“Não tinha nenhum valor material, mas tinha sentimental”: o território negro do Rosário na cidade de Laguna/Santa Catarina[1]

“It had no material value, but it had sentimental value”: the black territory of Rosário in the city of Laguna, Santa Catarina

                                                                                               Willian Felipe Martins Costa[2]

 

 


Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar memórias e narrativas sobre o território do Rosário, na cidade de Laguna, sul de Santa Catarina. Território esse constituído, nos séculos XIX e XX, por uma capela, um morro, uma Irmandade dedicada a N. S. do Rosário e por homens e mulheres negros da cidade. Como aporte documental, trago fontes orais, alinhavados a outros registros históricos, como jornais, fotografias, ofícios e carta, textos memorialísticos, bem como fontes bibliográficas, no intuito de tecer uma “costura da memória”. Tal proposta tem por base um diálogo com uma abordagem teórico-metodológica em perspectiva decolonial, na interlocução com intelectuais do campo dos Estudos Pós-Coloniais, Afro-diaspórico e do Pós-Abolição.

Palavras-chave: Território negro; Memórias e narrativas; Laguna.

 

Abstract

This article aims to present memories and narratives about the territory of Rosário in the city of Laguna, southern Santa Catarina. This territory, established in the 19th and 20th centuries, consisted of a chapel, a hill, and a Brotherhood dedicated to Our Lady of the Rosary, comprised of black men and women from the city. As documentary sources, oral testimonies are brought together with other historical records such as newspapers, photographs, official documents, letters, memoirs, as well as bibliographic sources in order to weave a “memory tapestry”. This proposal is based on a dialogue with a theoretical and methodological approach from a decolonial perspective, engaging with intellectuals from the fields of Postcolonial Studies, Afro-diasporic studies, and Post-Abolition studies.

Keywords: Black territory; Memories and narratives; Laguna.


 

 

 

 

 

 

Eu estive naquela capelinha, já abandonada, mas estive. Feita pelos escravos… aquilo era uma relíquia para Laguna! Era toda feita de pedras, era tudo “pedrinha”, e as paredes eram muito largas… devia ter sido conservado! Não tinha nenhum valor material, mas tinha sentimental… eu fui ali algumas vezes com meus colegas, nos meus quatorze, dezesseis anos, mas já estava tudo abandonado! (Lucena, 1998, p. 110).

 

A memória que abre este artigo é de meu avô, João Juvêncio Martins. Ele que certa vez me falou de uma tal igreja dos marinheiros localizada no alto do morro do Rosário. Lagunense, nascido no ano de 1913, o Sr. João “Salame”[3], como era conhecido, narra a existência da capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Laguna. Ao fazer isso, constrói e dá sentido para o templo católico a partir de seus referenciais: “não tinha valor material, mas tinha sentimental…”. O registro oral apresentado não foi produzido por mim, mas sim um achado. Foi uma surpresa, sem dúvida, mas também foi emocionante encontrá-lo durante a minha pesquisa de mestrado, no trabalho da pesquisadora Liliane Lucena (1998) – um registro oral deixado pelo e ainda mais falando do Rosário!

Assim que encontrei as memórias do , busquei uma forma de ter acesso ao conteúdo completo da entrevista realizada com ele. Após uma breve pesquisa, localizei Lucena, com quem entrei em contato e comentei da importância desses registros para mim. Ela gentilmente se disponibilizou a procurar as transcrições das entrevistas e, assim que as encontrou, enviou-me. Meu avô faleceu em 2004, muito antes de eu seguir o caminho da História; mas, ao encontrá-lo novamente nesses registros, por coincidência ou não, tive um pouco mais de certeza do caminho a ser trilhado.

A capela do Rosário, que ganhou sentido na memória de meu avô, segundo registros do memorialista branco lagunense Saul Ulysséa (1946), teve sua construção iniciada em 1845. Mas outros registros indicam que o morro onde se localizava (e que “Salaminho” subia na adolescência) já pertencia a uma irmandade de africanos e de seus descendentes muito tempo antes. No registro de 8 de março de 1828, no livro de Tombo e Foral dos Bens do Conselho Municipal, consta que, no dia três desse mesmo mês, na Rua do Potreiro, lado direito, número 1, foi medido o morro de propriedade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. No registro também consta que, pela propriedade, a Irmandade pagava por ano setecentos e vinte réis[4], o que permite supor que, antes desse ano, a Irmandade era proprietária de todo o morro.

Nesse sentido, Júlio César da Rosa, em sua tese de doutorado publicada em 2021, sugere também a anterioridade da propriedade, pois em um requerimento da Irmandade dos Homens Pretos da Freguesia de Santo Antônio dos Anjos da Laguna ao então Príncipe Regente de Portugal, datado de 1803, os irmãos e as irmãs do Rosário já articulavam a construção de sua igreja e já possuíam, conforme o requerimento, “[...] um monte plano, alegre e próprio para a dita capela” (Rosa, 2021, p. 87).

Segundo o memorialista Saul Ulysséa (1943), no século XIX, e possivelmente nos anteriores, acreditava-se que esse monte defendia a cidade de ser soterrada pelas dunas de areia em dias de “rebojo” (Ulysséa, 1943). Nesse sentido, protegendo ou não a cidade, essa elevação geográfica ganhou novos sentidos e significados no momento em que foi ocupada pela irmandade, passando a se chamar Morro de Nossa Senhora do Rosário. Desde então, é comum em Laguna se ter como ponto de referência, principalmente entre os mais velhos (como meu avô), o Morro e o Largo do Rosário, que se forma na encruzilhada de três ruas ao final da Praça República Juliana.

Foram africanos e seus descendentes, a maioria na condição de escravizados, como apontam alguns documentos[5], que ergueram a capelinha no alto do morro de Nossa Senhora toda em “pedrinha”, em que meu avô esteve e atribuiu valor sentimental. Pessoas da mesma condição e origem de sua avó, no caso a minha tataravó materna, como ele mesmo narra:

A minha avó verdadeira, mãe da minha mãe, veio da África. Não sabia de onde...veio com uns dez anos mais ou menos; foi roubada! Ela foi para a Bahia como escrava e de lá foi vendida para cá para a família Teixeira, que morava naquele sobrado que tinha ali no final desta rua.[6]

 

Com base em suas palavras, é plausível supor que o narrar de meu avô se constituiu a partir do reconhecimento e referência a uma ancestralidade. A avó de meu avô se chamava Inês, nome que escutei nas histórias que minha mãe contava em casa, histórias essas passadas pela oralidade na família. Ouvi, por exemplo, que Inês, depois que terminava a lida da casa, gostava de se sentar em seu banquinho, tirar o cachimbo que levava em uma bolsinha junto ao peito e fumar enquanto alguém lia o jornal para ela. Inês trabalhou a vida inteira para os “Teixeira”. Faleceu devido aos ferimentos causados por um acidente doméstico acendendo o fogão à lenha em que cozinhava. Sua história sempre me intrigou. Com algumas informações, pesquisando nos registros de óbito, descobri que ela morreu aos noventa anos, em 1942[7] e, sendo assim, nasceu provavelmente em 1852 em África. Cruzando com a memória de meu avô, é possível supor que ela teria então chegado à cidade de Laguna em 1862. Teria Inês sido devota ou contribuído para a construção da capela?

Não localizei registros que apontem o fato, mas é possível imaginar, haja vista esse espaço de devoção ter sido marcado pela presença africana e afrodiaspórica na cidade, que a experiência dessa mulher, passada para seu neto a partir da memória situada em sentimentos, tenha constituído os referencias com os quais ele atribuiu valor sentimental ao patrimônio negro do Rosário.

Imagem 1: Vista frontal da capela de Nossa Senhora do Rosário, Laguna, 1927

Fonte: Dall’Alba ([1979], p. 117).

A fotografia apresenta uma vista frontal e aproximada no ano de 1927 da capela construída pela Irmandade dos Homens Pretos da Laguna. Nesse período, segundo meu avô, a capela já estava abandonada. É interessante observar que o ano da fotografia é o mesmo em que ele tinha catorze anos, quando subiu no topo do morro e esteve na capelinha “Relíquia para Laguna”. Ou seja, o registro fotográfico é adensado pela narrativa oral que, juntos, contribuem para contar uma história a partir da memória das populações negras da cidade que em diferentes presentes ganha novos sentidos.[8]

O interessante a se pensar, a partir desses registros, é como pessoas negras da cidade de Laguna mobilizam suas memórias sobre esse espaço de devoção e como, a partir dessas, podemos construir uma narrativa histórica que evidencie suas perspectivas. Dito isso, este artigo tem por objetivo apresentar uma narrativa histórica sobre o que passo a chamar de território do Rosário, que compreende o morro, a capela e sua Irmandade (Reis, 1996). Em específico, tal narrativa, em um primeiro momento, tem como tema a inserção do território do Rosário no tecido social da cidade de Laguna durante a segunda metade do século XIX e início do século XX.  Já em um segundo momento, nossa história aborda um contexto que começa na década de 1930, quando a capela é demolida, e segue até o tempo presente a partir de memórias e narrativas sobre o território e alguns de seus patrimônios. 

