Considerações sobre a Guerra da Ucrânia

 

Wilson de Oliveira Neto[1]

 

Apresentação

No dia 24 de fevereiro de 2022, foi iniciada uma operação militar internacional em larga escala na Europa, quando forças militares russas invadiram o território ucraniano, dando início ao que ficou conhecido entre o público como Guerra da Ucrânia. Junto com os conflitos na Faixa de Gaza e na Síria, trata-se de mais um evento com grande visibilidade midiática e enormes usos políticos, tanto entre os países beligerantes quanto em nações que não têm nada a ver com a guerra, como por exemplo, o Brasil, que em um contexto de polarização política, a Guerra da Ucrânia se tornou um marcador político entre direita e esquerda.

Mesmo para uma pessoa que acompanha o noticiário internacional, é difícil compreender as origens e as dinâmicas do conflito em curso. E, mais: o envolvimento de uma superpotência com poder de veto no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) revela as fragilidades do Direito e das Relações Internacionais, assim como em outras situações de crise vividas no passado.

Para além da desinformação, da retórica política e mesmo das notícias falsas, quais foram as causas da Guerra na Ucrânia? O que está em jogo nesse conflito? O que há de novo em termos de armas e seus respectivos empregos táticos ou estratégicos?

Nesta entrevista, o historiador e professor Dr. Sandro Teixeira Moita, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), respondeu essas e outras perguntas relacionadas à Guerra na Ucrânia ou Russo-Ucraniana. Trata-se de uma autoridade reconhecida em estudos militares, que possui grande visibilidade pública quando se torna necessário abordar publicamente, por meio da imprensa, a guerra em curso.

A entrevista foi realizada por e-mail, sendo as perguntas elaboradas pelo entrevistador enviadas previamente ao entrevistado que as respondeu por escrito, também por meio digital.

 

Resumo do currículo do entrevistado

Professor no Programa de Pós-graduação em Ciências Militares do Instituto Meira Mattos na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Doutor em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (2020). Possui Graduação e Licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense (2007), o Curso de Especialização em História Militar Brasileira (2011) e o Mestrado em História (2013), ambos pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Foi Professor na Divisão de Preparação e Seleção da ECEME, onde atuou na Tutoria de História. Orienta alunos nas disciplinas de Arte Operacional, Inteligência, História Militar, Teoria da Guerra e Estratégia. Ministra regularmente aulas no Curso de Comando e Estado-Maior sobre Teoria da Guerra, História Militar e Estratégia, prestando consultoria a diversas operações do Exército Brasileiro e do Ministério da Defesa. É Sócio Honorário do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB). Tem experiência na área de História Militar, Teoria da Guerra, Estratégia, Defesa, Geopolítica, História Geral e do Brasil. Áreas de interesse: História Militar, Estratégia, Teoria da Guerra, Geopolítica, Operações Militares, Estudos de Inteligência, Defesa Nacional.

Entre os seus trabalhos publicados, destacam-se os dois volumes do “Dicionário de História Militar do Brasil, 1822 – 2022” (UFRJ/EDUPE, 2022).

           

Wilson de Oliveira Neto:Muito obrigado por aceitar o convite para conceder esta entrevista. Inicialmente, você poderia se apresentar para o público da FRCH, com destaque para os seus trabalhos no campo da História?

 

Sandro Teixeira Moita:Eu sou historiador de formação, especializado em História Militar e com mestrado em História. Fiz o doutorado em Ciências Militares, sendo o primeiro civil a fazê-lo, mas não deixei a História de lado por isso. Na minha tese me vali muito da História para trabalhar dilemas contemporâneos da estratégia moderna, como a questão da Vitória na Guerra. Além disso, leciono aulas e palestras sobre História Militar. E fui o coordenador de um projeto do CNPQ, liderado por Francisco Carlos Teixeira da Silva, que resultou na publicação do Dicionário de História Militar do Brasil, 1822-2022. Essa obra é inédita, e resultou um esforço espetacular de reunir civis e militares em prol de algo que se tornasse referência na pesquisa da História Militar.

