O que há de novo na história do Brasil na Segunda Guerra Mundial? Entrevista com o historiador e professor Giovanni Latfalla

 

Wilson de Oliveira Neto[1]

 

Apresentação

Entrevista realizada de forma remota, por e-mail, em que o entrevistado recebeu as perguntas elaboradas pelo entrevistador. Giovanni Latfalla é uma das referências em estudos históricos sobre o Brasil na Segunda Guerra Mundial, com destaque para as relações militares entre o Brasil e os Estados Unidos, bem como a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Desde o Doutorado, as pesquisas de Latfalla possuem um caráter inovador, na medida em que dialogam com a bibliografia nacional e estrangeira sobre o Brasil no conflito, além de estarem fundamentadas em documentação inédita, consultadas em arquivos nacionais e estadunidenses.

A partir do início da Segunda Guerra Mundial na Europa, em 1939, com a invasão da Polônia por alemães e soviéticos, o governo dos Estados Unidos iniciaram um intenso processo de planificação da defesa do continente americano contra possíveis ofensivas das potências do Eixo. No contexto da Campanha do Atlântico (1939 – 1945), o território brasileiro e, principalmente, o “saliente” nordestino se tornaram estratégicos nos planos de defesa continental. Foram nessas circunstâncias que uma aliança militar entre Brasil e Estados Unidos começou a ser negociada.

Giovanni Latfalla e outros autores contemporâneos esmiuçaram o assunto, que nos últimos anos está em um processo de renovação historiográfica, e lançam novas e instigantes interpretações sobre o tema, especialmente, sobre a defesa da soberania brasileira e intensa negociação, por parte das lideranças do Exército para que os Estados Unidos fornecessem material bélico moderno para a força terrestre brasileira.

Ainda sobre as novidades, Latfalla, ao consultar a documentação militar norte-americana inédita, desfaz um conjunto de equívocos sobre a Força Expedicionária Brasileira (FEB), como por exemplo, as razões pelas quais seu efetivo não passou pelo estágio no norte da África antes de ser enviado para a frente italiana. Ou, que muito antes dela ser criada, o governo dos Estados Unidos fez diversas propostas para o emprego de tropas brasileiras dentro e fora do continente americano, como um meio de engajar o Brasil na causa aliada. Inclusive, um fato inusitado: o empresário das Comunicações, Assis Chateaubriand (1892 – 1968) pensou em organizar uma legião de voluntários sul-americanos para lutarem na Europa ao lado dos aliados. Segundo “Chatô”, a legião seria formada por argentinos e outras nacionalidades do Conesul. Após levar uma bronca tremenda do General Dutra, a ideia foi deixada de lado durante uma audiência que Chateaubriand teve com Getúlio Vargas, na qual ele foi informado de que uma força expedicionária seria organizada e enviada pelo Brasil à guerra.

Informalmente, desde 1939, o país estava sendo envolvido com o conflito, algo inevitável se levarmos em consideração as condições do país no cenário internacional da época.

 

Resumo do currículo do entrevistado

Possui graduação em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Carangola (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim (1994), mestrado em História pela Universidade Severino Sombra (2011), e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (2016). Atualmente é oficial do Exército Brasileiro. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História.

É autor dos seguintes livros: “FEB, missões e observadores militares” (Editar, 2023); “Relações Militares Brasil-EUA 1939-1943" (BIBLIEX, 2023); “Segunda Guerra Mundial: propostas para o emprego de tropas do Brasil” (Editar, 2022); “Estudos - Série Grupo de Pequisa LEPH” (Fábrica de Livros, 2010).

           

Wilson de Oliveira Neto:Muito obrigado por aceitar o convite para conceder esta entrevista. Você poderia se apresentar para o público da FRCH, com destaque para os seus trabalhos no campo da História?

 

Giovanni Latfalla:Primeiramente, quero agradecer a oportunidade de poder apresentar um pouco do meu trabalho, respondendo às perguntas formuladas. Agradecer também ao professor Dr. Wilson de Oliveira Neto, leitor e divulgador dos meus livros.

A minha primeira atividade como professor foi quando trabalhei como docente efetivo na disciplina de História, na Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, por 7 anos. Depois, prestei concurso para o Magistério do Quadro Complementar do Exército (QCO). Fui aprovado, fiz o Curso de Oficiais em Salvador, e posteriormente, fui nomeado professor do Colégio Militar do Recife, em 1996. Em 2000, fui movimentado para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, e em 2004, transferido para o Colégio Militar de Juiz de Fora. Passei para a reserva em 2020.

