O pensamento transatlântico de Carmelita Afonseca Silva: um diálogo Sul – Sul

The transatlantic thinking of Carmelita Afonseca Silva: a South - South dialog

                        Alesandra Oriente[1]

Patrícia Macarinni Moraes[2]

 

 


Resumo

Este artigo propõe documentar experiências vivenciadas pela Dra. Carmelita Afonseca Silva em sua estadia no Brasil, durante a realização de seu doutorado. As reflexões abordam aspectos relacionados à identidade caboverdiana e o intenso processo de mestiçagem ocorrido nos dois países, Cabo Verde e Brasil. Além disso, conversamos sobre o movimento de mulheres em Cabo Verde. Adotamos uma metodologia de coautoria com a entrevistada, conectando suas falas com outras e outros intelectuais negras e negros, buscando enegrecer a produção de saberes. Como resultado dessa partilha, destacamos o convite feito por Carmelita, para que nós, sujeitos subalternizados que falam a partir do sul global, possamos dedicar mais tempo e atenção para conhecer a heterogeneidade territorial e cultural de África, estabelecendo redes que possam nos fortalecer ante a hegemonia do norte global.

Palavras-chave: Identidades; Relações raciais; Mulheres negras.

Abstract

This article aims to document some experiences of Dr. Carmelita Afonseca Silva during her stay in Brazil for her doctorate. The reflections are the outcome of a discussion, in which we address aspects related to the construction of Cape Verdean identity, the whitening project imposed in both Brazil and Cape Verde through mestizaje; as well as the women's movement in Cape Verde. We adopted a methodology of co-authorship with the interviewee, connecting her speeches with other black intellectuals, seeking to blacken feminist epistemology and race relations. As a result of this sharing, we highlight Carmelita's invitation for us, subalternized subjects who speak from the global south, to devote more time and attention to getting to know Africa's territorial and cultural heterogeneity in order to establish networks that can strengthen us against the hegemony of the global north.

Keywords: Identities; Race relations; Black women.


 

 

 

 

 

“Eu espero não apenas falar e ser ouvida, mas que a minha voz se desdobre em políticas, em ações que possam efetivamente reverter situações de injustiça.”

Carmelita Silva

                                                                 

Este texto[3] apresenta a trajetória da Dra. Carmelita Afonseca Silva e foi produzido a partir de uma entrevista concedida para uma das autoras em junho de 2023. O interesse por conhecer a trajetória de Carmelita e entrevistá-la se deu pelo fato de que, além de ser uma referência em estudos de gênero em Cabo Verde, é uma mulher caboverdiana que viveu em diáspora no Brasil durante a realização de seu doutorado na UFSC, em Florianópolis. Cabo Verde, assim como o Brasil, sofreu um projeto de branqueamento da população embasado na mestiçagem. Lá, assim como cá, a violência física e simbólica empregada sobre as pessoas escravizadas já foi lida por intelectuais como “fusão cultural de europeus e africanos” (Anjos, 2003, p. 581). Essa semelhança nos contextos sociais dos dois países, ambos marcados pela miscigenação, despertou nosso interesse em conversar com Carmelita para conhecer mais sobre o tecido social de Cabo Verde.

Aqui é importante destacar que estamos abordando o conceito de mestiçagem de acordo com a perspectiva de Munanga (2020, p. 133), o qual toma a mestiçagem como “uma etapa transitória no processo de branqueamento”, tornando-se um modelo que assimila diferentes grupos étnico-raciais, baseado na negação absoluta da diferença como pressuposto, o que incorre em um ideal de homogeneidade supostamente alcançado a partir da miscigenação e assimilação cultural.

Adotamos uma metodologia de coautoria com a entrevistada, embasadas na teoria do pensamento feminista negro, o qual toma a experiência vivida como critério de significado e promove as mulheres negras como agentes do conhecimento, não mais como objetos passivos de conhecimento (Collins, 2019, p. 425). Ao longo do texto, vamos conectando a voz de Carmelita, suas impressões, com outras e outros intelectuais negras e negros, buscando enegrecer a epistemologia feminista e das relações raciais. Essa metodologia, de acordo com as pesquisadoras Teresa Cunha e Isabel Casimiro (2022, p. 2), “fundamenta-se numa das ideias seminais do feminismo: o que é pessoal é político”. Portanto, essa ferramenta metodológica apresenta um horizonte não apenas epistemológico, mas também político, que é o da emancipação humana, contribuindo para a desconstrução do epistemicídio fortemente enraizado na produção de conhecimento ocidental.

Além disso, conforme nos ensina Nilma Lino Gomes (2023, p. 224), para descolonizar nossos currículos e o próprio campo do conhecimento, promovendo um percurso de ruptura epistemológica e política com o projeto hegemônico em curso, branco e eurocentrado, é fundamental retomar e conectar autores e autoras negros, tanto brasileiros quanto estrangeiros, destacar suas produções e conhecer suas disputas no mundo da produção do conhecimento, especialmente no contexto da literatura decolonial latino-americana.

Essa metodologia também se assemelha à metodologia adotada pela pesquisadora americana Saidiya Hartman, em sua obra Vidas Rebeldes, belos experimentos, na qual ela se dedica a historicizar a vida de mulheres negras a partir de suas próprias vozes, quando possível, e também a partir de outros documentos históricos. Saidyia registra que, ao se propor a colocar em prática esse projeto, em muitos momentos ela se viu “tendo de enfrentar o poder e a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com relação àquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa e a quem possui a gravidade e a autoridade de agente histórico” (Hartman, 2022, p. 11). Feita a explanação sobre a metodologia adotada, seguimos agora para o objetivo proposto, conhecer Carmelita e o que ela tem a nos dizer.

Carmelita Silva é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Pública de Cabo Verde (Uni-CV) e Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2009, e desde 2008 atua como professora na Universidade de Cabo Verde. Graduada em Sociologia, ingressou no Ensino Superior em uma universidade particular, pois na época não havia universidade pública em Cabo Verde. Logo após o ingresso como professora na UNI-CV, foi convidada a trabalhar como diretora do Centro de Investigação e Formação em Gênero e Família da UNI-CV. Participou ativamente da fase de estruturação do centro, onde se desenvolvem pesquisas, atividades de formação e atividades de extensão universitária nas áreas de Interações e Dinâmicas Familiares, Gênero e Relações de Poder, Gênero e Migrações, Gênero e Violências e Gênero e Desenvolvimento.

