Escrevivências e cosmopercepções: movimentos e encontros transatlânticos na travessia Brasil - Moçambique

Writing-living and Cosmoperceptions: Transatlantic Movements and Encounters in the Brazil - Mozambique Crossing

                                                Monalisa Aparecida do Carmo[1]

 

 


Resumo

Escrevivência e cosmopercepção. Orientada por esses conceitos realizo um deslocamento, enquanto mulher negra brasileira, para terras moçambicanas na intenção de experimentar aproximações e afastamentos. Partindo de inquietações da diáspora africana, a travessia transatlântica se apresenta como demanda ancestral de um corpo político, o que leva a encontros e partilhas marcados por pertencimento, diálogos e desafios coloniais. Na tentativa de obter elementos para uma escrita através da vivência, e romper com os riscos do afastamento gerado pela outridade, proponho caminhos para uma pesquisa com. Dessa forma, este estudo se organiza através das trocas, vivências e conversas na circulação entre Maputo e uma comunidade rural, apontando disputas que permeiam lingua(gem), saberes tradicionais e colonialidade.

Palavras-chave: Escrevivência; Moçambique; Cosmopercepção.

Abstract

Writing-living and cosmoperception. Guided by these concepts, I embark, as a Black Brazilian woman, on a journey to Mozambican lands with the intention of experiencing both closeness and distance. Stemming from the inquiries of the African diaspora, the transatlantic crossing emerges as an ancestral demand of a political body, leading to encounters and exchanges marked by belonging, dialogues, and colonial challenges. In an attempt to gather elements for a narrative on lived experiences and to overcome the risks of detachment generated by alterity, I propose pathways for research. Thus, this study is structured through exchanges, experiences, and conversations in the movement between Maputo and a rural community, highlighting disputes that permeate language, traditional knowledge, and coloniality.

Keywords: Writing-living; Mozambique; Cosmoperception.


 

 

 

 

Introdução

Este estudo tem como objetivo contextualizar possibilidades e desafios que conduziram à elaboração de uma pesquisa sul-sul, que se propõe a identificar experiências africanas e afrodiaspóricas entre Brasil e Moçambique, através da escrevivência de uma mulher negra brasileira[2]. Uma inquietação que é mobilizada pelas provocações e questionamentos que são movimentados a partir da tentativa de desconstruir e estraçalhar o risco da outridade, para que não seja sobre, mas com.

O construir pesquisa está historicamente consolidado em referências eurocêntricas do conhecimento. Colonizar o pensamento e sua manifestação segue sendo uma estratégia de dominação. Como destacado por Aníbal Quijano (2005), precisamos reconhecer como o colonialismo se converte em uma colonialidade do saber, fundamentada na negação das formas de produzir conhecimento que não são hegemônicas. Dessa forma, a produção do pensamento e da escrita que conta com “os dispositivos de controle do saber são também dispositivos de controle da linguagem e da nossa relação com a linguagem, quer dizer, das nossas práticas de ler e escrever, de falar e escutar” (Larrosa, 2003, p. 102). Assim, à medida que nos propomos a (re)pensar sujeitos e imposições coloniais, há a necessidade de (re)pensar as rotas e os caminhos para ir num sentido distinto a colonialidade.

Miguel Arroyo (2018), ao analisar os processos educativos que envolvem a conquista de espaço de sujeitos historicamente excluídos, como camponeses/as, indígenas, quilombolas e negros/as/us, nos empresta um importante conceito para pensar como essa presença gera a demanda por “outras pedagogias”. O autor nos lembra que através da presença de “outros sujeitos” acessando a educação e, consequentemente construindo pesquisa, nos deparamos com a necessidade de “outras pedagogias”:

Ao destacar que os próprios oprimidos têm duas pedagogias de conscientização da opressão e dos processos de desumanização a que são submetidos já aponta que eles afirmam Outras Pedagogias em tensão com as pedagogias de sua desumanização que roubam sua humanidade. Por outro lado, ao reconhecer suas pedagogias reconhece que os oprimidos são Sujeitos pedagógicos não destinatários de pedagogias de fora, nem sequer críticas, progressistas, conscientizadoras e menos bancárias. Contrapõe os sujeitos dessas Outras Pedagogias. Ao buscar essas Outras Pedagogias nos Outros Sujeitos em ações coletivas e movimentos está reconhecendo que estes são sujeitos de outras experiências sociais e de outras concepções, epistemologias e de outras práticas de emancipação (Arroyo, 2018, p. 28).

 

 Dessa forma, Arroyo (2018) ressalta a importância da diversidade para essa construção e troca de conhecimentos que geram os processos educativos, uma vez que, sujeitos historicamente marginalizados pelo sistema excludente, precisam contar com as estratégias de resistência para garantir a sobrevivência, ou seja, produzem caminhos e saberes sociais que divergem desse modelo colonial.

Assim, nos deparamos com a necessidade de escuta de pessoas negras. O silenciamento historicamente imposto fez com que a noção de dar a voz fosse assumida, quando na realidade estamos trazendo grupos que sempre manifestaram suas demandas, mas não foram ouvidos por consequência da hegemonia excludente:

Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistematicamente desqualificadas, consideradas conhecimento inválido; ou então representadas por pessoas brancas que, ironicamente, tornam-se “especialistas” em nossa cultura, e mesmo em nós (Kilomba, 2019, p. 51).

 

A partir desse percurso de silenciamento colonial, Conceição Evaristo (2002) nos presenteia com o conceito de escrevivência, como possibilidade de denúncia e potencialização das vivências através da escrita. É uma escrita que se coloca no movimento, de modo a permitir que seja atravessada pela capacidade de construir re-direcionamentos ao longo do processo da experiência.

