“Vale mais a versão do que o fato?”: Análise de Discurso Crítica do texto “Apresentação” da Coletânea 1964 - 31 de Março: o movimento revolucionário e sua história
“Is the Version More Important Than the Fact?”: Critical Discourse Analysis of the “Presentation” Text in the Collection 1964 - 31 de Março: The Revolutionary Movement and Its History
Mariane da Silva[1]
Resumo
A relativização e a negação do período ditatorial brasileiro têm se tornado cada vez mais presentes na sociedade, mesmo diante das comprovações científicas históricas. Esses discursos são atraentes não por preencherem lacunas históricas, mas por se alinharem a objetivos políticos ideológicos claros. Este estudo visa identificar manifestações de negacionismo no texto “Apresentação” dos XV tomos da coleção 1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e sua história, publicada pela BibliEx entre 2003 e 2004. Com 257 entrevistas de militares e civis envolvidos no governo militar, a coletânea apresenta uma narrativa alinhada às Forças Armadas, relativizando ou negando a violência e o autoritarismo do período. O estudo utiliza a Análise de Discurso Crítica (ADC) de Norman Fairclough (2016), para investigar como esses discursos se relacionam com contextos sociais, políticos e ideológicos, revelando estratégias discursivas que promovem o negacionismo. Observa-se que, apesar da expansão dos estudos críticos sobre o período, a narrativa negacionista persiste, reatualizando a forma e o maniqueísmo constituídos desde o período ditatorial.
Palavras-chave: Negacionismo histórico; Ditadura militar; Análise de discurso crítica.
Abstract
The relativization and denial of the Brazilian dictatorial period have become increasingly present in society, even in the face of historical scientific evidence. These discourses are attractive not for filling historical gaps, but for aligning with clear political and ideological objectives. This study aims to detect manifestations of denialism in the "Presentation" text of the XV volumes of the collection 1964 - March 31: the revolutionary movement and its history, published by BibliEx between 2003 and 2004. With 257 interviews of military personnel and civilians involved in the military government, the collection presents a narrative aligned with the Armed Forces. The study employs Norman Fairclough's (2016) Critical Discourse Analysis (CDA) to investigate how these discourses relate to social, political, and ideological contexts, revealing discursive strategies that promote denialism. It is observed that, despite the expansion of critical studies on the period, the denialist narrative persists, updating the form and the Manichaeism established since the dictatorial period.
Keywords: Historicaldenialism; Militarydictatorship; Criticaldiscourseanalysis.
Introdução
A relativização do período ditatorial brasileiro e até mesmo a negação da sua existência, mesmo mediante comprovação do campo científico da história e de outras ciências, tem se mostrado cada vez mais presente na cena social. Os discursos revisionistas, relativistas e negacionistas[2] tornam-se atrativos, não por proporem diferentes problemáticas à memória e à historiografia, com vistas a preencher lacunas do passado e/ou desvelar realidades pensando nos sujeitos históricos, mas por corresponder a um alinhamento político ideológico que possui suas bases e objetivos bem delineados.
O propósito deste estudo é detectar manifestações de negacionismo no texto “Apresentação”, presente nos XV tomos da coleção 1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e sua história, editada pela BibliEx entre os anos de 2003 e 2004. Apresentado como um projeto de memória, contou com a coordenação do General Aricildes de Moraes Motta, que liderou projeto semelhante abordando a Segunda Guerra Mundial. A coletânea conta com 257 entrevistas com militares e civis que estiveram diretamente ou indiretamente envolvidos no governo e nas operações militares ocorridas entre 1964 e 1985.
Ao investigar e analisar textos que abordam o período ditatorial brasileiro, faz-se necessário compreendê-los como produto do tempo em que estão inseridos, bem como a sua inserção em um processo histórico em andamento. Assim, o tempo é utilizado como um elemento central nestas abordagens, pois é ao passado que se recorre, tanto para ilustrar certas ações quanto para negá-las. Diante de uma perspectiva analítica, este artigo se utiliza da estrutura conceitual proposta por Norberto Guarinello (2003) ao problematizar a constituição de formas no campo da História Antiga, para explorar o enquadramento produzido pelas Forças Armadas, bem como o campo de disputas de memórias delineado por Maurice Halbwachs(2003), em face do contraste entre a narrativa militar e os estudos acadêmicos. Além disso, apoia-se nas contribuições de Patrícia Valim, Alexandre de Sá Avelar e BerberBevernage (2021), assim como de Mateus Pereira e Daniel Pinha Silva (2021), com o intuito de discutir e conceituar o fenômeno do negacionismo à brasileira.
Quanto à perspectiva metodológica adotada, emprega-se a Análise de Discurso Crítica (ADC), conforme modelo proposto por Norman Fairclough (2016), por sua capacidade de estabelecer um quadro analítico que mapeia a relação entre as dinâmicas de poder e os recursos linguísticos utilizados por indivíduos ou grupos sociais.
Em virtude de compor estudo em andamento[3], este artigo visa construir a argumentação de que o fenômeno do negacionismo, em relação ao período ditatorial, é a manutenção de uma forma construída ainda no âmbito dos governos militares. Observa-se que, mesmo com a expansão dos estudos sobre o referido período, dedicando-se em abordar e problematizar paradigmas e objetos outros no decorrer das últimas décadas, não foi possível alcançar a desconstrução dessa forma. O negacionismo reatualiza a forma comprometida com a disseminação e a solidificação do dualismo bem/mal, algoz/vítima, bandido/cidadão de bem, entre outros, expressa na teoria dos dois demônios[4].
Com vistas a compreender o desenvolvimento dos argumentos apresentados, este artigo estrutura-se em duas seções principais. Inicialmente, realiza-se uma breve discussão sobre os recursos teórico-metodológicos empregados para consubstanciar a análise sobre o negacionismo. Na segunda parte, são delineados o método utilizado para a análise do texto de apresentação da coletânea 1964 - 31 de março e a própria análise, conduzida com base no modelo teórico da ADC. Por fim, são apresentadas algumas conclusões que estabelecem conexões entre o fenômeno do negacionismo em relação ao período militar e as estruturas narrativas e discursivas identificadas no texto em análise.
A dimensão teórico-metodológica
A instrumentalização do negacionismo, visando a produção de sentido, frequentemente recorre à memória e à evocação de um tempo passado – elaborado por meio de uma narrativa específica e unilateral – como estratégia política, devido à sua capacidade de promover a coesão ideológica.Comumente, expressões como “naquela época não havia isso”, “no passado era melhor” ou “apenas com o retorno dos militares poderemos resolver essa situação” são utilizadas para contrastar os problemas da realidade atual, como corrupção, marginalização, violência urbana, além de questões progressistas como o combate às desigualdades e às violências de gênero (como as homo/lesbo/transfobias, casamento homoafetivo e legalização do aborto, por exemplo), a racialização da sociedade e a criminalização das intolerâncias religiosas, étnico-raciais, geográficas e migrações, entre outros fatores que geram conflitos e tensões sociais.
Este contexto de tensão se evidencia nos espaços de interação virtual, os quais representam a ampliação de conexões, proporcionando acesso ao conhecimento proveniente de diversas partes do mundo. Todavia, nesses ambientes, a mediação e a validação de informações tornam-se desafiadoras, uma vez que podem se disseminar rapidamente, sem a devida validação das informações replicadas. O emprego de frases impactantes em poucos caracteres e vídeos breves visa gerar sentido e agir na mobilização e/ou manipulação da opinião pública, prometendo a revelação de verdades até então desconhecidas.
Essas discussões, iniciadas em fóruns e/ou postagens em redes sociais, abrem caminho para as chamadas “guerras de memórias”[5]. Essas memórias envolvem diferentes atores sociais e políticos que disputam narrativas e interpretações sobre eventos históricos, especialmente aqueles relacionados a períodos autoritários ou controversos da história recente. No entanto, tais embates discursivos não são novidade no contexto político e social brasileiro, como é o caso das memórias construídas sobre o último período governado pelos militares.
