Os direitos humanos e as permanências do regime civil-militar (1964-1985) no sistema carcerário: entrevista com João Marcos Buch, Desembargador Substituto do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina
Denis Fernando Radun[1]
Gustavo Moisés Bortolameoti[2]
Apresentação
A entrevista ora apresentada foi realizada no dia 31 de outubro de 2024, na sede do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em Florianópolis. A entrevista foi gravada em áudio utilizando dois gravadores digitais disponibilizados pelo Centro Memorial e Laboratório de História Oral da Universidade da Região de Joinville (LHO/Univille).
O primeiro andar da sede do Tribunal de Justiça abriga o gabinete do Desembargador João Marcos Buch, jurista nacionalmente conhecido pela defesa incontornável dos direitos humanos. Diferentemente da vista para o mar, o cenário que enfrenta a janela do Desembargador é a paisagem do Morro do Mocotó, território cultural de uma “Comunidade Remanescente Quilombola”, com “trajetória histórica própria” marcada pela “ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” no passado colonial brasileiro (Santa Catarina, 2020; GERI/SC, 2018)[3].
Sem o fornecimento de roteiro prévio ou censura a qualquer questionamento por parte do entrevistado, dialogamos sobre temas pertinentes aos direitos humanos no Brasil, em geral, e ao sistema prisional, em particular. Além disso, é importante ressaltar que a entrevista foi produzida para o Dossiê História, Democracia e Diversidade, da Fronteiras: Revista Catarinense de História, publicação temática alusiva à trajetória de 60 anos do golpe militar e a instalação de uma ditadura civil-militar que vigorou entre os anos de 1964 e 1985. Aliás, também em 2024, João Marcos Buch completou 30 anos de magistratura e vê a sua atuação como a de “alguém que está incluído no continente dos direitos humanos, que entende que precisa legitimar a sua atuação a partir da defesa incondicional dos direitos e garantias individuais, porque o [...] juiz não é eleito, ele é concursado e aprovado, então a legitimidade dele vem daí”.
Na entrevista, destacam-se os diálogos sobre as permanências da ditadura civil-militar no Brasil mesmo após a reabertura democrática. Nesse âmbito, o entrevistado refletiu sobre o papel do Poder Judiciário no período ditatorial, assim como acerca da educação em direitos humanos e da gestão prisional do Brasil, particularmente no que toca às populações minorizadas. A esse respeito, João frisou as lutas pelo reconhecimento dos direitos da população LGBTQIAP+ no ambiente carcerário, sublinhando que, “dentro do sistema prisional, a violência contra as pessoas LGBT reflete tudo aquilo que a gente vive na sociedade livre, em geral, só que de uma forma mais cruel”.
A entrevista foi atravessada pela visão de humanidade de João, popularmente conhecido como o “juiz dos direitos humanos”, bem como pelo reconhecimento das suas responsabilidades e limites no exercício do poder. O Desembargador revisitou sua trajetória como magistrado e tratou dos enfrentamentos que fez e que precisa fazer ao defender os direitos humanos e a Constituição. Em suas palavras:
[...] dentro do sistema isso é muito cruel, porque existem determinados momentos em que você pensa: será que eu estou ficando louco? Será que só eu estou vendo? Como é que ninguém está vendo isso? E além de tudo, além de não verem, eu estou sendo atacado por ver. Então, isso é algo que sempre me afetou, muito fortemente. Quando você deveria receber [...]: vá em frente porque esse é o sentido da tua função. Isso nunca aconteceu, e pelo contrário, existe uma refração, uma crítica, uma tentativa de desmobilização daquilo que você é. Isso acontece todos os dias. Durante todos esses anos. Não houve um dia em que foi tranquilo (Buch, 2024).
Um dado importante é que a entrevista foi realizada em outubro de 2024, após o Desembargador ter participado da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados Federais, oportunidade em que João foi ouvido pelos parlamentares acerca da proposta de legislação que amplia o programa de parcerias público-privadas para a construção e gestão de presídios e penitenciárias[4].
Encerramos a entrevista falando sobre o romance de autoria de João, intitulado Tortura. A obra versa sobre a permanência do pensamento autoritário na atuação cotidiana das forças de segurança pública e sobre os dilemas que suscitam a prática da tortura. Nesse contexto, abordamos o lançamento do recente documentário Palavra Presa, dirigido por Ilaine Melo, que apresenta recortes de seis anos de atividade do então juiz titular da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville e Corregedor do Sistema Prisional da mesma cidade[5].
Esperamos que a entrevista seja uma contribuição para os campos de conhecimento da História e do Direito, especialmente em seus cruzamentos interdisciplinares na promoção dos direitos humanos, na defesa da democracia e no combate a todas as formas de preconceito e discriminação historicamente perpetradas no passado e no presente brasileiro.
Resumo da biografia acadêmica de João Marcos Buch
Desembargador Substituto do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Mestre em Hermenêutica Constitucional, pós-graduado em Criminologia e Política Criminal. Atuou por quase 15 anos como juiz das execuções penais e corregedor do Sistema Prisional de Joinville/SC. Visitou e inspecionou unidades prisionais do país, bem como na Alemanha, Itália, França, Inglaterra e EUA, onde pode avaliar as políticas públicas relativas aos direitos fundamentais. É formador da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados e contribui como juiz convocado pelo Conselho Nacional de Justiça em temas envolvendo o sistema de justiça criminal e execução penal. Membro da Associação Juízes para a Democracia. Membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros. É autor de numerosos títulos da área das execuções penais, de romances e crônicas.
Transcrição da entrevista[6]
Denis Radun:Em primeira pessoa, quem é João Marcos Buch e quem é o desembargador substituto João Marcos Buch?
João Marcos Buch:Não existe uma possibilidade de divisão entre João Marcos e João Marcos, desembargador substituto. Nós somos muitos. Cada um de nós, na minha opinião, cada um acerta e erra. Neste momento, eu sou um João Marcos que está conversando com vocês. A cada momento, novos... Novos Joãos e Marcos chegam. O que imagino é que eu, João Marcos, pessoa, sou alguém com as fragilidades que todos os seres humanos possuem, com as alegrias e com as tristezas, com as frustrações, com as conquistas, e isso, se eu não compreender muito bem como isso funciona na minha vida, eu não serei um bom profissional, não serei um bom desembargador substituto, porque obviamente vai refletir nessa minha atuação como desembargador substituto. Ao se falar de desembargador substituto, aí fica menos difícil. Seria alguém que está incluído no continente dos direitos humanos, que entende que precisa legitimar a sua atuação a partir da defesa incondicional dos direitos e garantias individuais, porque o magistrado juiz não é eleito, ele é concursado e aprovado. A legitimidade dele vem daí. Então, eu diria assim: o João Marcos (pessoa) é alguém, é um sonhador, que busca a felicidade. E o João Marcos (desembargador substituto) é alguém que trabalha a serviço desse João Marcos sonhador.