Aqui, a noção de experiência se constitui num sentido amplo, conforme destacado por Jorge Larrosa (2002, p. 21): “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”, e assim, ela se distingue da informação, que diz muito mais sobre a quantidade e velocidades:

informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça (Larrosa, 2002, p. 22).

 

Através dessa distinção, posso ressaltar que essa experiência está direcionada por marcadores sociais que atravessam especificamente as mulheres negras: o que nos acontece, nos passa e nos toca. E ao elaborar o conceito de escrevivência, Conceição Evaristo (2007) partiu da percepção de si nessa relação com o mundo, identificando como a raça e o gênero atravessam a subjetividade de nós mulheres negras.

E é assim que ela se torna base para construção e caminhos que me guiam a Moçambique. A escrevivência aqui organizada se dá em um processo de constantes transições, inquietações e incômodos que atravessam a (re)descoberta de mim no mundo enquanto uma mulher africana em diáspora com demandas que exigem reorientações e, consequentemente, dele necessitam do mesmo na construção dos estudos. A atenção para a escrita das vivências parte dos encontros tecidos com outras mulheres negras, em que a escrevivência é reforçada como uma possibilidade de descarrego das angústias e sustento das estratégias.

Nesse sentido, ela emerge enquanto base para arquitetar esse deslocamento sul-sul. É uma forma de me relacionar no tempo com as palavras: a medida em que as vivências do passado criam desejo por estar do outro lado do Atlântico, há um presente que direciona para um encontro que se manifesta enquanto demanda coletiva da população afro-diaspórica em reconhecer origem, e assim, construir pertencimento.

A partir disso, caminho em direção a Moçambique com o interesse de tecer escutas e trocas, e para a composição desse texto organizo-o em três momentos: inicialmente apresento inquietações que fundamentam o interesse em construir uma pesquisa transatlântica, provocações que passam pela outridade e colonialidade, mas denunciam a necessidade de outros caminhos; na sequência estão as reflexões sobre modos de produzir pesquisa que sejam capazes de partir das escrevivências e cosmopercepções; e por fim, discuto sobre a vivência em Moçambique e seus atravessamentos no campo das lingua(gen)s.

 

Do ser ao pensar: construções da outridade e fundamentação das violências

O encerramento da colonização, tanto no Brasil quanto em Moçambique, manteve marcas estruturais de opressão e dominação que vem sendo fortemente perpetuadas, através de uma forma padronizada[3]. Em meio a incapacidade de colocar-se como uma relação de poder formalizada apenas entre dois grupos específicos, “se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça” (Oliveira; Candau, 2010, p. 18).

Em conformidade com Aníbal Quijano (2005) é possível dizer que houve o fim da colonização, mas seguimos dentro da colonialidade do poder, do saber, do ser, e isso determina os conhecimentos que devemos acessar e reconhecer, os grupos que são passíveis de serem ouvidos ou não, e consequentemente acessa nossa subjetividade. É em meio a permanência da colonialidade que nos deparamos com as amarras impostas pelas desigualdades raciais e sociais. A colonização sustentada pela escravidão, regimes racistas patriarcais e extremamente opressivos construíram e constroem identidades, formas de ser e estar no mundo baseadas no olhar do outro. Como argumenta Luiz Rufino (2019, p. 15):

A presença negro-africana nas bandas ocidentais do Atlântico, nas Américas, é marca do devir negro no mundo, mas é também uma marca inventiva da reconstrução da vida enquanto possibilidade produzida nas frestas, em meio à escassez, e na transgressão de um mundo desencantado. A ancestralidade como sabedoria pluriversal ressemantizada por essas populações em diáspora emerge como um dos principais elementos que substanciam a invenção e a defesa da vida.

 

A partir de Luiz Rufino (2019) posso pontuar essa perpetuação da colonialidade que impede nossa identidade de ser observada separadamente. O devir negro no mundo é envolvido pelo processo de exploração que está baseado na dicotomia criada pelo ocidente em que ao “outro” cabe tudo que se opõe a imagem de quem possui poder e determina as relações. Cria-se o “outro” através do ato de expurgar do europeu. E mais, o “outro” é a parte que precisa ser dominada para garantir a civilização[4].

Assim, estamos diante de uma filosofia fundamentada na exclusão e que legitima todas as violências necessárias para a imposição sobre o “outro”. Os valores judaico-cristãos foram assumidos como responsáveis e necessários na estruturação dessa filosofia maniqueísta (Rufino, 2019), e como está determinado o céu versus o inferno, o bem versus o mal, temos também o “outro”. E é a partir disso que “o inferno são os outros”; nesse percurso que se impõe que elas/eles/elus são negras/us/os[5], indígenas, trans, sem religião, irracionais, e todos que fogem aos marcadores impostos são passíveis da desumanização (Rufino, 2019).

Tal princípio foi utilizado para exterminar e escravizar populações inteiras. Um conjunto de violências estruturadas na busca de uma civilização que estava no caminho do bem; e um discurso que se impôs às vítimas causando desajustes, falta de pertencimento e uma busca constante pelo ideal colonial.

Enquanto desumanizados, emerge a incapacidade de validação dos conhecimentos produzidos por esses corpos. Assim, tudo que diz respeito à filosofia, memória e capacidade de agenciamento desses povos foi aniquilado, numa tentativa de impor a hegemonia ocidental. Suely Carneiro (2005) denomina essa relação como um epistemicídio:

para além da sanulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação [...] pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro  como  portador  e  produtor de conhecimento [...] Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a seqüestra, mutila a capacidade de aprender etc. (Carneiro, 2005, p. 97).   