A partir disso, trago como principal aporte documental as fontes orais, alinhavadas a outros registros históricos, como jornais, fotografias, ofícios, carta e textos memorialísticos; bem como fontes bibliográficas no intuito de tecer uma “costura da memória” (Paulino, 2018). Esse processo metodológico eu constituo no diálogo com a artista visual negra Rosana Paulino, que utiliza diferentes elementos, como fotografias, tecidos, linhas e textos para construir narrativas sobre e com pessoas negras no Brasil. Visualizo em seu trabalho artístico uma possibilidade de reconstituir e contar histórias plurais a partir do uso de múltiplas fontes históricas.

As memórias que apresento neste artigo são entendidas a partir do diálogo com o historiador camaronês Achille Mbembe, segundo o qual: “as formas negras de mobilização da memória da colônia variam segundo as épocas, aquilo que está em jogo e as situações” (Mbembe, 2014, p. 179). Mbembe fala principalmente dos contextos africanos. Porém, se considerarmos a colonialidade enquanto um projeto, podemos traçar uma relação entre a memória da colônia e a memória na Améfrica (González, 1988). Nesse sentido, as memórias negras de Laguna, acionadas em diferentes presentes, geram representações que “[...] vão desde a comemoração ativa ao esquecimento, passando pela nostalgia, pela ficção, pelo recalcamento, pela amnésia e pela reapropriação, até diversas formas de instrumentalização do passado nas lutas sociais em curso” (Mbembe, 2014, p. 179-180). Identifico com isso memórias perpassadas por questões na política, quando, por exemplo, reivindicam que aquele templo “[...] devia ter sido conservado!”, como dito por meu avô. Nesse sentido, também, a memória que vem da experiência coletiva e individual se constitui a partir de sentimentos de pertencimento, valorização e ancestralidade e, por isso, a “capelinha” construída pelos escravizados tinha valor sentimental para meu avô.

Tendo como base essa perspectiva, a ideia de interlocução foi central para esse trabalho, sendo entendida enquanto a relação do pesquisador com as pessoas da pesquisa na construção do conhecimento histórico. Dessa forma, os(as) entrevistados(as) são interlocutores(as) que produzem conhecimento sobre si na relação com o eu pesquisador, fornecendo os elementos necessários para o trabalho de costura da memória. Essa que, além de ser “incontestável da atualidade” e a presença do passado no presente (Rousso, 2016, p. 94), é entendida aqui a partir do que propõe Mbembe (2014, p. 180):

[...] a memória, tal como a recordação, a nostalgia ou o esquecimento, se constrói antes de tudo por imagens psíquicas entrelaçadas. É sob esta forma que ela surge no campo simbólico, e até político, ou ainda no campo da representação. O seu conteúdo são imagens de experiências primordiais e originárias que ocorreram no passado, e das quais não fomos necessariamente testemunhas. O importante na memória, na recordação ou no esquecimento, não é tanto a verdade como o jogo de símbolos e a sua circulação, os desvios, as mentiras, as dificuldades de articulação, os pequenos atos falhados e os lapsos, em suma, a resistência ao reconhecimento.

 

É possível pensar, portanto, a memória mobilizada de diferentes formas por populações negras no espaço da Améfrica, geradas a partir de experiências primordiais do passado das quais não necessariamente se foi testemunha, e analisada não pelo seu conteúdo de verdade ou resistência ao reconhecimento, mas como um dos caminhos profícuos para a construção de conhecimento sobre, com e a partir das pessoas interlocutoras desta pesquisa (Mortari; Wittmann, 2018). Isso porque as memórias são entendidas enquanto resultados das experiências e produção de conhecimento de pessoas circunscritas a um determinado tempo e espaço, portanto, ao corpo-política do conhecimento – noção elaborada a partir de discussões situadas no campo da decolonialidade latino-americana[9]. Entendo, nesse sentido, a produção de conhecimento enquanto um processo plural, longe de uma neutralidade cientificista do modelo cartesiano, em que as sensações, percepções e sentires do corpo não se separam da mente. A partir de um espaço geopolítico de experiência, o corpo-política vive, sente e pensa; produzindo conhecimento através das sensações e sentires que o perpassam, processados na relação do sentir-pensar (Escobar, 2014; Bernardino-Costa; Maldonado-Torres; Grosfoguel, 2020).

Dito isso, tendo por base um diálogo teórico com o campo dos estudos do pós-abolição, a partir de uma perspectiva da decolonialidade como base metodológica, na aproximação com intelectuais do campo de Estudos Pós-Coloniais e Afro-diaspóricos, bem como da historiografia da cidade de Laguna, busquei desenvolver uma narrativa histórica que contribua para a construção de uma historiografia que evidencie e incorpore a perspectiva negra, suas experiências e memórias sobre a história da cidade, seus diferentes territórios e formas de existir no tempo presente.

 

A inserção do território no tecido socio-histórico da cidade

[o templo] Ele era muito visível [...] Porque assim, o acesso à Laguna no século XIX, no século XVIII era feito pelo mar. [...] Então o que mais se destacava — inclusive tem uma descrição de um desses escritores antigos — o que mais se destacava na época era a igreja do Rosário lá no simodo [topo] do morro, era o destaque! (Reis, 2021, n.p.).

 

O lugar de destaque da capela do Rosário narrado pelo Sr. Antônio Luiz dos Reis,  advogado lagunense de 73 anos e integrante dos movimentos sociais negros da cidade, possibilita, partindo de uma relação com a geografia e hidrografia da cidade, inserir o templo católico no tecido social e cultural de Laguna – uma região fortemente marcada por sua relação com as águas, sejam elas do mar ou da lagoa, desde antes da invasão vicentista, quando ali viviam os povos Guaranis.

Foi no século XIX que a pequena vila, que se constituiu com base na pesca, na criação de animais e na exportação de produtos agrícolas, tornou-se cidade. É nesse contexto também, em específico a partir da década de 1870, que Laguna apresenta um crescimento econômico e uma transformação social, causados pela ampliação de seu porto e pela construção da Ferrovia Tereza Cristina. A cidade passa a viver o tempo do carvão, quando então ganha destaque no cenário regional ao fazer parte da rota de comercialização e exportação do carvão das minas de Criciúma e Lauro Muller, no sul de Santa Catarina (Lucena, 1998).

O barulho dos navios a vapor chegando e partindo, o apito da maria fumaça e o vai e vem das pessoas formava o cenário do porto localizado no centro da cidade. Esse cenário era complementado pelo conjunto de casas em estilo colonial dispostas ao longo da Rua da Praia e pela capela do Rosário, que despontava no alto de seu morro. A fotografia a seguir, tirada na primeira metade do século XX, mesmo que, possivelmente, tenha tido por intenção focalizar o porto, revela como o templo “era muito visível”, como nos falou o Sr. Antônio. A costura da memória nesse sentido nos permite constituir no tempo presente um sentido de destaque para o território do Rosário ao costurar a narrativa oral com a fotografia.

Imagem 2: Vista panorâmica do porto de Laguna com a capela do Rosário ao fundo (primeira metade do século XX)

Fonte: Acervo ETec Laguna – IPHAN/SC.

Concluída no início da década de 1870, ao que tudo indica, ao menos as paredes e telhados, a capela do Rosário contou com diferentes estratégias usadas pelos membros de sua Irmandade para sua construção. Para a finalização da cobertura, por exemplo, foram empreendidos o dinheiro de uma apólice que a Irmandade ganhara de um testamento e um montante conquistado com esmolas (Ulysséa, 1946). Já em primeiro de abril de 1879, o jornal local O Município noticia que o tesoureiro da Irmandade, João Fortunato José da Silva, receberia a quantia de 500 réis da mesa de rendas da cidade, a mando do Sr. Vice-presidente da província, a fim de ser a quantia aplicada nas obras da respectiva capela em construção[10].