Denis Radun:E, por que juiz?
João Marcos Buch:Por que juiz, né? Certa vez, me perguntaram assim: por que os juízes são arrogantes? E a minha resposta foi: por que os arrogantes desejam ser juízes? Tenho que ter essa concepção. Mas, acredito que essa não é a característica que predomina na minha personalidade, a da arrogância. Espero, aliás, não ser; e tento desconstruir todos os dias qualquer resquício da arrogância que exista no meu ser. Mas, por que juiz? Porque foi o caminho que durante a faculdade de Direito eu percebi que seria onde eu conseguiria desenvolver as minhas ideias, desenvolver aquilo que eu defendia, que sempre foi no movimento estudantil, os projetos coletivos, de vida, justiça social. Então, foi na magistratura... Entrei em contato, durante a faculdade, com juízes que me serviram de referência, e que talvez, se membros de outras carreiras jurídicas, advocacia, Ministério Público, Defensoria, tivessem aparecido talvez esse não tivesse sido o meu caminho. Mas, quem apareceu e quem, eventualmente, busquei como referência foram alguns juízes, e isso fez com que eu seguisse por esse caminho, porque através da magistratura, em contracorrente, vai se legitimando todos os dias na garantia dos direitos individuais e assim por diante.
Denis Radun:Neste ano de 2024, você completou 30 anos de magistratura. Seu trabalho é reconhecido nacionalmente como o trabalho de um “juiz dos direitos humanos”. Título esse que teve evidência pela sua atuação como juiz corregedor do sistema prisional de Joinville e também como titular da Vara de Execuções Penais. Além de ter trabalhado em inspeções e mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça. Nos anos 20, do século XXI, o que significa ser um “juiz dos Direitos Humanos”?
João Marcos Buch:É absolutamente uma luta diária. Diária, porque o Poder Judiciário é formado, e aí não vai qualquer crítica pessoalizada, absolutamente, mas é formada, é uma estrutura formada a partir de uma sociedade patriarcal, colonialista, escravocrata. O Poder Judiciário, dentro dos Poderes da nação, talvez seja o mais ortodoxo, o mais conservador [inaudível]. Você deve defender os direitos humanos, dizer que as suas decisões têm que passar pelo filtro do Direito Constitucional, dos tratados e pactos internacionais que envolvem os direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário e deve seguir. E isso envolvendo estratos da sociedade que são absolutamente invisibilizados, absolutamente violados, e que realmente o Poder Judiciário não abre seus olhos para isso. Então, ser um juiz defensor dos direitos humanos, perante a sociedade em geral não é tão difícil, porque você exerce um cargo de poder, tem as suas garantias, e as pessoas, em tese, elas têm um temor reverencial, pelo fato de você ser um magistrado, um juiz. Então, você tem que ter consciência disso, que é por isso que talvez as pessoas te sorriem e abram as portas; sabendo que se não fosse em razão desse cargo essa porta não seria aberta. Mas enfim, agora, dentro do sistema isso é muito cruel, porque existem determinados momentos em que você pensa, será que eu estou ficando louco? Será que só eu estou vendo? Como é que ninguém está vendo isso? E além de tudo, além de não verem, eu estou sendo atacado por ver. Isso é algo que sempre me afetou, muito fortemente. Quando você deveria receber uma postura de dizer: vá em frente porque esse é o sentido da tua função. Isso nunca aconteceu, e pelo contrário, existe uma refração, uma crítica, uma tentativa de desmobilização daquilo que você é. Isso acontece todos os dias. Durante todos esses anos. Não houve um dia em que foi tranquilo.
Denis Radun:Nem nessa segunda década do século XXI...
João Marcos Buch:Especialmente.
Denis Radun:O senhor falou, será que todos estão loucos? O senhor é convidado a ministrar muitas aulas e palestras. Está em grandes universidades pelo Brasil todo. O senhor trabalha intensamente na formação de magistrados, e também está na escola pública conversando com adolescentes...
João Marcos Buch:Subindo o morro do Mocotó...
Denis Radun:Subindo o Morro do Mocotó, que nos olha. Como é que o senhor percebe a educação e os direitos humanos? Qual é o papel da educação em direitos humanos? Como é que o senhor vê essa educação hoje, e ao longo dessa carreira?
João Marcos Buch:Como não sou educador de formação, então é muito opinativo o que digo. Não existe educação em direitos humanos porque se tivesse existido educação em direitos humanos, nós não estaríamos enfrentando o que estamos enfrentando o tempo todo. As pessoas não têm absolutamente noção do que são os direitos humanos. Elas não sabem das lutas, das conquistas, elas acreditam que tudo foi, nasceu assim. É porque é. Porque hoje a mulher tem o direito de votar, porque é assim, uma coisa natural. Não imaginam que foi uma luta, uma luta de sangue! Esses dias eu estava fazendo algumas reflexões, inclusive no dia das eleições[7], em razão do resultado das eleições, que eu digo: se as pessoas tivessem educação, tivessem memória, sobre o que foi a ditadura, sobre o que foi a história do nosso país, talvez essas eleições não tivessem tido esse resultado que tiveram. Quando criança, no final da ditadura, quando era o Figueiredo o presidente, eu me lembro do meu pai ao telefone, criticando o Figueiredo, e falando horrores do governo, da ditadura, e a minha mãe dizia assim: Alceu - o nome do meu pai - isso não se fala pelo telefone, não pode falar pelo telefone, não fale isso pelo telefone. E ele não dava bola, ele sempre falou, e por sorte ele nunca foi interceptado. Mas, aquilo introjetou em mim a ideia do que é realmente liberdade. Você não tem liberdade para falar, para criticar um governo com pessoas desaparecendo no horror da ditadura, que o Marcelo Rubens Paiva também retrata. Nós vivemos em um país que não teve educação em direitos humanos. Hoje, como ela está? Eu vejo que existem muitas pessoas tentando, muitos educadores, muitos formadores, tentando colocar esse conhecimento na cabeça das crianças, dos adolescentes, dos jovens, em todos os ambientes. Sempre você vai encontrar. Mas, não há uma estruturação disso. Uma estruturação como, por exemplo, a Alemanha faz sobre o nazismo. Está na grade curricular do adolescente com 12 anos, se eu não me engano, ele tem aula sobre o nazismo, ele vai em campo de concentração. Daí ele cresce sabendo o que foi aquilo. Então, na minha opinião, como está a educação em direitos humanos no Brasil atualmente? Ela não está, porque ela não existe!