 

Gera um desajuste constante em que os povos têm seus conhecimentos deslegitimados e são colocados como incapazes de produzir tipos de saber, mantendo-os numa constante posição de incapacidade, e em oposição às habilidades humanas. Logo, estamos diante de “um fantasma, assombrando-nos noite e dia. Um fantasma branco. Vivê-lo é tão intolerável para a organização psíquica, que a violência do racismo assombra o sujeito negro de maneiras que outros eventos não o fazem” (Kilomba, 2019, p. 219).

Dessa maneira, as identidades negras se constroem numa relação dicotômica que impõe a constante da inferioridade. Nas palavras de Stuart Hall (2013), as identidades negras estão em constante transformação e são o ponto de encontro entre os discursos e as práticas que tentam nos levar a assumir nossos lugares como sujeitos sociais. Dizem sobre “as posições que o sujeito é obrigado a assumir [...] a representação é construída ao longo do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas- aos processos de sujeito que são nelas investidos” (Hall, 2013, p.112).

Logo, apesar de anunciar-se na individualidade, essa identidade é coletiva. O sujeito social perpassa pelo corpo negro assumindo uma perspectiva de sujeito histórico e corpóreo, que reconhece a existência de uma identidade que é pessoal e subjetiva, no entanto, assume a herança colonial, a percepção desse corpo negro “ganha visibilidade social na tensão entre adaptar-se, revoltar-se ou superar o pensamento racista que o toma por erótico, exótico e violento” (Gomes, 2017, p. 94).

São percepções de si e identidades consolidadas no apagamento, e todo processo de negação nos leva à construção de resistências necessárias. Ao mesmo passo em que unificou e apagou povos como bantus, zulus, achantes, congos, bacongos e outros, para torná-los, as bases dessas novas identidades, foi produzida em torno do negativo e desprezível, uma “nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade. Daí em diante não seriam nada mais que raças inferiores, capazes somente de produzir culturas inferiores” (Quijano, 2005, p. 127).

Assim, o enfrentamento ao racismo não é uma escolha, é condição para sobrevivência. E a partir do entendimento da valorização de formas hegemônicas que apagam outros modos de existir, é possível dizer que nas frestas emerge a resistência negra. Na medida em que a identidade se constitui na coletividade, é possível apontar como identidade e resistência caminham juntas.

Nesse processo, o contato com os saberes africanos é também uma forma de reclamar o direito à humanidade, capaz de produzir conhecimento, e trazer à memória feitos ancestrais que tentaram apagar. Elaborar pesquisa com e entre vozes africanas e negras é parte de um caminho que se encontra para além das dicotomias ocidentais, e se abre a possibilidades de ser e estar no mundo. São sobrevivências que se fazem no confronto, nas encruzilhadas que não buscam verdades e imposições, mas sim, a dúvida como base do movimento.

 

Cosmopercepções e filosofias africanas no ato de pesquisar

Ao caminharmos em direção às bases fundamentais do pensamento africano, para compreender as relações sociais e o que emerge na construção dessa pesquisa com, preciso me atentar aos caminhos ocidentais que estão enrijecidos em mim e condizem com o fundamento dicotômico judaico-cristão. Compreender e nomear as bases dessa estrutura que também me atravessa é um passo importante para tal desconstrução.

A socióloga Oyèrónké Oyěwùmí (2021), ao nos provocar a (re)pensar a filosofia ocidental, chama atenção para o quanto ela tende à unicidade e ao apagamento; e ressalta o lugar assumido pelo corpo nesse processo. Entendido como metonímia da biologia e fisicalidade que fundamenta a cultura, seu significado passa a estruturar a ordem social vigente, e assim, a diferença dicotômica constrói oposições justificadas em fatores biológicos: “corpos masculinos, corpos femininos, corpos judaicos, corpos arianos, corpos negros, corpos brancos, corpos ricos, corpos pobres” (Oyěwùmí, 2021, p. 27).

Desse modo, a biologia constrói o corpo, ao mesmo passo que o corpo organiza a biologia. Tais invenções possibilitam o fortalecimento de um modelo social que nos convence cotidianamente, fazendo com que a definição de “corpo social” e “corpo político” mantenha o poder do “corpo”. Assim, é possível ressaltar como “a onipresença das explicações biologicamente enraizadas para a diferença no pensamento e nas práticas sociais ocidentais é um reflexo da extensão do modo como as explicações biológicas são consideradas convincentes” (Oyěwùmí, 2021, p. 36).

A biologização das relações através dos corpos é colocada como base indispensável do conhecimento científico ocidental. Ela sustenta a definição do que é verdade para o ocidente, e isso se manifesta ao longo da história por meio da definição de quem é passível de poder, e quem não é. O desejo de civilizar sempre foi dirigido a corpos específicos, por isso percebemos que, “quando as interpretações biológicas são consideradas convincentes, as categorias sociais extraem sua legitimidade e poder da biologia. Em suma, o social e o biológico se retroalimentam” (Oyěwùmí, 2021, p. 37). Ao assumir o poder são determinadas as raças, os gêneros e as classes inferiorizadas, aqui, “a diferença é expressa como degeneração [...] Quem é diferente é visto como geneticamente inferior e isso, por sua vez, é usado para explicar sua posição social desfavorecida” (Oyěwùmí, 2021, p. 27).

Tal poder de definição atribuído ao corpo está associado a um mundo arquitetado pela visão, e os fatos históricos nos apresentam tal ciência da diferenciação:

A diferenciação dos corpos humanos em termos de sexo, cor da pele e tamanho do crânio é um testemunho dos poderes atribuídos ao “ver”. O olhar é um convite para diferenciar. Distintas abordagens para compreender a realidade, então, sugerem diferenças epistemológicas entre as sociedades (Oyěwùmí, 2021, p. 29).

