Desvelando a Rua Camboa do Carmo: escravidão urbana e Resistência no Recife do Século XIX [Recife: 1839 – 1849]

Unveiling Camboa do Carmo Street: Urban Slavery and Resistance in 19th Century Recife [Recife: 1839 – 1849]

                                                                                             Graziella Fernanda Santos Queiroz[1]

José Bento Rosa da Silva[2]

 

 


Resumo

Este artigo acompanha a história cotidiana da Rua Camboa do Carmo no Recife do século XIX, entre 1839 e 1849, tendo como ponto de partida o inventário de Rosa Rodrigues dos Passos, uma africana liberta sem filhos ou companheiro, que deixa alguns bens para seus malungos, possivelmente sequestrados da mesma região do continente africano. Utilizando principalmente periódicos da época, bem como uma observação inspirada no flâneur de Walter Benjamin (1989), são evidenciados apelos, rotinas, ocupações, condições de vida de diferentes grupos da localidade, mas, principalmente, as peculiaridades da escravidão urbana, destacando a resistência dos escravizados, as fugas para dentro e as possibilidades de agência, acordos e irmandades entre pessoas numa mesma situação. A análise das condições sociais, econômicas e políticas da época dos moradores residentes na Camboa do Carmo juntamente às possibilidades da experiência individual de Rosa, oferece uma compreensão mais profunda desse período histórico, demonstrando a persistência em buscar autonomia e liberdade, apesar das restrições impostas pelo sistema escravista.

Palavras-chave: Rua Camboa do Carmo; Escravidão urbana; Flâneur; Autonomia.

Abstract

This article follows the everyday history of Camboa do Carmo Street in 19th century Recife, between 1839 and 1849, starting with the inventory of Rosa Rodrigues dos Passos, a freed African woman without children or a partner, who leaves some belongings to her malungos, possibly kidnapped from the same region of the African continent. Using primarily periodicals of the time, as well as an observation inspired by Walter Benjamin's flâneur, appeals, routines, occupations, living conditions of different groups in the locality are evidenced, but mainly the peculiarities of urban slavery, highlighting the resistance of the enslaved, escapes inward, and possibilities of agency, agreements, and brotherhoods among people in the same situation. The analysis of the social, economic, and political conditions of the time of the residents living in Camboa do Carmo together with the possibilities of Rosa's individual experience offers a deeper understanding of this historical period, demonstrating the persistence in seeking autonomy and freedom despite the restrictions imposed by the slave system.

Keywords: Camboa do Carmo street; Urban slavery; Flâneur; Autonomy.


 

 

 

 

 

Camboa & Gamboa: à guisa de introdução

Voltei Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço (Alceu Valença).

 

Ao caminhar pelas ruas do Recife durante os dez anos em que lá moramos sempre nos perguntávamos pelos nomes das ruas: Rua das Creoullas, Beco da Fome, Camboa do Carmo, Rua das Ninfas, Rua da Moeda, dentre outras. Sempre nos chamou atenção nomes de ruas que não se remetem aos grandes homens da História nacional ou local. Foi assim que nos perguntamos sobre a Camboa do Carmo. A resposta veio tempos depois, quando fomos analisar um dos muitos processos que havíamos digitalizado no Memorial da Justiça de Pernambuco, cotejando-o com as notícias veiculadas nos periódicos disponíveis no acervo digital da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, ao nosso alcance na internet[3].  

O documento acima mencionado trata do inventário de uma liberta africana, de nome Rosa Rodrigues dos Passos, do ano de 1849, disponível no Memorial da Justiça do Estado de Pernambuco[4]. Manuseando-o, ficamos sabendo que ela fora propriedade de um comerciante português que residia no Recife, e que, no leito de morte, libertou-a, no ano de 1839. Dez anos mais tarde, portanto, no ano de 1849, ela, também adoentada, fez seu testamento. Por esta razão estava definido o nosso recorte temporal.

Inspiramo-nos em Walter Benjamin, ‘metamorfoseamo-nos’ em Flâneur do século XXI, e ‘caminhamos’ pela Camboa através das notas dos jornais, visando conhecer o território na época em que Rosa e tantas outras pessoas escravizadas, libertas e/ou livres nele circularam pelos mais diversos motivos. Se hoje ‘caminhamos’ pela Camboa utilizando-nos dos periódicos disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, é preciso que se diga que já o fizemos presencialmente, quando morávamos no Recife.

Assim, para este estudo, adotamos uma abordagem documental e histórica, combinando micro-história em movimento[5] com a análise de fontes primárias. Analisamos o inventário de Rosa para mapear as relações de amizade (compadrio) e econômicas entre pessoas escravizadas, libertas e livres negras, destacando suas redes sociais e econômicas. Complementamos essa análise com pesquisas em jornais da época, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, para contextualizar a presença e o comércio de pessoas escravizadas. Cruzamos dados do inventário, bibliografia sobre o período bem como informações dos periódicos, garantindo uma compreensão mais aproximada do passado.