Diante de uma perspectiva historiográfica, os discursos relacionados à ditadura civil-militar envolvem diferentes tempos e significados que lhes são atribuídos, que também perpassam a esfera das experiências pessoais. Conforme o debate proposto por François Dosse, estes discursos estão situados “na intersecção do tempo presente e da longa duração” (2012, p.06), acerca da emergência deste campo de estudos. Em relação às distintas temporalidades que envolvem a escrita sobre um tempo passado, Norberto Guarinello, ao examinar as formas que compõem o campo da história antiga, destaca que a “Ciência da História” requer múltiplas periodizações e generalizações, já disponíveis na historiografia, utilizadas para conferir inteligibilidade ao passado (2003, p. 46).
Porém, de acordo com Guarinello, a prática da contextualização empregada em diversos objetos de estudo, torna-se controversa quando não há a devida discussão e problematização. Há o risco de rigidificar tanto versões e/ou narrativas sobre determinado fato e/ou evento quanto a dialética que constitui o campo científico. Ao focalizar a discussão sobre o período ditatorial, torna-se evidente o conflito entre as abordagens estabelecidas pelo campo historiográfico e os discursos proferidos fora desse âmbito, especialmente nos círculos militares.
A problematização das memórias em torno do governo militar insere os historiadores do tempo presente nesse processo de (re)construção histórica e, possivelmente, na emergência de novas formas. Conforme destacado por Rousso, o debate social é permeado por “conflitos íntimos ou coletivos nascidos de traumatismos insuperáveis, guerras de memórias, polêmicas públicas e controvérsias científicas” (2016, p.30). Isso faz com que o passado se torne uma matéria na qual se deve constantemente agir para adaptá-lo às necessidades do presente.
O propósito de preservar um passado no qual os militares eram encarregados de resolver todos os problemas sociais e se sacrificaram em prol da pátria alimenta o debate público, sustentando a defesa de um autoritarismo necessário. Esse embate contrasta com as pesquisas acadêmicas que revelam casos de corrupção, má gestão de recursos públicos, nepotismo e outros delitos associados à administração pública e no gerenciamento dos recursos do Estado[6].
A análise da construção das formas, como exemplificado acima, revela-se produtiva, uma vez que este debate está intimamente ligado à discussão sobre as memórias e sua historicização. De acordo com Guarinello (2003), as formas – ou contextos –, têm a função de reunir os vestígios e fragmentos do passado que os historiadores utilizam para construir uma narrativa o mais precisa possível, sendo importante ressaltar que essa construção ocorre a partir do presente. O autor argumenta que é inevitável lidar com as formas, as quais orientam a elaboração das narrativas, e isso não é necessariamente desfavorável. No entanto, é fundamental reconhecer suas limitações e evitar a busca por uma representação exata do passado, priorizando, ao invés disso, a construção de uma narrativa contextualizada. É essencial compreender que as formas não são preestabelecidas nem naturais; ao contrário, são moldadas para atender às demandas do presente.
Ademais, a memória é um campo repleto de conflitos, como observado por Maurice Halbwachs, onde a sua reconstrução vai além da experiência individual, sendo influenciada pela lembrança coletiva de um evento específico, que por sua vez é moldada pelos contextos sociais (2003, p. 70-74). Questões como o foco nas identidades e suas configurações, o “dever de memória” e a busca por reparações adequadas, entre outras, emergem como demandas a serem enfrentadas, analisadas e expostas neste tempo – que é ocidental, periférico, colonizado, entre outros marcadores. Possivelmente, a forma desse dever de memória emerge como um indicativo da temporalidade em que está inserida. Desse modo, podemos inferir uma tendência ao presentismo[7], manifestada como um desejo de resolver todas as questões pendentes e remediar as feridas acumuladas nas décadas após a redemocratização.
Nesse contexto, a articulação de diferentes temporalidades revela o regime de historicidade vivenciado neste início de século. Segundo François Hartog (2013), o regime de historicidade emerge das relações entre passado, presente e futuro, com uma dessas dimensões se destacando sobre as outras. No presente contexto, o presentismo assume destaque, concentrando a atenção e assumindo a responsabilidade pela proclamação da busca pela verdade. É relevante notar que a temporalização do tempo também foi discutida por ReinhartKoselleck (2014), através do conceito de “estratos de tempo”[8], para compreendê-lo como histórico. Koselleck identifica três estratos observados nas instâncias de curto, médio ou longo prazo, sem estabelecer uma interdependência entre eles.
No primeiro estrato, são analisadas as singularidades, os novos começos e as rupturas sedimentadas, com atenção às temporalidades e às espacialidades. No entanto, as singularidades carregam a complexidade envolvida na compreensão do tempo histórico. Destaca-se, assim, o papel da memória na percepção, interação e elaboração individual ou coletiva em relação aos eventos. Ao abordar o segundo estrato, Koselleck observa que a história também possui suas estruturas de repetição. Por fim, o terceiro estrato compreende as permanências e as reminiscências do passado que se manifestam no tempo presente (2014, p. 21-24).
Reminiscências estas que oferecem uma série de questionamentos à historiografia. Diante do crescente descrédito entre o conhecimento científico e o senso comum replicado nas redes virtuais de interação, a discussão sobre o último governo militar torna-se proeminente e ampliada. No entanto, emergem as seguintes problematizações: qual temporalidade estamos realmente discutindo? Seria o tempo dos acontecimentos, compreendido entre os anos de 1964 e 1985? Ou, talvez, o tempo dos documentos, da judicialização e da exposição dos governos militares nos anos subsequentes ao processo de abertura política? Ou ainda, estamos nos referindo ao tempo imediato, a partir da seleção de lembranças de experiências individuais, que se conectam aos discursos de negação do caráter ditatorial?
Em relação à disseminação e à produção de sentido presente nestes discursos negacionistas, Patrícia Valim et al., baseando-se na discussão proposta pelo psicólogo Israel Charny (1992), apontam que há a difusão de uma espécie de “negação inocente”. Esta modalidade, em que um narrador mobiliza a sua experiência individual para negar os genocídios, por exemplo, encontra seu público-alvo naquelas pessoas que não vivenciaram tais fatos, tornando-se, assim, seus principais enunciadores (Charny, 1992 apud Valim et al., 2021, p.17). Percebe-se que a autenticidade das informações recebidas e replicadas não é uma preocupação, desde que se alinhe a crenças pessoais que se dizem destituídas de capital ideológico.
Nessa conjuntura, percebe-se que o negacionismo se apresenta de forma multifacetada, extrapolando a negação conhecida apenas do Holocausto e abrangendo diversas formas de negação de outros genocídios, além de revisões de períodos históricos mais ou menos sensíveis em várias nações (ibidem). Esse revisionismo contemporâneo, em escala global, contrasta com a abordagem acadêmica de reavaliar o passado à medida que novas fontes e questões emergem.
Segundo o historiador Luís Edmundo de Souza Moraes, o negacionismo pode ser observado em dois sentidos distintos:
Por um lado, trata-se de uma historiografia falsificada, ou seja, um texto que falsifica de forma consciente suas referências de legitimidade, reivindicando o caráter de escrito historiográfico sem sê-lo. Por outro, trata-se de um passado falsificado, que também de forma consciente é produzido, ancorado na recusa de todos os indícios e evidências que o contradigam, reivindicando o caráter de verdade sem sê-lo (Moraes, 2008, p. 4).
O distanciamento e descrédito das comprovações fornecidas pelas pesquisas acadêmicas, que evidenciam o caráter repressivo, autoritário e criminoso do golpe militar, é evidente no discurso negacionista. Para observar a sua instrumentalização, a abordagem crítica de Norman Fairclough (2016), apresenta-se como um método interessante, pois consiste na compreensão dos discursos como ferramentas de construção e perpetuação das estruturas de poder e dominação. O supracitado autor expõe essa concepção ao longo de sua obra Discurso e Mudança Social, argumentando que o discurso não se limita à mera comunicação, mas constitui uma prática social que reflete e reforça relações de poder e ideologias dominantes[9].