 

Sendo assim, há uma concepção visual das relações, por isso, trata-se de uma cosmovisão ocidental. Nela nos deparamos com o “corpo” destacado como instrumento de relações que sempre retornam a uma posição biológica utilizada para demarcar diferenças e elaborar as hierarquias. São violências que nos arquitetam, de modo que “[...] o corpo é alicerce sobre o qual a ordem social é fundada, o corpo está sempre em vista e à vista. Como tal, invoca um olhar, um olhar de diferenciação [...]” (Oyěwùmí, 2021, p. 28). A rigidez do corpo marcado pelo racismo e, consequentemente, da colonialidade, entram na encruzilhada da busca por esse movimento que venho produzindo.

Deste modo, compreendo como esse alicerce precisa ser denominado para evitar que a visão seja interpretada como possibilidade universal de construção de sentidos. Ressalto ainda essa compreensão para o encontro com sociedades africanas que, diante do enfrentamento ao colonialismo, podem assumir diferentes modos de estabelecer fundamentos sociais. Como destacado por Oyěwùmí (2021, p. 29), “o termo ‘cosmovisão’, que é usado no Ocidente [...] capta o privilégio ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos”.

Recorro a tais definições para assumir a importância em apresentar na escrevivência o conceito de “cosmopercepção”, que nas palavras de Oyěwùmí (2021, p. 29) “é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais”. A abertura para os diversos sentidos e percepções que podem ultrapassar o campo visual das relações, me direcionam à descentralização ocidental, e mais, a um encontro aberto à dúvida e à inteireza das experiências.

Nossas vivências estão marcadas por sentidos que a visão não é capaz de captar. A própria resistência, nem sempre pode ou precisa ser materializada para que possamos assumir sua relevância. Muitas vezes, nos encontramos no olhar, no sorriso, mas também nos assopros e arrepios ancestrais que nos direcionam. A espiritualidade africana é organizada através de uma relação cósmica que ultrapassa limites do visível e coloca em questão: É mesmo possível construir uma escrevivência restrita ao visível?

O interesse por uma sensibilidade para perceber conhecimento em linguagens e espaços diversos, me guiam às filosofias africanas, entendendo-as como saber instrumentalizado no cotidiano do povo preto e não uma teorização de algo distante da vivência das pessoas (Ribeiro, 2021). Partem do cotidiano, das vivências e experiências que nos orientam.

Essa perspectiva direciona a refletir sobre a importância em reconhecer a necessidade de produzir pesquisas com e entre sujeitos dissidentes, recorrendo a outras metodologias, métodos e sensibilidades. Seguir os moldes ocidentais para essa construção pode impedir de acessar as essências que constituem esses grupos e manter silenciamentos fundamentados nos interesses ocidentocêntricos[6].

Como destacado por Oyěwùmí (2021), em meio ao pouco que foi escrito pelas sociedades africanas, menos ainda foi feito por ela mesma, “em vez disso, a maior parte dos estudos é exercício de propor um ultramoderno, ou algum outro, modelo ocidental” (Oyěwùmí, 2021, p. 53). E quando essa escrita de África parte de dentro pra fora, como sugerido pela autora, encontra as barreiras coloniais que impõe as legitimidades do conhecimento e conta com as imposições as quais a própria sociedade africana é levada a reconhecer. Assim, “a África continua sendo apenas uma ideia na mente de muitas pessoas africanas dedicadas ao pensamento. É claro que, na realidade, a África continua a se desdobrar na marcha da história. A autêntica história humana!” (Oyěwùmí, 2021, p. 61).

Produzir com áfricas que se constituem no Brasil e em Moçambique envolve a consolidação de outros modos de observar, pensar e movimentar; assume diferentes contornos quando realizado por sujeitos que também compõe a margem: “os saberes que cruzam a esfera do tempo, praticando nas frestas a invenção de um mundo novo, são aquelas que se encarnam na presença dos seres produzidos como outros (Rufino, 2019, p. 12). Deste modo, a partir da margem que constitui a diáspora africana, o direcionamento à África precisa ser um lugar de movimentos e incômodos.

 

Deslocamentos provocados em terras moçambicanas

O primeiro mobilizador para uma pesquisa com foi o desejo pelos deslocamentos. Algo edificado por meio de trocas que apontavam para as necessidades que envolviam a falta de pertencimento que encaramos no Brasil. Vivemos um cenário marcado pela dificuldade em reconhecer a raça como estruturante das questões, o que nos coloca diante de uma resistência constante para combater o apagamento promovido pelo racismo das nossas origens e raízes. Em meio as frestas estamos construindo contato com referências e espaços que possibilitam outras rotas. E foi através de trocas e conversas com coletivos negros, que tive contato com os escritos de Paulina Chiziane, escritora moçambicana que recorre a literatura para apresentar as contradições do mundo e sua percepção sobre elas, como destaca:

Encontrava uma grande contradição entre o mundo que me rodeava e o mundo que residia no meu íntimo. Senti necessidade de desabafar. Desabafar lavando nas águas do rio, como fazia a minha mãe, já não fazia parte do meu mundo. As cantigas na hora de pilar não eram suficientes para libertar a minha opressão e projectar a beleza do mundo que sonhava construir. Comecei a escrever as minhas reflexões (Chiziane, 2013, p. 202).

 

Nesse movimento de incômodo e reflexões, Chiziane (2013) me apresenta elementos do cotidiano moçambicano com palavras que instigaram uma relação transatlântica. Sua literatura leva-me a identificar a diversidade cultural e suas especificidades ligadas às tradições linguísticas, casamentos, feminilidades e disputas pelo poder.

Ao inventar o cotidiano por meio das palavras, a autora nos coloca em contato com vivências moçambicanas, por meio do processo que aponta: “Primeiro foram as frases soltas nos cantos dos cadernos. Depois foi o diário. A seguir foram os poemas e as cartas de amor no tempo da primeira paixão. Mais tarde foram textos mais seguros, pequenos contos, pequenas crônicas e o sonho de um dia escrever um livro” (Chiziane, 2013, p. 202).