Rosa morava na Rua Camboa do Carmo, na cidade do Recife, como veremos ao longo deste artigo. Nossa primeira preocupação foi saber a possível origem do nome da Rua; nossa hipótese era que ele tivesse alguma relação com os africanos escravizados falantes de línguas bantu. Consultamos o pesquisador Nei Lopes que confirmou nossa hipótese. Segundo ele: “refere-se ao quimbundo mboa, resultante de kubola, alagar. Lembramos o quicongo mbu, grande lago, mar, oceano” (Lopes, 2003, p. 60). Por sua vez, é sinônimo de Gamboa; que é uma região da cidade do Rio de Janeiro, conhecida como um dos “redutos” do samba, próximo da área portuária. No Estado de Santa Catarina, há uma praia, também com esta denominação. Como podemos notar, a palavra está relacionada geograficamente a lugares alagadiços ou de alagamentos. No Recife do século XIX, a Rua não fugia a esta característica, conforme uma reclamação de um leitor, num jornal local:

Tendo tido a câmara municipal desta cidade tanto cuidado com o esgotamento das águas das ruas que ficam alagadas pelo inverno não tiveram a fortuna ainda de gozarem deste benefício os moradores da Rua da Camboa do Carmo, que se tem visto este ano em um mar de Espanha cercados por todos as partes sem poderem sair de suas casas a tratarem da vida, e até aqueles que são empregados públicos se veem na necessidade de faltarem as suas obrigações para não chegarem descalços, ou de pagarem a pretos, que os conduzam às costas. Queiram senhores redatores publicar estas mal traçadas linhas, afim de ver se o Exm. Sr. Presidente, que tanto se tem esmerado no melhoramento desta capital, determina a câmara que também se lembre dos pobres moradores da Rua da Camboa do Carmo que também são contribuintes, e assim devem gozar dos benefícios que os moradores das outras estão gozando.        

Sou & c. & c.

Um morador da Camboa.[6]

 

Convidamos os leitores a nos acompanhar por esta movimentada rua, que, além dos alagamentos revelados pelo leitor apócrifo, nos revelará outros aspectos da Camboa oitocentista.

 

Um observador à janela

O flâneur é um observador do mercado. O seu saber é vizinho à ciência oculta da conjuntura. Ele é no reino dos consumidores o emissário do capitalista (Benjamin, 1989, p. 199).

 

Não estamos fisicamente diante de um mercado, tampouco na rua, estamos numa ‘janela’ que abrimos no notebook, para observarmos uma Rua do Recife no século XIX, como já mencionamos, através dos periódicos[7]. Deste lugar privilegiado do século XXI, podemos testemunhar toda a rua, como se estivéssemos num pan-óptico idealizado por Bentham [séc. XIX] e analisado Michel Foucault [séc. XX], sem que as pessoas nos possam ver. No entanto, nosso objetivo não é vigiar, apenas conhecer, entender, compreender o contexto no qual esteve inserida a africana liberta Rosa Rodrigues dos Passos[8]. As fontes privilegiadas para este exercício de observação, numa perspectiva arqueológica, são os periódicos e o testamento de Rosa.

Uma casa, sob o número dezenove da referida rua, convidava os leitores a experimentarem ‘a essência da formosura’, descrevendo suas características: “cosmético suave e de doce aroma, amacia, limpa e clareia a pele, tira as sardas, panos, espinhas e toda espécie de nodoas e manchas, tira o mal hálito da boca, fortifica as gengivas, preveni as dores de dente, dentre outras”. Tal produto era originário do oriente [China], como indicava o seu nome em letras garrafais: “LICUOR DA CHINA”[9].

Encontramos muita movimentação na casa de número 12 e suas adjacências, sem, no entanto, identificarmos o seu proprietário. É possível que tenha sido um prédio com mais de uma família, devido à sua divisão identificada através de letras, como por exemplo, casa D 12; ou ainda um ponto comercial; anúncios de compra e venda de escravizados, lugar de ‘entrega’ de cativos capturados em fugas e/ ou de objetos encontrados: “Precisa-se de um homem para uma padaria e que esteja acostumado a vender pão na rua, como também de pretos ou pessoas forras para venderem pão pagando-se-lhe a vendagem, sendo cativos que seus senhores responsabilizem pelas faltas”[10]. Um leitor, morador na casa 12, que não se identificou, reclamou, na edição número 127 do ano de 1844 no Diário Novo, a fuga de dois escravizados, descrevendo-os: um era Antônio, o outro Marcolino.

 

Figura 1: Fuga de Antonio e Marcolino

Fonte: HDBN. Diário Novo. Recife, 1844. Ed. 127, p. 04.

 

Pelo que se observa, era a mesma pessoa que havia oferecido vagas em sua padaria, vejamos: “[...]Roga-se a todas as autoridades policiais e principalmente aos capitães de campo, hajam de os prender e levá-los à padaria da Camboa do Carmo casa 12 que generosamente serão recompensados”[11]. Diga-se de passagem, não foi a primeira nota de fuga de cativos deste número; Maria, conga, já havia fugido anos antes. Não sabemos se foi capturada[12].

Meses depois da notícia acima, o morador da mesma casa da Rua da Camboa do Carmo voltou a publicar no Diário Novo: fora vítima de um furto, não exatamente ele, mas alguém de sua família. A nota revela que o reclamante era uma pessoa de posses, talvez o proprietário dos escravos fujões, o dono da padaria:

Furtaram na noite de 28 para 29 do passado, do pescoço de uma criança de 11 meses uma volta de cordão grosso de ouro, de dois palmos de comprimento, com o peso de seis oitavas pouco mais ou menos, uma figa de ouro com mais duas oitavas, e um buziozinho encastoado em ouro. Roga-se a qualquer pessoa a que for oferecido estes objetos, ou qualquer um de per si, que os apreenda e a pessoa que os oferecer, e leve à Camboa do Carmo, n. 12 que se recompensará generosamente.[13]

 

Antes deste furto, outra perda havia sido registrada no Diário de Pernambuco pelo morador da residência 12 da Camboa; tratavam-se de botões de ouro: “Perdeu-se na manhã do dia 7 do corrente, desde a Rua das Cruzes até a Camboa do Carmo, três botões de ouro de abertura, tendo um deles uma pedra. Quem os achar e restituir, dirija-se a Camboa do Carmo D.12, que será recompensado”[14].

