Horóscopos, monges tibetanos e raios da morte

Wilson de Oliveira Neto[1]

 

 

KURLANDER, Eric. Os monstros de Hitler: uma história sobrenatural do Terceiro Reich. Tradução: Gisele Eberspächer. Rio de Janeiro: Zahar, 2025, 552 p.


 

 

Criado pelo autor de HQs Mike Mignola, Anungun Rama é um ser de aparência diabólica e extraordinariamente grande, musculoso e forte, filho de um demônio com uma feiticeira. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939/45), ainda criança, foi trazido para o nosso mundo por uma equipe de militares e ocultistas nazistas liderada pelo bruxo siberiano GrigoriRasputin, em um experimento que envolveu magia e ciência fronteiriça nas ruínas de uma antiga capela cristã localizadas nas ilhas britânicas. No entanto, uma força-tarefa aliada, conduzida pelo professor TrevorBruttenholm, consultor do governo dos Estados Unidos para assuntos sobrenaturais, frustrou a intentona nazista, resgatando o pequeno demônio, que foi batizado com o nome Hellboy. Educado em uma ética humanista e treinado em técnicas de combates armado e desarmado, ele atua junto ao governo norte-americano na luta contra as forças das trevas.

As relações entre o nazismo e o sobrenatural são um tema explorado exaustivamente pela indústria cultural, por meio da arte sequencial, do cinema e das plataformas de streaming, como por exemplo, a Netflix. Periodicamente, o assunto é atualizado, sendo uma evidência da sua popularidade entre o público. Contudo, para além da licença poética incomensurável de obras e personagens, como Hellboy, as ciências fronteiriças e o sobrenatural foram populares na Alemanha, entre o final dos oitocentos e a primeira metade do século passado. Muitas das suas ideias e práticas foram adotadas oficialmente pelo regime nazista e gozaram de prestígio entre diversos membros da elite nacional-socialista, empregando-as em políticas de Estado ou em planos militares durante a Segunda Guerra Mundial (Kurlander, 2025).

Entretanto, o que nessa história foi “mito” e “realidade”? Para além das camadas de charlatanismo, escárnio, especulações e usos do passado, é possível narrar uma história das relações entre o nazismo, as ciências fronteiriças e o sobrenatural? O livro Os monstros de Hitler: uma história sobrenatural do Terceiro Reich, escrito pelo historiador estadunidense Eric Kurlander (2025) pretende responder essas e outras questões relacionadas aos usos do ocultismo e das pseudociências pelo nazismo, das suas origens como movimento político em Munique, em 1919, ao fim da Segunda Guerra Mundial na Europa, em maio de 1945. Graduado em História pelo BowdoinCollege (EUA) e pós-graduado também em História por Harvard, o autor é professor na Universidade de Stetson, em DeLand, Flórida, sendo especializado em história alemã, com ênfase no nazismo. Embora Os monstros de Hitler seja sua primeira obra publicada no Brasil, o autor possui diversos livros já publicados em língua inglesa sobre a Alemanha e o nacional-socialismo.

O movimento-regime nazista e seus sujeitos nos legaram inúmeras fontes que evidenciam as apropriações e os usos do sobrenatural, principalmente, durante o Terceiro Reich. Segundo Kurlander (2025), desde a década de 1920, tal relação é constatada por autores alemães e estrangeiros das mais diversas origens disciplinares, políticas e mesmo místicas. Em se tratando de pesquisa histórica, o autor situa os estudos entre os “revisionistas” e os “pós-revisionistas”, sendo desta segunda categoria da qual Kurlander (2025) faz parte e que leva a sério “as raízes sobrenaturais do nazismo”, sendo sua tese que:

 

[...] nenhum outro movimento político de massas [...] recorreu de forma tão consciente e consistente ao que chamo de ‘imaginário sobrenatural’ [...] para atrair uma geração de alemães e alemãs que buscavam novas formas de espiritualidade e explicações inovadoras para o mundo, situadas entre a verificabilidade científica e as verdades batidas da religião tradicional (Kurlander, 2025, p. 9).