Denis Radun: O senhor mencionou a ditadura, e a gente entra agora no segundo bloco falando um pouco desse período que, neste ano [2024], completa 60 anos do golpe militar, que deve ser rememorado. Depois do fim da ditadura, em 1985, há uma transição, em 1988, a Constituição. A Constituição é uma Constituição democrática, com valores democráticos e republicanos. Mas, que permanências desse período, de 1964 a 1985, o senhor enxerga? Quais são as permanências dessa ditadura, tanto em geral quanto no sistema prisional? O senhor falou da prisão política, como é que isso refletiu no sistema carcerário e com quais permanências a gente convive desse período?
João Marcos Buch:Em caráter mais amplo, penso que as permanências são das castas, das elites, que nunca, eles nunca perderam nada. Os grandes latifúndios e os grandes conglomerados, os ricos continuaram ricos. Porque essas pessoas nunca sofreram na ditadura. Elas sempre fizeram parte desse poder. Dessa promiscuidade com o poder. Então, elas continuaram junto ao poder o tempo todo, especialmente no sistema de justiça criminal e penitenciário. A partir de algumas leituras, não um estudo muito aprofundado, mas algumas leituras e algumas vivências, a partir do momento em que houve a reabertura democrática nos anos 1980 a 1985... em que os militares tiveram que se retirar do poder, essa força foi para a polícia militar. E a polícia militar é uma polícia da ditadura. Está no seu DNA. Ela sai para a guerra, para a luta. E não para proteção integral, indistinta de todas as pessoas. E volto a insistir, quando eu falo sobre a polícia militar, eu tenho que reconhecer que não é a pessoalização, e que, as vezes em que a minha vida ficou em risco, foi a polícia que me protegeu e que manteve a minha integridade. Então, eu já andei escoltado e foram essas instituições da polícia que fizeram com que eu conseguisse seguir em frente. Eu tenho que reconhecer. Porém, na minha opinião, houve uma permanência da ditadura nas estruturas das forças públicas, especialmente na polícia militar, que trouxe toda aquela ideia, da opressão, do cerceamento, da violência, para todos. Esse todos muito bem selecionados. Então, essa permanência dentro do Poder Judiciário, eu também me pergunto: onde esteve o Poder Judiciário durante a ditadura? Quem foram os juízes?
Denis Radun:Existiram juízes no Brasil?
João Marcos Buch:Exato. E os filhos desses juízes, que hoje são juízes, como eles se comportam? Nós temos instituições públicas aí com nomes de pessoas, não necessariamente do Poder Judiciário, mas de pessoas que foram absolutamente infiltradas em prol da ditadura, dos militares e que são honradas. Isso não foi revisto ainda.
Denis Radun:Falando de revisão eu quero perguntar sobre o papel da Lei de Anistia: simbolicamente, esse esquecimento combinado, esse esquecimento legislativo. Criou-se uma norma que determina o tempo, o tempo do esquecimento. Então, simbolicamente ou pragmaticamente, também no cotidiano, que reflexos da Lei da Anistia é possível ver na operação do Sistema Penitenciário e do Sistema de Justiça Criminal?
João Marcos Buch:Você diz anistia em geral ou anistia na época da ditadura para que houve essa negociação e transição para que os desterrados voltassem?
Denis Radun:Essa em que alguns fossem punidos e outros não...
João Marcos Buch:Hoje, se você olha com mais distanciamento para algumas situações, consegue fazer um juízo de valor, por exemplo, vamos falar sobre a segunda guerra, o nazismo e tudo mais. Então, consegue imaginar que se eu fosse um alemão, naquele período, será que eu seria nazista ou será que eu não seria? Eu acredito que eu não seria, e que eu tomaria [algumas] decisões e outras não. Eu seria a resistência. Já fiz muitas reflexões sobre isso. Em razão de minhas origens eu acredito que seria isso. Nessa questão da ditadura e desse grande acordo de anistia, eu não sei o que eu defenderia na ocasião. Se eu não diria “vamos passar por cima disso” e “vamos olhar para a frente e esquecer tudo o que aconteceu”. Eu não sei. Não saber não significa que eu não possa fazer um juízo de valor, muito pessoal de que, talvez, esse acordo tivesse que ser rompido porque ele incluiu crimes contra a humanidade não pode, e não poderia... Então, militares, pessoas que praticaram todos esses crimes horrendos, eles não poderiam ter entrado na anistia. Não poderia ser tão simples assim. As pessoas não têm noção dos direitos humanos, dos crimes contra os direitos humanos, porque se tivesse essa educação, saberia que uma coisa é o João Marcos, caminhando por uma calçada, que eventualmente olha uma loja e pega uma arma, quebra a vitrine e aponta para alguém e diz: “eu vou levar esse patrimônio e eu estou cometendo um crime de roubo com violência a mão armada e eu serei julgado por isso e serei responsabilizado ou não”. Eu tenho essa possibilidade, como ser humano, como cidadão livre. Eu vou arcar com as responsabilidades, com as consequências, vou arcar, mas eu posso. Agora, o João Marcos, desembargador substituto, não tem livre-arbítrio. Ele não pode cometer um abuso. Simples assim. Eu não tenho essa opção. Eu não tenho esse poder. Aí que está: um membro do Estado, um policial, cometer esse abuso, essa tortura, é uma violência direta contra tudo que a gente significa como cidadão da nossa nação, de busca da cidadania. Então, o que houve, os crimes praticados contra a humanidade durante a ditadura, esses não poderiam ter sido anistiados. Esses têm que ser julgados, eles têm que ser responsabilizados, porque, do contrário, a gente vai repetir a história. Nós vamos repetir a história o tempo todo, porque as pessoas não têm noção do que houve, do que aconteceu. Acho que essa Lei da Anistia, naquele momento, permitiu o retorno de pessoas que tão cruelmente foram banidas no nosso país. Permitiu a retomada democrática, mas ensejou no fato de que até hoje a gente está lutando contra abuso, contra tortura, plenamente justificada por um Estado que não tem noção.
Denis Radun:O senhor falou que determinados crimes não deveriam passar dessa maneira. Onde estão os juízes na democracia, e eu falo juízes em sentido amplo, os juízes togados, concursados ou nomeados e onde estão os juízes na democracia em relação ao cometimento desses crimes?
