontram-se Peropava (2011) e Caiacanga; em Iguape, Morro Seco (2006) e Bairro da Aldeia (2014); em Cananéia, Mandira (2002), Ex-Colônia Velha (2015), Porto Cubatão, Rio das Minas, Taquari/Santa Maria, Varadouro e São Paulo Bagre; em Cajati, Capitão Brás e Manoel Gomes; em Miracatu, Biguá Preto, Fau e Biguazinho (2018); em Jacupiranga, Padre André I, Padre André II, Lençol e Poça (2008); em Itaóca, Cangume (2004) e Porto Velho; e, por fim, em Barra do Turvo, Cedro (2009), Reginaldo (2009), Ribeirão Grande/Terra Preta (2008) e Pedra Preta/Paraíso (2009).
[5] Pontos de ocupação correspondem a locais habitados ou utilizados por famílias e comunidades no território, incluindo moradias, áreas de agricultura de subsistência, agroflorestas e demais espaços de uso tradicional.
[6] A Cooperostra da Cananéia é uma organização comunitária baseada na Reserva Extrativista do Mandira no estuário da lagoa da Cananéia em São Paulo. Fundada em meados da década de 90, a partir de intervenções estatais que objetivavam melhorar a sustentabilidade, a viabilidade e a qualidade da higiene da colheita artesanal das ostras em Mandira, a iniciativa cresceu rapidamente para incorporar as comunidades coletoras em todo o estuário da Cananéia (United Nations Development Programme, 2012).