Wilson de Oliveira Neto:Em um ensaio publicado no começo deste século, no antigo caderno “Mais+”, da Folha de S. Paulo, o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) afirmou que o século XX foi o mais “assassino” da história, com poucos períodos sem conflitos armados em algum lugar do mundo. Essa tendência de guerras contínuas também está presente neste começo do XXI?

 

Sandro Teixeira Moita:Não iria tão longe e afirmar que o século XX foi “assassino”, mas sim de guerras que redefiniram a ordem global, aliás, este, um dos papéis que o fenômeno bélico desempenha: o de modificar relações de poder. Aqui, então, vemos, nessas três primeiras décadas de século XXI, uma redefinição da luta pelo poder por parte das grandes potências, e obviamente a guerra tem posição central nisto. O que me causa certo temor, é o que, talvez pelo desaparecimento das gerações envolvidas na Segunda Guerra Mundial, estejamos vendo aqui então, um “re-encantamento” do papel da guerra, seja por parte de lideranças políticas, seja por parte da população impactada por jogos, séries e filmes sobre guerra, adquirindo uma percepção anestesiada do fenômeno, o que não é bom. Como historiadores, este é um bom combate a ser travado – o de, por meio de nossas pesquisas, denunciarmos essa nova marcha da insensatez.

 

Wilson de Oliveira Neto:O colega é docente na Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME), do Exército Brasileiro e faz parte do Observatório Militar da Praia Vermelha. Para além das organizações militares, qual é a importância, no século XXI, do estudo das guerras?

 

Sandro Teixeira Moita:O estudo das guerras é ferramenta vital de entendimento das realidades presentes, um objeto vivo da História. Estudar a guerra não quer dizer tornar-se apologista dela, mas sim, ter a capacidade perspectiva de olhar o panorama daquilo que é mais caro na aventura humana: caro pelos recursos dispendidos, mas também pelo custo humano, as vidas perdidas. Todo o processo derivado de um conflito também deve ser observado em outras facetas que não somente o combate: sociais, culturais, econômicas. Pois elas acabam sendo, na longa duração, profundamente moldadas por um conflito. Ignorar a guerra é uma decisão que alguém pode tomar, a próprio risco de não ser capaz de compreender completamente o processo histórico do século XXI.

 

Wilson de Oliveira Neto:Por falar no Observatório Militar da Praia Vermelha, quais atividades e saberes são desenvolvidos? De que forma o público interessado pode entrar em contato com sua produção?

 

Sandro Teixeira Moita:O Observatório Militar da Praia Vermelha (OMPV) reúne civis e militares no estudo de diversas temáticas: geopolítica, história, conflitos, questões de energia, sanitárias, até mesmo nucleares. Considero uma ótima maneira de aproveitar as capacidades da Escola, mas também especialistas fora dela, como tivemos recentemente uma conversa sobre geopolítica de cabos submarinos que foi ótima. Temos um site, que é https://ompv.eceme.eb.mil.br/. Nele, podem-se conhecer as áreas do OMPV, e ver artigos, também um podcast, o Panorama, disponível também no site acima.

 

Wilson de Oliveira Neto:A Guerra na Ucrânia é um dos conflitos militares em evidência nas mídias tradicionais, assim como nas plataformas de notícia e redes sociais na internet. Quais são suas origens?

 

Sandro Teixeira Moita:Este conflito tem, a depender do olhar que se lança sobre ele, múltiplas causas. Podemos apontar as questões geopolíticas, o redesenho da segurança europeia, o desejo russo de manter uma capacidade de veto sobre esta. Além disso, há questões como a própria conformação da identidade ucraniana em sua luta histórica para descolar-se da russa, que a enxerga como acessória ou inexistente, fora o passado de guerras na região e o papel central que a Ucrânia teve tanto para o Império russo quanto para a União Soviética. Então, no projeto de poder russo para o século XXI, não existe lugar para uma Ucrânia independente capaz de seguir seu próprio destino.