No contato com a arte de Chiziane comecei a refletir: quais disputas coloniais emergem no cotidiano moçambicano? Como a raça e racismo atravessam tais enfrentamentos? Em que medida as vítimas da colonização portuguesa, Brasil e Moçambique, tem sua colonialidade aproximada?

Impactada pela sensibilidade e vivências que emergem envolvendo ficção e realidade, passei a buscar mais em conversas com pessoas moçambicanas que residiam no Brasil. Trocas que me apresentavam contornos semelhantes e distintos ao tratar dos desafios raciais e coloniais enfrentados por Moçambique, e ressaltaram o lugar do (des)pertencimento enfrentado por africanos/as/es que permaneceram no território, mas no enfrentamento constante aos valores que atribuíam sentido à existência. Do outro lado, também emergem aquelas/es/us que foram sequestrados/as/us e as/os/us do continente e forçados/as/us a passar pela árvore do esquecimento: uma importante simbologia da violência colonial.

O filósofo Renato Araújo da Silva (2022) remete a história oral para destacar como os escravizados da África ocidental, região da República do Benim, antes de serem sequestrados para as Américas precisavam dar voltas ao redor de uma árvore. Os homens precisavam dar 9 voltas e as mulheres 7, com a intenção de simbolizar a necessidade de esquecimento de tudo que fazia referência à vida antes da chegada nas Américas. Conhecida como “Árvore do esquecimento”, tornou-se símbolo da imposição de esquecimento das práticas religiosas, lingua(gens)[7], hábitos, costumes e a liberdade. Isso fez com que “a maioria dos escravizados que fazia esta travessia não levava praticamente nada consigo, exceto aquilo que pudesse conter um corpo em grilhões” (Silva, 2022, p. 214). Um fator que representa a força da colonização na desumanização e controle da subjetividade dos escravizados e, consequentemente, das gerações futuras.

Contudo, ainda diante das diversas dimensões que envolveram tais violências, nos deparamos com os agenciamentos construídos por esses/as/us africanos/as/es para impedir o total apagamento, uma vez que,

este mesmo corpo negro, ainda que violado, fez essa travessia dotado de memória. E seus descendentes, centenas de anos depois, puderam refazer esta viagem de trás para frente a fim e levar para África aspectos formais e culturais mesclados nas Américas e, também, recuperar no continente africano esses mesmos elementos ora perdidos para serem ressignificados e duplamente resgatados aqui (Silva, 2022, p. 214).

 

Um retorno que tende a promover (re)encontros que ultrapassam as fronteiras atlânticas e dizem sobre uma comunicação e valores que resistiram às violências que impunham seu apagamento, tanto em África quanto em sua diáspora.

Como destacado por bell hooks[8] (2022, p. 21), estamos diante de uma constante busca por encontro com nossas raízes, comunidades e subjetividades que foram colonizadas: “A ideia de lugar - ao qual pertencemos - é um assunto recorrente para muitos de nós. Queremos saber se é possível viver em paz em algum lugar do mundo”. Circulamos pelo mundo em busca de (re)encontros que dizem sobre saberes africanos que nos constituem, mas se encontram na disputa dentro de contextos que nos violentam e nos impedem de acessá-los.

Assim, me guio pelas inventividades cotidianas que constroem resistência e ousam a assumir-se enquanto escrevivência arquitetada num encontro transatlântico. E diante de todas as questões aqui apresentadas e orientações que marcam os interesses desse estudo, a conversa emerge enquanto procedimento metodológico que possibilita a escrevivência.

A conversa parte da troca aberta ao espontâneo, o que é dito no momento, uma expressão dos desejos que marcam aquele encontro: “Uma conversa é o contrário do ‘porque eu digo’. O eu não tem qualquer transcendência na conversa porque se dilui na potência do ‘nós’. Uma conversa não busca acordos ou desacordos, senão tensões entre duas biografias que se apresentam na hora do encontro” (Skliar, 2023, p. 12). Ela permite a inteireza dos sujeitos de modo que falem para além de perguntas pré-definidas, ou não; o encontro torna-se orientador da troca e cada reação pode se produzir nas cosmopercepções envoltas na troca.

Nas palavras de Luciana Pacheco Marques (2023), “as conversações/conversas se constituem na atitude política de pensar com ele se não para ou sobre eles, possibilita fluxos, acasos, experiências, encontros, devir, multiplicidades e permanentes aberturas para os acontecimentos… tecidos com afeto” (Marques, 2023, p. 17). Para Carmen Sampaio, Tiago Ribeiro e Rafael de Souza (2023), o reconhecimento delas surge no entendimento de que as entrevistas, quando confortáveis e instigantes para as partes envolvidas, vai além das informações que foram perguntadas e coloca em questão: “como lidar com a entrevista que se desestrutura, se desorganiza e, nesse movimento, ameaça seguir por caminhos outros, por bifurcações?” (Sampaio et al., 2023, p. 28). Logo, diante da necessidade de escuta e conexão horizontalizados, ainda que os papéis de pesquisadora não possam ser dissolvidos, encontro nas falas possibilidades instigantes.

O interesse em movimentar e construir ‘no entre’, num caminho que vai além das dimensões pré-estabelecidas e permite novos caminhos, ou seja, uma encruzilhada que valoriza a dúvida, se afasta de qualquer tentativa de universalização e entende que “a dicotomização do mundo compreende os esforços de uma política que se pretende dominante e universalista” (Rufino, 2019, p. 44). Por isso, busco entender que “não há modo de ‘pensar de outro modo’ que não seja, também, ‘ler de outro modo’ e ‘escrever de outro modo’” (Larrosa, 2003, p. 102).