Ao deslegitimar a produção acadêmica, os setores mais extremistas da direita se utilizam do discurso negacionista como uma estratégia para promover suas agendas e perpetuar suas visões ideológicas, distanciando-se dos métodos epistêmicos adotados pela historiografia. Esse distanciamento, tanto físico quanto cognitivo, revela como o discurso é moldado e instrumentalizado para servir a interesses políticos e sociais específicos.
Nesse contexto, a perspectiva da Análise de Discurso Crítica (ADC) de Fairclough é utilizada neste estudo como uma ferramenta para investigar textos que contenham indícios negacionistas, a fim de desvendar os mecanismos discursivos utilizados para disseminar ideologias e distorcer a compreensão histórica. Conforme enfatizado pela historiadora Caroline Silveira Bauer, compreender o fenômeno do negacionismo demanda uma análise que transcenda o âmbito historiográfico, considerando as inter-relações com disputas culturais, políticas e sociais (2024, p.5-6). Compreende-se, então, que a amplitude analítica proposta pela ADC possibilita uma compreensão mais aprofundada do papel do negacionismo na sociedade contemporânea, suas motivações e suas implicações para a democracia e para os direitos humanos.
O modelo analítico da ADC
Na perspectiva da linguística, o conceito de gênero assume um papel central e é enriquecido por conceitos provenientes da concepção sociológica ou sócio-histórica de Mikhail Bakhtin (1929; 1995). Dentre eles, destacam-se a heterogeneidade, o dialogismo, a polifonia e a intertextualidade, os quais são acionados para compreender os gêneros como usos da linguagem associados a atividades sociais. A esse respeito, DésiréeMotta-Roth, linguista e analista do discurso, ao historicizar esse percurso conceitual, propõe duas definições basilares utilizada por diferentes escolas de analistas do discurso[10]: gêneros “são usos da linguagem associados a atividades sociais” e “essas ações discursivas são recorrentes e, por isso, têm algum grau de estabilidade na forma, no conteúdo e no estilo” (2009, p.351).
Motta-Roth, ao incorporar os conceitos de Bakhtin (1952-1953; 1992) e Grabe (2002), define gêneros como tipos de enunciados relativamente estáveis, utilizados para fins específicos em determinados grupos sociais. Esses processos sociais geram convenções e expectativas reconhecíveis e compartilhadas, exigindo uma análise tanto do contexto histórico quanto da estrutura econômica da sociedade. Ao contextualizar a discussão sobre gêneros no âmbito social, ou seja, para além do texto, percebem-se as abordagens críticas da linguagem com orientação sociológica, as quais não apenas reconhecem a heterogeneidade do discurso, mas também questionam as estruturas fixas das práticas linguísticas. Diante de abordagens críticas que consideram os elementos das relações sociais nos discursos analisados, a autora introduz o pensamento crítico e o modelo teórico proposto por Norman Fairclough, em virtude de seu propósito intervencionista e emancipador (Motta-Roth, 2009, p.361-362).
Assim, a proposta teórica-metodológica da Análise de Discurso Crítica (ADC), baseia-se em um modelo tridimensional em que reúne as três tradições analíticas, consideradas indispensáveis pelo autor. De acordo com Fairclough:
Essas são a tradição de análise textual e linguística detalhada da Linguística, a tradição macrossociológica de análise da prática social em relação às estruturas sociais e a tradição interpretativa ou microssociológica de considerar a prática social como alguma coisa que as pessoas produzem ativamente e entendem com base em procedimentos de senso comum partilhados (2016, p. 104).
Essas tradições são retomadas pois, de acordo com o autor, são essenciais para a análise de discurso, pois permitem uma compreensão mais abrangente e aprofundada do papel do discurso na sociedade. Fairclough compreende o dever de observar como os membros das comunidades sociais produzem seus mundos de forma ‘ordenada’ ou ‘explicáveis’, mas destaca que essa produção é “moldada, de forma inconsciente, por estruturas sociais, relações de poder e pela natureza da prática social as quais se inserem, cujos marcos delimitadores vão sempre além da produção de sentido”. Assim, posicionamentos políticos e ideológicos assumidos de modo inconsciente, podem produzir efeitos sobre as estruturas, as relações e as lutas sociais, incluindo sua relação com o poder, a ideologia e as suas próprias práticas sociais (2016, p.104-105).
Para uma melhor compreensão do modelo analítico da ADC é apresentada, na figura a seguir, a representação gráfica proposta por Norman Fairclough.
Figura 1: Concepção tridimensional do discurso em Fairclough
Fonte: Fairclough, 2016, p. 105.
No modelo tridimensional de análise do discurso, busca-se compreender o discurso em suas dimensões textual, discursiva e social, que estão interconectadas e se influenciam mutuamente. Fairclough a sistematiza da seguinte forma: “a parte do procedimento que trata da análise textual pode ser denominada descrição, e as partes que tratam da análise prática discursiva e da análise prática social da qual o discurso faz parte podem ser denominadas interpretação” (2016, p. 105).
Dessa forma, o método de Fairclough torna-se relevante para a investigação de textos que possam conter vestígios negacionistas, especialmente em relação ao período ditatorial brasileiro. A interconexão entre essas três dimensões discursivas, permite visualizar como o discurso negacionista se desenvolve e se amplifica, diante do contexto social, político e ideológico. Neste sentido, a dimensão textual da análise permite examinar como o negacionismo é expresso linguisticamente nos textos, identificando padrões de linguagem, estratégias retóricas e escolhas vocabulares que podem ser indicativas de tentativas de distorcer ou negar os eventos históricos. Isso inclui identificar discursos que minimizam a gravidade dos acontecimentos, reinterpretam fatos ou manipulam informações para promover uma narrativa revisionista.
Já a dimensão da prática discursiva, considera como o texto está relacionado às práticas sociais mais amplas, como discursos políticos, educacionais, midiáticos e culturais. Isso envolve examinar o papel do texto dentro dessas práticas, como ele é disseminado, recebido e contestado pela sociedade, e como contribui para a construção de identidades sociais e políticas.
A dimensão discursiva da prática social, por fim, concentra-se nas relações de poder e nos interesses ideológicos implícitos ao discurso do negacionismo. Desse modo, investigar quem são os produtores do discurso, seus objetivos e motivações, pode fornecer indícios a respeito das estruturas de poder e dominação presentes no discurso negacionista. Ademais, essa dimensão permite evidenciar as resistências e contestações nos contra discursos que buscam preservar a memória histórica e promover a verdade e a justiça.
Para uma melhor compreensão da ADC, as autoras Viviane Resende e Viviane Ramalho (2023), ao realizarem uma revisão e detalhamento do processo de produção do modelo teórico em tela, propõe as seguintes categorias analíticas subjacentes a cada dimensão do modelo analítico, representadas no quadro a seguir.
Quadro 1: Categorias analíticas propostas no modelo tridimensional
TEXTO |
PRÁTICA DISCURSIVA |
PRÁTICA SOCIAL |
vocabulário gramática coesão estrutura textual |
produção distribuição consumo contexto força coerência intertextualidade |
ideologia sentidos pressuposições metáforas hegemonia orientações econômicas, políticas, culturais, ideológicas. |
Fonte: Resende; Ramalho, 2023, p.29.
A partir do modelo tridimensional da ADC apresenta-se, na sessão a seguir, a análise estrutural dos movimentos retóricos presentes no texto analisado. Essa análise busca identificar como os elementos textuais se relacionam com os contextos sociais, políticos e ideológicos, conforme delineado por Fairclough, proporcionando uma compreensão mais profunda das estratégias discursivas empregadas para promover o negacionismo em relação ao período ditatorial no Brasil.
