Apresentação



“África” e “Negro” – uma relação de co-produção liga estes dois conceitos. Falar de um é efetivamente evocar o outro. Um concede ao outro o seu valor consagrado. Dizemos que nem todos os africanos são negros. No entanto, se África tem um corpo e se ela é um corpo, um isto, é o Negro que o concede – Pouco importa onde ele se encontra no mundo. E se Negro é uma alcunha, se ele é aquilo, é por causa de África. Ambos, o isto e o aquilo, remetem para a diferença mais pura e mais radical e para a lei da separação. Um confunde-se com o outro, e um pesa no outro com o seu peso contagiante, simultaneamente sombra e matéria. Os dois são resultado de um longo processo histórico de produção de questões de raça.

Achille Mbembe

 

Apesar de serem considerados campos epistemológicos distintos, a História das Áfricas e a das Diásporas Africanas unem-se por um traço comum e indissociável: como sugere o historiador e filósofo camaronês Achille Mbembe, um longo processo histórico de produção de sentidos forjou a ligação ontológica entre os conceitos de “África” como território subalterno e de “Negro” como identidade racializada. Pensar sobre a História das Áfricas e das suas Diásporas, das vivências, narrativas e memórias de sujeitos africanos e afrodescendentes é, pois, refletir sobre uma impossibilidade heurística imperiosa, a denegação de que estes homens e mulheres, situados em diversas temporalidades e espaços, compartilharam uma experiência comum incontornável: a racialização.

Este número da Revista Fronteiras e seu dossiê “África e suas diásporas: perspectivas e diálogos sul-sul” reúne uma gama qualificada de pesquisas históricas – ou que dialogam com a história – que se debruçam sobre memórias de resistência e de circulação nas Áfricas e no Atlântico Negro. É inegável que as “efabulações da ocidentalidade”, inauguradas na modernidade e perpetuadas por inúmeros dispositivos e constructos de subalternização da diferença, estão presentes na trajetória das mulheres e dos homens apresentadas neste dossiê, contudo, convidamos aos leitores a exercitar um deslocamento de olhar para evidenciarmos aqueles que são, de fato, protagonistas destas histórias, os sujeitos que exprimem novas formas de ser, estar e de se perceber no mundo.

O presente dossiê surgiu no diálogo do coletivo que compõe o GT de História da África, sessão ANPUH - Santa Catarina, com o objetivo de publicizar pesquisas acerca de estudos africanos e afro-brasileiros. Congregamos produções multidisciplinares que versam sobre as Áfricas e suas diásporas em perspectiva decolonial, ou seja, por meio de problematizações à centralidade do saber epistêmico ocidental/colonial, propondo uma ampliação teórica e a valorização das epistemologias do sul, que pensam sobre, com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalternizados. Assumindo a perspectiva de ‘giro decolonial’ ou de ‘opção decolonial’, a partir de literaturas sul-sul, o dossiê, aqui apresentado, reúne trabalhos que se propõem romper com a lógica da colonialidade/modernidade (Castro-Gòmez; Grosfoguel, 2007).

Nesta edição, temos a alegria de apresentar a tradução para o português do artigo “What is Decolonial Critique?”, do professor e filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres, ainda inédito no Brasil. Maldonado-Torres, importante teórico dos estudos decoloniais, aborda, em seu texto, como se projetam os mecanismos de perpetuação da colonialidade na teoria crítica e filosofia europeias. O autor destaca que, mesmo em projetos de “diversidade e inclusão”, a colonialidade do conhecimento permanece reforçada através de mecanismos de inclusão seletivos e práticas epistemológicas domesticadoras no interior da academia. Esta importante contribuição de Madonado-Torres nos provoca a refletir se a crítica acadêmica pode ser, de fato, decolonial, quais as formas decoloniais de crítica possíveis, seus alcances e seus limites imperativos. Além do artigo do professor Maldonado-Torres, traduzido do inglês pelos pesquisadores Fábio Amorim e Tathiana Cristina da Silva Anizio Cassiano, estão presentes no dossiê quinze artigos que se deslocam entre as Áfricas, o mundo transatlântico e as experiências de afrodescendentes no Brasil.