A partir disso, fui instigada pelas linguagens que atravessam as relações em solo moçambicano. E é interessante ressaltar como um dos aspectos fundamentais da nossa comunicação despertou minha atenção e mobilizou inquietações: a diversidade linguística no cotidiano de Maputo, capital do país – localizada na região sul –, provocou uma atenção para a construção histórica do país.

Se antes do deslocamento sul-sul já havia um interesse em compreender a sobrevivência de diferentes línguas africanas no dia-a-dia, a relevância dessa temática ganhou ainda mais atenção através da vivência naquele solo. As questões que apareciam nas trocas trouxeram inúmeras reflexões sobre resistências, disputas e memórias, e dentre elas estavam os desafios enfrentados por africanas/es/os escravizadas/es/os e obrigadas/os/us a deixar suas línguas para assumir a do colonizador, e as dificuldades ainda enfrentadas para assumir as lingua(gens) resistentes.

Nesse sentido, a permanência no território africano pode levar a uma hierarquização das violências, como percebo em Aníbal Quijano (1992, p. 03) ao ressaltar como em África a colonização não encontra a mesma intensidade da América:

Na África, a destruição cultural foi, sem dúvida, muito mais intensa que na Ásia, mas menor do que na América. Os europeus também não conseguiram ali a destruição completa dos padrões expressivos, em particular de objetivação e formalização visual. O que fizeram foi despojá-los de legitimidade e de reconhecimento na ordem cultural mundial dominado pelos padrões europeus. Foram capturados pela categoria de “exóticos”.

 

 Contudo, temo esse tipo de comparação pelo risco em fazer parecer que a colonização foi um pouco menos dolorosa para quem permaneceu em África, em função dos valores sobreviventes: um risco fundamentado na própria estrutura ocidental que busca hierarquizar corpos, violências e dores.

Ainda assim, a dimensão das distinções é fundamental para compreendermos resistências necessárias e saberes preservados. No contexto brasileiro, o apagamento da língua é estrategicamente utilizado e qualquer vestígio das línguas africanas é negado. O que consequentemente parte do risco diante de construir e fortalecer comunidades, com base nos mesmos códigos, possibilitando assim a criação de uma solidariedade política para a resistência (hooks, 2017).

A intelectual Lélia Gonzalez (2020), ao analisar as linguagens do racismo, reconheceu a necessidade de assumirmos a presença africana no português brasileiro, por isso consolidou o conceito de pretuguês, consequência do entendimento de que a língua falada no Brasil está marcada pela presença africana no território. A partir disso, a autora afirma que, “a cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é ‘pretuguês’” (Gonzalez, 2020, p. 92). O pretuguês nos convoca a uma africanização brasileira que precisa passar pela língua, de modo a reconhecer que a língua é movimento, e como tal, também resiste.

Ao propor esse debate, Lélia Gonzalez (2020) nos leva a perceber situações que apontam para essa participação africana nessa língua brasileira:

É engraçado como eles gozam a gente, quando a gente diz que é “Framengo”. Chamam a gente de ignorante, dizendo que a gente fala errado; e de repente ignoram que a presença desse ‘R’ no lugar do ‘L’ nada mais é do que a marca política de um idioma africano, no qual o ‘L’ inexiste. Afinal, quem é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira que corta os ‘erres’ nos infinitivos verbais que condensam ‘você’ em ‘cê’, o ‘está’ em ‘tá’ e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês (Gonzalez, 2020, p. 90).

 

Tais apontamentos sinalizam as distinções entre a língua oficial e a língua falada. Situação que também faz parte do contexto de Moçambique. Logo, em meio à vivência e construção da experiência, foi possível perceber como as línguas estavam definidas de acordo com os espaços: nos transportes públicos era possível ouvir uma mistura entre chope, ronga, changana, macua e português. Nas universidades e escolas, apenas o português. Tal contorno levou-me a questionar e conversar sobre os lugares de autorização linguística. Para algumas pessoas que faziam parte do meu convívio na universidade, isso era algo natural: não havia uma proibição para o uso das línguas, mas “naturalmente”, as pessoas usavam o português.

 Nesse movimento de dúvidas e inquietações, passei a procurar mais sobre como as línguas bantu estão presentes no país. Faladas principalmente na região subsaariana da África, as línguas bantu ocupam grande parte da África meridional, central e oriental. Para Ronaldo Paula e Fábio Duarte (2016), a quantificação dessas línguas pode ser um grande desafio, pois variam muito com as fontes da informação; além disso, elas possuem aproximações que comumente as línguas vão enfrentando e, partilham de uma particularidade que é o apagamento promovido ao longo de todo processo colonial: “assim como a maioria dos países africanos, pode-se considerar que Moçambique é um país multilíngue, tendo em vista que coexistem com o português uma variedade de línguas nativas, todas pertencentes à família linguística bantu” (Paula; Duarte, 2016, p. 352).

Em meio às conversas sobre esse multilinguíssimo e as marcas coloniais impostas nas formas como coabitam, fui convidada a conhecer uma comunidade rural[9]. O interesse em ser apresentada ao local estava associado a uma relação de distinção e afastamento das línguas tradicionais dos centros urbanos, e uma concentração no interior.

Guiada por essa escrita que só é possível por meio de uma vivência baseada no entendimento de que abrir-se à cosmopercepção passa pela (re)construção de sentidos que se movimentam constantemente ao longo do estudo, me desloquei a essa comunidade localizada na zona rural de Maputo.

Nesse espaço, ao relatar às lideranças comunitárias sobre o interesse em compreender mais a respeito da diversidade linguística, fui direcionada ao acompanhamento do cotidiano escolar. A instituição me foi apresentada como um importante marcador das disputas linguísticas, à medida que recebe crianças inseridas em uma rotina no lar marcado pelo convívio com a língua materna, falada por mães, pais e avós, e na escola, entram em contato com o português.