Apresentação e a Análise Discursiva Crítica (ADC)
O texto em análise foi extraído do primeiro volume da coleção intitulada 1964 - 31 de março: o Movimento Revolucionário e a sua História, sob coordenação do General Aricildesde Moraes Motta. Essa coleção, composta por quinze volumes publicados entre 2003 e 2004 pela Biblioteca do Exército (BibliEx), apresenta uma narrativa fundamentada em documentos e testemunhos de militares e civis que participaram de alguma maneira do movimento revolucionário de 1964, conforme delineado nestas explanações. A análise subsequente baseia-se nas três dimensões do discurso delineadas por Fairclough. Conforme o desenvolvimento do texto, as categorias analíticas subjacentes a cada dimensão, conforme ilustrado no Quadro 1, são empregadas para subsidiar a análise.
Contexto geral do texto
Inicialmente, o texto descreve dois projetos da História Oral do Exército Brasileiro, com foco especial no Movimento Revolucionário de 31 de Março de 1964. Há a contextualização e inserção do projeto em discussão ao anterior – sobre a Segunda Guerra Mundial –, também coordenado pelo General Motta, que, devido ao sucesso identificado pela autoria, obteve a aplicação de idêntica metodologia fornecida pela História Oral.
O texto Apresentação se repete nos quinze tomos da coletânea, antecipando os relatos dos participantes do supracitado movimento, além de realizar a aproximação entre fatos históricos que possuem motivações e temporalidades distintas – Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o Movimento Revolucionário e os governos militares (1964-1985) –, em que ambos induzem ao cenário de guerra e combate. Narrativa esta que permeia a construção retórica do texto, em que pese a vitória das Forças Armadas, tanto na Segunda Guerra Mundial quanto no combate à ameaça comunista de 1964. Observa-se que as interações com os leitores são regidas pelo General Motta que conduz a sequência de acontecimentos, bem como antecipa a interpretação e a conclusão a respeito da atuação das Forças Armadas e de seus heróis de guerra, bem como dos civis que lhes são apoiadores.
a) Dimensão Textual
O texto estrutura-se no modo retórico-argumentativo, caracterizado pela exposição e defesa de um ponto de vista, com o intuito de persuadir o leitor ao apresentar os argumentos diante de uma sequência lógica. Nesse sentido, conta com a incidência de marcadores coesivos que proporcionam fluidez e clareza ao introduzir as ideias. Exemplo: “Esta coletânea, sobre o Movimento armado de 1964, visa a tornar mais conhecido o processo revolucionário, especialmente, pela palavra daqueles que, agora, ganham a oportunidade de expor suas motivações, identificar seus propósitos e narrar suas ações” (Motta, 2003, p. 9, grifo nosso).
Do exemplo, depreende-se o propósito de esclarecer a respeito da importância de expor as narrativas daqueles que viveram e agiram no período em estudo, que até então lhes fora negado. A utilização do advérbio agora indica a demarcação de tempo e contexto específico em que foi proporcionada a escuta e a disseminação (publicação) das vozes das pessoas entrevistadas. A estratégia discursiva apresentada busca prender a atenção do leitor, sugerindo deter informações inéditas, até então desconhecidas.
De acordo com a estrutura textual, conta com a utilização de termos e expressões próprias do gênero acadêmico e institucional, conferindo-lhe seriedade e formalidade às informações ali prestadas. A Tabela 1 apresenta a incidência do vocabulário utilizado pelo autor com o intuito de garantir a coerência argumentativa, seguidos de breve análise a respeito de seu uso.
Tabela 1: Vocabulário utilizado para sustentar coerência argumentativa do texto
VOCABULÁRIO |
ANÁLISE |
|
Técnico e Específico |
História Oral; Movimento Revolucionário; Força Terrestre; Forças Armadas; Revolução de 1964; Segunda Guerra Mundial. |
Termos específicos que situam o leitor no contexto histórico e metodológico do projeto. |
Valorativo e crítico |
Extraordinariamente bem-sucedido; valiosas experiências; insopitável patriotismo. |
Atribuem uma conotação positiva ao projeto e aos entrevistados. |
Suspeita insistência; falseado; impenitentes; insidiosa campanha; escancarado revanchismo; cativos da ignorância ou da má-fé. |
Vocabulário crítico e acusatório, sugerindo uma postura de defesa contra críticas ao movimento de 1964. |
|
Acadêmico e Formal |
Incide; assenta-se; implementar; metodologia; coletânea. |
Vocabulário formal e técnico, buscando sedimentar o assunto. |
Fonte: Elaboração da autora.
Em seu desenvolvimento, o texto “Apresentação” descreve os projetos empreendidos pela Biblioteca do Exército, reforçando os contextos históricos, destacando a atuação da Força Terrestre (Exército) e das demais Forças Armadas e de civis apoiadores. Gradativamente, constrói crítica às mídias e a certas interpretações históricas acusando-as de “falseamento” e “revanchismo ideológico”. Exemplo: “Com suspeita insistência, desde o final do ciclo revolucionário, mormente por parte da mídia, o que é posto à mostra está quase sempre falseado. Homens impenitentes, sob o império de motivações ideológicas, movem insidiosa campanha, por intermédio da qual praticam escancarado revanchismo” (Motta, 2003, p. 9).
O texto faz uso de modo implícito e explícito para manter a coerência entre as ideias apresentadas. Dessa forma, as narrativas pessoais são apresentadas com o propósito de tornar conhecido o processo revolucionário, que, de modo implícito, infere que há parcialidade nas abordagens disponíveis. E, de modo explícito, aponta que a falta de liberdade de expressão impediu o conhecimento das ações de determinados indivíduos que, até então, foram silenciadas. Exemplo: “Se não viessem à tona, porque, até então, vedados os acessos e canais da livre expressão do pensamento, não se conheceriam as palavras daqueles que foram compelidos a agir em favor da sociedade ameaçada, em conjuntura tão delicada para nosso País” (Motta, 2003, p. 11, grifo nosso). O adjetivo em destaque promove, também, a reinterpretação das ações dos militares, retirando-lhes a agência, de modo que agiam por força de lei e/ou de autoridade superior.
Da mesma forma que há o emprego de elementos coesivos, os verbos e adjetivos são acionados para garantir a clareza, a fluidez e a persuasão do texto. A Tabela 2 apresenta os principais verbos e adjetivos utilizados em sua construção retórica, seguidos de breve exposição a respeito de sua função na construção textual.
Tabela 2: Verbos e adjetivos que exprimem a opinião do autor
Verbos |
|
Premiam |
Sugere que as ações dos ocupantes dos postos de mando destacados recompensam de maneira injusta. |
Desconhecem |
Implica uma omissão intencional em relação às vítimas humildes. |
Oferecem |
Sugere que os falantes estão proporcionando algo valioso. |
Falam |
Implica que há um testemunho legítimo e necessário sendo dado. |
Admitiu |
Refere-se à confissão de Salomão Malina, sugerindo uma verdade revelada. |
Conspirar |
Implica um plano secreto e negativo. |
Praticam |
Sugere que as ações são deliberadas e constantes. |
Propagar |
Indica uma disseminação rápida e intencional de informações. |
Vedados |
Sugere que os acessos e canais de expressão foram intencionalmente bloqueados. |
Compelidos a agir |
Implica que as ações foram forçadas, mas necessárias. |
Entendemos |
Sugere um consenso entre os falantes sobre a necessidade de oferecer uma perspectiva justa. |
Assaltantes, sequestradores, terroristas, desertores |
*Substantivos: Listados de maneira pejorativa, indicando ações criminosas. |
Adjetivos |
|
Extraordinariamente bem-sucedido |
Sugere uma avaliação muito positiva do primeiro projeto, atribuindo-lhe um grau elevado de sucesso. |
Valiosas |
Descreve as experiências dos civis e militares de forma positiva, sugerindo que são de grande importância. |
Insopitável |
Refere-se ao patriotismo como algo inextinguível, sugerindo um valor alto e constante. |
Suspeita |
Sugere desconfiança em relação à insistência, indicando que é considerada duvidosa. |
Falseado |
Descreve as informações divulgadas pela mídia como distorcidas ou falsas. |
Impenitentes |
Refere-se negativamente às pessoas que movem a campanha, sugerindo que são obstinadas e sem remorso. |
Ideológicas |
Sugere que as motivações são baseadas em ideologias, com uma conotação negativa no contexto. |
Insidiosa |
Descreve a campanha como traiçoeira e maliciosa. |
Escancarado |
Sugere que o revanchismo é descarado e sem vergonha. |
Ignorância |
Refere-se à falta de conhecimento de forma pejorativa. |
Espúria |
Descreve a "cantilena" como falsa ou ilegítima. |
Herói |
Descreve Salomão Malina de forma extremamente positiva. |
Coniventes |
Sugere que os ocupantes dos postos de mando destacados são cúmplices de ações ilícitas. |
Regiamente abonados |
Sugere que os assaltantes, sequestradores, terroristas e desertores são recompensados de forma exagerada. |
Forçoso |
Implica que algo é necessário ou inevitável. |
Justa, limpa e honesta |
Descrevem como os fatos devem ser analisados, sugerindo um alto padrão moral e ético. |
Fonte: Elaboração da autora.