Também se vendiam e se compravam escravizados no referido número da Camboa:

[Vende-se] “para fora da província, um cabra de 20 a 30 anos, bom trabalhador de enxada, carreiro. Na Camboa do Carmo no sobrado de um andar D.12”[15];

[Compra-se] “Um preto pedreiro, e outro carpina, na Camboa do Carmo, sobrado de um andar, D.12”[16];

[Vende-se] “Uma escrava, boa vendeira, por necessidade; na Camboa do Carmo D.12”[17];

[Vende-se] “Uma escrava, bem moça e recolhida, faz lavarinto, e cose chã. Na Rua da Camboa do Carmo, D.12”[18].

 

Dois anos após aquela nota de ‘precisa-se de um homem para padaria’, como se viu acima, o proprietário desta, parece não haver solucionado o problema. Agora, além de fazer propaganda do seu produto, ofereciam-se vagas para pretas vendeiras: “Na padaria da Camboa do Carmo n. 12, fazem-se deliciosos pastéis e bolo de nata, pudim e bolo inglês, tudo com o maior asseio possível. Na mesma casa precisa se alugar pretas para venderem bolos”[19].

A movimentada Camboa era também uma oportunidade para fugas de escravizados. Rosa, que pertencia a Francisco José de Souza, aproveitou ‘um vacilo’ de seu senhor e ‘picou a mula’, sumiu no meio da multidão, deixando Francisco ‘a ver navios’. A ele não restou alternativa, senão, publicar a sua fuga, oferecendo uma boa recompensa a quem encontrasse ‘a fujona’. Para facilitar a busca, como de praxe, descreveu-a com detalhes:

Francisco José de Souza, protesta contra toda e qualquer pessoa, que tiver em seu poder uma sua escrava, que fugiu dia 15 do corrente, outubro de 1838, as onze horas do dia, de nome Rosa, nação Camondongo, vindo em companhia do mesmo seu senhor, que quando olhou para traz não a viu mais, o que se atribui com toda certeza que ela esteja por ali oculta, e por isso roga a todas as autoridades, deste, e de outras comarcas, pessoas particulares, e capitães de campo de fazerem toda diligência para apreender, pois tem os sinais seguintes: altura regular, cor fula, e é bem falante, e talvez se intitule por forra; cara redonda, cheia de corpo, e mete alguma coisa um joelho para dentro, e tem uma orelha rasgada de brinco, levou vestido um vestido de cassa branco com bordadura por baixo, outro chita com assento branco palmas roxas, já velho, e uma saia preta já velha, e um pano preto usado. Quem a pegar pode levá-la a seu senhor morador na Soledade n. 17, que pagará generosamente.[20]

 

Rosa escapou das mãos do seu senhor em plena luz do dia, talvez por seu desleixo, mas ele preferiu acreditar que houvesse na Camboa do Carmo algum ‘coiteiro’ dando abrigo a ela; era uma hipótese. Mas, também, não se pode desprezar as estratégias dos escravizados que conseguiam fugir, entre elas, se passar por forro, como advertiu o próprio Francisco, caracterizando-a como ‘bem falante’, ou seja, uma ladina, como se dizia na época.

Nesta movimentação da Camboa do Carmo, nossa atenção voltou-se para a presença de africanos escravizados, antes e depois das leis anti-tráfico, sobretudo a de 7 de novembro de 1831, que ficou conhecida na historiografia como ‘Lei Para Inglês Ver’, devido ao fato dela jamais ter sido cumprida, conforme Clóvis Moura (2004, p. 240); e a Lei n. 531, de 4 de setembro de 1850, a conhecida Lei Eusébio de Queirós. Após ambas, os africanos continuaram chegando ao Império do Brasil, de forma clandestina, e mesmo sob os olhos de muitas autoridades que ‘faziam vista grossa’, como apontam as pesquisas. Para a região de Pernambuco, destacamos as pesquisas de Marcus Joaquim Maciel de Carvalho (2010)[21]. Em vista da limitação do tráfico, o preço dos africanos escravizados, conhecidos também como boçais, com certeza deve ter aumentado; embora poucos anúncios de compra e venda publicassem o valor das ‘peças da Índia’[22].

Pela idade destes africanos noticiados nos periódicos, é possível especular a época em que desembarcaram no Império do Brasil, se antes ou depois das referidas leis. Por exemplo: o Diário de Pernambuco, na edição número cinco do ano de 1851, publicou na coluna Vendas: “a preta de nação, de 22 anos, sem achaques nem vícios, própria para o serviço de casa ou rua”[23]. Quem tivesse interesse deveria dirigir-se à Venda da esquina da Camboa do Carmo. Há duas possibilidades de interpretação: tendo ela nascido em 1829, deve ter desembarcado na condição de escravizada legal com menos de três anos de idade; ou desembarcado de forma ilegal, após a lei de 7 de novembro de 1831. Os que conseguissem provar juridicamente que desembarcaram neste lado do Atlântico depois desta lei, eram considerados africanos livres. Manuseamos alguns processos e acompanhamos a conquista da liberdade de alguns africanos escravizados no Recife oitocentista.

Havia também na Camboa, além da padaria com bolos “made in Inglaterra”, como vimos acima, e da casa com cosméticos vindos da China, objetos para costuras mais sofisticadas vindas de Lisboa: “Quem anunciou querer um roquete de pregas, dirija-se a Camboa do Carmo, sobrado de dois andares D.11, que achará um de excelente gosto chegado ultimamente de Lisboa”[24].

Uma boa folha de flandres, tão necessária na época, podia ser encontrada na loja de funileiros da Camboa, como também os trabalhos de cortar vidros para vidraças, lampiões, e toda obra de folhas. Segundo o anúncio: “à preços módicos”[25]. “Uma Ama para todo o serviço de portas a dentro, sendo casa de homem solteiro ou viúvo”, também se encontrava na Camboa com a Rua das Flores, n. 08”[26].