Dentre os artigos, ressaltamos nove trabalhos com temática africana, indicando o interesse cada vez mais crescente de pesquisa de investigadores/as latino-americanos/as em Áfricas: Gabriel Mathias Soares em seu artigo Senhores e Corruptores: os portugueses nos escritos árabes da Costa Suaíli no início dos século XVI, apresenta, através de fontes epistolares árabes, um estudo de caso sobre a presença portuguesa na Costa Sualí - África Oriental, demonstrando a dinâmica complexa dos impérios coloniais nos territórios ocupados, e a agência dos povos colonizados. No artigo Saara Ocidental, a última colônia africana: reconhecimento internacional, etnicidade e os aspectos de uma guerra invisível, Edmar Avelar de Sena e Nicole Horta de Freitas analisam a formação e transformação das identidades étnicas na região do Sahara Ocidental, onde o povo Saharauí, por autodeterminação, reivindica parte deste território. O artigo sugere que os impasses, em relação ao direito de soberania na região disputada, resultam da inadequação das leis do direito internacional para regulação de territorialidades forjadas por sistemas de poder e de etnicidade singulares, próprios da região. Por sua vez, Monalisa Aparecida do Carmo, em Escrevivências e cosmopercepções: movimentos e encontros transatlânticos na travessia Brasil - Moçambique, discorre, a partir dos pressupostos de uma escrita de “escrevivência”, sobre sua experiência de deslocamento, como uma mulher preta, pesquisadora, disposta a discutir cosmopercepções e ancestralidades em território moçambicano, pensando nesta experiência de repensar as rotas transatlânticas e sua relação com Moçambique como uma “demanda ancestral de um corpo político”. No artigo O pensamento transatlântico de Carmelita Afonseca Silva: um diálogo Sul – Sul, Alesandra Oriente e Patrícia Macarinni Moraes, registram o diálogo com a socióloga caboverdiana Caremelita Silva. A interlocução entre os pesquisadores-entrevistadores – e aqui pensados como co-autores – e a socióloga centra-se na discussão do projeto de branqueamento pela mestiçagem e na construção de conceitos como identidade, que aproximam Cabo Verde e o Brasil.

Na sequência, apresentamos duas contribuições na intersecção da História e da Literatura, mais especificamente, da Literatura Nigeriana. Em “Women are Different”: colonialismo e educação de meninas igbos na literatura de Flora Nwapa, Tathiana Cristina da Silva Anizio Cassiano analisa diferentes experiências históricas de mulheres igbo-nigerianas ao longo século XX, através da narrativa da escritora igbo Flora Nwapa. A autora destaca o violento papel do colonialismo britânico na formação intelectual das elites nigerianas, e as contradições desta dinâmica de opressão, que proporcionou, às mulheres igbos nigerianas escolarizadas, forjar formas de emancipação e protagonizar mudanças em suas comunidades de origem. Apesar da importância de Flora Nwapa para a literatura nigeriana, e do sucesso editorial em língua inglesa, o livro “Women are Different” até o momento encontra-se sem tradução no Brasil, a autora apenas recentemente teve um de seus romances traduzidos para o português. Ainda em se tratando de literaturas nigerianas de expressão inglesa, Thalia Faller e Emy Francieli Lunardi apresentam, em Palavras de mundos plurais existentes e possíveis: Sefi Atta e o ensino de História da África nas escolas, as possibilidades do uso da literatura africana para o ensino de História das Áfricas e da Educação para as Relações Étnico-raciais. As autoras apresentam uma proposta de diálogo com o romance “Tudo de bom vai acontecer” da escritora nigeriana Sefi Atta, no intento de pensar como a literatura pode nos ajudar a refletir sobre questões de raça e etnicidade, contribuindo para uma educação antirracista. O romance de Atta se passa em meio a Guerra de Biafra, importante conflito civil que marcou a história da Nigéria.