           

Wilson de Oliveira Neto:Em comparação com outros conflitos do passado recente e mesmo contemporâneos, quais são as novidades que a Guerra na Ucrânia trouxe?

 

Sandro Teixeira Moita:A Guerra na Ucrânia traz uma série de novidades observadas em conflitos anteriores, mas o que salta aos olhos é a escala da utilização dado os lados em luta. Temos mais de um milhão de homens lutando pela Ucrânia, enquanto, em agosto de 2025, são mais de 670 mil russos lutando nas linhas de frente, apoiados por milhões de trabalhadores nas indústrias de defesa russas. Consideremos também o apoio dado pelas nações do chamado “Ocidente”à Ucrânia, que sustenta a capacidade combativa desta. Como são muitas coisas, eu citaria uma, que são os sistemas remotamente pilotados, os famosos “drones”, pois, em face inclusive de uma crise de recrutamento, os ucranianos estão em processo de tentar substituir homens por máquinas para fazer frente aos russos. Ou seja, a utilização de drones e robôs em larga escala, o que traz inúmeras lições para que entendamos qual será o papel de novas tecnologias e da automação na guerra.

 

Wilson de Oliveira Neto:É correto afirmar que o conflito russo-ucraniano é também uma “guerra por procuração”, em que potências europeias e os Estados Unidos lutam contra a Rússia, tal como ocorreu no passado, a exemplo da Guerra Fria?

 

Sandro Teixeira Moita:A depender do olhar lançado, sim e não. Pois não se pode negar que os ucranianos estão travando uma luta por sua autodeterminação como nação. Ao mesmo tempo, os russos entendem a guerra como um momento de definição de seu papel na ordem internacional no século XXI, ao menos até a metade do século. O discurso de guerra de procuração, assim, não encontra ressonância, embora os EUA tenham se aproveitado do conflito para enfraquecer a Rússia em suas aspirações de potência e sinalizar a Europa, ou ao menos isto o era até a volta do presidente Trump ao poder, que indica um governo americano mais simpático à Rússia e menos à Europa. A guerra é um dos primeiros momentos onde a dissolução da ordem global de 1945 fica mais clara, sem indicação clara de qual direção se seguirá.

 

Wilson de Oliveira Neto:Quais lições para a compreensão do passado e do presente a Guerra da Ucrânia nos ensina? Para o estudante de História, o que é possível aprender?

 

Sandro Teixeira Moita:A guerra da Ucrânia ocorre em três dimensões históricas diferentes. Tecnologias do século XXI, com técnicas do século XX em nome de ideias e ideologias do XIX. O passado, para russos e ucranianos, tem sido alvo de um grande processo de revisionismo pela guerra. Ora para indicar que não há uma identidade ucraniana, como argumentado pelos russos, ora para salientar que essa identidade sempre existiu, e até antes da russa, como os ucranianos sustentam. Os combates não são somente em cidades e trincheiras, mas também na reescrita de um passado que serve como combustível para a luta do presente.

A tragédia da guerra, o seu enorme peso, custo, são algumas das coisas que me vem à mente quando penso que as novas gerações de historiadores não podem desviar os olhares. Entender o fenômeno é extremamente importante para que se possa compreender, ter a sensibilidade de indicar que talvez a luta não seja o melhor caminho. E como disse acima, em termos de um “re-encantamento”, isso possivelmente seja uma das mais preciosas contribuições que os historiadores possam oferecer às sociedades contemporâneas.

 

 

Recebido em 01/07/2025.

Aceito em 10/08/2025.



[1]Professor da Universidade da Região de Joinville (Univille). Brasil. E-mail: wilson.o@univille.br | https://orcid.org/0000-0002-6439-661X