O relatório de província deste mesmo ano, na seção de obras públicas, traz a informação de que a capela do Rosário recebeu, assim como outras igrejas de diferentes localidades de Santa Catarina, verbas públicas para respectivas obras[11]. Talvez tenha sido a sua utilidade pública o motivo para a destinação da verba, já que na região central de Laguna a capela dos Homens Pretos era o único templo católico além da Matriz. A chegada desse montante vindo da fazenda provincial coincide com o período em que a Irmandade contratou o marceneiro Gustavo Scholts para finalizar a construção do altar-mor em 1880. É possível que tal quantia tenha auxiliado nesse processo. 

O período de construção da capela, identificado nas fontes, ao que tudo indica estendeu-se durante o século XIX. Outros registros apontam que o templo nunca chegou, de fato, a ser finalizado; no entanto, é interessante notar que isso não impediu que o topo do morro de Nossa Senhora, de onde a cidade podia ser espiada, fosse ocupado pelos fiéis, que nos dias de festa em honra à sua padroeira decoravam o espaço “[...] com enfeites feitos com mato e coloridas bandeirinhas de papel” (Ulysséa, 1946, p. 147). Ao observarmos as estratégias adotadas pelos devotos do Rosário em Laguna, bem como a ocupação do morro no centro da cidade, podemos pensar em um processo histórico de intensa dinâmica cultural, como afirmou Lélia González (1988), processo esse marcado por adaptações, resistências, reinterpretações e criação de novas formas de ser no espaço geopolítico da Améfrica.

Nesse período, outros rituais católicos também recorriam ao território do Rosário para a sua realização. O Sr. Antônio mencionou em nossa conversa a memória de seu pai quando este falava sobre uma grande procissão, que segundo ele era: “a procissão do padroeiro da cidade, o Santo Antônio, que saía da igreja do Rosário” (Reis, 2021, n.p.). O pai do Sr. Antônio, conhecido como “Cacique”, nasceu em 1918, período em que a capela já apresentava problemas estruturais que provavelmente contribuíram para o seu abandono, como colocou meu avô na entrevista concedida a Lucena. No entanto, a lembrança de “Seu Cacique”, trazida por seu filho, compõe um quadro de evidências que, no presente, possibilitam apontar aspectos da importância da capela do Rosário no contexto urbano da cidade. Nesse sentido, compondo o quadro a partir da costura da memória, é possível identificar a realização de outros eventos católicos que utilizavam o território do Rosário.

Seguindo a linha da costura, o jornal O Município traz, em sua edição do dia 28 de março de 1879, o anúncio da comemoração da Paixão do Senhor Bom Jesus dos Passos, que naquele ano seria realizada no dia seis do mês seguinte, tendo como parte da programação a “trasladação da Sagrada Imagem do mesmo Senhor, da Capela de Nossa Senhora do Rosário para a Igreja Matriz na véspera”[12]. No mesmo ano, em 18 de janeiro, o mesmo periódico traz uma nota sobre a festa dedicada a Nossa Senhora dos Navegantes. Na nota, podemos ler o seguinte pedido aos Srs. capitães de navios: “[...] que façam uma regata na segunda-feira, dia subsequente à festa, para maior brilhantismo; aproveitando assim a permanência nesta cidade das muitas pessoas do interior e sítios da comarca”[13]. É possível que a festa de navegantes, que pelo registro contou com uma grande circulação de fiéis, tenha ocorrido, assim como a comemoração da Paixão de Cristo, em parte na capela do Rosário.

Outro registro que permite sustentar essa hipótese é o da memorialista lagunense Nail Lima Ulysséa (1904-1996) que, ao descrever a festa organizada pela Irmandade das Almas Navegantes, narra a sua programação.

A trasladação saía da capela do Morro do Rosário e atravessava toda a praia coalhada de embarcações, desde as canoas aos barcos e iates e, mais tarde, navios, iluminados com lanternas coloridas, a princípio de azeite e estearina, e mais tarde, elétricas. A imagem, dentro de um barquinho, vinha parando diante de cada embarcação, cumprimentando e recebendo as homenagens (Ulysséa, 1976, p. 184).

 

É possível que a capela do Rosário tenha abrigado não somente parte da festa de N. S. dos Navegantes, como também algumas celebrações da Irmandade das Almas Navegantes, como missas, por exemplo[14]. Isso poderia estar relacionado à proximidade do templo com a região do porto, o que facilitaria a realização de rituais antes dos trabalhos no cais e o embarque para o mar. Talvez seja essa utilização do espaço religioso, presente na região portuária, que meu avô mobilizou em sua memória e caracterizou a igreja do Rosário como dos marinheiros quando falou dela pela primeira vez para mim. Aliado a isso, com base em dados do censo de 1872 analisados pelo pesquisador Diego Schibelinski (2021), levanto a hipótese de que essas celebrações também ocorriam na capela do Rosário devido à presença de pessoas trabalhadoras negras nas atividades ligadas ao porto, como estivadores, marítimos, pescadores e canoeiros. O autor – ao analisar um processo de acusação de roubo envolvendo o crioulo livre Antônio Carvalho, cozinheiro da tripulação do patacho São Pedro, embarcação da praça de Laguna no ano de 1878 – constrói um panorama sobre a presença de homens de cor[15], livres ou escravizados, na atividade marítima da cidade.

Intercruzando os dados do censo de 1872, que aponta para uma população de 4.002 pretos e pardos na região do distrito de Laguna, equivalente a 13% da população total, Schibelinski (2021, p. 239) supõe que: “uma vez que a atividade portuária era o centro da vida comercial da cidade, é provável que grande parte dos homens escravizados fossem empregados nela ou em outra atividade relacionada”. Nesse contexto, também estão inseridos os homens de cor livres ou forros, como Antônio Carvalho que, em número, segundo o autor, sempre foram mais expressivos nas tripulações no contexto nacional do que os escravizados, tendo essa diferença aumentado na segunda metade do século XIX, “[...] quando uma série de medidas imperiais tentou proibir e punir a participação de homens cativos na navegação de cabotagem” (Schibelinski, 2021, p. 244). É com base nesses indícios, que apontam a participação da população negra na atividade marítima do país e de Laguna, que suponho a utilização da capela do Rosário para algumas celebrações dos marinheiros por parte desses e seus descendentes serem africanos e, possivelmente, terem ligação com a constituição do território do Rosário.

Como colocado anteriormente, até a segunda metade do XIX, a capela do Rosário era o único templo católico além da igreja Matriz que se localizava na região urbana de Laguna, e que, mesmo em processo de finalização das obras, já era utilizada pela Irmandade do Rosário, bem como por outas confrarias católicas, caracterizando-se enquanto um espaço importante para a vida social e religiosa do município. Nesse contexto, não haveria como não se notar o território constituído por africanos e seus descendentes que estava inserido na vida social católica da cidade. No entanto, com a expansão da área urbana, as dificuldades na manutenção e com o surgimento de outras capelas, o templo do Rosário começou a sair da centralidade das trasladações. É possível supor que esse processo tenha acontecido gradativamente, começando com a inauguração da capela do hospital, em 1885, e terminado com a inauguração da capela de Nossa Senhora dos Navegantes, em 1912, no bairro Magalhães.

No jornal A Verdade de dois de agosto de 1885, a Devoção ao Senhor Bom Jesus dos Passos anunciava que no dia seis do mesmo mês aconteceria a transferência da imagem de seu padroeiro da igreja Matriz para o altar da capela do hospital, assim definindo um novo referencial para a celebração católica[16]. Já no dia três de fevereiro de 1900, o periódico O Futuro confirma que a capela do hospital passou a ser utilizada também na festa dos navegantes ao trazer, em uma de suas páginas, um convite aos fiéis para prestigiarem a trasladação da imagem de Nossa Senhora da dita capela para a igreja Matriz[17].

Pesquisando nos periódicos Lagunenses que estão disponíveis no acervo da Hemeroteca Digital Catarinense referentes ao período, não encontrei mais evidências sobre a festa dos navegantes que possibilite afirmar que a capela do hospital tenha se tornado o único ponto escolhido para a realização das trasladações, como foi o caso da trasladação do Senhor dos Passos. Nesse sentido, é possível que a Irmandade das Almas Navegantes tenha deixado de usar a capela do Rosário ou a do hospital como ponto de partida para a trasladação de sua padroeira em 1913, quando transferiram definitivamente a imagem e a Irmandade para a nova capela do bairro Magalhães (Ulysséa, 1976). Apresento essa suposição pelo fato de a capela ainda ser usada durante os últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX, como nos mostra o jornal O Futuro do dia 24 de dezembro de 1899, ao trazer o anúncio da trasladação da imagem de Nossa Senhora do Parto do morro do Rosário para a igreja Matriz[18]. Outra evidência que permite cogitar que a festa de navegantes ainda recorria ao território do Rosário antes de ter sua própria sede é o depoimento dado por Dona Tereza à historiadora lagunense Adriana Santos (2003), no qual a idosa de 94 anos recorda a tradicional festa: “era pequenina, mas me lembro de acompanhar a festa com minha tia e irmãs. A santinha saía lá do Morro do Rosário e seguia ali pelo mercado, que era a Rua da Praia. Era tanta gente, que ficávamos de mãos dadas com medo de nos perdermos” (Santos, 2003, p. 39).