A socióloga também atuou como professora visitante na Universidade Complutense de Madrid. É membro de grupos de pesquisas interuniversitárias na Universidade de La Laguna - Canárias (Educação para o Desenvolvimento Sustentável), na Universidade de Lausanne - Suíça (Feminização da Luta Contra Pobreza e as Organizações Não Governamentais), na Universidade de Brasília (Transformações do Mundo de Circulação nas Formas Estabelecidas de Sociabilidade) e na UFSC integra o Núcleo de Identidade de Gênero e Subjetividades (NIGs). Atualmente, coordena o Observatório de Criminalidade e Violência, associado ao Programa de Graduação em Ciências Sociais da UNI-CV (CIGEF, 2024).

O observatório, além das questões relacionadas a violências, também aborda aspectos sobre as novas masculinidades, famílias e suas dinâmicas, conjugalidades, diversidades, sempre pensando gênero a partir dessa ótica. Uma das pioneiras nos estudos de gênero em Cabo Verde, ela relata contar com bastante apoio financeiro internacional na implantação do centro e no desenvolvimento das pesquisas.

Durante nosso diálogo, Carmelita apontou fatores positivos e negativos de sua experiência no Brasil, destacando que, mesmo nos aspectos negativos, sempre conseguiu aprender algo em sua vivência em território brasileiro. Ela relata que ouvia dizer que o Brasil era um país racista, embora aquilo não fizesse sentido para ela: uma mulher nascida e criada no arquipélago de Cabo Verde, localidade conhecida pela sua diversidade e identidade mestiça. Cunha e Casimiro (2022), inspiradas por Donna Haraway, apontam que, quando uma mulher narra a sua história, ela torna presente o que estava ausente, ativando saberes, expressando emoções e contextos que são constitutivos da sua identidade. Por isso, as narrativas tornam-se, em termos teóricos, subjetividades ativas e conhecimentos incorporados que acompanham essa mulher ao longo de sua trajetória, ou seja, aprendizados adquiridos mesmo nas adversidades (Cunha; Casimiro, 2022). Neste trabalho, buscamos registrar a narrativa dessa mulher, colaborando, assim, para dar amplitude a sua voz e compartilhar seus saberes adquiridos.

 

Quem precisa de identidade no âmbito das relações raciais?

Iniciamos nossa conversa com a generosa partilha de experiências que marcaram a vivência de Carmelita no Brasil. As experiências relatadas são fortemente marcadas pelas especificidades que se estabelecem no campo das relações raciais no Brasil. O primeiro estranhamento relatado foi logo na fronteira, quando pediram sua autodeclaração de cor/raça:

Foi um choque porque, no contexto de Cabo Verde, eu nunca havia parado para refletir sobre a minha raça e, de uma forma por vezes muito ingênua, eu dizia que “não, em Cabo Verde não havia racismo”, quando na verdade tínhamos também. Acabamos tão mergulhados na questão da identidade mestiça que acabamos por não perceber que somos racializados internamente. Desde a relação entre grupos de diferentes ilhas – nas de Barlavento, os habitantes têm a pele mais clara, nas de Sotavento[4], da qual eu faço parte, têm a pele mais escura – e há também uma diferença que nós estabelecemos entre os Sampadjudus e os Badius. Sampadjudus e os Badius são duas categorias, não chegam a ser etnias, mas podemos chamar de grupos (Silva, 2023).

 

Essa observação inicial de Carmelita nos leva a refletir sobre a branquitude no Brasil e pode nos ajudar a compreender todas as outras situações relatadas mais adiante. Branquitude, de acordo com Muller e Cardoso (2017, p. 13), “significa pertença étnico-racial atribuída ao branco”. Muito embora pessoas brancas não pensem sobre si como pessoas racializadas (Di Angelo; Bento; Amparo, 2023). Isso acontece porque a raça é uma construção social que se modifica de acordo com o contexto, com a época, com o lugar. No contexto brasileiro, assim como em outros lugares que passaram por processos de colonização, a branquitude se construiu como “o lugar mais elevado na hierarquia racial” (Muller; Cardoso, 2017 p. 13), o que lhe garante o poder de classificar “o outro” como não branco, o que por sua vez, dado o caráter hierárquico atribuído às relações raciais, significa ser menos do que ele. Além disso, ser uma pessoa branca aqui vai além do fenótipo. Significa ser proprietária de privilégios raciais simbólicos e materiais (Muller; Cardoso, 2017).

Tendo em vista esse contexto de mestiçagem, branquitude e pertença racial, retomei a questão das identidades e diferenças, tentando compreender melhor sobre os grupos citados, badius e sampadjudus. Carmelita explica:

No contexto de Cabo Verde, a diferença entre badius e sampadjudus tem sido marcante. Os badius, que estão na parte mais sul, são os mais negros, provavelmente porque, na época de povoamento das ilhas, havia mais concentração de escravizados. Então, em termos fenotípicos, as pessoas são mais escuras, têm outros hábitos, danças ritmos mais fortes, tipicamente africanas. Já na parte norte, barlavento, as pessoas têm a pele mais clara. Quando se inicia a discussão sobre identidade, é comum essas pessoas do barlavento negarem essa dimensão africana e dizerem que fazem parte do grupo da “macarronese”, que é de alguma forma buscar um distanciamento da África. Nós que somos do Sul, a tendência não é negar a nossa africanidade, até porque ela é mais vista na nossa forma de ser, falar, dançar, a nossa cor mostra a pertença a questões culturais do continente (Silva, 2023).

 

A colocação de Carmelita a respeito das diferenças entre badius e sampadjudus dialoga com o queniano NgŨgĩ Wa Thiong`o (2021), quando ele teoriza a respeito dos efeitos do que ele chama de bomba cultural, a maior arma que o imperialismo impunha contra nós, sujeitos do Sul global. Esses efeitos da bomba cultural levam as pessoas colonizadas a perderem a crença nelas mesmas, em seus próprios nomes, seus idiomas, seus ambientes, suas tradições de luta, em suas capacidades. Faz com que olhem para o seu passado como um terreno baldio, devastado, sem realizações, levando-as a querer se distanciar dessa terra devastada e se aproximar daquilo que é mais afastado de si, como, por exemplo, a língua, a tradição de outros povos. No meio desse deserto da terra devastada, o imperialismo se apresenta como a cura.