A partir disso, atentei-me à participação do cotidiano escolar, com a intenção de experienciar mais dessas relações do outro lado do Atlântico. Passei a perceber como a escola poderia apresentar mais elementos da disputa linguística, uma vez que concebe um projeto de sociedade marcado pela língua: como se dá a construção de um comportamento linguístico que determina os locais da língua? Se a universidade apresentava uma centralidade do português, como seria em uma escola da zona rural?

Assim como o contato com as universidades de Maputo havia me apresentado um uso mais recorrente da língua portuguesa, na escola do interior, a situação não foi diferente. No contato com professoras e crianças, percebi a centralidade assumida pelo português e algo mais: o entendimento de que as línguas tradicionais são inferiores, e por isso, não devem fazer parte do processo de ensino-aprendizagem na escola.

Ao circular pela diretoria, sala de professores, salas de aula e intervalos brincantes das crianças, o português parecia-me a única opção linguística. Com isso, passei a questionar sobre essa situação para as pessoas daquele ambiente. Em conversa com uma criança, falávamos sobre a família e o conhecimento linguístico quando ela reforçou “Não pode falar changana na escola!”. Por estar em uma escola no sul do país, onde a língua citada é muito utilizada, estranhei aquela mensagem e passei a relacionar com o que observei na universidade.

Na intenção de mergulhar mais no assunto e analisar como essa disputa emerge, cheguei, em conversa com uma professora dos anos iniciais, a referência de uma proposta de ensino bilíngue:

O governo está a introduzir numa forma faseada, o ensino bilíngue, que é para poder apropriar-se daquela língua inicial da criança pra facilitar o processo de ensino aprendizagem. Agora como é que ele está a fazer, de forma faseada. Há locais aqui no distrito que está em curso o sistema bilíngue; em que usa-se as duas línguas. Tem o próprio livro da primeira classe é bilíngue: se aqui nessa zona é Ronga, então é ronga. A língua-mãe no processo de ensino aprendizagem, porque é aquela língua que a criança tem domínio. Então aos poucos vai recebendo português como auxílio. Então vai recebendo portugues, à medida que vai passando de classe pra classe, vai abandonando aquela L1 que é a língua inicial e fica com português. Aqui nesta escola não, aqui o sistema é monolíngue. Usamos português como língua principal no processo de ensino aprendizagem.

É verdade que recorremos também a L1, a língua da criança, pra podermos atingir o nosso objetivo. Se há alguma coisa que a criança não percebe, é necessário recuarmos pra língua da própria criança. É verdade que só na comunicação e não na escrita. Enquanto que, os que já estão a introduzir o sistema bilíngue, usam aquela língua local da criança, a primeira língua da criança, para ortografia escrita e comunicação. Enquanto para nós usamos só como suporte (Conversas da pesquisa, 2022).

 

Nessa fala fica muito marcado o papel linguístico assumido pelas línguas distintas ao português: elas emergem no cotidiano escolar enquanto auxiliares para atingir um fim. São ressaltadas como línguas auxiliares. A valorização da língua portuguesa denuncia a colonialidade que lhe determina como oficial, e por consequência, a única possibilidade comum a ser ensinada na escola, mesmo quando nos deparamos com uma proposta de ensino bilíngue.

Ao questionar se o conhecimento das/dos/des professores/as/us é um impedimento para o ensino através da língua materna, sou surpreendida com a seguinte informação:

- Então os professores têm o conhecimento da língua da comunidade? Porque esse deve ser um desafio né?

- Tem.,.tem. É verdade que para quem não tem uma formação específica, falamos, mas não gramaticalmente. Falamos. com nossos erros, mas falamos. A maior parte aqui são do sul (Conversas da pesquisa, 2022).

 

Ao afirmar que a maior parte é do sul, posso destacar que a compreensão da língua não é, em si, um impedimento. Além disso, o lugar assumido pela língua falada torna-se menor que o conhecimento gramático dela, de modo a definir que a fala possui erros. Dessa forma, entendo que, além do português ser almejado, ele também determina como se ensina ou não uma determinada língua, a gramática é sempre utilizada como base. Nesse sentido, Gabriel Nascimento (2019), ao analisar o racismo linguístico, ressalta:

A linguagem tem sido um grande fetiche do mundo ocidental há séculos. Não apenas por meio das mais diversas formas de normatização e idealização das línguas nacionais, tendo como base o mundo brancocêntrico greco-latino, mas pelos próprios circuitos de reprodução da linguagem na modernidade, usados para consolidar o processo de formação da modernidade. Ou seja, a modernidade não apenas usou a ideia de linguagem no âmbito do projeto romântico, liberal, cristão e idealista das línguas nacionais europeias (como é o caso do português, francês, espanhol e italiano), como também lançou mão dela para criar uma definição para o mundo inteiro, passando a operar todos os conceitos a partir da Europa (Nascimento, 2019, p. 8).

 

Sendo assim, a própria definição de língua é uma oposição ocidental que determina os padrões a serem seguidos. E, à medida em que é definido o modelo, delimita “o outro”, o que consolida a disputa enfrentada no cotidiano moçambicano. Ainda que a diversidade linguística seja reconhecida, ela não é suficientemente valorizada nas organizações que denunciam os projetos de sociedade que estão em foco.