Com isso, é possível indicar que, mesmo com a existência de uma nova capela que redefiniu parte do circuito católico da cidade, o templo do Rosário continuou inserido a esse circuito, pelo menos nos primeiros anos do século XX. No entanto, após esse período, o território do Rosário passa por um momento crítico. Sua inserção no contexto sociocultural da cidade – em que podemos observar a constituição de um espaço de experiência amefricano, marcado pela relação, nesse caso, do sistema católico branco hegemônico e o catolicismo negro do Rosário – passa a mudar.

 

Sentidos atribuídos no fluxo da mudança: a capela e a venda do morro do Rosário

As movimentações religiosas no Rosário, realizadas não somente por sua irmandade, mas também por outros grupos, revelam a inserção do território na formação da vida social da cidade no século XIX e início do XX. Porém, conforme Lucena (1998, p. 84), “as transformações físicas e sociais no espaço urbano do centro Histórico entre 1880 e 1930”, sendo as mais marcantes no histórico da cidade, delinearam um cenário complicado para o território do Rosário, de forma que diferentes ações culminaram com a demolição da capela na década de 1930 e a venda do morro em 1941. Tal cenário estava marcado pelo contexto do pós-abolição que, conforme aponta a historiadora Lucia Helena Oliveira Silva (2010), compreende o momento seguinte ao fim da escravidão até o final da década de 1920, cenário da República Velha, marcado pela ideologia da higienização e de exclusão das populações negras e pobres dos centros urbanos.

Nesse sentido, as transformações ocorridas em Laguna na primeira metade do século XX estão situadas em uma condição nacional de “melhoramentos” urbanos, que tiveram como consequência “a destruição de cortiços, as obras de canalização das águas, o ajardinamento das praças públicas e a aplicação de uma série de códigos de posturas que buscavam forjar corpos saudáveis e ordeiros [...]” (Sayão, 2015, p. 862). Em Laguna, não há registros de desapropriações e despejos como os ocorridos na cidade do Rio de Janeiro durante o governo do prefeito Pereira Passos. Porém, obras como a construção do jardim Calheiros da Graça, inaugurado em 1915, no antigo campo do Manejo, e a ampliação da área portuária são características desse período de modernização nacional. É nesse momento que ocorre o processo de demolição e apagamento do território do Rosário.

Coincidentemente, é este o período em que a Irmandade passou a ser acusada por parte da imprensa local e seus colunistas de descuido para com seu templo, destacando em alguns casos o alerta para o perigo de desmoronamento. O organograma A Idea, escrito por um grupo identificado como “mocidade lagunense”, traz um texto na sua publicação do dia dezenove de dezembro de 1905, pontuando que “diversos jornais têm falado continuamente para a comissão devota daquela santinha tomar parte e fazer os reparos” e afirma que “[...] desde 1888 se tem tornado popular o desmoronamento fatal da mimosa capelinha”[19]. Em contraponto a esse movimento expresso no organograma, apresento a memória na política mobilizada pelo Sr. Antônio (Reis, 2021, n.p.), em que questiona o processo de desmoronamento da capela, pois, para ele: “era uma construção em certo sentido sólida, não se pode falar que ruiu, ela foi ruída (risos). Não ruiu, ela foi realmente demolida, como a gente sabe que várias outras igrejas foram demolidas, deliberadamente demolidas”.

A capela foi demolida, possivelmente, entre os anos de 1932 e 1933. A carta escrita pelo padre Inácio Orth ao arcebispo de Florianópolis, com data do dia 21 de maio de 1932, revela que o estado da capela havia se agravado com o desmoronamento de uma de suas paredes. Além disso, o religioso comenta que o prefeito, preocupado com possíveis prejuízos às casas vizinhas, havia o procurado a fim de encontrar uma solução para a situação. O padre Orth ainda afirma que o restauro do templo não era possível devido ao seu estado de conservação, porém, sugere uma ideia já antes tratada com o arcebispo de construir uma nova capela no Campo de Fora. Por fim, pede autorização para poder tomar providências sobre o assunto[20]. A data definitiva da demolição da capela não é exata, mas é possível ter sido ainda em 1932, pelos motivos apresentados na carta, ou em 1933, como afirmam outros registros (Ulysséa, 1946; Ulysséa, 1976).

A carta citada é um registro interessante que permite ter uma perspectiva de como a capela era entendida pelas autoridades eclesiásticas da época. Destaco que, nesse contexto, não só a existência do prédio é condenada, pois “restaurar era impossível”, como também a permanência da irmandade na região central da cidade, e em destaque no alto do morro, ao sugerir uma nova construção em outra localidade.

A década de 1930 é marcada pelo início do governo Vargas, momento de profundas transformações políticas que modificaram o cenário brasileiro. Dentre elas, a questão da construção de uma identidade nacional pautada em uma noção de democracia racial. Isso iniciou a busca por uma representação de cultura miscigenada, com a mistura branca, negra e indígena, que fez do Brasil um país racialmente democrático e caracterizou a cordialidade do brasileiro, sendo esse um dispositivo determinante para a perpetuação da estrutura racista e colonial até os dias de hoje. De acordo com Lilia Moritz Schwarcz (1998), uma das consequências desse discurso oficial da mestiçagem foi o de “desafricanização” de diferentes traços culturais, que foram gradualmente “clareados”. Situada em uma cidade portuária ao sul do Brasil, marcada por questões do pós-abolição e das políticas higienistas, a capela do Rosário não resistiu fisicamente ao processo de desafricanização, sendo esse um fator que possivelmente motivou a destruição de um espaço religioso construído por africanos e seus descendentes.

Mas as palavras do Sr. Antônio, colocadas anteriormente, possibilitam pensar no contraponto à narrativa de abandono apresentada pela imprensa da época, sugerindo outros fatores para a demolição. Ele faz isso a partir da menção à demolição de outras igrejas do Rosário pelo país, indicando que, em sua perspectiva, o ruir da capela foi um processo deliberado e inserido em um contexto nacional que visava, de fato, apagar a história daquele espaço religioso. Thiago Sayão (2015) destaca que Laguna está inserida em um movimento nacional caracterizado pelo apagamento dos vestígios da presença de africanos e seus descendentes nos centros urbanos. Em sua pesquisa, ele identificou, além de Laguna, registros de demolições de templos do Rosário também em São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Pernambuco.

Observadas todas essas questões do contexto em que a capela foi demolida, que outros elementos poderiam ter contribuído para a capela ruir? Talvez esse processo tenha começado com as próprias obras de modernização do centro da cidade. O primeiro aterro feito para a ampliação da área portuária foi realizado em 1884, contornando o morro do Rosário quatro anos antes do início dos discursos oficiais sobre o desmoronamento da capela, como apresenta o organograma A Idea citado anteriormente. Nesse movimento de modernização, junto aos aterros realizados com sucessivas interrupções, veio a construção do cais de alvenaria na orla central da cidade, obra essa concluída em 1920, e a transferência da estação de trem do Campo de Fora para o centro em 1913 (Lucena, 1998). Mas, como tais obras poderiam afetar a estrutura do templo do Rosário? A crônica Os galos não cantam mais… II, escrita pelo memorialista Ruben Ulysséa, irmão de Nail Ulysséa, e publicada em 1977, nos dá algumas pistas[21]. Ao relembrar a cidade de sua infância e juventude, que se deu por volta de 1902 a 1920, o autor descreve alguns processos de transformação que passou o morro do Rosário. Em suas palavras:

O seu costão rochoso, que mergulhava nas águas da baía, fora há pouco cortado para dar passagem aos trilhos da via-férrea e para fornecer o material necessário à construção do cais de saneamento, obra que se processava graças à contribuição espontânea do comércio exportador (Ulysséa, 2004, p. 305).