Carmelita complementa a explicação, levando-nos a pensar sobre como, em contextos de mestiçagem, há uma tentativa de se construir uma sociedade de acordo como o modelo racial e cultural hegemônico branco. Entretanto, mesmo neste cenário de assimilação, o racismo encontra fissuras, adapta-se e se perpetua:

Há muitos pesquisadores que tratam dessa discussão e há aqueles que dizem que a reivindicação da mestiçagem é uma forma de ficar em cima do muro e não decidir quem efetivamente somos. É estar num lugar e não se identificar nem tanto como negro, nem tanto como branco. Uma forma de camuflar aquilo que realmente é a nossa identidade, uma negação da nossa negritude. Quando a pessoa se declara como mestiça. ela está de alguma forma a reivindicar o lado branco, se coloca como bem-comportada. Essa diferenciação ocorre. Antigamente, tínhamos muito mais choque, porque a migração entre as ilhas de Cabo Verde era mais intensa. Então agora o choque de como nos vemos como caboverdianos não é tão gritante quanto já foi em outros momentos. Mas continuamos a ter essas diferenciações e isso mostra claramente as posições em que nos colocamos em relação à Europa e em relação à África (Silva, 2023).

 

Essa fala de Carmelita remete aos apontamentos de Antônio da Costa Ciampa (2002), quando ele diz que a identidade das pessoas mestiças apresenta várias dimensões que são resultados de uma relação dialética estabelecida entre uma atribuição objetiva e uma apropriação subjetiva. O que faz com que essa identidade não seja exatamente nem uma nem outra. Portanto, autoidentificar-se não é suficiente. É preciso que haja também o reconhecimento dos outros sobre essa autoidentificação. Essas pessoas podem se autoidentificar como brancas, embora nem sempre serão reconhecidas como brancas. Isso acontece, pois a identidade se constrói de modo diferente para um e para outro. Sendo assim, podemos dizer que a identidade não se constrói apenas por características do indivíduo, mas também pelas relações que se estabelecem entre esses indivíduos, sempre em movimento, de maneira processual, fluída. Assim, é possível que sujeitos que se autoidentificam como mestiços em Cabo Verde possam ser lidos socialmente como negros em outros países.

Ainda sobre sua experiência no Brasil, Carmelita relata que o estranhamento se acentuou quando ela chegou a Santa Catarina, especialmente na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e também no Sistema Único de Saúde (SUS), onde, logo após a chegada ao Brasil, precisou buscar atendimento em que descobriu se tratar de uma gravidez: “Ali no SUS percebi como nós éramos claramente demarcados não só pela questão da cor, mas também pela questão da classe social. Mas a cor me pareceu naquele momento uma questão mais forte” (Silva, 2023).

Sueli Carneiro (2023) aponta que existe tratamento diferenciado para gestantes negras e brancas, expresso na menor atenção às primeiras. Essa desigualdade se manifesta numa variedade de procedimentos médicos, tais como: uso de analgesia de parto, ausculta de batimentos do feto, medida do tamanho do útero durante o pré-natal, resposta às dúvidas durante o pré-natal, permissão de acompanhamento antes e depois do parto. O que nos leva a pensar sobre a emergência de olhar para o racismo como uma questão de saúde pública.

Carmelita complementa o relato:

Eu percebia a diferença de tratamento mesmo nas filas em supermercado. Eu, visivelmente grávida, nunca recebia a prioridade que me era devida por lei, enquanto que mulheres brancas, muitas vezes com aspecto de gravidez pouco perceptível, recebiam prioridade nas filas, enquanto eu precisava questionar e reafirmar a minha condição para poder exercer o direito que era devido por lei (Silva, 2023).

 

Aqui neste ponto, buscamos conectar o relato de Carmelita com Grada Kilomba e seus apontamentos na obra Memórias da plantação, quando ela trata sobre racismo cotidiano, sua imprevisibilidade e seus efeitos prejudiciais. Para Kilomba (2019, p. 78),

o racismo cotidiano refere-se a todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam o sujeito negro e as Pessoas de Cor não só como “Outra/o” - a diferença contra a qual o sujeito branco é medido - mas também como Outridade, isto é, como a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca.

 

Assim, toda vez que a pessoa negra se torna a “Outra” da branquitude, não o “eu”, é-lhe negado o direito de existir como igual. O que se materializa nessa experiência de Carmelita como a negação do direito de ser vista como uma mulher grávida, protegida não apenas pelas leis brasileiras, mas também pelas convenções sociais e morais.

 

Classificação racial, identidades, discriminação e estereótipos

Carmelita conta que, ao preencher formulários de cadastros, assim como muitos brasileiros e brasileiras, frequentemente se deparava com dúvidas sobre sua identidade em relação às categorias de classificação adotadas aqui no Brasil. Isso se dá em grande medida devido ao processo de mestiçagem ocorrido e ao projeto de branqueamento empregado no país. E também pelo fato de haver uma falta de coerência entre as categorias de classificação oficiais adotadas no país, as quais envolvem ao mesmo tempo conceitos de fenotipia, no caso, relacionados a cor, como por exemplo, as categorias “preto” e “branco”, e também critérios relacionados à ascendência, como no caso das categorias “pardo” (que em alguns contextos também pode ser compreendida como cor), “amarelo” e “indígena”. A socióloga caboverdiana narra suas indagações:

“Carmelita, és o quê? És parda, és negra?”, e acabava por percorrer os formulários em busca da opção “mestiça”. Ao não encontrar, acabava por marcar a opção “parda”, o meio termo entre o negro e outra cor. “Então ali eu percebi que, mesmo aqui em Cabo Verde tinha essa questão de diferenciação, mas que por vezes nós não nos debruçamos, não paramos para refletir sobre, porque nós não percebemos isso muito na pele. Mas quando eu cheguei ao Brasil, eu percebi isso na pele (Silva, 2023).

 

É interessante destacar que, dentre os 92 países que adotam sistemas de classificação étnico-racial da população em seus processos de recenseamento, apenas 20 possuem uma categoria específica para pessoas mestiças, dentre eles o Brasil, que adota a categoria “pardo” (Osório, 2003). Cabo Verde, de acordo com o que consta no site do Instituto Nacional de Estatística Cabo Verde (INE), não coleta dados sobre raça e etnia, mas, sim, sobre nacionalidade, utilizando as seguintes categorias: “Caboverdiana; Dupla nacionalidade; Estrangeira; Apátrida; ND” (Cabo Verde, 2010).

De acordo com Lobo e Furtado (2023), o arquipélago de Cabo Verde, composto por dez ilhas com características geográficas e climáticas variadas, foi inicialmente colonizado por portugueses, juntamente com um grande número de africanos trazidos como escravizados da costa da África. Com o passar do tempo, essa mistura de diferentes origens étnicas, religiosas e linguísticas resultou no desenvolvimento de uma sociedade altamente miscigenada.