O texto é estruturado de maneira lógica e coerente, utilizando uma linguagem formal e acadêmica. A coesão é garantida pelo emprego de conectores lógicos e pronomes referenciais, o que contribui para a clareza e fluidez do texto. Os verbos e adjetivos utilizados destacam claramente as opiniões e julgamentos do autor, refletindo uma visão crítica e negativa sobre a mídia e os críticos ao movimento revolucionário de 1964, ao mesmo tempo em que valoriza os seus participantes e as suas versões dos acontecimentos. Exemplo: adjetivos como “valiosas experiências”, “insopitável patriotismo” enfatizam a importância e a qualidade das contribuições dos participantes das entrevistas, enquanto que, “falseado”, “insidiosa”, “coniventes” e “escancarado revanchismo” intensificam a crítica e caracterizam de modo pejorativo àqueles que se demonstraram contrários à posição assumida pelos entrevistados.
Em relação aos substantivos, também, é possível observar no desenvolvimento retórico do texto, o uso de palavras que dão indícios do posicionamento do autor. Exemplo: substantivos como “motivações”, “ações” e “propósitos”, de modo ascendente, expressam transparência e justificativa pelos feitos realizados pelos participantes; ao mesmo tempo, palavras como “assaltantes”, “sequestradores”, “terroristas” e “desertores” listados de modo pejorativo, indicam ações criminosas combatidas pelas Forças Armadas e pelos civis apoiadores. Ao relacionar a participação de civis e de outros setores das forças armadas, estabelece uma relação de abrangência e inclusão, unindo diferentes grupos em busca do ideal de combater a ameaça à Pátria, que deve ser lembrada e honrada.
Assim, diante da dimensão textual, verifica-se que o vocabulário técnico e específico situa o leitor no contexto histórico e metodológico, enquanto termos valorativos e críticos delineiam a postura do autor em relação aos eventos e interpretações históricas. A escolha das palavras e da estrutura das frases conferem valorização e respeito aos participantes, diante de seus valores morais e éticos, com inabalável patriotismo. O destaque para estes valores considerados dignos de reconhecimento, refletidos na abordagem linguística, demonstram a intenção de legitimar e celebrar as narrativas apresentadas na coletânea em evidência. Para imprimir essa valoração às ações do movimento, minimizam e reinterpretam fornecendo indícios de uma construção narrativa revisionista.
b) Prática Discursiva
O contexto de produção da coletânea evidencia o cenário de disputas de memórias acirrado pela proximidade do 40º aniversário do fatídico 31 de março de 1964. Assim como diversas organizações de Direitos Humanos e de centros de pesquisas acadêmicas reuniram-se para relembrar os aspectos do autoritarismo, repressão e violência presentes nos governos militares[11], setores das Forças Armadas buscaram legitimar e consolidar[12] a sua narrativa a respeito de uma “revolução” necessária para salvar o país da ameaça comunista.
Diante disso, a coletânea se insere em um esforço contínuo de preservar a narrativa oficial das Forças Armadas a respeito do golpe militar perpetrado em 1964 e de seus subsequentes governos. Os anos 2000 foram marcados por tensões e debates a respeito da memória e da história dos governos militares, especialmente pelo crescente interesse acadêmico em historicizar o período sob a perspectiva dos Direitos Humanos.
A publicação deste projeto de memória evidencia a intenção de inserir a versão das Forças Armadas como uma oportunidade de fala e de humanização dos militares e civis que agiram em nome do Estado. Exemplo: “[...] esta coletânea, sobre o Movimento armado de 1964, visa a tornar mais conhecido o processo revolucionário, especialmente pela palavra daqueles que, agora, ganham a oportunidade de expor suas motivações, identificar seus propósitos e narrar suas ações” (Motta, 2003, p. 9). Adiante no texto, o autor retoma essa ideia, evidenciando o cenário de contraposição de narrativas, demonstrando-o como desfavorável às narrativas dos militares. Exemplo: “[...] Mas é forçoso reconhecer que os fatos devem ser analisados de forma justa, limpa e honesta, e que, ao menos, se ofereçam, aos jovens estudiosos, pesquisadores e interessados pelo conhecimento desses episódios de nossa história recente, as informações provenientes de todas as partes envolvidas” (ibidem, p. 11).
Ambos os trechos destacados exprimem o cenário de disputas de narrativas, em que pese o fato de terem saído vitoriosos e salvado a sociedade da ameaça iminente, ao invés de serem considerados heróis, são identificados como algozes. As disputas discursivas em questão relacionam-se aos aspectos do autoritarismo, repressão e violência, amplamente discutidos e conhecidos, também, por meio do testemunho das pessoas que foram perseguidas, torturadas e/ou tiveram familiares sequestrados, mortos e desaparecidos em virtude de ações militares.
Assim, o texto em que apresenta a coletânea intenciona se constituir como um instrumento de autoridade e de legitimidade histórica. Ao passo em que a narrativa se desenvolve, busca justificar as ações do passado e moldar a percepção pública sobre o período militar, impactando o discurso político e social contemporâneo. Conforme o exposto na tabela 1, a escolha vocabular técnica/específica e acadêmica/formal busca inserir a coletânea no circuito historiográfico e compor a dialética diante da temática sobre a ditadura militar. A utilização de termos específicos à historiografia e ao meio acadêmico – como “projeto de História Oral” e “metodologia”, por exemplo – remontam à necessidade de conferir seriedade e legitimidade às informações ali contidas, dissociando-se de uma característica meramente especulativa. A partir disso, a construção retórica do texto demonstra o público para o qual a coletânea está voltada: militares e seus apoiadores, pesquisadores interessados na história militar e as novas gerações.
Em relação ao direcionamento às novas gerações, o seguinte trecho específica a preocupação e a intencionalidade do projeto:
[...] outros setores, como os de certos responsáveis pela educação de nossos jovens, pouco felizmente, mas atuantes nas salas de aula, bem como autores de compêndios escolares, pela palavra e pela pena, indisfarçadamente, reescrevem a história, falsificada a seu talante. E, destacam-se, nesse mister, posto que utilizam artifícios e técnicas hábil e sutilmente preparados. Têm a seu favor os inocentes úteis, pouco habituados a refletir sobre o que leem e escutam. É o velho e eficaz princípio: “Vale mais a versão do que o fato” (Motta, 2003, p. 10, grifo nosso).