Depois que terminei o doutorado em dezembro de 2016, resolvi transformar a minha tese em um livro, e a partir daí, continuei minhas pesquisas, e continuei a escrever livros e alguns artigos, além de participar de muitos seminários. O meu primeiro livro, fruto da minha tese de doutorado, é “Relações Militares Brasil/EUA 1939-1943”, publicado em 2019, já na segunda edição. Depois, escrevi “Segunda Guerra Mundial: propostas para o emprego de tropas do Brasil” de 2022, e o último, “FEB, Missões e Observadores Militares” de 2023. Neste ano, 2025, pretendo lançar um novo livro.

 

Wilson de Oliveira Neto:Sua Tese de Doutorado e suas pesquisas mais recentes têm como grande recorte temático os reflexos da Segunda Guerra Mundial no Brasil. Como ocorreu sua aproximação com esse assunto?

 

Giovanni Latfalla:A minha aproximação com o assunto ocorreu quando fazia o “Curso de História Militar”, ministrado pelo antigo Departamento de Ensino e Pesquisa (DEP), do Exército, e pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). A partir do contato com fontes primárias do Arquivo Histórico do Exército (AHEx), observei que boa parte das mesmas era desconhecida dos pesquisadores brasileiros da Segunda Guerra Mundial.

 

Wilson de Oliveira Neto:Ainda sobre sua Tese de Doutorado, recentemente publicada pela Biblioteca do Exército (BIBLIEX), afirma que a aliança militar entre o Brasil e os Estados Unidos não ocorreu de forma automática, mas que foi fruto de muita negociação, especialmente pelos Generais Gaspar Dutra e Góes Monteiro. Você poderia falar um pouco a respeito dessa Tese? Quais fontes você consultou? E, principalmente, como que foi sua construção, tendo em vista a forte influência dos trabalhos de Gerson Moura?

 

Giovanni Latfalla:As fontes que eu pesquisei no AHEx mostram como foram difíceis as negociações militares entre o Brasil e os EUA, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Os dois países tinham muitas desconfianças um do outro. Os norte-americanos viam a cúpula do Exército Brasileiro como germanófila, e propensa a uma aliança com o Eixo. Uma inverdade que até hoje costumo ouvir daqueles que não estudaram o assunto. E durante o doutorado, resolvi fazer pesquisas nos EUA, em 2015, mais exatamente no NationalArchivesand Records Administration (NARA II), para acessar as fontes primárias norte-americanas relacionadas às negociações militares, sem me estender para elas ligadas à Força Expedicionária Brasileira (FEB). É bom esclarecer que fiz pesquisas nos EUA sem nenhuma bolsa de estudo ou patrocínio. Acho que consegui algumas informações muito interessantes que contribuíram para que a minha tese fosse aprovada.

Na defesa da tese, o primeiro professor da banca disse que “o Dr. Gerson Moura havia pacificado o tema do processo de alinhamento entre os dois países”. Na minha resposta eu afirmei que o Dr. Gerson Moura não teve acesso aos arquivos militares para realizar as suas pesquisas, principalmente, aqui no Brasil. Fui enfático na defesa para mostrar que este assunto não estava nem um pouco pacificado.

 

Wilson de Oliveira Neto:Uma característica marcante das suas pesquisas é o uso amplo de fontes históricas oriundas dos Estados Unidos, sob a guarda dos arquivos nacionais daquele país. Qual é a importância desse material no processo de renovação da história militar brasileira, em particular, sobre o Brasil na Segunda Guerra Mundial e das relações entre brasileiros e estadunidenses?

 

Giovanni Latfalla:A pesquisa no NARA é fantástica. É muito importante saber da procedência da fonte utilizada. Os funcionários do NARA têm a preocupação em atender o pesquisador. Grande parte das fontes inéditas que consegui, foram encontradas naquele local, inclusive aquela que mostra que os norte-americanos, e não o Governo Vargas, que sugeriram o emprego de tropas brasileiras fora do continente americano, na Segunda Guerra Mundial. Estou planejando uma nova ida ao NARA para novas pesquisas.