Na Camboa também havia oportunidade para o aprendizado das meninas, certamente, as filhas dos que possuíam um mínimo necessário, para além da sobrevivência. Um deles, o segundo, mencionava o preço das aulas e do possível ‘pensionato’, o outro não. Vejamos:

No beco tapado, do defunto Manoel Vicente, na Camboa do Carmo, casa D.2, abre-se uma escola para meninas, ensinando-lhes a ler, escrever, contar, coser, bordar, fazer flores etc. e também se aceitam meninas para morar na mesma, caso não tenham assistência na praça, aonde serão instaladas e zeladas com toda decência[27]

Na Camboa do Carmo, sobrado de um andar, n. 21 ensinam-se meninas a ler, escrever, e contar, doutrina cristã, cozer chão, bordar, fazer lavarinto e marcar, pelo módico preço de 1.200, também se recebe algumas pensionistas a nove mil rs.[réis] mensais, e pardinhas, creoulinhas e escravas por menor preço. A pessoa que a isto se propõe em muita prática pois ensina nesta capital há mais de doze anos e promete esmerar-se no adiantamento de suas alunas.[28]

 

Observem que uma ‘escola’ data do ano de 1835, e a outra de 1840, na mesma Rua, mas em números diferentes. A segunda aceitando pardinhas e creoulinhas, mesmo que por menor preço.

Posteriormente, em 1848, o Padre Manoel Thomaz da Silva também estabeleceu uma casa de ensino literário, ao que nos parece, para o gênero masculino: “O Padre Manoel Thomaz da Silva se oferece aos habitantes do centro da província para dar a seus filhos educação literária, e religiosa, morando este na casa do anunciante, na Camboa do Carmo, sobra de 2 andares, n. 19”[29].

E a casa n. 12 da Camboa do Carmo! Lembram-se dela? Pois bem, para além da relação com comércio de escravizados e afins, as notas de jornais revelaram outra característica sua; parece-nos que por ali moraram pessoas que tinham o hábito da leitura, no entanto, por razões que desconhecemos, em certo momento resolveram se desfazer de alguns dos seus clássicos: “A obra de Tito Lívio, Virgílio, uma Fábula e uma Gramática Francesa, tudo em bom uso, e por preço cômodo. Na Camboa do Carmo, sobrado D. 12”[30]. Em outra edição reforçaram a oferta da Gramática Francesa: “A pessoa que anunciou no Diário n. 482, precisar de uma Gramática Francesa; dirija-se a Camboa do Carmo, sobrado D. 12”[31].

Malgrado toda a movimentação da Rua, parece-nos que a administração pública, em alguns momentos, não esteve atenta, tanto é que, além daquela queixa dos alagamentos na rua, outras denúncias de desatenção do poder público com a respectiva via foram veiculados nos periódicos, ao menos no período em que estivemos observando seu cotidiano. Por exemplo, no que tange à iluminação pública, na noite de 04 de março do ano de 1846, o lampião da referida rua ficou sem manutenção, colocando em risco a integridade dos que por ali transitavam[32]. Anteriormente, um morador, que preferiu não se identificar, fez uma reclamação ao Diário de Pernambuco, quanto à falta de atenção por parte do fiscal:

Roga-se ao Ilmo. Sr. Fiscal do Bairro Santo Antônio, haja de lançar suas vistas sobre o estreito beco da Camboa do Carmo que segue para a Rua das Flores, e desta para atrás do Carmo cujas ruas se acham intransitáveis por um senhor que está fazendo obras dentro de uma casa sua que fica dentro do beco pois que ficando-lhe a praia tão perto da obra tem de propósito posto as ruas intransitáveis com seu  entulho e agora que tem botado no beco, a ponto de entrar para dentro das casas dos vizinhos pela altura do entulho contra as Posturas da Câmara.

                                                                            Um dos ofendidos.[33]

 

No entanto, na década de 1840 e 1850, algumas desapropriações foram realizadas pelo poder público, visando ao alargamento da rua, conforme um edital veiculado no Diário Novo[34]. A casa n. 02, propriedade do português José da Costa Dourado, que se encontrava em Portugal, foi uma das desapropriadas, pois que obstruía o livre trânsito à Rua das Flores[35].

Foi em uma das casas desta rua que viveu e faleceu a africana liberta, originária do Congo, Rosa Rodrigues dos Passos. O pouco que sabemos dela está contido no seu testamento ditado no ano de 1849. Neste, os três testamenteiros foram pretos forros, qual seja, ela confiou o testamento a malungos. Segundo Nei Lopes, Clóvis Moura, Arthur Ramos (1942), Aires da Matta Machado Filho (1943), dentre outros, a palavra malungo tem origem no quimbundo [ma’luga] e significa companheiro, camarada. Segundo Lopes (2003), era a forma como os africanos escravizados tratavam seus companheiros de infortúnio nos navios negreiros. É possível que após a travessia da calunga grande [mar] os que vieram no mesmo navio negreiro, e tivessem o mesmo destino, continuassem a se tratar como companheiros, ou seja, como malungos.

Rosa, José, João e Josefa, passaram pela experiência da escravidão. A primeira era natural do Congo, os demais não sabemos a origem, mas sabemos que se tornaram companheiros em determinado momento de suas vidas, agora, estavam libertos. É possível que José, João e Rosa conviveram sob o jugo do mesmo senhor, tanto é que, após conquistarem a liberdade, ‘adotaram’ o sobrenome do antigo senhor, eram, portanto, Rodrigues dos Passos. Quem era o ex-senhor deles? Temos apenas pistas dele, que falecera por volta do ano de 1839, quando no leito de morte alforriou Rosa[36].