Convém destacar que, durante o período ditatorial, os livros didáticos abordavam o período como “revolução” e/ou “movimento revolucionário”. A partir dos anos 1990, os livros didáticos, gradativamente, passaram a abordar o período compreendido entre 1964 e 1985 como ditatorial, enfatizando as características repressivas, como os mecanismos de tortura empregados aos opositores, assim como inseriram a participação ativa da sociedade civil – instituições públicas e privadas –, como indispensáveis à solidificação do regime instaurado. Com isso, passou-se a utilizar termo “ditadura militar”, atribuindo responsabilidade única aos militares e, particularmente, de 2010 em diante, com o avanço das pesquisas promovidas em grande medida pelo acesso aos documentos sobre o período[13], abordagens como ditadura civil-militar[14] e ditadura civil-militar-empresarial, passaram a serem visualizadas, aproximando-se das discussões presentes em diferentes correntes historiográficas sobre o tema.
O supracitado trecho critica tanto as instituições de pesquisa acadêmica, por constituir e solidificar a área de estudos sobre o período repressivo, quanto as instituições de ensino e seus professores, responsabilizando-os por apresentar uma versão distorcida e até mesmo inverídica a respeito do período ditatorial. Exemplo: “técnicas hábil e sutilmente preparadas”. Seriam, então, os jovens estudantes “os inocentes úteis” manipulados pelos seus textos indiscriminadamente falseados. Evidencia-se, com isso, o movimento retórico utilizado pelo autor, em que necessita utilizar as terminologias próprias do meio científico para inseri-la nesse lugar científico para, em seguida, acusar esse mesmo lugar de criar mecanismos para falsear a história. A coletânea emerge, nesse contexto, como a possibilidade de superação e de encerrar a discussão sobre o tema: “[...] Afinal, os que aqui falam, oferecem, ao livre exame de todos os brasileiros, o que há ‘do outro lado da colina’” (Motta, 2003, p. 10).
A manutenção dos termos empregados ainda no período ditatorial, como “movimento revolucionário”, reflete o posicionamento de produções acadêmicas e relatos de direitos humanos que criticam o golpe e o regime militar, constituindo uma tentativa de contrapor e desafiar essas narrativas divergentes. Em que pese o fato de ignorar as discussões a respeito da participação de civis para a solidificação do regime, porém, não só há a menção (elogiosa) a respeito dos civis apoiadores (“verdadeiros patriotas”), bem como alguns são selecionados para expor suas narrativas no decorrer dos quinze tomos da coletânea.
Ainda que não seja a intenção de mencionar explicitamente o cenário de discussão em torno da caracterização dos governos militares, o texto estabelece diálogos com outros textos e narrativas históricos, tanto oficiais quanto críticos, aos quais busca contrapor. Dessa forma, somente ao final da Apresentação são expostos os termos em discussão, designando-se como a chave interpretativa para resolver, de vez, a temática: “Ditadura? Regime autoritário? Revolução? Contrarrevolução? Golpe militar? Contragolpe? As respostas estão aqui” (ibidem, p. 11).
Percebe-se, com isso, a força da obra em tela, baseada em uma narrativa heroica dos militares que combateram em nome da Pátria, em contraposição ao espaço dedicado aos opositores do governo militar, especialmente em pesquisas acadêmicas. A coerência argumentativa constrói-se gradativamente, na medida em que apresenta o movimento de 1964 como uma intervenção necessária para prevenir uma suposta ameaça comunista. Assim, o autor critica a difusão de uma narrativa que marginaliza a versão dos militares, apresentando a linha argumentativa a ser corroborada nas entrevistas presentes na coletânea.
c) Prática social
Conforme mencionado anteriormente, os objetivos e motivações do projeto de memória da BibliEx se expressam de modo claro no decorrer do texto Apresentação. Além de prefigurar como publicação em que consta a versão institucional sobre o 31 de março de 1964 e os governos subsequentes, apresenta-se como crítica e contraposição aos discursos de resistência que mantêm postura contrária e denunciativa em relação ao período em tela.
Em relação aos posicionamentos ideológicos assumidos no texto, reforça-se a tese da defesa da soberania nacional diante da iminente ameaça comunista. Depreende-se de que há um sentido nas ações militares que foram conscientemente silenciadas, justamente, por aqueles que foram derrotados pelas armas. Exemplo:
[...] apoiados por coniventes ocupantes de postos de mando destacados, premiam criminosos e desconhecem as vítimas mais humildes que apenas cumpriam suas missões e tarefas a serviço das autoridades constituídas. Assaltantes, sequestradores, terroristas, desertores, agora, são regiamente abonados (Motta, 2003, p. 10, grifo nosso).
O maniqueísmo é acionado como forma de pressupor a construção narrativa de que há manipulação da verdade histórica. Assim, “as vítimas mais humildes que apenas cumpriam suas missões”, ou seja, aqueles que defendem a verdadeira história – os bons –, sofrem com a manipulação promovida por aqueles que a falsificam – os maus (ibidem).
O capital ideológico a que essas pressuposições visam alcançar, assenta-se na identificação do comunismo como o real inimigo da democracia e das famílias brasileiras no decorrer da fase republicana. A tomada do poder pelos militares justifica-se, então, pela necessidade de restabelecer a ordem e a pacificação nacional. Evidencia-se, com isso, o cenário de polarização em que, para os grupos de extrema direita, os militares cumpriram seu papel de “salvar” a nação da ameaça comunista, tornando-se inadmissível o questionamento de suas ações, pois, ao fazê-lo, configura-se revanchismo por parte dos opositores do regime ditatorial, em grande parte pertencentes às esquerdas da época.
Ainda sobre o trecho em destaque, “apoiados por coniventes ocupantes de postos de mando destacados, premiam criminosos [...] / Assaltantes, sequestradores, terroristas, desertores, agora, são regiamente abonados” (Motta, 2003, p. 10, grifo nosso), refere-se ao primeiro e segundo mandatos do atual Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011)[15], em que pessoas que participaram de diferentes grupos de resistência à ditadura militar desempenharam papeis de relevante destaque político[16]. Caracterizado como governo progressista que buscava democracia e justiça social, Lula elegeu como sucessora, Dilma Vanna Rousseff (2011-2016), que também lutou ativamente contra a repressão do período ditatorial[17]. Fato este que desencadeou o acirramento das disputas narrativas e a consolidação do cenário de repulsa pela ala conservadora traduzidas, então, no antipetismo[18].[19]
Diante disso, para os setores políticos de direita, especialmente a ala mais radical e autoritária, 1964 representa a derrota da esquerda e o início de um regime político orientado para a ordem e o progresso e para o desenvolvimento em segurança. Em contrapartida, para a esquerda e para a direita liberal, 1964 simbolizou o início de um período ditatorial, caracterizado pela violência política e pelo flagrante desrespeito aos direitos humanos, cujo legado precisa ser enfrentado e superado para a construção de uma verdadeira democracia (Sá Motta, 2021, p. 11).
Retomando os aspectos abordados na dimensão da prática discursiva, os jovens também são conscientemente vedados do acesso à verdade histórica, promovido por aqueles que foram derrotados, mas que ocupam importantes cargos políticos: “Todos são cativos da ignorância ou da má-fé, no intuito de impedir que as novas gerações possam pesquisar, estudar, ler e encontrar a verdade” (Motta, 2003, p. 10, grifo nosso). A preocupação voltada para a área da educação, expressa a importância da hegemonia cultural, visto que controlar os conteúdos aos quais os jovens possuem acesso, é fundamental para que as novas gerações tenham subsídios para manter ou confrontar a hegemonia cultural vigente.
O movimento retórico do texto retorna à argumentação central de falsificação e insere a população como vítima desse sistema que busca solapar a verdade histórica. Evidencia, também, o cenário de polarização ideológica, bem como demonstra a busca pela hegemonia discursiva. A tabela 3 exemplifica como a utilização de metáforas é acionada para consubstanciar essa estratégia discursiva:
Tabela 3: Metáforas que compõem o movimento retórico do texto Apresentação
METÁFORA |
ANÁLISE |
Cativos da ignorância ou da má-fé |
sugere que as pessoas estão presas, limitadas ou dominadas pela ignorância ou pela má-fé, realçando a ideia de que são vítimas de forças malévolas. |
Reescrever a história |
indica a ação de alterar significativamente a narrativa histórica. |
Inocentes úteis |
pessoas que, sem intenção ou consciência, servem aos interesses de outrem, destacando a sua manipulação e vulnerabilidade. |
Cantilena espúria |
sugere constante repetição de mentiras, que visa reiterar uma versão distorcida da história ao público leigo. |
Fonte: Elaboração da autora.
