A ditadura civil-militar, a moral e os bons costumes
Gustavo Moisés Bortolameoti[1]
Denis Fernando Radun[2]
QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2021. 416p.
Há 60 anos, inaugurou-se no Brasil um trágico período ditatorial. Mesmo após o seu fim oficial em 1985, até hoje, certos impactos daquela ditadura civil-militar são visíveis, inclusive no que se refere à comunidade LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros, Queer, Assexuais, Pansexuais, Não-binários).
Durante o período, as pessoas que apresentavam orientações sexuais, identidades de gênero ou outras dissidências aos padrões da época eram – além do “comum” –marginalizadas e submetidas a diversos abusos. Tais atos foram e, em alguns casos, ainda são, justificados como uma luta pela moral e pelos bons costumes. Foi um período sombrio na história brasileira, não só quanto às atrocidades cometidas, mas também pelas omissões do Estado e dos meios de comunicação acerca dos acontecimentos, principalmente nos anos que seguiram.
Diversos trabalhos já se dedicaram a tratar sobre a ditadura como um período antidemocrático da história nacional. Contudo, Renan Quinalha (2021), a partir do desenvolvimento de pesquisa com fontes plurais e de experiências pessoais, direcionou sua obra para outros aspectos dos já traduzidos por numerosos pesquisadores. No contexto de aniversário de 60 anos do golpe civil-militar de 1964, doravante, apresentamos a resenha da obra Contra a moral e os bons costumes: A ditadura e a repressão à comunidade LGBT, publicada em 2021 pela editora Companhia das Letras, como parte da Coleção “Arquivos da Repressão no Brasil”.
O texto é o fruto principal da tese de Doutorado de Renan Quinalha, advogado, estudioso e ativista de temáticas queer. Quinalha é doutor em Relações Internacionais, mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito, graduado em Ciências Sociais e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Além de pesquisador, o autor é professor de Direito da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da UNIFESP, onde também é coordenador do Núcleo TransUnifesp.
Na obra, Quinalha visa elucidar lacunas da realidade vivida por pessoas LGBT+ durante a ditadura militar, especialmente no que diz respeito às diversas dimensões das repressões morais contra grupos dissidentes de gênero e sexualidade, problematizando as censuras ditatoriais que violentavam tais populações.
O livro está organizado de forma quase cronológica, revisitando acontecimentos marcantes dos anos 1964-1985, com foco no eixo Rio de Janeiro - São Paulo, mas ainda assim abrangendo outras cidades que foram cenários para fatos relacionados à comunidade LGBT+.
A publicação conta com quatro grandes capítulos principais, e se divide em subcapítulos independentes, que direcionam o leitor a um reencontro histórico com a ditadura de 1964. Porém, sem excluir homossexuais, as travestis e as prostitutas, pessoas marginalizadas e esquecidas na retratação daquele período histórico. Os capítulos se dividem em: 1. A violência nas ruas: controle moral e repressão policial; 2. “Descobrimos que não estávamos sozinhos”: movimento homossexual na ditadura; 3. Lampião da Esquina; e 4. A censura em nome da moral e dos bons costumes. A Introdução e as Considerações Finais são, também, essenciais para a compreensão da intenção do escritor com tal trabalho.
Com uma vasta pesquisa baseada, principalmente, em fontes documentais (matérias jornalísticas, acervos privados, relatórios policiais e de outros Órgãos nacionais), o autor faz se construir um panorama das repressões da ditadura. É visível, com a escrita muito bem embasada e concisa de Quinalha (2021), como era tamanha a centralidade da temática das políticas sexuais durante os anos da ditadura brasileira, principalmente no sentido da repressão do que contrariava o presumido “normal”.
No folhear das páginas, o autor sustenta que a repressão no regime autoritário, além do medo de uma suposta ameaça comunista, ou do pânico generalizado da sociedade cis-heteronormativa de ter as cidades tomadas pelos contrários à moral e aos bons costumes, se formalizava o processo repressivo por vários outros fatores:
[...] não é adequado reduzir todo o conservadorismo moral então em voga, animado por diferentes discursos e atores, com suas múltiplas causas e manifestações, a um mero desdobramento da paranoia anticomunista dos órgãos de informação e segurança. Este foi um dentre outros tantos vértices de produção de verdades no âmbito de um sistema repressivo complexo, ainda que fosse bastante influente, no conjunto, diante da militarização crescente da gestão política. Se é verdade que todos esses segmentos se unificaram em torno do pleito por uma censura moral mais rigorosa, ao mesmo tempo cada um deles apresentava um diagnóstico e uma justificativa próprios para vocalizar suas demandas (Quinalha, 2021, p. 181).
No decorrer da obra, o autor se utiliza de falas de vítimas e de defensores do regime autoritário, deixando nítido o intuito de aviventar e expressar as proporções do que foi a época ditatorial de 1964, além de também individualizar as pessoas que sofreram aquele tempo. Em complemento, Quinalha não se apoia em generalismos para discorrer sobre os acontecimentos. Antes disso, traz destaques com os nomes e sobrenomes de homossexuais, travestis e prostitutas que fizeram parte dos fatos apurados no texto; pessoas essas que, após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, foram suprimidas pelo Estado em meio ao período ditatorial.