 

Domingos Rodrigues dos Passos

Seguimos os passos de Domingos Rodrigues dos Passos, através de notícias de jornais, no período compreendido entre 1829 e 1840. Era um comerciante bem-sucedido, natural de Portugal e residente na capital pernambucana, na freguesia de São Pedro Gonçalves. Deixou herdeiros que se digladiaram pelos espólios do falecido. O embargo do testamento tramitou por anos no Tribunal da Relação [Segunda Instância]. Esta disputa ganhou publicidade nas páginas do Diário de Pernambuco, envolvendo um imóvel à Rua de São Francisco, na cidade de Olinda, hipotecado em cartório pelo falecido. Ao que nos parece, o padre Joaquim Eufrásio, também já falecido, havia morado na referida casa[37]. Apesar de ter construído um patrimônio em vida, após sua morte, as dívidas eram reclamadas pelos credores. O nome de Domingos Rodrigues dos Passos estava na lista dos devedores da Mesa de Rendas da Província, que deveriam ser saldadas pelos herdeiros[38]. Com o embargo, os bens não poderiam ser vendidos.

Segundo um desafeto político de Manoel Rodrigues dos Passos, um dos herdeiros de Domingos, teria sido Manoel, um dos dilapidadores da herança de Domingos. Esta acusação veio a público pelo jornal O Liberal Pernambucano, anos após a morte de Domingos:

Tendo falecido o pai do Sr. Passos, deixou-lhe uma boa herança, mas o Sr Passos tendo se metido com os cômicos do teatro, em breve desbaratou a fortuna que lhe fora deixada, e viu-se reduzido à maior miséria[...]O Sr. Passos tem-se se tornado conhecido pelas qualidades que ficaram expostas, e todo mundo o conhece pelo apelido de Passos Cachaça[...].[39]

 

Na coluna “Registro Marítimos”, que registrava as entradas e saídas de passageiros no porto do Recife, encontramos com frequência Domingos Rodrigues, em paquetes nacionais e internacionais, e/ou encomendas que chegavam a ele endereçadas. Por exemplo, no dia 05 de junho de 1829, chegou de Lisboa cargas de vinho e mais itens do gênero para Domingos Rodrigues; no dia 02 de julho do mesmo ano, o jornal O Cruzeiro noticiava: “Segue para Lisboa, no dia 10 de agosto o brigue Espírito Santo, quem nele quiser carregar ou ir de passagem dirija-se ao senhor Domingos Rodrigues dos Passos”[40].

Tivemos acesso às partes do processo de embargo do espólio de Domingos, que nos revelaram, entre outras coisas, que ele possuía bens no Império do Brasil, tanto quanto em Portugal. Além de Recife, fazia praça em outras Vilas da Província e fora dela, como por exemplo: na Muribeca, em Jaboatão, São Miguel, Pau D’Alho, Coripe [Província do Pará], cidade da Bahia [atual Salvador], Pênedo, dentre outras.

Quanto à sua escravaria, pouco sabemos. Além dos malungos por ele alforriados que ‘adotaram’ seu sobrenome, tivemos notícia de um certo Caetano, oficial de pedreiro, suspeito de estar amasiado com a escravizada Maria angolana, pertencente a Joaquim Pereira de Mendonça, que veio a público denunciar a fuga dela, e solicitar que quem a encontrasse lhe devolvesse, que seria bem recompensado[41].

Uma peça do referido processo desvelou uma ponta da riqueza de Domingos, que estava nas mãos dos que o deviam, vejamos alguns deles: José Antônio da Costa o valor de Rs. 1:066$654,00 (um conto sessenta e seis mil, seiscentos e cinquenta e quatro réis); Francisco da Costa, Rs. 1.493$ 765,00 (um conto, quatrocentos e noventa e três mil, setecentos e sessenta e cinco réis); José de Souza Pacheco, Rs. 2:680$442,00 (dois contos seiscentos e oitenta mil e quatrocentos e quarenta e dois réis); João Soares Rs. 1:504$660,00 (um conto, quinhentos e quatro mil, seiscentos e sessenta réis).

Domingos Rodrigues dos Passos moveu uma ação de perdas e danos contra Manoel Ferreira de Araújo, da cidade da Bahia. Ganhou a causa no valor de Rs.37:293$550,00 (trinta e sete contos, duzentos e noventa e três mil, quinhentos e cinquenta réis), mas desta soma só conseguiu receber Rs.6.736$447,00 (seis contos, setecentos e trinta e seis mil, quatrocentos e quarenta e sete réis).

Segundo os testamenteiros, Joaquim Antônio da Silva e Bento Fernando dos Passos, estas dívidas foram perdoadas por Domingos Rodrigues dos Passos, no entanto, foram anexadas ao processo de embargo[42]. Não tivemos acesso ao total dos bens partilhados, uma vez que o processo, como já dissemos, estava incompleto; no entanto, houve uma sub partilha entre os herdeiros, cujo valor a ser partilhado foi, nada mais, nada menos, que Rs.101:559$761,006363363 (cento e um conto, quinhentos e cinquenta e nove mil, setecentos e sessenta e um réis).

Vejamos algumas das justificativas dos herdeiros que embargaram o testamento e a partilha dos bens do falecido Domingos Rodrigues dos Passos:

[...] Provará que sendo o Reconvindo um dos testamenteiros daquele Paço, e caixa dos rendimentos dos bens referidos, e havendo feito partilha e sub partilha, não entregou os títulos dos prédios e recibos dos foros, e décimas dos bens que pertenceram aos filhos dos Reconvintes, e nem os rendimentos dos bens desde a morte do testador até a entrega dos mesmos bens. Provará que o reconvindo é obrigado a entrega destes títulos, e a dar partilha destes rendimentos que existem em seu poder [...].[43]

 

Não nos foi possível saber se a propriedade que o falecido Domingos Rodrigues dos Passos tinha em comum com Rosa Rodrigues dos Passos também entrou no embargo. Se assim foi, Rosa faleceu sem ver seu último desejo ser concretizado, como se depreende do seu testamento confiado aos seus malungos.