 

A retirada de parte do morro de Nossa Senhora para a passagem do trilho do trem e construção do cais do porto pode ter contribuído com a fragilização da estrutura da capela. O padre Carlos José Leopoldo Boegershausen, em visita à cidade de Laguna no ano de 1892, ao avaliar o templo do Rosário, alertou para o risco de um possível esboroamento causado pela erosão do lado sul do morro (Sayão, 2015, p. 860). Não encontrei registros de que a Irmandade tenha recebido quaisquer compensações, tanto pelo uso dos recursos do morro quanto por possíveis abalos à capela, mas isso não impediu as campanhas vinculadas aos jornais locais de criticarem o descuido e abandono do templo pelos irmãos e irmãs do Rosário. No entanto, o próprio organograma A Idea destaca, em 1905, a existência de uma comissão devota, composta pelos senhores Manoel Alano Fernandes Lima, Thomaz Norberto, Leopoldo Maria, Marcos Teixeira e Lucidonio Muchocho[22], mostrando que houve mobilização por parte de alguns irmãos do Rosário na tentativa de preservação de seu território. Segundo Sayão (2015, p. 864): “foram, inclusive, encenadas as peças: Helena e Quase Ministro, de Horácio Nunes Pires, com esse intuito”. Contudo, as dificuldades enfrentadas por seus irmãos e irmãs, a maioria trabalhadores operários, não permitiram de fato realizar as obras necessárias, o que, aliado ao movimento de retirada do patrimônio negro e apagamento de suas histórias do centro urbano, levaram à sua demolição na década de 1930. Após esse processo, o espaço vazio no topo do morro de Nossa Senhora continuou guardando resquícios do que antes foi o espaço de devoção de africanos e seus descendentes.

Na tarde em que conversei com Dona Terezinha Maria Nascimento Eufrásio na sala de sua casa, a professora aposentada de 80 anos e moradora do centro da cidade contou várias histórias. Algumas delas acerca de sua experiência enquanto professora, pois, assim como sua avó Julia e suas tias Arminda e Elza, Dona Terezinha seguiu o caminho da educação. Contou sobre a experiência de ter se deslocado para o interior do Estado para ministrar aulas em uma colônia italiana no final dos anos 1950. Narrou o período em que trabalhou na localidade do Farol de Santa Marta[23], onde conheceu seu esposo e constituiu família. Além disso, trouxe memórias sobre sua infância no centro de Laguna, lembrando das amizades e brincadeiras, algumas dessas no espaço onde antes existia a capela do Rosário. “Eu já brinquei naquele morro do Rosário e tinha, que eu me lembro, umas paredes assim de tijolo e nós brincávamos lá [...] aquele barro... e nós brincávamos lá” (Eufrásio, 2021, n.p.). A memória informativa de Dona Terezinha revela que, mesmo anos depois da demolição da capela, por volta dos anos 1950, os vestígios físicos de sua existência permaneciam presentes. Ainda segundo ela: “[...] eu era pequena, nove anos, não existia mais a igreja, mas existiam aquelas paredes”. Logo em seguida, a professora aciona elementos de memória sentimento: “meu avô era dessa irmandade do Rosário que era dos negros, mas não tinha esta santa na igreja [Matriz], eu nunca vi, ela tinha a igrejinha dela lá, não sei porque derrubaram”[24]. Assim sendo, a professora constrói uma identificação a partir de seu avô e define um território negro ao afirmar que a santinha da irmandade dos negros possuía seu próprio espaço religioso fora da Igreja Matriz.

As pessoas desta pesquisa, nascidas depois da demolição da capela do Rosário, possuem diferentes memórias sobre o espaço de devoção, mobilizadas no presente a partir de elementos políticos, sentimentais ou informativos. Algumas mobilizaram mais informações para dar significado e construir a narrativa sobre aquele espaço, como o Sr. Antônio; outras revelaram apenas saber da existência da capela e da referência à Nossa Senhora do Rosário, mas relataram não ter mais informações, pois não era do tempo delas. No entanto, mesmo essas pessoas, a partir de suas memórias, constroem sentidos ao narrar outras histórias que se ligam à trama do Rosário.

Dona Marli Brum, 81 anos, professora aposentada, é uma dessas pessoas. Durante a tarde de conversa que tivemos em sua casa, no centro, contou que nasceu no bairro Campo de Fora. A partir dessa primeira referência territorial, Dona Marli lembrou com carinho da casa em que morou na infância, recordando as muitas árvores plantadas por seu pai no quintal e a criação de galinhas de sua mãe. Trouxe também a memória espacial do bairro, narrando a fonte onde as pessoas buscavam água e lavavam suas roupas, destacando algumas construções, como a sede do antigo Clube Anita Garibaldi e a estação de trem. Do cotidiano, a professora relatou que na infância gostava muito de quando, aos domingos, ia até a capela de N. S. Auxiliadora do bairro da Roseta, atualmente igreja de N. S. Auxiliadora do bairro Progresso, para a doutrina.

Nos domingos, geralmente aos domingos à tarde, crianças tinham culto [...] as irmãs do colégio Stella Maris apitavam chamando as crianças para a doutrina... na igreja da Roseta [...] Lá então a gente tinha doutrina e depois — elas para incentivar as crianças para a doutrina — terminava a doutrina ganhava puxa-puxa (risos) (Brum, 2021, n.p.).

 

Nesse momento, perguntei se ela se lembrava da “capela da Roseta”, que estava no início de sua construção. No entanto, para minha surpresa, a resposta de Dona Marli me levou para o contexto de demolição da capela do Rosário, trazendo evidências na oralidade de tramas envolvendo esses dois espaços de devoção. Por fim, assim como Dona Terezinha, constitui significado ao território do Rosário no presente ao reivindicá-lo.

Eu — A senhora lembra da igrejinha de como era? Da santinha?

Dona Marli — Lembro... N. S. Auxiliadora, que, na verdade, a N. S. Auxiliadora que tem lá é a N. S. do Rosário que tinha aqui no morro do Rosário. Então quando a igreja estava muito velha e tudo assim caindo, não reformavam, eles levaram a santinha. Dona Nair Ulysséa guardou essa santinha em casa... quando eles foram construir essa igrejinha lá na Roseta queriam fazer auxiliadora, então tiraram o cetro que ela carregava na mão, não! Tiraram o rosário e colocaram o cetro, daí ela passou a ser N. S. Auxiliadora, mas, na verdade, é ela! [Rosário] (Brum, 2021, n.p.).

 

Em seguida, Dona Marli comenta sobre a vontade de construir uma nova igreja para abrigar a imagem de Nossa Senhora do Rosário.

Eu, em uma ocasião, disse assim: — eu fiz uma tele sena — se eu tirasse um dinheiro bom mandava construir a igreja e ia lá buscar Nossa Senhora e botava lá (risos). [...] Na escola eu sempre dizia isso: se um dia eu ficar rica eu vou lá faço a igrejinha e vou lá buscar a imagem. “Ah, mas eles não entregam”, claro que entregam, pertence a nossa raça! (Brum, 2021, n.p.).

 

A história que Dona Marli trouxe envolvendo a realocação da imagem de Nossa Senhora do Rosário para a igreja do bairro Progresso está presente também no trabalho de Reis (1996) e nos escritos de Ulysséa (1976). Nesse sentido, a costura da memória permite afirmar que as reminiscências do Rosário existem na cidade de Laguna não somente nas memórias das pessoas, mas também em alguns de seus patrimônios materiais, como é o caso da imagem de Nossa Senhora.

No entanto, destaco que os trechos selecionados da conversa com Dona Marli são interessantes aqui pela possibilidade de observarmos quais elementos a professora mobilizou para construir uma narrativa envolvendo o território do Rosário. Mesmo não tendo vivenciado a capela de pé, a exemplo de meu avô, nem ter revelado participar dos movimentos negros na cidade, como a professora Claudete e o Sr. Antônio, Dona Marli mobiliza a referência da origem da imagem da santa da igreja da Roseta (Progresso) de forma política, afirmando ser esta a verdadeira imagem de Nossa Senhora do Rosário pertencente à raça negra. Com isso, a professora dá sentido ao território do Rosário, reivindicando para si a imagem. Isso nos revela que as memórias variam conforme as experiências e vivências das pessoas, mas, a partir delas, podemos identificar elementos que possibilitam preencher lacunas sobre a história do Rosário, atribuindo sentidos no presente no diálogo com as perspectivas negras da cidade.