Dois dos artigos deste dossiê destacam a área de estudos da diáspora contemporânea e discutem problemáticas que envolvem deslocamentos transfronteiriços, de forma transnacional, no tempo presente. Em Mulheres e tráfico de drogas nos países africanos de língua portuguesa: uma análise bibliográfica e de conteúdo, Silviana Fernandes Mariz e Francisco Thiago Rocha Vasconcelos nos apresentam uma intensa investigação documental no campo das ciências humanas, a partir de pesquisas que discutem o lugar de mulheres africanas oriundas de países de língua portuguesa – Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde – nas redes de tráfico de drogas na América Latina, África e Europa. Os autores apresentam como essas mulheres são representadas nas pesquisas sobre tráfico ilegal e deslocamentos indocumentados, a partir de diversos atravessamentos e identificações: a mulher “migrante”, “africana”, “prisioneira” e “mula”. Por sua vez, Michelle Maria Stakonski Cechinel e Gláucia de Oliveira Assis, em um estudo meticuloso realizado a partir da pesquisa de campo etnográfico com uso da metodologia da história oral, intentam apresentar uma nova face da diáspora africana contemporânea, ao identificar alguns vetores do início da migração de ganeses no Brasil. No artigo Ganeses da Copa: indícios da formação de um fluxo migratório no tempo presente, as autoras apresentam algumas interpretações da conformação destes deslocamentos transnacionais, até então desconhecidos, e associam as políticas governamentais de subsídio de torcedores da República de Gana em eventos internacionais às estratégias pessoais de migração, permanência e circulação de ganeses no país, durante o período da Copa do Mundo Fifa de 2014.

Apresentamos ainda, o trabalho de Igor Santos Carneiro e Tatiana Raquel Reis Silva em Podcast como ferramenta para o ensino de História da África. Os autores abordam, através da experiência de elaboração de um podcast como “produto educacional”, a potência da utilização de metodologias audio-visuais como ferramentas pedagógicas de ensino, úteis para a construção de novos conhecimentos sobre a História das Áfricas.

Com relação às pesquisas com enfoque na História e cultura afro-brasileira, o presente dossiê apresenta seis artigos. Iniciamos com o de Maicoln Viott Benetti, intitulado Poesia e arte no Brasil meridional: Cruz e Sousa e o pensamento científico na segunda metade do século XIX. O artigo indica as relações do poeta e escritor Cruz e Sousa com o pensamento científico de seu tempo e se propõe a destacar como o poeta, através de seus textos poéticos, questionou e confrontou a sociedade escravista brasileira. O artigo Desvelando a Rua Camboa do Carmo: Escravidão Urbana e Resistência no Recife do Século XIX [Recife: 1839 – 1849], de Graziella Fernanda Santos Queiroz e José Bento Rosa da Silva, apresenta um estudo realizado a partir do inventário da africana liberta Rosa Rodrigues dos Passos. Os autores nos levam, a partir da fonte inventarial, ao cotidiano citadino de sujeitos em situação de escravidão e libertos no Brasil, bem como as táticas de liberdade compartilhada pelos residentes na rua Camboa do Carmo, na Recife do século XIX.