Stuart Hall (2006), embasado nos apontamentos de Paul Gilroy, mostra que, no contexto contemporâneo, diante da diáspora africana, enfrentamos um tipo de racismo disfarçado, que embora não se identifique abertamente como tal, consegue alinhar a noção de “raça” com conceitos de nacionalidade, patriotismo e nacionalismo. Esse tipo de racismo, afastando-se das ideias antiquadas de inferioridade e superioridade biológica, busca definir uma nação como uma comunidade culturalmente unificada, promovendo uma imagem de uma cultura nacional homogênea (Gilroy, 1992 apud Hall, 2006). A miscigenação não impede, mesmo que de maneira sutil, a reprodução do racismo, conforme aponta Carmelita.

Carmelita segue narrando suas vivências diaspóricas no país que possui hoje a maior população negra fora do continente africano:

Eu percebia a diferenciação pela forma como as pessoas muitas vezes me viam, pela forma que em sala de aula eu me percebia na relação com colegas que por vezes consideravam, não sei bem que termo colocar, mas que por vezes me colocavam numa posição de inferioridade. Eu comecei a perceber isso no espaço de sala de aula, no espaço da cantina. Nossa turma era uma turma bem diversa, tinha pessoas de Santa Catarina, de outros lugares do Brasil e até da França. Quando saíamos, quem eram as pessoas que se aproximavam de mim? Normalmente pessoas que vinham do norte, da Bahia, pessoas que eram, se formos ver em termos de cor da pele, mais parecidas comigo, nos identificávamos mais (Silva, 2023).

 

Carmelita, ao desembarcar no Brasil, passou a experienciar a discriminação pelo fenótipo, nomeado por Oracy Nogueira (2007) como preconceito de marca, uma forma insidiosa de racismo que não exclui abertamente a população negra, mas a discrimina, impedindo seu acesso ao trabalho, educação, saúde e segurança. Kabengele Munanga (1994) acrescenta que toda construção racista se baseia em diferenças reais e imaginárias, que tanto unem quanto desunem os grupos no nível macrocósmico e microcósmico. Essas diferenças são fontes de conflitos e manipulações socioeconômicas e político-ideológicas. À medida que crescem, essas diferenças favorecem a formação de fenômenos de etnocentrismo, que são pontos de partida para a construção de estereótipos e diversos tipos de preconceitos, incluindo o racial.

Carmelita relatou uma situação na qual ela se dirigiu a uma academia, para frequentar junto ao grupo de suas colegas de turma, pois estudantes recebiam desconto na mensalidade:

Quando cheguei e disse que queria me inscrever com o grupo, logo me informaram: - “Não, isso é só para estudantes.” “Pois eu estou a procurar justamente porque sou estudante.” A atendente me esquadrinhou dos pés à cabeça, com ar de quem procura uma estudante em outra pessoa que não seja aquela à sua frente, que não seja negra e que não tenha o cabelo crespo. Após atender outra pessoa que estava ao lado, a atendente se põe a procurar e logo me informa: “Minha senhora, seu nome não está na lista de estudantes. De qual universidade, privada?” “Não, sou da Universidade Federal.” No Brasil, há essa diferença em termos de universidade pública e universidade privada. Aqui em Cabo Verde é diferente, há universidades particulares por vezes mais cotadas do que a universidade pública. Voltando à atendente. Primeiro, ela não acreditou que eu era aluna, depois, não acreditou que eu era aluna da UFSC, e por fim, não acreditou que eu era aluna de programa de doutorado. Estava a procurar entre estudantes da graduação. Quando eu questionei, passou a olhar nas listas de alunos de mestrado e só após a minha intervenção, com uma cara de espanto, foi a procurar entre os estudantes de doutorado. “Ah, sim, aqui está o seu nome. Como você fala bem o português, onde você aprendeu?” Ao que respondi: “Primeiramente, porque temos o mesmo passado colonial, Cabo Verde e Brasil, eu sei que conheço muita coisa sobre o Brasil que talvez você desconheça. A nossa língua oficial é o português. Aliás, há muitas coisas que chegaram ao Brasil a partir de Cabo Verde, como a mandioca, por exemplo. E comecei a brincar com aquilo, para não ficar irritada e ela sempre a estranhar (Silva, 2023).

 

Lélia Gonzales e Sueli Carneiro discorrem muito bem sobre os estereótipos impostos sobre as mulheres negras no Brasil, cozinheiras, faxineiras, serventes, trocadoras de ônibus ou prostitutas, mas nunca uma intelectual. Uma herança cruel do período colonial que é sistematicamente reiterada pelos meios de comunicação, através da exclusão simbólica, da não representação e da distorção da imagem da mulher negra no imaginário popular (Carneiro, 2019; Gonzales, 2020).

Neste ponto, cabe tratarmos sobre o conceito de racismo genderizado cunhado por Grada Kilomba (2019) para descrever a situação das mulheres negras que ocupam um espaço vazio que se sobrepõe às margens da raça, no qual o protagonista é o homem negro, e as margens do gênero, no qual as protagonistas são as mulheres brancas. Mulheres negras experienciam diferentes formas de opressão, que não podem ser vistas como uma simples sobreposição de camadas. Essas opressões atuam de forma imbricada, produzindo efeitos específicos que não operam de forma separada, mas se entrecruzam. Por isso, os impactos simultâneos da opressão racial e de gênero levam a formas de racismos únicos que se impõem sobre mulheres negras. Neste sentido, o feminismo negro surge para abarcar a lacuna na qual as mulheres negras com frequência se encontram.

Carmelita relatou outra situação, também ligada ao seu fenótipo, que chamou a sua atenção:

Sempre que estava a esperar o ônibus e alguém puxava conversa, nunca presumiam que eu era uma estudante. Sempre perguntavam se eu vinha do norte do país, se estava a procurar emprego como empregada doméstica. Eu percebia o tempo todo que o fato de ser negra, ter o cabelo crespo, não ter a mesma cor da pele das pessoas dali, levava as pessoas a pensarem: é negra, é pobre, é pouco civilizada (Silva, 2023).

 

Patrícia Hill Collins (2019, p. 135), em sua obra sobre o pensamento feminista negro, explica que “opressões de raça, classe, gênero e sexualidade não poderiam continuar a existir sem justificativas ideológicas poderosas”. As mulheres negras, com sua luta constante para combater todas as formas de racismo e desigualdades, acabam por perturbar o status quo. Esse movimento de perturbar o status quo lhes resultou em uma espécie de punição. Instituíram-se estereótipos negativos a respeito das mulheres negras, o que Collins denomina de imagens de controle. Essas imagens de controle das mulheres negras são enxertadas nas instituições sociais e amplamente difundidas. Apesar dos significados, estereótipos e mitos específicos se modificarem, a ideologia geral da dominação permanece e se perpetua como característica duradoura no imaginário popular (Collins, 2019).