Nesse sentido, no meu processo de pesquisa, a oralidade foi, além de fonte, um instrumento metodológico. A partir das informações encontradas, pude seguir descortinando histórias do território do Rosário após a demolição da capela, no fluxo das mudanças da primeira metade do século XX. Dentre os possíveis caminhos descobertos a partir da oralidade, destaco aqui a história da tentativa de efetivação da ideia já apontada pelo padre Orth, em 1933, de construção de uma nova capela na localidade do Campo de Fora. Destaco esse movimento como importante porque, na maioria das documentações encontradas (jornais e cartas) e nas bibliografias “tradicionais” da cidade (Dall’Alba, 1979; Ulysséa, 1946; 1976), nessa época, a Irmandade do Rosário aparece como extinta há muito tempo, já que, segundo alguns registros memorialísticos, ela havia tido “sua época áurea” no contexto da escravidão (Ulysséa, 1976). Porém, a mobilização para a construção de um novo templo mostra que, embora a capela do morro já estivesse extinta, o mesmo não ocorreu com a Irmandade e a devoção de seus fiéis.

Para tanto, apresento a seguir o relato de meu tio, o Sr. Cairo Norberto Martins, de 85 anos, bancário aposentado. A primeira conversa que tive com tio Cairo foi de maneira informal; ainda estava no início da pesquisa e nem havia começado as entrevistas. Durante um almoço de domingo, comentando sobre o tema da minha pesquisa e da capela de Nossa Senhora do Rosário, ele me relatou que não se recordava do templo do morro, mas lembrou que, quando criança, foi a uma missa campal no bairro Campo de Fora, onde estava sendo construída uma capela para a mesma santa. Com isso, passei a incluir meu tio entre as pessoas desta pesquisa. Passado um tempo dessa primeira conversa, realizamos uma entrevista. Sobre a nova capela, ele trouxe a seguinte memória:

Me lembro que eu tinha uns seis, sete anos. Eu fui à missa em um terreno bem do lado de onde depois construíram a estação da estrada de ferro, a nova. Então fizeram uma missa campal com um pouco da parede levantada, para levantar fundo para levantar a igreja que seria de N.S. do Rosário (Martins, 2021, n.p.).

 

Ele ainda descreveu que o lugar estava bem enfeitado com bandeirolas, “mas não passou disso”, sendo que a igreja não foi terminada por falta de recursos. A partir dos indícios encontrados na memória de meu tio, passei a investigar se as outras pessoas com quem conversei sabiam da capela do Campo de Fora, incluindo o tema nas perguntas das entrevistas. Dona Marli foi outra entrevistada que mostrou possuir memória da existência do início de uma nova capela, e identificou o terreno na frente da estação de trem como a localização.

Quando foi desmanchada a igreja ali [morro do Rosário], quando foi desmanchada a igreja, aí na frente da estação que era tudo deserto só tinha um matadouro, ali tinha um casarão do comendador Rocha, e na frente do comendador Rocha tinha uma casa de fundo para lá e depois não tinha nada de construção, nada. Então o padre disse que eles [irmandade] ganharam um terreno da prefeitura para fazer uma igreja de N. S. do Rosário ali, mas nunca fizeram! Tinha a irmandade, então eles ganharam, mas não tinha dinheiro para fazer, nunca fizeram. [...] chegaram até fazer o alicerce da igreja, mas nunca foi para a frente (Brum, 2021, n.p.).

 

Fazendo o exercício de pensar a espacialidade da cidade no contexto em que se discutia a construção uma nova capela de N. S. do Rosário, é possível ter uma dimensão da tentativa do poder público, bem como das autoridades eclesiásticas, de deslocar completamente a presença da Irmandade do Rosário e sua capela do centro urbano. A região que se estendia para além do Morro do Rosário, ao norte da cidade, havia começado a ser ocupada no final do século XIX e primeira metade do XX, a partir da realização de diferentes aterros, já que essa região era composta por muitos cômodos de areias e banhados. A expansão urbana da cidade aumentou durante o período da Primeira Guerra Mundial. No entanto, no período da Segunda Guerra, a característica é de adensamento das áreas já ocupadas. Com isso, as localidades mais afastadas do centro da cidade, como a Roseta e Areal, consideradas periféricas, observaram o número de famílias de pescadores, lavadeiras e operários aumentar. Entretanto, assim como no bairro Campo de Fora, primeiro a surgir a partir dos aterros ainda no século XIX, a quantidade de construções ainda era menor, bem como o aspecto arquitetônico era mais simples do que na região central (Lucena, 1998; Ulysséa, 2004).

Dito isso, foi a partir das memórias informativas de meu tio e de Dona Marli que pude identificar que a história da Irmandade do Rosário não se encerrava com a demolição da capela na década de 1930. Sendo assim, na intenção de descortinar mais questões a partir das informações obtidas na oralidade e preencher as lacunas existentes sobre o território do Rosário, fui aos arquivos, em específico, o Arquivo Eclesiástico de Florianópolis. No levantamento de fontes, localizei treze cartas, um anúncio de jornal e uma ata de reunião referentes à venda do morro e à construção da nova capela. A análise dos documentos revela que esse processo durou de 1939 até 1948, ano da última carta encontrada. Sendo assim, destacarei, dentre elas, algumas que permitem construir um panorama do contexto.

No dia 22 de maio de 1939, o vigário da paróquia de Laguna, padre Bernardo Philippi, escreve ao vigário geral da capital, padre Frei Evaristo Schurmenn, sugerindo a venda do terreno do Morro de N. S. do Rosário pela quantia de “cinco ou mais contos”, revertendo esse valor para a construção de uma “capela decente” no Campo de Fora[25]. No dia 27 de junho, Phillipe envia outra carta, agora ao segundo vigário geral da capital, padre Harri Bauer, enfatizando sua preocupação para com a propriedade da Irmandade e informando que o Dr. João de Oliveira já havia erguido cinco casas na encosta do morro. Finalizando, na mesma correspondência, afirma que a Irmandade de Santo Antonino não vinha apresentando interesse no assunto e que, assim sendo, restavam três opções: tirar os invasores, cobrar aluguel ou vender o terreno[26]. Por fim, sem ter obtido resposta às duas cartas anteriores, padre Bernardo Philippi, no dia nove de julho de 1939, escreve a Dom Joaquim Domingues de Oliveira, arcebispo de Florianópolis, informando que o terreno de propriedade da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário estava sendo trabalhado pelo Dr. João de Oliveira[27]. Mostrando preocupação pelo assunto, o vigário afirma já ter escrito por duas vezes aos vigários gerais da capital, porém, não obteve resposta. Ainda nessa carta, o religioso comenta que a Irmandade do Rosário não possui pessoa jurídica, não podendo assim agir por conta própria, e pontua que “os homens de cor” não se reúnem, porém, realizam a festa da padroeira[28].

A resposta definitiva da Cúria, pela representação do arcebispo, veio na carta do dia 12 de agosto, em que a proposta de venda do terreno foi tida como “a mais radical e definitiva”, porém, “mais viável”[29]. Sendo assim, o Morro de Nossa Senhora do Rosário foi vendido em 1941 por cinco contos de réis a João de Oliveira, como atesta a ata da reunião da Irmandade do dia 17 de agosto desse ano[30].

Após a venda do morro, o terreno para a nova capela provavelmente só foi adquirido no ano de 1945. Segundo consta na carta de oito de janeiro de 1945, escrita pelo padre Phillipe ao vigário geral de Florianópolis, os cinco contos de réis foram usados para comprar um terreno pertencente ao asilo na localidade do Campo de Fora. O religioso ainda acrescenta que a comissão, possivelmente formada por irmãos do Rosário, não concordava com a compra, pois achava o lugar pobre[31]. Não é possível afirmar se a discordância era em relação à localidade ou ao terreno. Contudo, o Campo de Fora, nesse período, era um bairro periférico em relação ao centro da cidade. Sendo assim, o novo terreno da Irmandade não possuía mais a centralidade e visibilidade tal qual o morro de Nossa Senhora.

O último registro encontrado no Arquivo Eclesiástico de Florianópolis (AEDF) é de 27 de julho de 1948, uma correspondência do vigário geral da capital como resposta ao vigário de Laguna, padre Gregório Warming, que havia encaminhado um tempo antes algumas alterações na planta da nova capela do Rosário, que já contava com alguma estrutura pronta[32]. O jornal O Albor, no dia 21 de abril de 1945, traz a seguinte nota:

Imagem 3: Nova Igreja do Rosário

Fonte: O Albor, a. XLIV, n. 2086, 21 de abril de 1945.