João Marcos Buch:Onde eles deveriam estar seria a trincheira da defesa, da dignidade da pessoa humana. Os juízes deveriam ser o semáforo. O sinal vermelho, ou amarelo ou verde. Entenda-se: o Estado punitivo, o Poder punitivo, a força, deseja passar por aquela via, e o juiz vai dizer, vermelho, não vai passar. Ou, ele vai dizer: calma lá, vamos pensar melhor sobre o assunto, não seja tão afoito, sinal amarelo. Ou: tudo bem, aqui está dentro das regras, está respeitando tudo, sinal verde, pode passar. Isso é o que o juiz deveria ser. Deveria... Eu não vejo o poder judiciário como esse semáforo. Eu vejo o Poder Judiciário como um semáforo de sinal verde para o poder. Eu diria que é um sinal verde para o poder de qualquer linha ideológica. Se for a esquerda que está no poder, o Judiciário é da esquerda. Se for o centro que está no poder, o Judiciário é o centro. E se for a direita, o Judiciário é a direita. E se for a extrema-direita, o Judiciário será a extrema-direita. Então, o Poder Judiciário sempre foi se moldando ao poder da ocasião. Nunca dignificou aquilo que é a sua razão de existir mesmo, que é a defesa das minorias diante da opressão das maiorias, e assim por diante. Onde estão os juízes na democracia? Eles estão por aí, alguns lutando, lutando para que essa democracia se fortaleça.
Denis Radun:O sinal verde do judiciário parece que é um semáforo também na porta de entrada do sistema carcerário.
João Marcos Buch:E vermelho para a saída.
Denis Radun:Então, temos esse controle muito claro. Esse semáforo tem funcionado de maneira bastante eficiente no Brasil, que nos faz ocupar sempre os postos de quarta maior população carcerária do mundo. É possível relacionar esse fenômeno do super encarceramento com a ascensão da ultradireita que é saudosa do regime militar? A mentalidade e as práticas racistas, misóginas, aporofóbicas contribuem para a manutenção desse status de grande encarcerador?
João Marcos Buch:É claro que sim, mas tem algumas vírgulas. É terrível e horroroso o que a extrema-direita pratica, no sentido de gatilhos de ódio, fazendo com que o próprio oprimido não entenda que ele é uma vítima e acaba praticando, ele mesmo, opressões. É horrível. Eu tenho tentado o tempo todo praticar uma comunicação não violenta, porque de ódio nós já estamos muito colados. O Bertold Brecht sempre fala de uma história de um cidadão, de um sujeito, que estava passeando por um país inimigo. Nesse país inimigo do país dele, ele estava na calçada e encontrou com policiais, soldados, e os soldados falaram: “você tem que andar lá embaixo, na rua, no meio do barro, e não na calçada, porque você não é cidadão do nosso país”. Ele foi obrigado a andar no barro. Naquele momento, ele teve vontade de que o país dele bombardeasse e matasse todo mundo naquele país onde ele estava. Passando o tempo ele foi raciocinando e dizendo: “olha não é assim, nem todo mundo aqui é ruim, as pessoas me receberam bem, é que algumas pessoas, essas especialmente, é que me causaram isso tudo”. A conclusão que ele chegou é: quando você ver um idiota, cruze a rua e não cruze com um idiota, porque senão você pode se tornar idiota. E o ódio é isso. Você acaba entrando em uma vala terrível. Como se você for jogar xadrez com um pombo. Então, não dá... A questão é que a esquerda não compreendeu também a questão do fenômeno da violência, da superação da violência, do superencarceramento. A Lei Antidrogas é de 2006, do governo Lula, e ela que foi um dos estopins para o superencarceramento, para a seletividade, da pessoa preta e periférica. Eu percebi, por exemplo, no governo Dilma, a partir de 2011, uma vontade de desconstrução da cultura do encarceramento em massa. Eu percebi, no Ministério da Justiça, grupos de trabalho para justiça restaurativa, alternativas penais e uma força muito grande para dizer: vamos superar essa ideia de encarceramento puro e simples como ideia de justiça. Só que, é claro, veio o impeachment, o golpe de 2016, e ela foi afastada e isso tudo foi por água abaixo, foi por terra. O governo Temer paralisou. O governo Bolsonaro não só paralisou, como produziu mais legislação, como por exemplo o “embrulho anticrime” do ex-ministro, ex-juiz, atual senador e, absolutamente, com falta de competência técnica para gerir uma pasta como é o Ministério da Justiça. Ele não tinha conhecimento técnico e nem empírico algum, e ele deixou como legado um “embrulho anticrime” que é encarcerador, contraditório, conflituoso, técnico e sem análise do impacto econômico e sem análise do impacto social. A direita e a extrema-direita lançam essas pílulas milagrosas – legislativas e normativas – para satisfazer sentimentos paranoicos coletivos de vingança. E a esquerda, quando entra no poder, ou o centro, o centro-esquerda, não entende e não segue nessa linha. O que é muito complicado. Essas ações, essas condutas xenófobas, homofóbicas, aporofóbicas, e do etarismo... Tudo isso que a direita e a extrema-direita praticam, a esquerda não trabalha muito para derruir quando no poder.
Denis Radun:O senhor falou sobre a polícia militar como resquício da ditadura. E, realmente, é uma instituição que não passou pelo processo de oxigenação da Constituição, manteve a sua estrutura e acabou sendo reforçada pelas viúvas e viúvos do regime. Desde alguns anos, nós temos a implantação de diversas escolas cívico-militares pelo Brasil. Santa Catarina demorou um pouquinho, mas chegou. A gente começou o projeto na Bahia, no governo do Partido dos Trabalhadores, e se espalhou pelo Brasil. Senhor, como vê essa forma de educação?
João Marcos Buch:Um horror! Um retrocesso. Eu tenho familiares que estão com filhos iniciando o período escolar e que nós já concluímos que tem que, usando a linguagem popular, fugir da escola militar como o diabo foge da cruz. Porque sabemos, como Paulo Freire também nos ensinou, que quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor. É isso que nós queremos para as nossas crianças? A educação cujo seu objetivo é ser opressor? Porque essa disciplina, esse rigor em um ambiente que deve ser lúdico, que deve ser libertário? É um horror, é terrível. Eu considero um retrocesso enorme e espero que esse projeto não vingue, não vingue de jeito nenhum.
Denis Radun:Nós encerramos assim o nosso segundo bloco. Agora, a gente vai para o terceiro bloco de perguntas. Vamos falar um pouco mais sobre o sistema prisional e questões dos direitos humanos. Quando a gente fala de direitos humanos e sistema prisional o tema da tortura salta aos olhos. Também, é necessário compreender que o sistema, do modo como se apresenta, acaba submetendo ao tratamento desumano e cruel os próprios agentes prisionais, os policiais penais. Como o senhor avalia a violação dos direitos humanos dos trabalhadores do sistema prisional, e que modelo de gestão é capaz de resolver isso?