Ainda de acordo com o uso de metáforas para buscar uma hegemonia discursiva, não há como sustentar a argumentação de falseamento histórico, sem mencionar o campo contra o qual se contrapõe. Fairclough infere que a luta pela dominação hegemônica se ancora em pontos de instabilidade, pois, de acordo com Gramsci (1971), o poder de uma classe nunca é atingido como um todo (2016, p. 127-128). Nesse sentido, a luta pela hegemonia discursiva é observada no seguinte trecho: “[...] não se pretende entronizar a polêmica. Mas é forçosoreconhecer que os fatos devem ser analisados de forma justa, limpa e honesta [...]” (Motta, 2003, p. 10, grifo nosso).
Reconhece-se o cenário dialógico, porém, sem mencionar quais elementos efetivamente são contrapostos, propõe uma análise baseada em valores morais, distanciando-se dos aspectos técnicos e específicos do meio acadêmico, anteriormente abordados. Nesse sentido, a luta pela hegemonia política, cultural e ideológica é central na narrativa do texto, onde o negacionismo é acionado como um mecanismo que promove a atualização discursiva que se pretende hegemônica.
Esse discurso ecoa o crescimento do conservadorismo no tempo presente, conforme destacado pelo historiador Marcos Napolitano em uma entrevista à Fiocruz (2020), que aponta a crítica ao politicamente correto e a suposta hegemonia político-cultural da esquerda. A denominada “hegemonia político-cultural da esquerda” concentra-se na desaprovação dos diversos trabalhos acadêmicos sobre o período ditatorial produzidos nos últimos anos. Além de desconsiderar o caráter científico dessas pesquisas, esse movimento conservador propõe a revisão da História por meio de um revisionismo com viés específico. Napolitano atribui esse fenômeno à ascensão da extrema-direita no cenário político atual do Ocidente, o que influencia diretamente a opinião pública.
Por sua vez, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta (2021) sugere que os grupos que conduziram a transição democrática não enfrentaram devidamente o passado autoritário, contribuindo para a prevalência do esquecimento. Nesse sentido, o autor argumenta que essa política de esquecimento relegou o tema a segundo plano e dificultou a construção de valores sociais fundamentados na democracia (Sá Motta, 2021, p.10).
Diante desses aspectos, percebe-se que a orientação política e ideológica do texto em análise possui o negacionismo como alicerce ideológico que sustenta a narrativa. Assim, as escolhas vocabulares, a construção textual das frases, bem como as estratégias retóricas, direcionam a interpretação dos leitores para a legítima defesa do movimento de 1964, como necessário, desacreditando versões que comprovam o contrário. Por meio da ADC, verifica-se que os mecanismos discursivos empregados no texto analisado intencionam construir um cenário de disputa discursiva, em que a versão oficial das Forças Armadas busca confrontar o conhecimento cientificamente construído – que possui validação epistêmica –, equiparando-se sob status de versão ou contra narrativa.
Considerações finais
O debate em torno do negacionismo, em uma primeira formulação, emerge como “molas do processo de manipulação da memória e da história da nossa última ditadura” (Pereira, 2015, p. 879). Cabe aos pesquisadores desvelar as disputas ideológicas a fim de compreender as motivações políticas que as ensejam. Assim, a partir da Análise de Discurso Crítica do texto Apresentação da coletânea 31 de março - 1964, depreende-se que o negacionismo age na atualização da forma sobre o golpe de 1964 e os seus posteriores governos ditatoriais. Ou seja, atualiza a narrativa sobre o contexto ditatorial, com base nos pressupostos do discurso hegemônico controlado pela versão oficial, conforme a modulação do cenário social.
A evocação de um passado idealizado é uma estratégia comum no discurso negacionista, utilizada para promover coesão ideológica e para justificar as práticas autoritárias. Desse modo, as “pessoas comuns”, sendo alheias e/ou deslocadas da realidade, são facilmente cooptadas pelos discursos de negação sobre o caráter golpista, repressivo e autoritário dos governos militares, pois, não era a própria realidade material vivida. Atualmente, essas relações se dão nos ambientes virtuais de interação, onde se amplificam as disputas discursivas, retroalimentando o debate a partir de informações não validadas que se disseminam rapidamente.
Neste sentido, o negacionismo possui sua ação na atualização da forma criada pelas Forças Armadas e que continua cooptando adeptos, pois utiliza-se da atmosfera criada pelo próprio aparelho repressivo do Estado para se estruturar, tais como: censura, repressão ao que atentava à moral e aos bons costumes, criminalização dos movimentos sociais (observados a ascensão dos Movimentos Negros Unificados, Movimento Feminista, entre outros, nas décadas de 1960 em diante), entre outras manifestações sociais.
Com manifesta pretensão política, do texto em análise se compreende que o projeto de memória das Forças Armadas utilizou de estratégias discursivas de negação, como meio de inscrever no campo social a produção de sua verdade histórica. E, que ao utilizar o negacionismo histórico como estratégica discursiva, objetiva a cristalização de uma narrativa única sobre o governo militar muito semelhante à historiografia positivista, dada ênfase no papel das forças armadas motivada por seu patriotismo em defesa da nação.
Com base na ADC, este estudo identificou como elementos textuais e recursos linguísticos são mobilizados para perpetuar ideologias e reforçar uma leitura maniqueísta sobre o período em tela, desassociando o caráter científico das produções que se busca contrapor. Com vistas a conclusão, considera-se que a pesquisa histórica deve enfrentar esses discursos, contextualizando-os dentro de análises críticas que considerem a pluralidade das experiências e a complexidade dos eventos históricos, promovendo uma compreensão mais justa e contextualizada sobre eventos do passado recente.
Agradecimentos
Agradeço ao Uniedu/Fumdes-SC pela bolsa e pelo fomento.
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Aceito em 26/11/2024.
[1]Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH/UFSC) sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Flávia Florentino Varella, vinculada à linha de pesquisa Conexões Globais: teoria, arte e narrativas. Bolsista Uniedu/Fumdes, exercício 2022/2025. Brasil. E-mail:| https://orcid.org/0000-0002-8941-7480
[2] A revisão historiográfica é um processo essencial para a disciplina da história, impulsionado por novas evidências, documentos, perspectivas teóricas e métodos de pesquisa, no entanto, observa-se a sua utilização para fins ideológicos com intuito de instrumentalizar e distorcer o passado. O “revisionismo” discutido neste artigo, é compreendido como a distorção de um passado para justificar eventos traumáticos ou legitimar dominações e violências do presente. Como exemplo da narrativa em que a ditadura militar é representada como uma “democracia golpeada à esquerda e à direita”, que minimiza a repressão e a violência do regime. O “negacionismo histórico” compreende-se como a recusa de eventos históricos, frequentemente por meio da falsificação de fatos e da criação de narrativas falsas. É uma radicalização da negação presente no revisionismo, manifestado em diversas áreas, como a negação do Holocausto, da escravidão, do genocídio indígena e da ditadura militar. Já o relativismo histórico questiona a objetividade da história, podendo ser manipulado pelos discursos negacionistas para defender a ideia de que todas as narrativas sobre o passado são igualmente válidas. Essa apropriação distorce o conceito de relativismo, que, quando usado de forma crítica, reconhece a importância da interpretação e da perspectiva, mas não abre mão da busca pela verdade e da responsabilidade ética. A proliferação de informações e a ascensão das mídias sociais contribuem para a relativização da verdade e a difusão de narrativas negacionistas. Sobre essas relações e distinções, ver em: Macêdo, 2022; Avila, 2021; Silva, 2021; Nicolazzi, 2023; Pereira, 2015; Moraes, 2008; Valim et al., 2021.