 

Rosa Rodrigues dos Passos e seu testamento

Nada sabemos de Rosa antes dela se tornar uma cativa. O que sabemos foi o que estava revelado em seu testamento, ditado a Pedro Alexandrino Rodrigues Lins, aos dezoito dias do mês de junho do ano de 1849, na cidade do Recife, quando estava doente, mas, segundo o documento, “doente de cama e em meu perfeito juízo e entendimento”[44].

Malgrado este silêncio sobre o passado de Rosa, podemos fazer algumas suposições: é certo que ela, em África, mais especificamente no Reino do Congo, não se chamava Rosa, tampouco tinha como sobrenome Rodrigues dos Passos; sobrenome que ‘adotara’ após tornar-se uma mulher forra, e isto ocorreu, segundo ela, quando seu antigo senhor fez o seu testamento, por volta do ano de 1839. Portanto, gozara apenas dez anos de liberdade na diáspora. Deve ter aderido ao catolicismo no processo da escravidão, pois que fazia parte da Irmandade de São Benedito, um dos seus últimos desejos foi que “falecendo, meu corpo seja envolto em hábito de Francisco e sepultado na Igreja do Convento de São Francisco, nas sepulturas da Irmandade de São Benedito, da qual sou irmã”[45]. O desejo de uma morte digna, ou seja, de uma boa morte. Neste sentido, pediu ao primeiro testamenteiro e herdeiro, José Rodrigues dos Passos, “que se mandará dizer por minha alma, quatro missas com a esmola de mil réis cada uma”[46].

Rosa declarou em seu testamento que era solteira e não tinha filhos naturais, não tendo herdeiros consanguíneos. Escolheu para testamenteiros os que, como ela, no passado, foram escravizados, e agora estavam libertos:

Declaro que nomeio e constituo por meus testamenteiros em primeiro lugar, o preto forro José Rodrigues dos Passos; em segundo lugar a preta forra Josefa Maria da Conceição; em terceiro, o preto forro, João Rodrigues dos Passos, aos quais rogo queiram aceitar o presente testamentário para cumprirem as minhas disposições como neste testamento se constam.[47]

 

Dos três testamenteiros, dois tinham o sobrenome Rodrigues dos Passos, o mesmo que Rosa ‘adotara’ do ex-proprietários. Possivelmente, eles tenham sido também escravizados do mesmo Domingos Rodrigues dos Passos, como supomos anteriormente.

Ao longo de sua vida, como escravizada e depois como liberta, Rosa conseguiu guardar uns bens, talvez tenha sido uma preta de tabuleiro que vendia nas ruas do Recife, talvez uma alugada; o certo é que conseguiu fazer em vida alguma economia, mesmo não tendo herdeiros consanguíneos; mas tinha sim para quem deixar sua herança. O escolhido foi José Rodrigues dos Passos:

Declaro que deixo ao primeiro meu testamenteiro a quantia de vinte mil réis [ilegível] declarado sua obrigação que lhe passo no dia sete de maio de mil oitocentos e quarenta e nove. Declaro que possuo uma parte na casa, sito, por detrás dos quartéis da polícia, que me deixou em seu testamento o dito finado meu senhor que foi, digo, que foi Domingos Rodrigues dos Passos[...] Instituo por herdeiro dos referidos rendimentos da supra dita parte da casas ao mesmo meu primeiro testamenteiro, José Rodrigues dos Passos até que se realize a entrega da referida casa à Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos conforme disposição testamentária do dito finado Domingos Rodrigues dos Passos[...].[48]

 

A herança de vinte mil réis que Rosa deixou para José, equivalia, na época, ao salário de um funcionário público, no caso, de um ajudante de porteiro da Câmera Municipal da Vila de Boa Vista, no interior da Província[49]. Se comparado com a herança que seu antigo dono legara aos seus descendentes, era ‘quase um nada’. Não nos esqueçamos, porém, que este ‘quase nada’ que Rosa legara a José, foi fruto de seu trabalho, diferente do seu ex-senhor que enriquecera com o fruto do trabalho alheio, leia-se dos seus escravizados.

Os libertos enfrentavam um desafio constante para afirmar e proteger sua liberdade em um contexto no qual o sistema escravista ainda exercia forte influência. Eles desenvolveram uma série de estratégias e táticas, que Maria Inês Cortês de Oliveira (1979) chama de “arranjos de liberdade”, para garantir sua sobrevivência e autonomia. Esses arranjos incluíam uma variedade de práticas e comportamentos destinados a navegar nas complexidades e desafios de viver em uma sociedade na qual a escravidão ainda estava profundamente enraizada. Cada ação era uma afirmação de humanidade e dignidade, além de uma rejeição ao sistema que os havia subjugado.

A parte do testamento acima citada nos revela também algumas limitações da herança que José Rodrigues dos Passos legara a Rosa, e que esta, por sua vez, transferia para José Rodrigues dos Passos. A casa com a qual ela se mantinha economicamente, não era totalmente sua, parte dela pertencia ao ex-senhor e deveria, em algum tempo, ser entregue à Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos. Aliás, talvez fosse ele um devoto do santo que, como ele, era ‘um dos Passos’.

Rosa era uma liberta, mas não nos foi possível saber em quais condições ela se tornou liberta, porque havia muitas formas de alforrias, algumas sob condições impostas pelos senhores. E mais, não poucas vezes as cartas de liberdades eram contestadas pelos herdeiros dos legatários. No caso dos descendentes de Domingos, houve embargo no testamento, como já mencionamos, sobretudo em relação aos imóveis. Não sabemos se José Rodrigues, seu herdeiro, conseguiu usufruir da parte da casa que também pertencia ao seu ex-senhor, localizada atrás dos quartéis da polícia, na freguesia de Santo Antônio, mesmo local onde estava situada a Camboa do Carmo.