João Marcos Buch:Não existe um modelo de gestão capaz de resolver o sistema prisional que não seja a extinção do sistema prisional [risos]. Simples assim. Enquanto houver sistema prisional, haverá opressão, e isso [ocorre] em todos os lugares onde eu já visitei, prisões na Europa, nos Estados Unidos. As prisões sempre têm a conotação da opressão. Pode ser que tenha a sua cela individual, seu quarto, sua educação, capacitação para o trabalho, um ambiente salubre, como a penitenciária da Alemanha que já fui. Mas, sempre haverá aquela disciplina, aquele temor. Um modelo de gestão não há. Agora, uma coisa é certa, não se pode privatizar. O modelo de gestão não é público-privado, não é de cogestão, não é privado, não pode, porque há vida, é um corpo humano que está ali dentro, e que aqueles que ali estão cuidando dessa pessoa que está presa não podem objetivar o lucro. Se nós partirmos por um modelo de cogestão, o PPP [Parceria Público-Privada], é óbvio que a empresa, para sobreviver, precisa lucrar e ela vai lucrar em cima da escravização ou (re)escravização da pessoa presa. A gestão precisa ser pública, e precisa passar por transparência. Os tribunais de contas precisam agir com muita seriedade em cima dessas transparências. E os recursos humanos, entrando na questão do trabalhador, eles tinham que compreender... A gente está indo na contramão, eles tinham que compreender que o seu trabalho é de educador e não de carcereiro. Você é um agente penitenciário que cuida dos seres humanos que estão presos. Você não disciplina esses seres humanos. Você cuida e tenta educar. A formação do agente penitenciário deveria ser pedagógica e não militar, porque ela é militar. O agente penitenciário conseguiu modificar a legislação e se incluir como policial penal na contramão do objetivo da execução penal para o efeito de se equiparar à polícia. O policial penal começa a atuar e começa a ver a desgraça que é o sistema prisional. Começa a acreditar que aquilo para que ele se prestou não está funcionando, porque a coisa só piora. Ele entra num processo de adoecimento, de embrutecimento, e até mesmo de depressão, porque ele não entendeu o que ia fazer. Essas pessoas sofrem muito, acabam sendo tão vítimas quanto. Nenhuma melhoria, nenhuma redução de danos, se fará sem passar pela questão do trabalhador, sempre. A finalidade do juiz de execução penal é verificar as condições em que a pessoa que cumpre pena, e que está presa, está. E não as condições do trabalhador. Então, fica muito difícil. Muito embora, na minha atuação, sempre procurei ver essas condições e oficiar para melhorar o local onde eles dormem, para melhorar os recursos humanos, melhorar isso e aquilo, sempre apoiando em movimentos paredistas no sentido das causas, não do método, mas as causas que os policiais penais sempre lutaram eram causas justas (melhoria para o seu ambiente de trabalho, seu salário), mas essa, ao pé da letra, não é a função do juiz da execução penal.
Denis Radun:O senhor falou da polícia penal, a mentalidade do policial, que quis se tornar polícia, tanto que conseguiu. Nós vemos que a Polícia Militar também administra presídios, salvo melhor juízo, o de Porto Alegre. A privatização, a PPP, não seria uma alternativa na busca de uma efetivação de direitos humanos?
João Marcos Buch:O presídio central de Porto Alegre teve a brigada militar entrando lá em 1994, porque teve uma rebelião e os agentes penitenciários precisaram da ajuda da brigada. A brigada entrou e nunca mais saiu. Eles trabalhavam lá dentro, mas agora, pelo que eu sei, houve essa retirada. Os policiais penais teriam retomado ou estão retomando os trabalhos dentro do Presídio Central de Porto Alegre. Mas, a iniciativa privada, dentro de um ambiente tão sensível como é uma prisão, um cárcere, significa horror ao quadrado. Nós temos o expoente máximo desse sistema que são os Estados Unidos, onde eu já estive no passado, conhecendo o intercâmbio no estado da Virgínia, conhecendo algumas unidades prisionais lá. É um horror de violação dos direitos humanos. Eles são latinos, negros, islâmicos e estão presos. Há uma força muito grande da indústria de exploração dos recursos humanos de que as penas sejam maiores, para que a pessoa que vai presa seja qualificada e possa produzir de acordo com as necessidades daquela empresa que explora. Então, quanto maior a pena, maior o lucro. É por isso que os Estados Unidos da América é o país que mais encarcera no mundo. Ele não é o país menos violento do mundo. Pelo contrário, ele é um dos países que mais viola os direitos humanos no mundo dentro do sistema prisional. Não estamos nem falando de Guantánamo. É outra situação, um capítulo à parte. Mas, essa é a perspectiva que, talvez, o Brasil está. Num governo democrático, na retomada democrática, a partir de 2023, falar em privatização dos presídios é um retrocesso que nem o governo Bolsonaro conseguiu fazer. Eu espero que o governo democrático, cujo discurso do ódio foi superado pelo discurso do amor e do afeto, compreenda que esse caminho é um caminho horroroso e que, conforme os rumos políticos dos Estados Unidos – estamos aí à frente das eleições entre a Kamala e o outro. Vencendo a Kamala, ela vai seguir o caminho que o Barack Obama já seguia, de reestatização das unidades prisionais americanas: começa com as federais e depois vai para os estados. Para onde você imagina que as empresas que exploram a mão-de-obra escravizada dos mais de 3 milhões de presos dos Estados Unidos irão? Elas estão de olho no Brasil. Elas já estão querendo vir para o Brasil e uma privatização do Brasil vai implicar nisso.
Denis Radun:O senhor falou que visitou os Estados Unidos, a Virgínia, e viu o encarceramento de muitas minorias lá. Esse é o tema que eu gostaria de abordar agora. O tema das minorias, da diversidade, é tratado de maneira lateral no âmbito das políticas públicas, ou no âmbito dos próprios movimentos progressistas. A nosso ver, quando o tema é diversidade sexual e de gênero, o assunto deve ser desviado, escamoteado. Não é à toa que o Brasil ocupa as primeiras colocações no ranking de homicídios de pessoas LGBTQIAP+. E, paradoxalmente, as primeiras colocações do consumo virtual de conteúdo pornográfico envolvendo pessoas trans. Além disso, o capacitismo e o etarismo, que parecem caminhar para uma gerontofobia, ocupam pouco espaço na pauta pública. Na sua trajetória como juiz-corregedor do sistema prisional de Joinville, a questão da diversidade de gênero e orientação sexual, bem como das deficiências físicas e idosos significou algum desafio para a entrega jurisdicional, para a garantia de direitos dessas pessoas? Como essa questão é tratada no sistema prisional? Ele é um ambiente seguro para minorias, a exemplo da população LGBTQIAP+? Na sua visão, a passagem pela ditadura civil-militar de 1964 e o tratamento que foi dispensado a este passado tem alguma relação com esses tratamentos fóbicos?