Nessas categorizações de exclusão, me deparo com as línguas africanas sendo tratadas como dialetos, ainda que na vivência, elas sejam línguas que atribuem sentidos e significados ao mundo das pessoas. Makoni Severo e Pennycook Alastair (2007) apresentam uma importante crítica sobre a invenção das línguas como um dispositivo colonial voltado ao ideal de progresso e, consequentemente, ela se coloca numa relação dicotômica voltada a hierarquização. A língua é parte de: “uma imaginação do europeu sobre o que ele era nessa modernidade, e assim, sobre qual língua ele falava [...] um dos grandes fetiches usados pelo mundo ocidental até aqui para produzir diferença em sua trajetória de dominação colonial” (Nascimento, 2019, p. 9). Assim, através da lingua(gem), o corpo africano é coisificado, e toda nossa existência será assombrada pelo afastamento desse lugar, o que culmina na construção de políticas e comportamentos para valorização da lingua(gem) europeia.

Problematizar essa questão é indispensável para compreender o racismo e as relações que atravessam o sul global. Aqui, a língua aparece fundamentada numa oposição entre os saberes tradicionais e os ideais da modernização, o que gera um entendimento de que as filosofias, linguagens e saberes africanos são sinônimo de atraso e empecilho para o desenvolvimento, e consequentemente, demandam um afastamento cotidiano. Sendo assim, assumir essa importância da lingua(gem) na construção de sentidos de mundo, permite uma ampliação na identificação das armadilhas coloniais que nos são impostas.

 

Considerações

O interesse em construir uma escrevivência apresentou a necessidade de reflexão sobre outros aspectos importantes para que a vivência se desse efetivamente enquanto um processo aberto aos (des)encontros. Há um deslocamento necessário no embasamento das palavras e caminhos, e é através desse movimento que me deparo com elementos inesperados na sociedade moçambicana, e também, me atento a outras camadas do racismo no contexto brasileiro.

Ainda que essa atenção não estivesse pré-definida numa busca por verificações ou informações sobre o assunto, as tensões vão emergindo por meio de observações que entregam uma colonialidade apresentada como parte de escolhas naturais, ainda que as instituições tivessem suas regras muito bem apresentadas. Normas e regras que atendem a um projeto de sociedade vinculado ao ideal de modernização produzido pela Europa e fundamentado nos modelos ocidentocêntricos de dicotomia para hierarquização e exclusão.

Dessa forma, compreender toda essa dimensão da colonialidade foi fundamental para a elaboração de caminhos mais coerentes ao “eu pesquisadora” e à pesquisa com. Ainda que muito marcada pelas armadilhas coloniais e diante do risco na construção de outro caminho, percebo uma interessante abertura para as possibilidades de resistência historicamente arquitetadas.

A língua e a linguagem são ressaltadas diante de uma herança que segue um padrão de poder e opressão, presente de formas diferentes em cada país, contudo, aponta aspectos que ultrapassam limites territoriais e determina o domínio mundial de forma geográfica social.

Como vimos, o que está em questão não se resume ao uso de uma língua ou outra. Para além da língua, está a linguagem e o incontável número de possibilidades por ela trazida. A busca por pertencimento e entendimento dos lugares em disputas coloniais, tensionaram as possibilidades para uma mulher negra brasileira do outro lado do Atlântico e gera experiências que comunicam Brasil e Moçambique, África em diáspora.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 15/04/2024.

Aceito em 01/07/2024.



[1] Doutoranda em Educação. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integrante dos grupos de pesquisa: Infância, Diferença e Direitos Humanos (INDDHU - Unicamp), e Educação, Gênero e Raça (Educagera – UFV). Brasil. E-mail: monalisacarmo3@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-3573-0172

[2] Este trabalho é construído a partir da pesquisa de doutorado “O futuro ancestral e o (matri) gestar potências para a educação da infância: entre Moçambique e Brasil”, que se encontra em andamento.

[3] Moçambique é constituído por 99% da população negra e foi parte do conjunto de colônias portuguesas durante cerca de 500 anos. Conquistou a independência através da luta armada pela libertação, iniciada em 1964, e passou a ser administrado pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), partido que se mantém no poder até a atualidade (Humbane; Chemane, 2021).

[4] Para se aprofundar mais, sugiro a leitura de: FANON, Franz. Pele negra máscaras brancas. Td: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

[5] Ao longo do texto haverá atenção ao uso do gênero das palavras, na tentativa de reconhecer a diversidade de sujeitos a serem consideradas/os/es. Como destacado por Luiz Carlos Schwindt (2020, p. 19): “Entre os muitos papéis da Linguística, seguramente está o de entender como a mudança se processa com olhar especializado, seja interno ou externo ao que chamei aqui de sistema. Sendo ciência, embora não lhe caiba qualquer tipo de prescrição sobre condutas verbais, tem compromisso inegociável com o entendimento das diferenças”.

[6] Oyèrónké Oyěwùmí (2021), na obra “A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero”, recorre à noção de ocidentocentrismo para destacar uma perspectiva que coloca o Ocidente, para além da Europa, e inclui os Estados Unidos. Assim, denuncia-os como padrão de referência para avaliar outras culturas, sociedades e sistemas de conhecimento, de modo a estabelecer padrões que consideram as tradições, valores e práticas do Ocidente como superiores ou universais.

[7] Ao partir de uma cosmopercepção para construção do estudo, utilizo a noção de língua e linguagem juntas, uma vez que, a construção de sentido através das palavras está atrelada a um conjunto de linguagens que constituem grupos e sujeitos. No entanto, há momentos que o termo língua aparecerá individualmente, por se tratar de uma referência a algo já definido pelas pessoas participantes do estudo.

[8] A escrita em letras minúsculas do nome da autora é uma escolha da intelectual. Um posicionamento político e uma crítica de bell hooks para que ao ler sua obra, tenhamos mais atenção a suas palavras e não a sua pessoa. Ao destacar tal posicionamento, a escolha da autora será respeitada ao longo do artigo.

[9] Por questões éticas que envolvem a pesquisa no que diz respeito ao risco de identificação do território e sujeitos, será preservado o nome da comunidade rural em que o estudo foi desenvolvido.