 

Para tanto, o autor seguiu um percurso iniciado com a contextualização do sobrenatural na sociedade alemã nos contextos do Império (1871-1918) e da República de Weimar (1919-1933) e seus desdobramentos durante o regime nacional-socialista (1933-1945) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sem cair, no entanto, em um reducionismo sobrenatural acerca do Terceiro Reich. Assim como nos trabalhos de Michael Mann (2008) e Robert Paxton (2023), Kurlander (2025) leva a sério o entendimento que os nazistas faziam do mundo ao seu redor e dos fundamentos das suas práticas e representações, com destaque para a forte influência do pensamento Völkisch, compreendido como uma das expressões do nacionalismo romântico alemão situado entre o final do século XIX e a instalação do regime nacional-socialista. Contudo, não “havia um ‘caminho especial’ inerente entre ocultismo ou paganismo do século XIX e o nacional-socialismo”, adverte Kurlander (2025, p. 23). Pois, segundo o autor, “todos esses fenômenos e práticas culturais eram notavelmente difundidas na Alemanha [...] e nunca se limitaram exclusivamente à direita racista e protofascista” (Kurlander, 2025, p. 23).

Entre o final da década de 1880 e 1914, ocorreu a popularização das ideias e práticas sobrenaturais na Alemanha e Áustria por meio das ciências fronteiriças, do folclore germânico e do ocultismo. Na óptica de Kurlander (2025), esse processo está relacionado com fatores sociais e políticos próprios da Alemanha recém-unificada. Do ponto de vista social, o mundo moderno emergiu, em parte, a partir de um desencanto em relação às religiões tradicionais. Por outro lado, especialmente, no contexto dos oitocentos, observava-se o surgimento de novas formas de religiosidade cotidiana, expressas pelo mito e na crença renovada no destino e nos milagres (Kurlander, 2025).

A partir dessas circunstâncias, surgiram no antigo Império Alemão e na República de Weimar diversos grupos esotéricos, muitos dos quais ligados ao movimento Völkisch, com seus eventos públicos, reuniões fechadas e publicações. Um desses grupos foi a Sociedade Thule, fundada em 01 de janeiro de 1918 por Rudolf von Sebottendorf, Walter Nauhaus e Walter Deicke. Até o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a Thule era mais uma obscura sociedade esotérica existente na Alemanha, com suas reuniões de estudo e jornal próprio, o “VölkischerBeobachter”. Contudo, a derrota alemã no conflito e a Revolução Alemã (1918-1923) instigaram a radicalização política da Sociedade Thule e o aumento da sua presença no cenário político bávaro da época. Pertencente ao espectro político da extrema-direita, a Thule passou a defender um antissemitismo racista, a restauração do Império e a luta armada contra a República Soviética da Baviera, ao ponto de, em 1919, Sebottenborf criar o Corpo de Voluntários Oberland. No interior da Thule, existia o Círculo dos Trabalhadores, a partir do qual foi fundado, em 1919, o Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP), herdeiro político e ideológico da Sociedade Thule.

Como é possível constatar na bibliografia geral sobre o Nazismo, a exemplo, do primeiro volume da trilogia de Richard Evans (2014), o DAP era um partido minúsculo sediado em Munique e que necessitava urgentemente de um líder carismático. Em 1919, Adolf Hitler ingressou na DAP, tornando-se esse líder. Apesar das disputas intrapartidárias com os fundadores do próprio partido e do seu interesse mais pragmático que doutrinário no ocultismo, Hitler manteve a influência do pensamento político völkisch, além de promover um imaginário sobrenatural nazista, expresso por meio da releitura do paganismo nórdico, das religiões orientais e da cosmologia völkisch.

O contexto cultural em que Adolf Hitler ingressou na política bávara e ascendeu ao poder na Alemanha foi marcado por uma intensa influência das ciências fronteiriças e do ocultismo sobre os alemães, podendo ser constatada na imprensa e na indústria cultural da época. Hitler contou com o apoio de pessoas influentes no meio sobrenatural da época, que por meio do horóscopo, da parapsicologia e das previsões, foi representado como um “messias” destinado pela providência divina para salvar a Alemanha da crise e do caos. Nesse sentido, Kurlander (2025) sustenta que além de captar a atmosfera sobrenatural de seu tempo, ele a usou no sentido de beneficiar seu projeto político. Algo que, para Kurlander (2025), foi inédito.

No poder, os nazistas mantiveram, até o fim do regime, uma relação ambígua com as ciências fronteiriças e o ocultismo. Conforme Kurlander (2025) explica, essa característica pode ser compreendida pelo fato de que a elite política nacional-socialista era adepta das práticas pseudocientíficas e ocultas, a exemplo de Heinrich Himmler ou Rudolf Hess. Logo, entre 1933 e 1945, ora o ocultismo era combatido, ora ele era adequado às diretrizes do regime, que procurou diferenciar charlatanismo de trabalho “sério”.