João Marcos Buch:Começando pela última pergunta, se nós imaginarmos o antigo presidente que veio da área militar e que todas as palavras dele envolviam homofobia, envolviam algo sexual, é óbvio que esse recalque que ele carrega, ele carrega de algum lugar. Essa ditadura militar, esse período tenebroso do nosso país, reforçou essa questão patriarcal e machista do nosso país, da nossa sociedade e dela ocorre, na minha opinião, toda a violência de gênero. Quando a gente fala sobre violência de gênero, sobre a pauta identitária e a questão LGBTQIAP+ temos que ter a compreensão que são várias pautas, várias violações. A questão racial, a questão de gênero, a questão indígena, etária, pessoas com deficiência... são várias lutas. Todas elas estão no mesmo barco, que é o barco da luta de classes. Enquanto não houver a superação das elites e que exista uma redistribuição, nenhum desses estratos vai conseguir sobreviver. A luta é maior e envolve mais coisas. Eu não posso simplesmente lutar pelo meio ambiente. Eu não posso dizer que aquele Morro [aponta para o Morro do Mocotó] precisa ter um saneamento... Tem que ter um controle de construções para que não haja erosão, para que o Morro não venha abaixo, para que o meio ambiente não se volte contra tudo que a gente tem sofrido, sem que eu tenha consciência de como funciona uma indústria, de como essa indústria oprime o trabalhador, de como esse trabalhador. Onde não tem pão, não há paz. Eu tenho que ter essa consciência em todos esses ambientes. Isso tudo tem uma estrutura capitalista. Dito isso, dentro do sistema prisional, a violência contra pessoas LGBT reflete tudo aquilo que a gente vive na sociedade livre, em geral. Só que de uma forma mais cruel. O fundo do poço não era o fundo do poço. Tinha um alçapão, e lá embaixo você encontra as pessoas LGBT. É um desafio inglório de tentar modificar, porque imagina: digamos um homem trans que está em um presídio feminino e que ele não se sente adequado ali. Ele deseja ir para um presídio masculino. Se ele vai para esse presídio masculino, você consegue imaginar a violência que ele vai sofrer nesse presídio masculino, e vice-versa? É muito complexo e o Estado não olha para essas questões. Eu tentava, através das normativas que vinham do Conselho Nacional de Justiça, das decisões do Supremo Tribunal Federal, implementar ambientes próprios LGBT nessas unidades prisionais. Só que, por exemplo, você chegava em uma unidade prisional, que tinha 1.200 homens presos, e ouvia de determinado diretor - não todos, porque teve um último diretor que era sensacional... Nós temos que começar a pensar num espaço próprio LGBT. Deve estar acontecendo muita opressão. Eles, em geral, ficam em galerias onde tem crimes contra a dignidade sexual ou ameaçados pelo sistema. Então, vamos pensar... Aquele diretor falou assim: “não, mas doutor João Marcos, nós não precisamos aqui porque não há ninguém LGBT aqui”. Eu falei: “como não há?”. Ele disse: “não, a gente já passou perguntando nas celas e ninguém se identificou”. E falei: “ah! Então tá, então vamos acreditar”. Por decreto, o gênero humano foi cerceado. Então, a partir do momento que alguém se identifica, se declara, ela corre riscos maiores. Se ela souber que tem um espaço próprio, conhecer esse espaço, saber para onde vai, eu creio que o número de pessoas que iam se autodeclarar seria muito grande. Em alguns espaços de algumas unidades onde eu era o responsável, foram criadas galerias. Com o passar do tempo, com muita dificuldade, aqueles ambientes foram sendo aceitos, e aceitos de forma generalizada e ampla pelos carcereiros, pelos trabalhadores, pelos demais presos, naturalmente, porque eles acabavam percebendo que as necessidades daquelas pessoas eram iguais às necessidades dos outros. Eles precisavam de produtos de higiene, tinham as suas visitas familiares, as visitas íntimas, como qualquer ser humano. Naqueles espaços eu vi que as coisas começaram a funcionar. Só que não há um projeto amplo do Estado para que isso aconteça. Então, é uma violação horrível, terrível, da população LGBT dentro do sistema prisional, que o mínimo que a gente pode ter é vergonha do que está acontecendo.
Gustavo Bortolameoti:Iniciando o nosso último bloco, o quarto, que fala sobre a perspectiva do doutor sobre a democracia no Brasil contemporâneo. O senhor possui numerosas obras literárias na área do Direito. As crônicas parecem um bálsamo e, ao mesmo tempo, um grito de humanidade. Quero chamar a atenção à publicação da novela Tortura, de 2018. Nesse livro, João Roberto e o Tenente Wagner vivem sentidos de uma cena de tortura, vivenciada por vários brasileiros e brasileiras cotidianamente. Assim como o personagem João Roberto, do livro, instigado nas aulas de criminologia a refletir sobre o livre-arbítrio e as escolhas de cometer um crime, qual é a leitura do senhor acerca do exercício do livre-arbítrio em, recentemente, se pedir a volta da ditadura militar, ou de um regime ditatorial em nosso país? Assim como no fenômeno criminal, a quais fatores psicossociais o senhor atribui esse tipo de chamada?
João Marcos Buch:É uma absoluta contradição. Você ir para a frente de um batalhão do exército e gritar pela intervenção constitucional militar (que não existe) em retorno à ditadura. Sabendo que, se vivêssemos sob uma ditadura, uma manifestação nesses moldes, em frente a um exército, provavelmente, receberia uma patrola e um rolo compressor ali matando todo mundo. Dizer que eu estou exercendo o meu livre-arbítrio para me manifestar dessa forma pela volta da ditadura é uma incongruência e não se pode tolerar. É aquele dilema: não se pode tolerar quem é intolerante. Márcia Tiburi fala sobre como dialogar com o fascista. Se estão pisando no seu pé e o seu pé está doendo, você não dialoga com a pessoa que está pisando no seu pé dizendo: “com licença, por favor, vamos discutir aqui o motivo pelo qual você está pisando no meu pé enquanto ele está doendo”. Não, você empurra a pessoa para que ela não pise no teu pé. E eu diria que essa é a forma de tratar com um fascista. Empurrar essa pessoa [figura de linguagem]. Isso é fascismo, essas movimentações em frente ao exército e o que aconteceu no 08 de janeiro [de 2023]. Talvez a única falha e omissão que ainda pode ser suprida é que os mandantes e as lideranças ainda não foram responsabilizados, e precisam ser. Agora, as pessoas que lá estavam quebrando o vidro e fazendo o que fizeram, não foi uma mera arruaça. Elas desejavam a inversão da ordem democrática e a retomada da ditadura. Então, eles precisam responder por isso, e não considero que seja o exercício da livre manifestação. É o exercício da livre violência, que é o que eles praticavam.