Para Winnie Bueno, pesquisadora feminista negra antirracista brasileira, estudiosa do pensamento de Patrícia Hill Collins, “as imagens de controle sobre as mulheres negras vão se modificando de acordo com o contexto local” (Bueno, 2020, p. 123), pois o racismo apresenta contornos globais. Porém, os meios de proliferação massiva são as mídias de massas. No Brasil, umas das imagens de controle amplamente difundidas nas mídias de massas é a imagem da mulher negra como empregada doméstica.

Ainda sobre estereótipos e imagens de controle que extrapolam o universo das mulheres negras, Carmelita acrescenta:

Eu também percebia, inclusive entre os meus colegas, ao desenvolver as atividades do curso, que havia determinados produtos alimentares que eles achavam que nós simplesmente não conhecemos, porque não fazem parte da nossa realidade. Quando na verdade nós usamos isso no dia a dia, como por exemplo, falar de camarão, falar de lagosta. O preto come isso, aquilo e aquilo, no teu país existe isso e isso? Por vezes, isso é para mostrar que, como é na África, tem que permanecer o desconhecimento, a questão da civilidade, de coisas que pensam que não se encontram ali. Vocês precisam conhecer a África. A África não é um país, a África é um mundo, tem suas diversidades, pluralidades. Eu, enquanto caboverdiana, posso não ter tal coisa como parte da minha realidade, mas outras pessoas de outras etnias, de outros países, ou que professam outras religiões, podem ter características marcadamente diferentes (Silva, 2023).

 

Sylvia Tamale, ativista dos direitos humanos ugandense, destaca que as propagandas imperialistas difundem para o mundo mitos primitivistas sobre a África, pintando o continente como um remanso empobrecido, cheio de doenças, guerras e corrupção (Bawa; Adeniyi-Ogunyankin, 2023). Lélia Gonzales é cirúrgica ao apontar, e parece estar em diálogo direto com Carmelita, quando destaca que a “superioridade branca brasileira ignora quase tudo que se refere ao continente africano, com exceção de notícias de eventos imprevistos (guerras, golpes de estado, etc.), os brasileiros são muito desinformados sobre processos políticos e culturais africanos” (Gonzales, 2020, p. 70). Para Lélia, mesmo entre intelectuais é comum a reprodução dos estereótipos a respeito da África, sobre como os africanos são “selvagens”, “atrasados” e “incapazes” de falar uma língua, pois só conhecem dialetos.

 

Quando o colonialismo intelectual não é mais do norte global

Dentre as situações que mais marcaram Carmelita, ela relata a que vivenciou no programa de doutorado[5] durante sua estadia no Brasil. Ao receber a nota de avaliação de uma disciplina, a estudante verificou que havia recebido conceito I (equivalente a insuficiente). Para ela, uma professora universitária, com experiência acadêmica em seu país, foi um choque, pois, ao ver a nota de outros colegas da turma, observou que outros que não participavam ativamente da disciplina haviam recebido conceito acima do “I”, enquanto ela, que não havia faltado a nenhuma aula, entregou o trabalho de avaliação, fazia intervenções durante as aulas, foi avaliada como sendo “Insuficiente”. A socióloga relembra o episódio:

Vamos imaginar que eu tenha ido a todas as aulas, mas a minha participação não foi grande coisa, por exemplo, fiz uma participação, mas não tinha nada a ver. Mesmo que eu fizesse isso, eu teria “I”, assim como aquelas outras colegas minhas que não falaram, que não estiveram em todas as aulas. Eu sempre uso dois exemplos de duas alunas que vieram da França, chegaram à primeira aula e fizeram a apresentação do projeto, qual era a área de pesquisa, e foi a única vez que essas alunas falaram. Elas não se envolveram nas aulas, porque praticamente não estavam nas aulas. Como que o professor explica que essa aluna que nem sequer esteve nas aulas tinha uma nota de participação superior à minha? (Silva, 2023).

 

Carmelita solicitou ao professor para fazer um trabalho de recuperação para melhorar sua nota, o que lhe foi simplesmente negado. O professor desconhecia que a “trajetória individual e coletiva de sujeitos subalternizados, especialmente mulheres negras, é um privilégio epistemológico de onde se elabora também um pensamento de fronteira, a partir de outra ótica” (Costa; Grosfoguel, 2016, p. 20). Essa situação mostra que não se pode esperar que alguém que se situe socialmente do lado subalterno do conhecimento automaticamente se reconheça e pense a partir desse lugar. Conforme nos falam Joaze-Bernardino Costa e Ramon Grosfoguel (2016), o lugar epistêmico de onde falamos, não é apenas marcado pela posição geográfica, mas também pelas hierarquias de raça, classe e gênero. E o maior êxito do sistema-mundo moderno/colonial no âmbito epistêmico é levar os sujeitos socialmente situados no lado oprimido, no caso, um latino-americano, a pensar como aqueles que se encontram em posições dominantes, desqualificando saberes localizados fora do eixo eurocêntrico.

Ela continua o relato, contando o que sucedeu quando usou de seu direito de buscar melhorar sua nota[6]:

Eu vou fazer um novo exame e, para fazer de acordo com o regulamento da universidade, o professor teria que se pronunciar. Então, a coisa foi para a Coordenação. Eu percebi que a Coordenação na época era bastante racista e eu disse isso em uma das reuniões do Colegiado do curso. Fomos ao Colegiado e ali eu não podia falar, tinha apenas que ouvir, e quem falava por mim eram os representantes dos estudantes (Silva, 2023).

 

A discussão que se encaminhou para o Colegiado do curso era sobre Carmelita poder fazer novamente uma avaliação para melhorar sua nota.

Eu percebi ali como alguns autores e autoras falam sobre a questão do lugar de fala. Os alunos que eram representantes no Colegiado não conseguiam falar por mim naquele momento. Havia questões que teria que ser eu a falar. Quando chegou numa altura, eu disse: “Bom eu sei que eu não tenho e não deveria ter espaço de fala, mas eu vou falar ainda que seja a última coisa que eu vou fazer aqui. Eu vou falar o que se passou durante esse processo, porque eu estou nessa situação e não estaria nessa situação se estivéssemos em Cabo Verde. Em Cabo Verde, enquanto professora na universidade, nós ficamos muito felizes quando um aluno quer recuperar a sua nota, porque é um sinal de que o aluno está comprometido com o seu processo de ensino e aprendizagem, quer melhorar, quer sair dali aprendendo e mostrando que aprendeu alguma coisa. Nenhum professor cria nenhum tipo de embaraço quanto a isso. O professor ficou o tempo todo afirmando que não era racismo o que estava acontecendo ali, que eu realmente não tinha aquela nota, que eu não devia continuar a fazer aquela disciplina, que era uma estratégia fazer com outra professora para obter melhores notas, etc. A professora dizia que não estava ali para dar mais nota ou menos nota e sim para avaliar o meu desempenho, que me via como uma pessoa que tem se mostrado bastante interessada, lê os textos, participa em aula, que ela não poderia deixar aquilo avançar até perder a oportunidade de me avaliar (Silva, 2023).