 

Wilson de Oliveira Neto:Um dos seus trabalhos mais recentes aborda as propostas feitas pelo governo dos Estados Unidos à gestão presidencial de Getúlio Vargas para o emprego do Exército Brasileiro em operações militares no continente americano e em outros lugares, como por exemplo, no arquipélago dos Açores ou na África setentrional, antes mesmo da entrada oficial do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 31 de agosto de 1942, ou, da criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), em 1943. Você pode falar um pouco sobre esse trabalho e suas novidades para a história brasileira?

 

Giovanni Latfalla:Inicialmente, eu estava escrevendo um artigo sobre o possível emprego da FEB como tropa de ocupação na Áustria, no pós-guerra. Aliás, fui eu que encontrei no AHEx, a fonte sobre esta proposta feita pelos norte-americanos. Entretanto, lendo alguns livros e fontes primárias, observei que os norte-americanos fizeram propostas para que o Brasil enviasse tropas para o Suriname, Porto Rico, Açores, norte da África, além da Áustria. Desconheço algum trabalho que mencione todos estes lugares, e que também tenha citado as missões militares brasileiras no Suriname e na Guiana Francesa. O esquecido Suriname era estrategicamente muito importante para o esforço de guerra dos EUA. Sem a bauxita do Suriname, a produção de alumínio dos EUA entraria em crise. Os norte-americanos enviaram soldados para lá, e sugeriram ao governo holandês no exílio, permitir que tropas brasileiras participassem da proteção daquele local. Isso não veio a ocorrer, mas o Brasil enviou uma missão militar a Panamaribo, capital do Suriname.

           

Wilson de Oliveira Neto:A FEB é um tema que também foi abordado em suas pesquisas. Como você avalia a Força Expedicionária Brasileira a partir da documentação consultada para os seus trabalhos? De que forma esse material contribui com uma renovação da visão que se tinha até então sobre a tropa brasileira? O que existe de novo a seu respeito?

 

Giovanni Latfalla:Existem muitos livros e artigos sobre a FEB. A produção historiográfica sobre ela é bem extensa. Eu, desde o início de minhas pesquisas, estou sempre procurando algo de novo, ou pouco conhecido. O que mais me chamou a atenção foi descobrir, não com fontes primárias, mas com a leitura de um livro escrito por um observador militar do Exército, no front desde o fim de 1943, que o 1º escalão da FEB deveria ter sido enviado para o norte da África para receber equipamento e treinamento, e que, de maneira improvisada, desembarcou em Nápoles. Militares brasileiros e norte-americanos aguardavam a nossa tropa no norte africano. Com a FEB a caminho de Nápoles, os observadores militares brasileiros tiveram que se deslocar às pressas para iniciar os preparativos para receber o 1º Escalão. Isso explica alguns dos muitos problemas que a FEB teve no seu início na Itália.

 

Wilson de Oliveira Neto:No marco do aniversário de 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, quais contribuições para a compreensão do presente suas pesquisas oferecem? É possível extrair lições para as atuais relações internacionais entre Brasil e Estados Unidos por meio da construção de uma aliança militar entre ambos durante a Segunda Guerra Mundial?

 

Giovanni Latfalla:As minhas pesquisas dão uma pequena contribuição para o estudo sobre a participação da FEB na Segunda Guerra Mundial. Nós temos pesquisado de primeira linha sobre este tema. Acho que muito ainda tem que ser feito a respeito. Eu pretendo continuar, com todas as minhas limitações, a divulgar e preservar os feitos da Força Expedicionária Brasileira. Não é algo fácil de ser realizado. Mas, é uma missão a ser cumprida.

Neste momento, é preocupante o relacionamento entre o Brasil e os Estados Unidos, em todos os níveis, inclusive o militar. Durante os anos de 1940, os norte-americanos cogitaram a hipótese de atacarem o Brasil. Felizmente, o bom senso e a diplomacia de alto nível dos dois países impediram que um conflito armado viesse a ocorrer. Parece que o bom senso e a diplomacia de alto nível estão em falta neste momento.

 

 

Recebido em 01/07/2025.

Aceito em 10/08/2025.



[1]Professor da Universidade da Região de Joinville (Univille). Brasil. E-mail: wilson.o@univille.br | https://orcid.org/0000-0002-6439-661X