Gustavo Bortolameoti:Ainda seguindo nessa mesma linha, como o Tenente Wagner, a tortura no sistema judiciário tem remorso? E a nossa democracia precisa expurgar essa culpa para avançar livremente?
João Marcos Buch:Não vejo remorso. Tenho 30 anos de magistratura. Remorso, tenho eu quando vejo a minha história. Como eu, em 30 anos de magistratura, nunca tenha errado? Nítido é que eu devo ter errado. Espero não ter errado com tanta frequência e nem com tanta gravidade. Logo no início da minha carreira na magistratura, eu fui trabalhar numa cidade, numa comarca muito pequena, no Oeste do estado, comarca de Quilombo. Eu sinto muita saudade de ir lá. Foram três anos que eu morei lá e foi uma experiência sensacional de viver muito próximo das necessidades das pessoas em todos os sentidos. Em uma cidade pequena você acaba tendo esse contato. Mas, ao mesmo tempo, como você é um peixinho no aquário, todos te olham, todos te estendem o tapete. Se você vai em um supermercado, naturalmente, você é bem atendido. Se você vai em um banco, não fica em uma fila, o gerente já vem e se aproxima, porque você é conhecido ali. O juiz é a autoridade. Eu já vou dizer onde eu quero chegar... Em um determinado dia, eu vim para Florianópolis e disse assim: “eu vou ao shopping fazer algumas compras”. Lá no Oeste não tinha [shopping]. Fui a uma loja e tinham algumas pessoas sendo atendidas e eu cheguei. Eu queria ser atendido e não queria esperar. Eu falei para o rapaz: “poderia me atender?”...“Não, eu tenho que atender...” Aí eu falei: “então tá bom, tchau.” Fui embora, indignado. Como que eu não fui atendido quando eu quis? Dirigindo de volta por oito ou nove horas de viagem, fiquei refletindo sobre o que tinha acontecido: por que eu tinha me sentido tão ofendido com aquilo ali? Eu percebi que eu estava sofrendo do fenômeno da juizite [risos]. A síndrome do pequeno poder. Eu disse assim: não, João Marcos, não é assim que funciona, não, não, não, não! Como privilegiado que sou, com uma estabilidade econômica, eu peguei férias. Eu já tinha férias marcadas para logo. Fui fazer o caminho de Santiago de Compostela, não no sentido religioso, mas no sentido humanitário mesmo, de caminhar você sozinho, de depender da ajuda pura e simples dos outros que não sabem nem de onde você veio, nem onde é o Brasil e te estendem a mão, te ajudam, te carregam e te oferecem pão. Essa experiência, para mim, foi muito importante para entender que tenho que sempre reavaliar os meus comportamentos e me assegurar de que preciso ter humanidade; preciso desenvolver as minhas humanidades diante de todos. Às vezes, não acontece isso, e isso me corrói. Eu digo: não! Vamos superar isso aí. Eu não vou repetir! Em uma ocasião eu estava em um caixa de agência bancária, no fórum – isso até faz parte de uma crônica –, e uma senhora humilde chegou para mim e disse assim: “ah, doutor João Marcos, o senhor é o juiz, o meu filho está preso”. Eu falei: “não vou atender a senhora agora”. Mas, eu falei com uma entonação... Falei: “eu não vou atender a senhora agora! Eu estou aqui, é o meu horário de almoço”. Aí ela disse: “ah... Me desculpe”. E eu fui. E eu disse: como assim? Como que eu pude ser dessa forma? Aquilo acabou para mim o dia. Eu fiquei pensando, falei com a minha assessoria e disse assim: “era uma senhora, tentem descobrir quem ela era e tal, tal, tal...”. Conseguiram descobrir quem era o filho dela. Eu vi o processo, estava tudo em ordem, tudo regular. Enfim, não estava atrasado, as progressões de regime seriam isso e aquilo, e aí eu pedi que o serviço social entrasse em contato com aquela senhora, e que no momento que ela pudesse, não precisava ser naquele dia, poderia ser em qualquer dia, ela poderia ir ao fórum que eu a atenderia. Aí ela foi. Na tarde seguinte, eu a atendi no gabinete e pedi desculpas. Pedi que ela me desculpasse pela forma como eu a tratei e expliquei como que estava o processo do filho dela, e quais eram as questões. As questões dela eram simplesmente isso: informar-se sobre quando que o filho poderia sair. Se ele poderia passar o Natal em casa ou não. Eu não vejo isso acontecendo. Eu vejo os juízes achando que estão fazendo um lindo trabalho, que estão fazendo o melhor trabalho de todos pelo país, pela sociedade e pelo futuro. Não tem a concepção de que se a queda da Bastilha fosse hoje, seria o juiz o primeiro decapitado. Basta subir o morro para saber qual é a perspectiva que tem a respeito do Poder Judiciário. Isso é responsabilidade do Poder Judiciário mesmo. E não tem remorso.
Gustavo Bortolameoti:Este ano [2024] também foi lançado, em São Paulo, o documentário Palavra Presa, protagonizado pelo senhor, como juiz de execuções penais e corregedor do sistema prisional de Joinville. Já ocorreram numerosas exibições e debates com a participação do senhor pelo Brasil todo. Além da previsão de exibição na França em 2025, e não menos especial, na Univille também. O documentário propõe abordagens inéditas sobre o cotidiano “das celas”, propostas pela diretora Ilaine Mello, com foco na literatura do cárcere. O que o filme quer denunciar?
João Marcos Buch:O que o filme quer denunciar? Eu não diria que o filme queira denunciar no sentido de apontar o dedo. Este documentário foi realizado em quase seis anos do meu trabalho, com acompanhamento de inspeções, palestras, aulas, inclusive uma das passagens deste documentário é do lançamento de livros de apenados do regime fechado na Univille. Teve o lançamento lá com uma conversa de três apenados para uma plateia de 200 estudantes de licenciatura (Direito e História). Foi bem interessante. Esse documentário deve ter tido mais de 50 horas de filmagens. A montagem, cortes e recortes ficou em 72 minutos e eu achei interessante. Primeiro, os produtores e a diretora perguntaram se eu gostaria de ver. Eu falei: “eu não quero ver, eu só quero ver depois que estiver fechado, encerrado, entregue, que não permita mais modificação, porque se ver antes vai que não goste e aí vai ser mais forte que eu para tentar mudar algumas coisas. Então, eu prefiro não ver”. Confiando, claro, na ética, no profissionalismo, de todos eles. Depois, quando vi a primeira vez que eu gostei do resultado. Eu tenho concluído, a partir dos debates que tenho presenciado, da mostra do filme em vários ambientes, no conselho carcerário, nas universidades, ao público em geral, no Ministério dos Direitos Humanos, que todos os debates levam a uma questão que foi o que a diretora pretendeu. Muito embora, no início, ela não soubesse, exatamente, onde ela queria chegar... Eu penso que, no fechamento, foi isso: Humanização. Mas, a humanização do sistema? Não. Porque sobre isso já existem muitos filmes. Humanização do juiz. O filme mostra o juiz. E o sofrimento do juiz e aquilo que ele luta. Isso tem tocado especialmente aos juízes, novos juízes a quem eu veículo o filme na Escola de Formação Nacional. A pessoa percebe como é importante saber que o juiz é um ser humano, que também tem fragilidades e que não é um ET. É incrível como você ouve as pessoas dizendo assim: “eu não imaginava que um juiz era isso, eu não imaginava que um juiz pensava dessa forma, eu não imaginava que um juiz faria isso”. Coisas humanas, de humanidades, porque o filme não aparece comigo decidindo: “defiro com base...”. Não é isso. São sempre as reflexões em razão daquilo que eu vivencio. O filme, talvez, não denuncia nada. O filme mostra o caráter humano do magistrado, que talvez seja o que falta no nosso sistema.