O testamento evidencia as condições de vida da liberta Rosa Rodrigues dos Passos, sem marido, sem filhos e parentes consanguíneos, mas com um irmão “feito” no contexto da diáspora e em condições de escravidão. O provérbio: “Há amigos que são como irmãos” caberia muito bem neste caso. Aliás, eles se fizeram irmãos, nas perspectivas da família extensa de matriz africana; talvez mediados pela Irmandade na qual Rosa e tantos outros libertos eram filiados. Uma das mais antigas irmandades da então província de Pernambuco, representada na imagem abaixo.

Figura 2: Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ef/N-S-R-Pretos2017.jpg

Fonte: wikipedia.org.

 

O malungo José Rodrigues dos Passos era quem cuidava de Rosa no período em que ela esteve de cama e ditara o testamento, como se depreende deste:

Declaro que o dito meu primeiro testamenteiro que tem suprido e está continuando a suprir com comedorias, cirurgias e boticão e fica encarregado de fazer as despesas do meu enterro, cujo dinheiro lhe será pago pelo rendimento desta parte que possuo na referida casa. Declaro que depois de cumpridas as minhas decisões e pago o dito meu testamenteiro José Rodrigues dos Passos de toda a quantia que lhe sou devedora suprimentas, enterro que e fizer e despesa com o pagamento do presente testamento e sua aprovação.[50]

 

Nota-se que Rosa não estava bem de saúde, suas economias não estavam sendo suficientes para cobrir suas despesas; não fosse o malungo José Rodrigues dos Passos, sabe-se lá como ela se arranjaria. Se bem que, analisando as pessoas que presenciaram a elaboração do testamento, nota-se que ela tinha um círculo de amizade para além dos ex-companheiros de cativeiro. Assinaram o dito testamento: José Ribeiro Vasconcellos lavrador, morador na Camboa do Carmo; José de Carvalho Passos, negociante; Belarmino de Barros Brandão, morador na Rua do Rosário, estudante; Manoel Querino do Espírito Santo, oficial de ourives; José Ribeiro Vasconcellos Jr., morador no armazém, fundos do Carmo, oficial de ourives, e José do Carmo Raposa.

O testamento foi feito em junho do ano de 1849, Rosa faleceu dois meses depois, em sete de agosto do mesmo ano, ocasião em que José Rodrigues dos Passos se apresentou ao cartório com o respectivo testamento, para sua abertura, na condição de primeiro testamenteiro, embora não soubesse ler nem escrever. Quem assinou o testamento por ele (a seu rogo, como se dizia) foi Alexandrino Rodrigues Lins, secretário da Ordem Terceira do Carmo.

 

‘Da janela lateral’: à guisa de conclusão

Nossa observação sobre a Rua da Camboa do Carmo se deu, como já dissemos, pela “janela” virtual de uma tela de notebook, mais especificamente da posição lateral, de forma que toda a rua esteve ao nosso alcance. Foi possível ver um recorte da escravidão urbana, na então Província de Pernambuco oitocentista.

Segundo estudos já consagrados, tais como de Leita Algranti (1983), Mary Karrasch (1972), Marilene Rosa Nogueira da Silva (1988), dentre outros, a escravidão urbana teve as suas peculiaridades. Nosso olhar corrobora as obras acima mencionadas, e, ainda que não se trate da mesma cidade, o tema observado, não por acaso, tem suas similaridades, como por exemplo, as possibilidades de “fugas para dentro”, ou seja, ao invés de fugir para os quilombos afastados dos centros urbanos, havia a alternativa de se misturarem na multidão “sem rosto”, como foi o caso de Rosa, que na época pertencia a Francisco José de Souza.

No cotidiano citadino também encontramos os “escravizados ao ganho” a cada esquina, as ofertas de força de trabalho escravizado oferecidas nos periódicos diuturnamente, bem como os anúncios de fuga, alguns descritos nos seus pormenores, para facilitar a captura, apontando que os seus senhores ou responsáveis pensavam ter o domínio total da sua propriedade, fazendo descrição física com detalhes dos corpos dos escravizados em fuga, seus comportamentos, “achaques”, “vícios”. E, por fim, vimos também laços de irmandade e amizade que se construíam desde o Atlântico e perduraram além da vida.

Na prática, os escravizados criavam táticas e estratégias e, malgrado toda “vigilância”, conseguiam criar laços, fugir, lutar por sua dignidade. Segundo Algranti, no meio urbano o Estado assumia o papel do feitor. O espaço estava esquadrinhado, vigiado por delegados, subdelegados, chefe de quarteirão, polícia. E, no caso do Recife, por esta época havia a “guarda cívica”.

Nem por isso os escravizados se deixavam escravizar, os anúncios de fugas a cada página de jornal são testemunhas das “ousadias”, tanto dos nascidos no Império, quando dos que eram desembarcados aqui como legais ou ilegais.

 

 

Referências bibliográficas

ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor ausente, estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro 1808-1821. Dissertação (Mestrado em História). São Paulo: Universidade de São Paulo, 1983.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. 2ª ed., Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

HÉBRARD, Jean M.; SCOTT, Rebecca J. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas [SP]: Ed. Unicamp, 2014.

KARRASCH, Mary C. Slave in Rio de Janeiro, 1808-1850. Tese (Doutorado). Winsconsin: Universidade de Wisconsin, 1972.

LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.

MACHADO, Aires da Matta Machado. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. O Liberto: Seu Mundo E Os Outros [Salvador: 1790- 1890]. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1979.

RAMOS, Arthur. A cultura negra no Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1942.

REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Joaquim. O Alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (1822-1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, Ltda, 1997.

SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro Na Rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec, 1988.

 

Recebido em 07/05/2024.

Aceito em 30/06/2024.



[1] Doutoranda e mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Licenciada em História pela mesma universidade. Brasil. E-mail: graziequeirozgago@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-3492-9179

[2] Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e atualmente é professor associado da Universidade Federal de Pernambuco do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História. Brasil. E-mail: bentorosa.ebano@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-0185-0766

[3] Disponível em: https://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx. Doravante será citado como: HDBN.