É provável que nesse período, entre o lançamento da pedra fundamental e da carta ao padre Gregório, tenha sido realizada a missa campal para angariar fundos à qual meu tio Cairo lembra-se de ter ido. Também é provável que a Irmandade e sua comissão não obtiveram quantia muito maior do que o dinheiro conseguido com a venda do morro, e, por isso, a capela de Nossa Senhora do Rosário no Campo de Fora nunca foi concluída.

Isso posto, os vestígios encontrados, seja na memória de uma nova capela ou nas cartas de venda do morro, apontam para algumas coisas. A primeira é a permanência, pelo menos de alguns membros da mesa diretora, da Irmandade do Rosário, no período que se segue à demolição de seu templo, bem como a emitância de articulação para uma possível continuidade em outra localidade. As fontes não possibilitam inferir os sentidos que os irmãos e as irmãs do Rosário atribuíram a esse novo templo, mas evidencia-se a própria existência de uma iniciativa. O segundo ponto que quero destacar é a discordância com o lugar pela comissão. Isso indica, possivelmente, um desejo por parte desta de encontrar um lugar que se aproximasse com o ponto privilegiado e de destaque que a Irmandade possuía no centro – o que nos faz pensar sobre a importância em ocupar esse espaço da cidade.

Durante a primeira metade do século XX, o território negro do Rosário não era o único na região central. A sede da Sociedade Recreativa União Operária, fundada em 1903 inclusive também por um irmão do Rosário (Rosa, 2021; Sayão, 2015), e a do Clube Literário Cruz e Souza, fundado em 1916, ficavam no atual centro histórico de Laguna. Esse segundo teve sua primeira sede justamente no bairro Campo de Fora, mas logo seus sócios adquiriram uma propriedade na rua Osvaldo Aranha e, assim, trouxeram o clube para o centro (Rosa, 2021). É possível, também, que a recusa de alguns membros da comissão tenha sido pelo fato de o Morro do Rosário ainda ter um sentido importante para as populações negras da cidade. O Sr. Antônio recorda que, em sua infância, a banda União dos Artistas ia até o topo do morro, já sem a capela, e realizava concertos musicais, isso na década de 1950. Ele não afirmou ser algo ligado a alguma manifestação religiosa católica, mas conjecturou que seria possível, pois, em suas palavras:

[...] eu não me lembro se havia alguma manifestação religiosa católica, mas é possível que houvesse [...] para uma banda subir num local é porque normalmente tinha muito a ver com uma manifestação religiosa, havia muita associação de banda religiosa, as bandas musicais sempre abrilhantavam essas festas (Reis, 2021, n.p.).

 

Além sobre a questão religiosa, outro fator que faz pensar essa manifestação relembrada pelo Sr. Antônio, enquanto tendo relação com o Rosário, é a historicidade da Sociedade Musical União dos Artistas. O próprio Sr. Antônio destacou essa sociedade como um espaço importante para a história das populações negras em Laguna, estando presentes na cidade desde o século XIX, e que desde sua fundação, em 1860, contou com uma grande presença de músicos negros. Já na época de infância do Sr. Antônio, esse número ainda era bastante grande, como ele afirmou, tendo como integrantes, por exemplo, seu pai e meu avô. Não foi possível localizar um registro dos dois tocando juntos na banda União dos Artistas. Porém, a fotografia a seguir, disponibilizada pelo jornalista lagunense Valmir Guedes, mostra meu avô e o Sr. Antônio dos Reis, pai do meu interlocutor, tocando juntos no conjunto musical Jazz Municipal por volta da década de 1950. Na fotografia, meu avô (segundo da esquerda para a direita) aparece tocando seu pistom. Já o Sr. Antônio (quarto da esquerda para a direita) aparece tocando seu clarinete, ambos instrumentos por eles tocados também na banda União dos Artistas.

Imagem 4: Conjunto Jazz Municipal, Laguna, década de 1950

Fonte: Acervo Valmir Guedes Junior.

A não construção de uma nova capela no Campo de Fora, ao que tudo indica, não foi o fim da história do território do Rosário. As memórias e narrativas mobilizadas no tempo presente pelas pessoas desta pesquisa permitem evidenciar que esse espaço possuiu e ainda possui sentidos e significados para as pessoas negras da cidade, mesmo após a demolição e venda do morro. Nesse sentido, a mobilização do passado, presente principalmente na primeira parte deste artigo em memórias na política, gera reverberações. Com isso, a constituição do território do Rosário no tempo presente, assim como no passado, também é perpassada por demandas e disputas, as quais, a partir dos(as) diferentes interlocutores(as) desta pesquisa, possibilitam evidenciar novos sentidos atribuídos aos elementos do Rosário no movimento histórico.

 

Considerações finais

Foi com esse caminhar, e no exercício da costura da memória, que busquei neste artigo trazer as pessoas que fizeram parte de minha pesquisa, pessoas negras que entrevistei para constituir uma reflexão sobre o território do Rosário, entendido aqui enquanto um espaço que serviu em diferentes momentos históricos como referencial de pertencimento e de constituição de identidade e identificações relacionadas a um grupo racializado historicamente, e que, em Laguna, constituiu-se na junção de três elementos: a irmandade, o morro e a capela (Reis, 1996). Busquei identificar como esse território é narrado e as disputas acerca dele a partir das memórias no presente de alguns dos meus interlocutores, identificando evidências que permitem constituir sentidos e significados a esse espaço de devoção e seus elementos e ao protagonismo de pessoas negras na cidade em diferentes momentos históricos.

Assim, foi possível observar que a constituição do território contou com diferentes estratégias empreendidas pelas pessoas devotas do Rosário. Em um contexto marcado por uma ascensão econômica na cidade, as transformações sociais que o trem e a ampliação do porto trouxeram foram plano de fundo para a inserção da capela do alto do morro na vida católica de Laguna. Além disso, também foi possível percorrer por um contexto em que o território localizado no centro da cidade passa a ser “desterritorializado” – sendo percebidas diferentes ações da Irmandade do Rosário ainda durante o processo de ataques às ruínas do templo – e que se estendeu até a tentativa de construção de uma nova capela.

Aliado a isso, foi percorrendo as memórias de meu avô e nas conversas que tive com o Sr. Reis, as Donas Marli e Terezinha e com meu tio Cairo que pude constituir uma narrativa histórica sobre a cidade, incorporando suas memórias sentimento ou memória na política. No meu entendimento, estas são indissociáveis na narrativa elaborada pelos(as) interlocutores(as), trazendo elementos e sentidos de reivindicação e questionamento (memória na política), de sentidos afetivos, nostálgicos ou de negação (memória sentimento). Destacando esses elementos na narrativa histórica constituída no diálogo com as pessoas da pesquisa, foi possível incorporar à historiografia da cidade narrativas mais plurais.

Dito isso, essa reflexão esteve inserida em uma perspectiva que visou contribuir com o campo dos estudos históricos da negritude e da diáspora em Santa Catarina. Busquei narrar, a partir de diferentes registros históricos, experiências negras dentro desse espaço marcado pela colonialidade, pensando em possibilidades de criticar essa estrutura no intuito de transformá-la. Nesse sentido, tive como objetivo uma construção de conhecimento histórico que evidenciasse caminhos epistemológicos teórico-práticos que tenham como perspectiva política a busca por equidade e dignidade na estrutura colonial em que vivemos ao incorporar, nessa produção, o reconhecimento das pessoas da pesquisa enquanto corpos políticos produtores de conhecimento.

 

 

Referências bibliográficas

BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramon. Introdução: Decolonialidade e Pensamento Afro diaspórico. In: BERNARDINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramon (Orgs.) Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. p. 9-26.

BRUM, Marli. [Entrevista concedida a] Willian Felipe Martins Costa. Laguna, 12 de maio de 2021.

CASTRO-GOMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (Eds.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana y Siglo del Hombre Editores, 2007.

DALL’ALBA, João Leonir. Laguna antes de 1880: documentário. Florianópolis: Lunardelli; UDESC/DAPE, [1979].

ESCOBAR, Arturu. Sentipensar con la tierra: Nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia, Medellín, UNAULA, 2014.

EUFRÁSIO, Terezinha Maria Nascimento. [Entrevista concedida a] Willian Felipe Martins Costa. Laguna, 15 de maio de 2021.

GONZÁLEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, 1988.

LUCENA, Liliane Monfardini Fernandes de. Laguna: de ontem a hoje espaços públicos e vida urbana. Florianópolis, 1998. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1998.

MARTINS, Cairo Norberto. [Entrevista concedida a] Willian Felipe Martins Costa. Laguna, 26 de outubro de 2021.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014.

MIGNOLO, Walter; ESCOBAR, Arturo (Eds.). Globalization and the Decolonial Option. London: Routledge, 2010.