 

Diante do relato de Carmelita, questiona-se sobre o quanto os espaços pensados a partir do ideal de democracia burguesa acabam por reproduzir as violências do sistema colonial, que destitui o direito de fala, de produção teórica e política de sujeitos oprimidos. Não podemos deixar de falar sobre o epistemicídio que, de acordo com Carneiro (2023, p. 375), resulta do rebaixamento e sequestro da razão das pessoas negras e se constitui como uma ferramenta eficaz na perpetuação do racismo ao “inferiorizar a intelectualidade das pessoas negras e recusar sua autoridade enquanto sujeitos do conhecimento”.

Carmelita segue numa espécie de desabafo e revela, ao final da entrevista, algo muito relevante para deixar de registrar. Ela relatou que há muito tempo pensava em escrever sobre esse episódio, mas que ainda não havia encontrado disposição para fazê-lo. De certa forma, essa entrevista foi uma oportunidade para que ela pudesse registrar essa experiência dolorosa, de modo que possa servir como fonte de reflexão sobre os efeitos nocivos do colonialismo sobre a trajetória de mulheres negras. Nas palavras de Carmelita:

Foi uma discussão muito quente, com choro, eu fiquei muito irritada a chorar. O professor ficou o tempo todo a me rotular como uma aluna de conceito “C”. E quando eu falei tudo o que eu tinha para falar, apareceram professoras que me disseram: “Carmelita, obrigada por teres dito aquilo que nós enquanto professoras sempre quisemos dizer a esse professor, mas não podíamos”. Eu questionei: “Mas por que vocês não podiam dizer?” “São questões, as redes lá dentro, a posição que o professor ocupa, enfim”. Eu percebia que eram duas questões, não era apenas a questão do racismo, era também a questão da misoginia. Era o que estava presente o tempo todo. Não era o meu esforço (Silva, 2023).

 

Neste sentido, sobre as imbricações entre gênero e raça, trazemos o estudo de Isabel Casimiro para pensarmos sobre os efeitos da dominação masculina sobre as nossas subjetividades. Casimiro e Andrade (2007, p. 3) aponta:

[...] a categoria gênero implica uma série de dimensões de relações de poder expressas simbolicamente na linguagem dos corpos, na representação do masculino e do feminino, como elemento constitutivo de identidades e subjectividades, na articulação micro/macro e nas práticas. Também revela como a dominação masculina está inscrita na palavra, nas coisas e nos objectos, nos espaços, nas estruturas mentais, na forma como percebemos os outros.

 

A situação relatada por Carmelita é um exemplo prático da afirmação de Casimiro e Andrade (2007), pois a situação se passa em um ambiente acadêmico, com pessoas instruídas, muitas delas estudiosas ou no mínimo conhecedoras das nuances que envolvem as questões de gênero, mas silenciadas pelo poder simbólico de alguém que não se exime em exercê-lo e perpetuar a dominação sobre outras pessoas, apoiando-se na masculinidade e na hierarquização das diferenças.

 

Diáspora: de África para o mundo

Em suas reflexões sobre a diáspora, Stuart Hall (2023) afirma que as identidades se tornam múltiplas, ambíguas e processuais. As identidades são alteradas pelas experiências longe da terra de origem, e essas alterações não podem ser apagadas, elas simplesmente se somam à identidade dos sujeitos diaspóricos. Muitas pessoas negras em diáspora relatam a dificuldade de se reconectar a suas sociedades, ao retornar para a terra de origem, pois são vistas como se os elos naturais que antes possuíam com a terra natal tivessem sido interrompidos por suas experiências diaspóricas. Na continuidade da entrevista, a partir das reflexões do autor, foi perguntado à professora: como foi a sua volta a Cabo Verde? Como ficou o seu olhar depois dessa passagem pelo Brasil? Em resposta, Carmelita relatou o seguinte:

Depois que voltei, passei a reparar o quanto os caboverdianos se colocam mais próximos do branco e distanciam-se do negro, uma forma de negarmos a nossa própria identidade, a nossa própria cultura, a nossa forma de vestir. Temos uma forma diferente do resto da África de vestir, que é praticamente igual a dos brasileiros, portugueses. De alguma forma, os próprios europeus nos fazem acreditar que somos mais próximos deles, e assim nós colocamos numa posição de inferioridade todos aqueles que consideramos que são mais negros. Para nós, o negro, o preto, é o guineense, o senegalês (Silva, 2023).

 

Considerando as similitudes entre Brasil e Cabo Verde, no que tange à miscigenação, essa fala da Dra. Carmelita está de acordo com a afirmação de Sueli Carneiro (2023) a respeito dos impactos da miscigenação sobre pessoas negras brasileiras, levando a uma suposta melhor aceitação social daquelas pessoas com pele mais clara, em relação às de pele mais escura. Para Sueli, a miscigenação foi um instrumento fundamental para o projeto de embranquecimento do país, estabelecendo uma hierarquia cromática e de fenótipos na qual, na base da pirâmide da estratificação social, encontra-se o negro mais retinto, e no topo, o “branco da terra”. Nesse processo, aqueles que estão no lugar intermediário, os mestiços, desfrutam do benefício apenas simbólico de estarem mais próximos do que a sociedade considera como ideal de ser humano, que é o branco (Carneiro, 2023).

Na complementação do relato, Carmelita destaca:

Foi a partir do momento que eu fui ao Brasil, que eu estive na Universidade de Santa Catarina, que eu comecei a ligar as minhas antenas para perceber a questão do racismo, inclusive no contexto de Cabo Verde. Eu percebi o quanto nós, caboverdianos e caboverdianas, racializávamos as pessoas que vinham da costa, da nossa sub-região, Guiné, Senegal, Mali, Gâmbia, que ficam na Costa da África e são nossos vizinhos. Essas pessoas buscam Cabo Verde, muitas vezes não para se fixar, mas vem a Cabo Verde porque a partir daqui tem facilidade para chegar ao Brasil, a Portugal, França ou outros países. Ali eu percebi o quanto nós, caboverdianos, não somos tão racistas entre nós, mas somos racistas com os imigrantes da Costa ocidental africana. Inclusive na forma como tratamos, muitas vezes querendo mostrar que somos amigos, somos isso e aquilo, quando na verdade nós tratamos essas pessoas como diferentes, como inferiores, de certa forma (Silva, 2023).