[4] Caixa 2762 | Recife | anos: 1848-50 | Testamento de Roza Rodrigues dos Passos (1849). Citaremos como MJEPE. Test. de Rosa dos Passos.

[5] A micro-história em movimento é uma abordagem historiográfica que se concentra em estudar eventos, fenômenos ou indivíduos específicos em contextos históricos mais amplos, buscando compreender as complexidades das experiências humanas em nível individual e local. Ela destaca a importância de narrativas pessoais e histórias individuais para compreendermos aspectos mais abrangentes da sociedade e da história. Ao examinar casos particulares, a micro-história em movimento busca capturar as mudanças e transformações ao longo do tempo, destacando a dinâmica e a fluidez das experiências históricas. Um exemplo dessa abordagem é encontrado na obra “Provas de Liberdade: Uma Odisseia Atlântica na Era da Emancipação” de John Hebrard e Rebecca Scott (2014), bem como em “O Alufá Rufino: Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro” de Flávio Gomes, João José Reis e Marcus Carvalho (2010).

[6] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1843. Ed.157, p.02

[7] Em informática, uma janela é uma área visual contendo algum tipo de interface do utilizador, permitindo a saída do sistema ou permitindo a entrada de dados. Uma interface gráfica do utilizador que use janelas como uma de suas principais metáforas é chamada sistema de janelas, como um gerenciador de janela.

[8] Sobre o Panóptico e outras formas de vigilância, ver Foucault (1979).

[9] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1843. Ed.198, p.03.

[10] HDBN. Diário Novo. Recife, 1843. Ed.59, p. 03.

[11] HDBN. Diário Novo. Recife, 1844. Ed.127, p. 04.

[12] HDBN. O Mercurio. Recife, 1832. Ed.138, p. 04.

[13] HDBN. Diário Novo. Recife, 1844. Ed.166, p. 04.

[14] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1835. Ed.168, p. 04.

[15] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1838. Ed. 247, p. 04.

[16] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1839. Ed. 91, p. 04.

[17] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1839. Ed. 216, p. 04.

[18] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1842. Ed .128, p. 04.

[19] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1845. Ed.14, p. 03.

[20] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1838. Ed. 234, p. 03.

[21] CARVALHO, Marcus J.M.de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010. As obras de Marcus Carvalho, e esta, especialmente, nos permitem explorar uma variedade de situações urbanas entre pessoas negras, oferecendo uma análise detalhada dos desafios cotidianos enfrentados e das estratégias utilizadas para lidar com eles. Além disso, ao examinar as elites que sustentavam e beneficiavam-se do sistema escravista, as pesquisas de Carvalho lançam luz sobre as dinâmicas sociais e econômicas da época, enriquecendo nosso entendimento da história do Brasil no século XIX.

[22] Sobre esta denominação, ver Scisínio (1997, p. 271).

[23] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1851. Ed. 05, p. 03.

[24] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1835. Ed.60, p.08.

[25] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1832. Ed.289, p.03.

[26] HDBN. Diário Novo. Recife, 1843. Ed. 44, p.03.

[27] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1835. Ed. 148, p.03.

[28] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1840. Ed. 80, p.03.

[29] HDBN. Diário Novo. Recife, 1847. Ed. 23, p. 03.

[30] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1830. Ed. 444, p. 04.

[31] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1830. Ed. 484, p. 03.

[32] HDBN. Diário Novo. Recife, 1846. Ed. 52, p. 01.

[33] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1838. Ed.175, p. 03.

[34] HDBN. Diário Novo. Recife, 1844. Ed.148, p. 03.

[35] HDBN. Diário Novo. Recife, 1843. Ed.137, p. 03.

[36] Utilizamos um processo cível [incompleto] de Embargo do Testamento de Domingos Rodrigo dos Passos, que se encontra no Memorial da Justiça do Estado de Pernambuco, 1830. Citaremos como: MJEPE – EB.TEST.DRP. Ano: 1830.

[37] As notícias foram veiculadas no Diário de Pernambuco do ano de 1839, nas edições n. 66, 71 e 79, do mês de março. Na edição 79 registrou-se: “Os testamenteiros do finado Domingos Rodrigues dos Passos, que fizeram o anúncio no Diário da quinta-feira, 28 de março p.p. de se não fazer trato algum com a casa do falecido Padre Joaquim Eufrásio, na rua de São Francisco na cidade de Olinda, hajam de declarar porque cartório foi feita a hipoteca e penhora pelo dito finado Passos, e a quantia, para esclarecimento de quem a quiser comprar, de cujo pedido se deve ao excusar”. In: HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1839. Edição: 79, p. 03.

[38] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife, 1847. Edição: 48, p. 03.

[39] HDBN. O Liberal Pernambucano. Recife, 1853. Ed. 125, p. 01.

[40] HDBN. O Cruzeiro. Recife, 1829. Ed. 44, p. 06.

[41] HDBN. O Cruzeiro. Recife, 1830. Ed. 149.

[42] “[...] Documento n. 03: Relação das dívidas que às vistas dos lançamentos dos livros, e do testamento com que faleceu Domingos Rodrigues dos Passos, entenderam e entendem abaixo assinados os testamenteiros do mesmo terem sido perdoadas, mas não obstante isso a declaram para ciência dos herdeiros e interessados[...]”. In: MJEPE – EB. TEST. DRP. Ano: 1830. Folhas: 222.

[43] MJEPE – EB. TEST .DRP.  Ano: 1830. Folhas: 220.

[44] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas: 01.

[45] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas:01.

[46] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas:01.

[47] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas:01-02.

[48] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas: 02- 03.

[49] HDBN. Diário de Pernambuco. Recife. Ano: 1847. Ed. 125, p. 02.

[50] MJEPE. Test. De Rosa dos Passos. Folhas:02.