[3] As discussões propostas delineiam-se a partir do desenvolvimento do projeto de tese, apresentado ao PPGH-UFSC (Edital 006/PPGH/2020-2021), provisoriamente intitulado: “Cantilena espúria da memória: o revisionismo e a negação de fatos históricos na construção de uma memória única sobre a ditadura civil-militar (1964-1985)”.
[4] Durante a análise do debate legislativo que precedeu a votação do projeto de lei que estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a historiadora Caroline Silveira Bauer destaca a presença dessa teoria nos discursos dos deputados que se opunham à implementação da CNV. Bauer observa que a “teoria dos dois demônios” validou a percepção de dois lados, promovendo a equiparação ética e a responsabilidade compartilhada entre as Forças Armadas e as organizações de esquerda armada. A formulação da teoria dos dois demônios emergiu de uma interpretação da última ditadura civil-militar na Argentina (1976-1983), moldada durante o período de transição política para a democracia. Sua eficácia na construção de uma narrativa específica sobre o passado recente argentino foi tão marcante que consolidou a noção de que apenas os militares e os membros das organizações guerrilheiras foram responsáveis pela violência das décadas de 1960, 1970 e 1980, absolvendo as sociedades em geral desse processo (Bauer, 2017, p. 151).
[5] Esse termo é utilizado pelo historiador Mateus Henrique Pereira, ao discutir a emergência da chamada “Nova Direita” e sua influência política e ideológica em diferentes contextos (2015). Para Pereira, as “Guerras de Memória” se referem aos conflitos e disputas em torno da interpretação e representação da história, especialmente no contexto da atuação da Comissão da Verdade no período de 2012 a 2014.
[7] O historiador francês François Hartog popularizou o termo “presentismo” no campo da análise histórica. Em seu livro Régimes d'historicité: Présentisme et expériencesdutemps, publicado em 2003, Hartog aborda o conceito de presentismo como uma tendência contemporânea de interpretar o passado à luz do presente, inserindo valores, ideias e preocupações atuais em eventos e contextos históricos. Ele argumenta que o presentismo pode distorcer a compreensão do passado e restringir a capacidade de discernir e valorizar as diferenças entre as épocas. Hartog propõe uma reflexão crítica sobre a relação com o passado e como isso afeta a compreensão do presente e do futuro. A obra foi traduzida para o português em 2013 pela editora Autêntica, sob o título: Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo.
[8]ReinhartKoselleck aborda os “estratos do tempo” em seu livro VergangeneZukunft: ZurSemantikgeschichtlicherZeiten, originalmente publicado em 1979. Nesta obra, Koselleck introduz sua teoria dos “espaços de experiência” e “horizontes de expectativa”, explorando como as transformações nas estruturas temporais impactam a compreensão histórica e as expectativas em diferentes épocas. Ele investiga os “estratos do tempo” como parte de sua análise sobre como os conceitos de tempo e história são moldados e remodelados ao longo do tempo. A primeira tradução para o português, intitulada Futuro Passado: Contribuição à Semântica dos Tempos Históricos, foi lançada pela editora Contraponto em 2006.
[9] Ao abordar a Teoria Social do Discurso, Fairclough explora os conceitos de relações de poder, ideologia e hegemonia, baseando-se nas contribuições clássicas do marxismo do século XX de Althusser e Gramsci, embora faça algumas ressalvas (2016, p. 121).
[10]Cf: Análise de Gênero de perspectiva instrumental praticada por Swales (1998) e Bhatia (2004); Ações retóricas típicas, na Sócio-Retórica de Miller (1984); Funções semióticas específicas à cultura, na Linguística Sistêmico Funcional de Halliday (1978) e Conformação, recorrente e progressiva, de significados para realizar práticas sociais em Martin (2002); Textos com características relativamente estáveis, no Interacionismo Sócio-Discursivo de Bronckart (1999).
[11] Tais como: XVII Encontro Regional de História – O lugar da História, realizado na Unicamp (set./2004); XXV Simpósio Nacional de História, realizado em Fortaleza (mar./2004); entre outros eventos promovidos pela Associação Nacional de História (Anpuh).
[12] Revista do Clube Militar “O Tentame Comunista de 1961 - 1964” (abr./2004).
[13] Lei nº 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação”, estabelece procedimentos para acesso à informação e para a classificação de informações sob restrição de acesso. A promulgação dessa lei permitiu contato e estudo dos documentos do Estado a respeito do período ditatorial expandindo e aprofundando, com isso, este campo de estudos.
[15] Lula foi reeleito nas eleições de 2022 para cumprir seu terceiro mandato presidencial, que ocorrerá entre os anos de 2023 e 2027.
[16] Dentre elas, pode-se destacar: José Genoíno: Membro do Partido dos Trabalhadores (PT) e ex-guerrilheiro da Guerrilha do Araguaia, foi presidente do PT e ocupou cargos de destaque na Câmara dos Deputados; José Dirceu: membro do PT, foi ex-guerrilheiro e lutou na resistência contra a ditadura. Durante o governo Lula, ele atuou como Ministro-Chefe da Casa Civil; Tarso Genro: Advogado e político do PT, participou ativamente em movimentos de resistência contra a ditadura. No governo Lula foi Ministro da Educação, Ministro das Relações Institucionais e Ministro da Justiça; Franklin Martins: Jornalista e ex-guerrilheiro, participou do sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Elbrick em 1969; foi Ministro-Chefe da Secretaria de Comunicação Social no governo Lula; Paulo Vannuchi: Militante de esquerda e jornalista, foi preso e torturado durante a ditadura. No governo Lula, foi Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
[17] Em 1964, Dilma iniciou sua militância na Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), aos 16 anos. Depois, em 1969, começou a viver na clandestinidade e foi obrigada a abandonar o curso de economia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que havia iniciado dois anos antes. Em julho daquele ano, o Colina e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) se uniram, criando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). No entanto, ela afirma que nunca participou efetivamente da luta armada. Em 1970, Dilma foi presa e submetida a torturas em São Paulo (Oban e DOPS), no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. As torturas aplicadas foram o pau de arara, a palmatória, choques e socos, que causaram problemas em sua arcada dentária. No total, foi condenada a seis anos e um mês de prisão, além de ter os direitos políticos cassados por dez anos. No entanto, conseguiu redução da pena junto ao Superior Tribunal Militar (STM) e saiu da prisão no final de 1972”. Disponível em: http://memoriasdaditadura.org.br/biografias-da-resistencia/dilma-rousseff/. Acesso em: 21 ago. 2022.
[18] O antipetismo pode ser compreendido como a repulsa à corrupção e ao modo de fazer política em que o Partido dos Trabalhadores (PT) passou a ser o alvo da insatisfação popular contando, em grande medida, com a incitação das mídias de alcance massivo. Um dos movimentos mais significativos do antipetismo são as “Jornadas de Junho (2013)”, movimento iniciado a partir da reivindicação do aumento da passagem do transporte coletivo em São Paulo e que chegou a contar com 1,25 milhões de pessoas nas ruas de cerca de 130 cidades do Brasil. As pautas das manifestações estenderam-se na cobrança de políticas públicas eficientes relacionadas à saúde, à educação, à habitação e no combate à corrupção. Esta última foi aglutinada contribuindo para a construção do “antipetismo” observado até o presente momento. Sobre este movimento, ver em: Quadros; Bartz; Nunes, 2017.
[19] Convém destacar que as políticas de reparação, como indenizações às vítimas e/ou aos familiares, iniciaram no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que ocorreu de 1995 a 2002. Como exemplo dessas políticas de reparação, houve a criação das Comissões de Mortos e Desaparecidos (1995) e a Comissão de Anistia (2001), proporcionando reconhecimento e compensações financeiras às vítimas da ditadura militar.