 

Mais uma vez, o olhar perspicaz de Carmelita está em consonância com outras pesquisadoras negras, como a professora brasileira Karina de Souza Silva, pesquisadora no campo do Direito Internacional, Migrações e Diáspora Africana. Karine aponta que a migração internacional é atravessada por raça, classe e gênero, pois estes são os principais eixos de subalternidade que compõem a base da exploração do sistema capitalista moderno mundial. Além disso, a pesquisadora mostra que o marcador de “raça” termina informando a construção de outros, como os de “nacionalidade” e “cidadania”, uma vez que as políticas migratórias não se restringem ao acesso, mas, em boa medida, ao alcance que cada tipo (racial) de imigrante terá para desfrutar dos direitos de cidadania concedidos aos nacionais desse país (Silva; Nikel, 2021; Silva; Sá, 2021).

Carmelita segue registrando suas observações a respeito das relações raciais em Cabo Verde e sobre como a metáfora de Fanon sobre o uso das máscaras brancas se mostra adequado para aquele contexto:

Percebi como muitas vezes usamos categorias que nem sequer conhecemos, como a categoria mandjaco, por exemplo. Todos que vêm da costa ocidental são pessoas de diferentes etnias, de culturas também diferentes, a todos eles chamamos de mandjacos, como uma categoria negativa. Eles, com o conhecimento que têm, por vezes nos dizem: “Vocês nos chamam mandjacos, como desprezo, quando na verdade nem sabem que mandjaco é uma etnia da Guiné, que é um grupo bastante rico, de status reconhecido dentro do país. Vocês usam no sentido de desprezo, é o negro”. É conforme fala Fanon, no seu livro Pele negra, máscaras brancas (2020), nós só admitimos que somos negros, que mestiço é negro, tudo é negro, quando chegamos nos países dos brancos e eles nos tratam como negros. Aí vamos perceber e colocar os pés na terra e aceitar a nossa negritude. Aqui em Cabo Verde tratamos os outros como os negros, eles sim são incivilizados. Nós, não, nós somos mais próximos dos brancos, nós que nos admitimos como mestiços, como mulatos, e que nós somos melhores. Enquanto isso, colocamos como inferiores aqueles que vêm da nossa sub-região, que têm a pele mais escura, que têm outras formas de ser, de vestir, de estar, etc. Só vamos perceber que somos efetivamente negros quando atravessamos outros países, sobretudo a Europa, e a partir daí passamos a reconhecer, valorizar, ficar mais atentos a situações do racismo (Silva, 2023).

 

As observações de Carmelita a respeito das relações entre caboverdianos e imigrantes da costa africana se somam aos achados de outra professora caboverdiana, a Dra. Eufêmia Rocha. Eufêmia se dedica à pesquisa com imigrantes africanos que residem em Cabo Verde. Em um artigo publicado em 2017, a Dra. Eufêmia aponta que, durante o desenvolvimento de suas pesquisas, era comum que os imigrantes africanos relatassem um tratamento discriminado por parte dos caboverdianos. Esses tratamentos envolviam situações de aversão carregada com tratamento ofensivo, caracterizando xenofobia. Além disso, os imigrantes relatavam situações de racismo cultural, no qual eram homogeneizados e considerados culturalmente inferiores. Nas relações cotidianas, relatavam uma tentativa de construção de uma ficção sobre diferenças biológicas entre caboverdianos e imigrantes africanos (Rocha, 2017).

Essa última fala de Carmelita despertou a curiosidade em relação à questão da imigração. O que me levou a questionar se havia, por parte do Estado caboverdiano, alguma forma de privilégio para imigrantes de outros continentes, em comparação com imigrantes do continente africano. Ao que Carmelita prontamente respondeu:

Em relação à imigração, hoje qualquer pessoa pode ascender no país. No passado, Cabo Verde recebia muitos imigrantes da sub-região, da costa ocidental africana, Senegal, Guiné, Gana, dentre outros. Eles chegam a Cabo Verde devido à mobilidade facilitada, não se exige visto. Para então, a partir daqui, procurar outros países. Essas pessoas tendem a se perceber muito racializadas em nosso país e falam de situações de discriminação. Enquanto imigrantes chineses, portugueses ou de outros países da Europa não falam de discriminação, estigmatização. Considero que essas pessoas têm mais facilidade de se integrar ao nosso país do que as pessoas que vêm da costa ocidental, apesar de serem as africanas que têm uma história de imigração desde o passado. Os portugueses, por exemplo, têm menos dificuldades de fixar residência do que os da nossa sub-região. Eu não tenho estudos específicos sobre isso que me permitam conclusões. O que posso dizer é, a partir de observações com os grupos de imigrantes da sub-região com que eu trabalho sobre violência, aparece essa questão da raça, eles nos reportam isso, que são discriminados, que sofrem racialização. Enquanto que, de modo geral, os brancos não mencionam a racialização como um problema para se integrar ao contexto de Cabo Verde. Também é comum que as pessoas que vêm da costa ocidental da África venham a convite de outros que já moram aqui e que, entretanto, não têm uma condição econômica muito confortável. Acabam por dividir moradias e outras despesas e, quando precisam comprovar a residência para regularizar a situação no país, deparam-se com essa problemática da documentação. Isso já não acontece com imigrantes de outras regiões, eles já vêm com um contexto de trabalho diferente e isso já facilita no contexto de legalização no país. Enquanto que os da nossa sub-região chegam em embarcações clandestinas, chegam com a intenção de ascender à Europa e não conseguem. Assim, acabam ficando por aqui, tentando buscar a legalização através dos filhos que aqui nascem, mas é um processo penoso para esses grupos. Ao não conseguirem regularizar a documentação acabam ficando na clandestinidade, sendo excluídos dos processos de escolarização, dentre outras coisas (Silva, 2023).