Denis Radun:Conhecendo o seu trabalho, percebemos que o senhor tem um olhar prospectivo. Que mensagem de futuro o senhor deixa registrado para pesquisadores da História e do Direito?
João Marcos Buch:Vamos elaborar essa questão de olhar para o futuro. Na primeira pergunta, quem é o João Marcos e quem é o João Marcos, Desembargador Substituto. Os dois, realmente, olham muito para o futuro. O João Marcos, na sua vida pessoal, sempre olhou para o futuro. O João Marcos não fala muito sobre o passado, ele não é contador de histórias... “Porque na minha época eu fiz isso, porque na minha época, porque aquele evento que nós fizemos, aquele aniversário que nós tivemos, aquela viagem que nós fizemos”. Isso, claro, me constitui. O João Marcos pensa, digamos assim: ele vai fazer uma festa de aniversário. Vai convidar todo aquele grupo e vai planejar, pedir auxílio com a música, a bebida, com a diversão, o local e tudo mais. E aquela festa vai acontecer. Vai ficar na memória de todos. No dia seguinte, o João Marcos já vai pensar em outra. Não vai ficar pensando no que aconteceu. Passou. Vamos para frente. A minha vinda de Joinville a Florianópolis foi muito isso. Eu morei 22 anos em Joinville. Imagina, eu cheguei com 30 anos em Joinville. Então, é uma história. Muitas coisas aconteceram na minha vida em Joinville e quando decidi que viria para o Tribunal, que me mudaria para Florianópolis, eu não olhei para trás. Não olhei mais para trás. E é isso. Foi, passou. Os vínculos, os relacionamentos, meus amigos, obviamente, ficaram. Quando eu vou a Joinville eu procuro ir em alguns lugares para rever algumas pessoas, que sinto saudades, que sinto falta, mas o meu olhar é para o futuro. O meu futuro é aqui em Florianópolis. É em Santa Catarina, é no Tribunal. Não haverá João Marcos que se lembre do passado. A ideia que talvez eu diga para os pesquisadores, para os acadêmicos, é que a gente precisa voltar o nosso olhar – pode parecer lugar-comum – para a nossa história, para o nosso país.
Denis Radun:Quero agradecer muito pelo seu tempo, disponibilidade e generosidade em nos receber nesta tarde aqui de frente para o Morro do Mocotó. Em breve, a gente terá a entrevista publicada.
João Marcos Buch:Muito bem. Estou curioso. Muito obrigado.
Agradecimentos
Agradecemos ao Dr. João Marcos Buch pela entrevista, ao Centro Memorial e Laboratório de História Oral da Univille pelo empréstimo dos equipamentos e pela primeira transcrição da entrevista realizada pelo estagiário Ângelo Mafra da Maia e Silva. Especialmente, nossos agradecimentos ao prof. Dr. Fernando Cesar Sossai por ter nos provocado a dialogar sobre todos estes temas.
Referências bibliográficas
GONÇALVES, Beatrice Correa de Oliveira. O alimento enquanto prática de memória - o passado, o presente e o futuro a partir do mocotó produzido no Morro do Mocotó, Florianópolis (SC), Brasil. V Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia. Vila Real, 08-11 set. 2013.
SANTA CATARINA. Diretoria de Direitos Humanos - DIDH. Gerência de Políticas para Igualdade Racial e Imigrantes - GEIRI. Diálogos sobre a consciência negra. Florianópolis, 2018. Disponível em: <https://www.sas.sc.gov.br/images/Direitos%20Humanos/GEIRI/Comunidades%20Quilombolas.pdf>. Acesso em: 15 jan. 2025.
SANTA CATARINA. Gerência de Políticas para Igualdade Racial e Imigrantes - GEIRI. Dados Quilombolas: igualdade e proteção dos direitos da população negra. Florianópolis, 2020. Disponível em: <https://www.sas.sc.gov.br/index.php/direitos-humanos/gerencia-de-politicas-para-igualdade-racial-e-imigrantes-geiri/dados-2>. Acesso em: 15 jan. 2025.
Aceito em 20/12/2024.
[1]Professor do curso de Direito da Universidade da Região de Joinville (Univille). Joinville, Santa Catarina, Brasil. E-mail: d.denis@univille.br | https://orcid.org/0000-0001-5004-1036
[2]Graduando em Direito. Universidade da Região de Joinville (Univille). Joinville, Santa Catarina, Brasil. E-mail: gustavo.bortolameoti@gmail.com|https://orcid.org/0009-0004-7965-8303
[3] De acordo com Gonçalves (2013, s.p.), o atual Morro do Mocotó foi, “durante os séculos XVIII e XIX, morada para escravos e para os pobres que eram afastados do Centro para dar início às obras de modernização da cidade, que se estenderam ao longo do século XX. O local tornou-se conhecido no século XIX pelos pratos de mocotó, ensopado feito a partir de feijão, pé de boi e dobradinha, que os moradores faziam tanto para vender quanto para servir nas festas que eram organizadas no Morro, como as que celebravam a abolição da escravatura. O mocotó é, neste contexto, uma comida que não só alimenta, mas identifica e dá nome ao Morro. É um saber transmitido de geração a geração e que ainda hoje é feito no Morro”.
[4] A gravação da Audiência Pública encontra-se disponibilizada em: https://www.camara.leg.br/evento-legislativo/73504. Acesso em: 15 jan. 2025.
[5] Detalhes sobre o documentário podem ser consultados em: https://www.palavrapresa.com/. Acesso em: 15 jan. 2024.
[6] Transcrição elaborada por Ângelo Mafra da Maia e Silva com uso de inteligência artificial.
[7] Alusão às eleições municipais, ocorridas em outubro de 2024.