Após conhecermos os espaços de sociabilidades e as formas resistências à escravidão na cidade de Recife, nos movemos para Sul do Brasil com os artigos “Não tinha nenhum valor material, mas tinha sentimental”: o território negro do Rosário na cidade de Laguna/Santa Catarina, de Willian Felipe Martins Costa; e Margarida Maria de Jesus: protagonismo e trajetória negra no Sul do Brasil, de Dâmaris Szytko e Renilda Vicenzi. Em Laguna somos apresentados à irmandade de Nossa Senhora do Rosário. A partir de fontes escritas e orais, o autor narra as experiências de pessoas negras, suas formas de pertencimento e constituição de identidades, entre afrodescendentes, no interior da irmandade religiosa. O texto das pesquisadoras Szytko e Vicenzi sobre Margarida Maria de Jesus narra, em perspectiva interseccional, a trajetória e as redes de sociabilidade de uma mulher que lutou pela sua própria liberdade em Lages, cidade catarinense. As autoras, que apresentam uma importante pesquisa utilizando-se de registros eclesiásticos, cartoriais e judiciais, mostram como a liberta em 1884 rompeu com estruturas de classe, raça e gênero, e, após a conquista da liberdade, constituiu um legado familiar.

Retornando ao nordeste do Brasil, acompanhamos a pesquisa de Lailson Ferreira da Silva e Eunice Sueli Nodari no artigo Planejamento urbano e conflitos sociais em Redenção, Ceará. Este estudo apresenta, através de entrevistas, as formas de resistências e exclusão na cidade de Redenção, localizada no Ceará. Os autores identificam nas estratégias de reforma e planejamento urbano algumas narrativas associadas a um discurso desenvolvimentista e de melhoria das condições de vida da população, porém, a partir do olhar e memória dos diversos atores sociais envolvidos, interpretam que o processo de reforma urbana em Redenção não foi democrático e não contou com a participação da sociedade civil.

 Por fim, no artigo A matrilinearidade é solar: potências afrorreferenciadas em Beyoncé, Vinícius Oliveira e Maria Simone Euclides nos conduzem pelas multidimensões de maternidade e de matrilinearidade em obras musicais da artista afro-estadunidense Beyoncé. A partir da análise de Lemonade (2016) e The Gift/Black is King (2019; 2020), os autores identificam elementos de afrorreferencialidade na obra da artista e seus possíveis impactos na discussão sobre identidade negra e maternidade.

Este conjunto de trabalhos parte de lugares epistêmicos diversos; esboça temporalidades e espaços singulares; busca em fontes epistolares, eclesiásticas, cartoriais, inventariais, orais, etnográficas, musicais e nas literaturas africanas vestígios para a interpretação histórica de fenômenos específicos, que envolvem as Áfricas, o Atlântico Negro e as diásporas de africanos e afrodescendentes pela América. São estudos que se intitulam como pertencentes ao campo da História das Áfricas, da Escravidão, do Pós-Abolição, do Tempo Presente e da Decolonialidade. O leitor e a leitora deste dossiê encontrará, nas próximas páginas, artigos escritos em lugares de enunciação distintos, porém, todos dialogam no sentido de construir outras narrativas históricas que envolvam a História das Áfricas, dos africanos, dos afrodescendentes e das suas Diásporas, com abordagens multidisciplinares, mas, em especial, dialogam com a preocupação de trabalhar com as questões etnicorraciais, como justiça epistêmica e social. Ou, como diria Achille Mbembe, “Tudo isso é pela reparação, isto é, por uma ampla concepção da justiça e responsabilidade”.

Ainda, cabe destacar a imagem da capa deste dossiê, onde temos uma representação de presença negra em Santa Catarina. Em destaque estão Sebastião Ataide (1923-2003) e Neli Maria Alves de Lima Ataide (1934) em desfile carnavalesco, vestidos com as cores da Escola de Samba Unidos do Ritmo Castro Alves – URCA, no Carnaval de 1988, na cidade de Lages-SC. Sebastião Ataide (1923-2003) escreveu e publicou no centenário da abolição o livro ‘O negro no planalto lageano’, com a narrativa que entrelaça história e memórias do protagonismo de pessoas negras em Lages - SC.

 

Profa. Dra. Michelle Maria Stakonski Cechinel (UNESC)

Profa. Dra. Renilda Vicenzi (UFFS)

Organizadoras do Dossiê Áfricas e suas diásporas: perspectivas e diálogos sul-sul

 

Referências bibliográficas

CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (coords.) El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá. Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar. 2007.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.