A partir do início da Segunda Guerra Mundial na Europa, os órgãos do governo nazista responsáveis pelo combate ao ocultismo adotaram a seguinte postura: denunciar o charlatanismo e as doutrinas incoerentes com o nazismo, ao mesmo tempo em que protegeram o ocultismo “científico”. Porém, ao fim e ao cabo, a guerra tornou o ambiente institucional mais hostil ao combate contra o charlatanismo, especialmente, relacionado às ciências fronteiriças.

Segundo Brian Ford (1973), durante a Segunda Guerra Mundial, os cientistas alemães foram pioneiros em diversas plataformas tecnológicas que resultaram nas primeiras gerações de aviões a jato, foguetes e mísseis, além de fuzis automáticos e outros artefatos militares. Paralelamente, as pesquisas militares a partir de ciências fronteiriças não somente foram estimuladas pelo regime, como também foram financiadas e prestigiadas por diversos líderes nazistas. Astrologia, parapsicologia, antroposofia, radiestesia, agricultura biodinâmica e cosmologia glacial foram adotadas por Hitler com convicção, sendo o nexo entre os pensamentos científico e religioso nazistas. Embora rechaçadas pela ciência tida como “tradicional”, as ciências fronteiriças e o imaginário sobrenatural contribuíram com o expansionismo e o recenciamento demográfico no leste europeu, que na prática, resultaram na escravização e limpeza étnica de diversas populações, entre as quais ciganos, eslavos e judeus (Kurlander, 2025). “Imersos em teorias científicas fronteiriças, os nazistas possuíam uma visão totalizante da ciência racial e da eugenia que ia muito além de qualquer aplicação razoável da biologia evolutiva ou da genética humana tal como elas se apresentaram nas décadas de 1930 e 1940” (Kurlander, 2025, p. 340).

Nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, predominou no imaginário sobrenatural alemão a dicotomia entre a vitória final e uma derrota total inspirada no Crepúsculo dos Deuses da mitologia nórdica. Kurlander (2025) constatou um “renascimento” do sobrenatural, com os seguintes desdobramentos: busca desesperada por armas excepcionais (rios antigravitacionais ou da morte, além de veículos especiais, tais como “O Sino”), que de forma milagrosa, mudariam os rumos da guerra; invocação de seres fantásticos, como lobisomens e vampiros, além de rituais de autoimolação; presságios a respeito da desintegração do Terceiro Reich e do renascimento da Alemanha no pós-guerra.

“Assim como a queda da Lua sobre a Terra havia destruído Atlântida 10 mil anos antes, a Segunda Guerra Mundial resultaria em um novo apocalipse”, explica Eric Kurlander (2025,p. 386). O autor prossegue e conclui que: “No entanto, para milhões de alemães comuns, [...] a mitologia do Ragnarök também oferecia a promessa de renascimento e redenção” (Kurlander, 2025, p. 386).

“O mito da ressureição foi um tema constante no mundo todo desde o fim da guerra”, revela Keith Lowe (2025). Paradoxalmente, a destruição causada ao longo de seis anos de conflito armado foi, em parte, interpretada como um fim de um velho mundo, do qual surgiria um mundo novo, melhor e mais justo. Segundo Lowe, em diversos lugares afetados pela Segunda Guerra Mundial, esse pensamento trouxe conforto e esperança para inúmeros sobreviventes. Nesse sentido, é possível estabelecer um nexo entre a promessa de redenção, descrita por Kurlander (2025), e um imaginário predominante no pós-guerra.

Mesmo com o término da guerra e da queda do regime nazista, o pensamento sobrenatural não desapareceu, sendo os seus intérpretes, inclusive da época nacional-socialista, reabilitados e ativos no pós-guerra, na República Federal da Alemanha (RFA). Nessas novas circunstâncias, o sobrenatural se tornou um meio para compreender e superar os anos do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, em uma espécie de “renascimento” alemão. Sem raios da morte, mas com horóscopos e monges tibetanos, como nos livros de Lobsang Rampa.

 

Referências bibliográficas

EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. 2. ed. Tradução: Lúcia Brito. São Paulo: Planeta, 2014.

FORD, Brian. Armas secretas alemãs: plataforma para Marte. Tradução: Edmon Jorge. Rio de Janeiro: Renes, 1973 (História Ilustrada da 2ª Guerra Mundial: armas; v. 1).

LOWE, Keith. O medo e a liberdade: como a Segunda Guerra Mundial nos transformou. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2025.

MANN, Michael. Fascistas. Tradução: Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. 2. ed. Tradução: Patrícia Zimbres; Paula Zimbres. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2023.

 

Recebido em 28/05/2025.

Aceito em 14/08/2025.



[1]Professor da Universidade da Região de Joinville (Univille). Brasil. E-mail: wilson.o@univille.br | https://orcid.org/0000-0002-6439-661X