MIGNOLO, Walter; TLOSTANOVA, Madina V. Theorizing from the Borders: Shifting to Geo/Body-Politics of Knowledge. European Jornal of Social Theory, Sussex, v. 2, n. 9, p. 205-221, 2006.

MORTARI, Cláudia; WITTMANN, Luisa Tombini. Histórias compartilhadas: propostas universitárias de construção de conhecimentos decolonizados. PerCursos, Florianópolis, v. 19, n. 39, p. 154-176, jan./abr. 2018.

PAULINO, Rosana. A costura da memória. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.

REIS, Aloísio Luiz dos. “Brinca quem pode”: Territorialidade e (In)Visibilidade Negra em Laguna - Santa Catarina. 1996. 206 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1996.

REIS, Antônio Luiz dos. [Entrevista concedida a] Willian Felipe Martins Costa via internet. Laguna, 2 de fevereiro de 2021.

ROSA, Júlio César da. Associativismo negro em laguna e a construção identitária: irmandade, sociedades musicais e clubes negros (1870 a 1950). 2021. Tese (Doutorado em História) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2021.

ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente e o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.

SANTOS, Adriana Valgas Guedes. Comemoração também é patrimônio: a festa de Nossa Senhora dos Navegantes. In: CESCONETTO, Gizely; FREITAS, Deise Scunderlick Eloy de; SANTOS, Adriana Valgas Guedes; SANTOS, José Antônio da Silva (Orgs.). Cadernos de Laguna, n. 2. Florianópolis: BASE2000 Publicidade & Design, 2003. p. 5-17.

SAYÃO, Thiago Juliano. Negras paisagens: (in)visualidade afrodescendente na Laguna (SC). In: COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA CULTURAL DA CIDADE, 1., 2015. Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: CIHCC, 2015. p. 854-869.

SCHIBELINSKI, Diego. Do cais ao convés: marítimos e a navegação de cabotagem no porto de Laguna. In: MAMIGONIAN, Beatriz G; SAYÃO, Thiago J. (Orgs.). Revisitar Laguna: histórias de conexões atlânticas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2021. p. 223-260.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 173-244.

SILVA, Lúcia Helena Oliveira. Vivências negras: trabalhando com a ausência depois da abolição. Diálogos, Maringá, v. 14, n. 3, p. 557-577, 2010.

ULYSSÉA, Nail. Três séculos na Matriz de Santo Antônio dos Anjos da Laguna. In: SANTO ANTÔNIO DOS ANJOS DA LAGUNA: seus valores históricos e humanos. Publicação comemorativa da passagem do seu tricentenário de Fundação. Florianópolis: IOESC, 1976.

ULYSSÉA, Ruben. Laguna: memória histórica. Brasília: Letra Ativa, 2004.

ULYSSÉA, Saul. A Laguna de 1880. Florianópolis: IOESC, 1943.

ULYSSÉA, Saul. Coisas velhas: a família imperial do Brasil, queda do império, proclamação da república. Florianópolis: Oficinas da Imprensa Oficial, 1946.

WALSH, Catherine; SCHIWY, Freya; CASTRO-GOMEZ, Santiago (Eds). Indisciplinar las ciencias sociales: geopolíticas del conocimento y colonialidad del poder: perspectivas desde lo andino. Quito: Univeridad Andina Simón Bolivar y Ediciones Abya Yala, 2002.

 

Recebido em 29/04/2024.

Aceito em 18/06/2024.



[1] Este artigo é fruto de parte de minha caminhada de pesquisa de mestrado intitulada Uma igreja construída para o negro, de uma irmandade de negro: espaços e devoções negras na Améfrica no tempo presente (Laguna, Santa Catarina), defendida em 2022.

[2] Doutorando no Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) sob a orientação da Professora Doutora Claudia Mortari. Pesquisador associado ao AYA – Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais da FAED/UDESC. Bolsista Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES. Brasil. E-mail: will53638@gmail.com | https://orcid.org/0009-0005-7462-8794

[3] Em suas palavras, a explicação do apelido: Você pode sair a perguntar... o senhor conhece o seu João Juvêncio Martins? A não ser meus familiares, a maioria não me conhece. Mas se você perguntar pelo meu apelido: – O senhor conhece o Sr. “João Salame”... Ah! Vão lhe dizer, o João Salame é a vassoura aí da rua! Este apelido é herança do meu pai. Porque ele trabalhava numa casa de secos e molhados... E o dono desta loja ia para casa almoçar e armazenava um barril de cachaça. Era só abrir a torneira porque ele era adepto à banda da Carlos Gomes e tinha muitos amigos. Então o pessoal ia lá e eu ficava na venda com meu pai, porque eu não podia ir em casa sozinho, então eu comia salame com farinha… (Entrevista concedida a Liliane Lucena, 1998).

[4] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 01.

[5] Transcrição da ata da eleição da Irmandade de N. S. do Rosário realizada no dia cinco de dezembro de 1836 (Ulysséa, 1946, p. 148-149).

[6] Entrevista concedida a Liliane Lucena em 1998.

[7] Certidão de óbito pesquisada nos registros do site Family Search.

[8] Tanto a memória de meu avô quanto a fotografia são registros do período um pouco anterior à demolição da capela, que aconteceu provavelmente em 1933. Posteriormente, abordarei um pouco mais desse contexto.

[9] Tais discussões estão pautadas nas reflexões de diferentes autores (p. ex.: Castro-Gomez; Grosfoguel, 2007; Mignolo; Escobar, 2010; Mignolo; Tlostanova, 2006; Walsh; Schiwy; Castro-Gomez, 2002; Bernardino-Costa; Maldonado-Torres; Grosfoguel, 2020).

[10] O Município, a. II, n. 34, 1 de abril de 1879.

[11] Relatório de Província, 1879. Disponível em: http://memoria.org.br/ia_visualiza_bd/ia_consultar_acervo.php? p=139&c=a. Acesso em: 18 out. 2021.

[12] O Município, a. II, n. 33, 28 de março de 1879.

[13] O Município, a. II, n. 18, 12 de janeiro de 1879.

[14] Não foi possível localizar mais informações sobre essa irmandade. Porém, acredito ser a mesma responsável pela construção da capela de N. S. dos Navegantes no bairro Magalhães a partir do ano de 1912.

[15]  O termo foi usado pelo autor com base na documentação da época.

[16] A Verdade, a. VII, n. 313, 2 de agosto de 1885.

[17] O Futuro, a. IX, n. 316, 3 de fevereiro de 1900.

[18] O Futuro, a. IX, n. 310, 24 de dezembro de 1899.

[19] A Idea, a. I, n. 4, 19 de dezembro de 1905.

[20] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 214 - Diocese de Tubarão - Laguna - 1911 - 1945. Doc. 26

[21] Relançada no ano de 2004 em conjunto com outros textos do autor no livro Laguna: memória histórica.

[22] A Idea, a. I, n. 4, 19 de dezembro de 1905.

[23] A comunidade do Farol de Santa Marta está localizada a cerca de 19 km do centro da cidade de Laguna, município ao qual faz parte. Construída no entorno do Farol de Santa Marta, com a estrutura erguida à base de óleo de baleia e inaugurada em 1891, teve seu início ainda na primeira metade do século XX, com o estabelecimento de algumas famílias de pescadores. A comunidade manteve essa característica até medos dos anos 1980, quando surfistas e turistas passaram a escolher a localidade para passar o verão. Atualmente, a comunidade é formada por famílias de pescadores e uma intensa movimentação imobiliária (Fonte: A pedra e o farol. Direção: Luciano Burin. Uma produção Scult Filmes, 2016. Documentário, 108 mim).

[24] O avô de Dona Terezinha se chamava Pedro Jeronymo do Nascimento, e foi um conhecido carpinteiro e construtor de barcos em Laguna. Casou-se com a professora Julia Crispino do Nascimento e teve três filhas. Foi um dos fundadores da Sociedade Recreativa União Operária, e no ano de 1910 foi eleito irmão do Rosário (Eufrásio, 2021; Rosa, 2021).

[25] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 04.

[26] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 06.

[27]  Não foi possível localizar até este ponto mais informações acerca da identidade do Dr. João de Oliveira.

[28] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 03.

[29] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 07.

[30] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 10.

[31] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - Irmandades - Irmandade de N. Sra. do Rosário. Doc. 13.

[32] Arquivo Histórico Eclesiástico da Arquidiocese de Florianópolis - Pasta 219 - Diocese de Tubarão - Laguna - 1948 - 1954. Doc. 17.