Além disso, o autor apresenta uma visão de que, no regime da ditadura brasileira, não somente houve uma luta contra a suposta ameaça comunista, mas também contra um inimigo interno em ascensão. Quinalha fala de uma repressão moral, de certa forma organizada, contra as sexualidades, abarcando a contrariedade à liberdade sexual, o erotismo e a abertura para o sexo além do reprodutivo. Essas políticas (contra)sexuais eram organizadas com dois atores principais: as investidas nas ruas –abordagens policiais imotivadas (inclusive prisões arbitrárias), extorsões, abusos sexuais, variadas formas de torturas (físicas e psicológicas) e outras diversas e graves violações aos direitos humanos –e as censuras. Embora já existissem na prática, tais políticas foram elevadas ao potencial máximo na ditadura, visando a dessexualização de espaços públicos. Juntas, as abordagens nas ruas e as censuras fizeram parte de uma corrompida “harmonia” juntamente aos atos de outros órgãos estatais para coibir qualquer aspecto sexual dissidente.
Os três primeiros capítulos do livro apresentam um sobrevôo sobre as lutas dos dissidentes sexuais, tratando, principalmente, dos homossexuais, das travestis e das prostitutas, durante o regime autoritário de 1964, além de demonstrar como se deu a construção do movimento LGBT+ do Brasil, e da luta contra a censura. No capítulo 1º, A violência nas ruas: controle moral e repressão policial, os leitores são convidados a acessarem a realidade do dia a dia durante o ápice das repressões policiais no regime autoritário, repressões essas direcionadas àqueles que apresentavam qualquer tipo de dissidência sexual ou contrariedade a moral. O autor demonstra, de forma quase palpável, a sensação de insegurança –e resistência –que pairava nos guetos: “Monique tirou para mostrar ao jornalista e afirmou: Eu não ando com navalha, faca, gargalo de garrafa na bolsa, revólver, nada disso. Só ando com gilete. É a minha defesa contra a polícia” (Quinalha, 2021, p. 50-51). Ainda, fica nítida a compreensão de quais eram os alvos preferidos das polícias da moral e dos bons costumes:
As travestis eram, sem dúvida, o alvo privilegiado da repressão moralizante levada a cabo pelas forças de policiamento que circulavam pelas ruas. Primeiro, porque elas, diferentemente de alguns homossexuais que escondiam a orientação sexual no armário, não podiam ocultar sua identidade de gênero do mesmo modo como gays e lésbicas (Quinalha, 2021, p. 54-55).
No capítulo em sequência, “Descobrimos que não estávamos sozinhos”: movimento homossexual na ditadura, se veem apresentados os que, à época, seriam os primeiros passos do que hoje conhecemos por movimento LGBTQIAPN+ organizado no Brasil. Quinalha constrói tais aspectos fazendo complementos com diversas vertentes, trazendo uma interseccionalidadeímpar para o texto:
O já mencionado projeto de abertura “lenta, gradual e segura” articulado pelo governo Geisel, se não significou uma efetiva democratização da estrutura do Estado e do sistema político, certamente coincidiu com e favoreceu a organização autônoma de setores vulnerabilizados. Essa coincidência histórica de grupos que se organizavam ou se rearticulavam depois de uma longa quarentena dos direitos civis e políticos produziu trocas e articulações decisivas para a redemocratização(Quinalha, 2021, p. 121-122).
Na sequência do 3º capítulo, o autor apresenta os impactos do jornal Lampião da Esquina, parte da então imprensa “rosa-choque”, abordando desde sua ascensão e do fatídico arquivamento do inquérito policial que investigou o Lampião, até o sucumbir às repressões da ditadura. “Nas palavras da militante identificada como Teka, até o LAMPIÃO aparecer, não existia nada, mas nada mesmo, comparável nas bancas, nos jornais, no cinema, na tevê” (Quinalha, 2021, p.152).
Um importante destaque fica para o capítulo 4º do livro. Em A censura em nome da moral e dos bons costumes, somos apresentados ao que foi a censura na prática. Logo nas primeiras páginas do capítulo, o autor apresenta alguns números da atuação dos censores da ditadura. Segundo o jornalista Zuenir Ventura, “cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovelas” foram censuradas (Quinalha, 2021, p. 187).
É visível o aprofundamento da pesquisa feita pelo autor, especialmente no campo da censura, ao passo que as diversas nuances dos acontecimentos, bem como as intenções e estratégias usadas pelos censores, foram aprofundadamente elaboradas e colocadas em observação nas páginas da obra. Fica nítido para o leitor como se dava a elaboração e a imposição dos atos de censura –em livros, no cinema, na televisão, no teatro, na música, em revistas e jornais –,até as relações mais subjetivas e internalizadas foram usados para “justificar” tais atos.
A obra resenhada, mormente, se trata de um conjunto de interpretações de fontes históricas e historiográficas, que busca evidenciar aspectos relevantes da relação entre os dissidentes de gênero/sexualidade e a ditadura no Brasil. Além disso, atualiza o debate possibilitando a comparação de vivências passadas e atuais dos grupos marginalizados foco do livro.
Também, pelo vasto currículo do autor na seara do Direito –em especial os Direitos Humanos –se apresenta grande carga jurídica nos escritos de Quinalha, permitindo que a temática seja atravessada pelas áreas da História e do Direito e nos provoca a questionar as maquiagens adotadas por discursos neofascistas que desejam a todo custo a volta do autoritarismo (e) dos militares ao comando da República brasileira. Igualmente, nos instiga a perceber os traços desta mesma maquiagem presente em discursos dominantes que sufocam direitos e matam travestis, transexuais, homossexuais e prostitutas dia após dia nos quatro cantos do país.
Recebido em 01/11/2024.
Aceito em 20/12/2024.
[1]Graduando em Direito. Universidade da Região de Joinville - Univille. Joinville, Santa Catarina, Brasil. E-mail: gustavo.bortolameoti@gmail.com | https://orcid.org/0009-0004-7965-8303
[2] Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - Univille. Joinville, Santa Catarina, Brasil. E-mail: d.denis@univille.br| https://orcid.org/0000-0001-5004-1036