 

A mestiçagem e o projeto de branqueamento[7]

Conforme já informado no início do texto, o interesse pela trajetória de Carmelita se deu pelo fato de que tanto no Brasil como em Cabo Verde há um cenário de intensa miscigenação, o que no Brasil foi utilizado como um dos instrumentos empregados no projeto de branqueamento da população. Antes da conversa com Carmelita, buscamos estudos que tratassem sobre a questão da mestiçagem e construção da identidade em Cabo Verde. Dentre os estudos encontrados, alguns eram produzidos por pessoas de Cabo Verde, mas muitos estudos eram produzidos por brasileiros(as) (Hirsch, 2007; Trajano Filho, 2003; Horta, 2013; Melo; Fortes 2014; Lobo; Furtado, 2023; Mourão, 2009). Isso nos levou a questionar se de fato essa questão é relevante para os caboverdianos e se lá a discriminação pelo fenótipo é tão presente quanto aqui. Ao que a Carmelita respondeu:

No contexto de Cabo Verde são poucas as pessoas que pesquisam sobre isso e aqueles que trabalham têm algum tipo de ligação acadêmica com o Brasil. Um dos pesquisadores é o Dr. José Carlos Gomes dos Anjos, que fez todo o seu percurso acadêmico no Brasil e continua a exercer a docência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem também o Gabriel Fernandes, que fez sua pesquisa na Universidade Federal de Santa Catarina. Há o Cláudio Furtado, que também fez uma pesquisa que traz a questão da identidade. Eu acredito que as nossas preocupações sobre a questão da identidade surgem, sobretudo, a partir do momento em que chegamos ao Brasil. Começamos a nos perceber racializados naquele contexto e isso nos dá um pique para fazer investigação nesta área. Eu acho que aqui em Cabo Verde nós ainda estamos de alguma forma a camuflar essa questão, ou a não dar a verdadeira importância que tem (Silva, 2023).

 

Neste sentido, cabe a articulação com o pensamento do porto-riquenho Ramon Grosfogel (2023, p. 59), quando ele situa o racismo como o princípio constitutivo que “organiza, a partir de dentro, todas as relações de dominação na modernidade, desde a divisão internacional do trabalho até as hierarquias epistêmicas, sexuais, de gênero, religiosas, pedagógicas, médicas, junto com as identidades e subjetividades”. É, portanto, estrutural. Entretanto, a partir do momento que movemos o véu da “igualdade”, dificilmente conseguimos olhar para o nosso contexto sem as lentes da ideia de raça. Carmelita está alinhada a esta perspectiva, quando segue a narrativa:

Se tivesse uma escola africana, eu colocaria a minha filha, mas só há escolas portuguesas. Em casa, na rua, nós falamos o crioulo, mas na escola os alunos falam em português e há pessoas que fazem questão de falar em português em casa com os filhos, por uma questão de demonstrar superioridade, mostrando claramente uma hipervalorização da língua portuguesa e muitas vezes negando aquilo que tem sido a nossa identidade, desde a questão da língua, na questão do vestir (Silva, 2023).

 

Para Fanon (1968), a violência colonial não poupa esforços para desumanizar o colonizado e uma das estratégias é lhes substituir a língua, destruir suas tradições e cultura. Assim, a linguagem possui importância fundamental, tendo em vista que ela confere lugar ao sujeito. Nas palavras de Fanon, falar é existir para o outro, é assumir uma cultura e suportar o peso de uma civilização. Para o autor, “tão mais branco será o negro antilhano, quer dizer, tão mais próximo estará do homem verdadeiro, quanto mais tiver incorporado a língua francesa” (Fanon, 2020, p. 31). Nesse sentido, pessoas negras em contextos de colonização assumem duas dimensões, uma com seu semelhante e outra com o branco. O mesmo se dá em relação à cultura. Quanto mais adotar os valores culturais da metrópole, mais distante estará o colonizado da selva (Fanon, 2020).

Carmelita relata também que, em uma atividade promovida pela universidade em comemoração ao Dia da Criança Africana, desenvolveram vários exercícios com as crianças. Foi possível perceber que eles conheciam muito mais sobre a cultura dos Estados Unidos do que sobre o próprio país e sobre a África. Tinham interesse de viajar e conhecer os Estados Unidos e a Europa, mas não tinham interesse para os países da África:

Um dos meus alunos, de uma disciplina de crítica pós-colonial e estudos feministas, apontou o seguinte: “Professora, nós estamos a desconstruir muitas coisas. Entretanto, o que eu vejo em Cabo Verde é: nós comemoramos o Dia Internacional da Mulher, comemoramos o Dia Internacional da Criança, mas o Dia da Criança Africana e da Mulher Africana, que são questões que estão mais próximas, são questões que emergiram de problemas que nos são mais específicos. Entretanto não comemoramos com tanta grandeza quanto comemoramos as coisas internacionais”. Se avaliarmos, estamos a investir muito mais em trazer conhecimentos que vêm da Europa, do Norte global do que do Sul global. Nós desconhecemos autores africanos. Em termos de publicação, as pessoas tendem a procurar revistas ou editoras que não são da África. Procuramos mais da Europa, porque este é mais valorizado, tem possibilidade de ter outras projeções. Tem a ver com a negação da nossa própria língua. Poucas pessoas escrevem em crioulo, ou não sabemos escrever em crioulo, e por que não sabemos isso? (Silva, 2023).

 

E aqui novamente retornamos a perspectiva do racismo como princípio organizador da produção de saberes, que organiza a estrutura hierárquica que define aqueles que podem produzir conhecimento científico legítimo e aqueles que não o podem (Bernardino-Costa; Maldonado-Torres; Grosfoguel, 2023). Carmelita segue complementando o apontamento:

Há muitos anos se tem feito um debate em torno da oficialização do crioulo nas escolas, mas nunca se chega à conclusão. Continuamos a ter o português, continuamos a puxar para termos o inglês, já se discute trazer o mandarim, devido ao estreitamento de relações com a China. Entretanto, não há uma luta ou empenho em torno da oficialização do crioulo. Nos espaços formais, deve-se falar o português (Silva, 2023).

 

Neste sentido, Cunha e Casimiro (2022, p. 8) apontam para o que elas chamam de “novo tipo de colonialismo”, o qual não se baseia na ocupação política, mas se impõe nas relações econômicas, nas relações culturais, nas relações políticas exploratórias de subjugação, protagonizadas pelas elites internacionais e cumplicidade das elites nacionais, através de suas empresas e corporações transnacionais.

Na mesma linha, Sylvia Tamale critica em entrevista os sistemas educacionais em que os estudantes continuam a consumir acriticamente materiais eurocêntricos que apenas ajudam a cristalizar o continente numa posição hierarquicamente inferior. A autora afirma que reconstruir a África implica em escavar valores enterrados pelo império, requer a restauração da espiritualidade (Bawa; Adeniyi-Ogunyankin, 2023).

No Brasil também sofremos com currículos eurocentrados e pautados em ideais capitalistas. A luta do Movimento Negro, bem como de outros movimentos sociais, resultou na promulgação da Lei 10.639, de 2003, a qual estabelece a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileiras”. Esta lei foi atualizada pela Lei 11.645/08, que incluiu o ensino da história e da cultura dos povos indígenas brasileiros (Brasil, 2003; Brasil, 2008). Entretanto, após 20 anos de sua implementação, ainda não foi colocada em prática na maioria das instituições de ensino do país.

 

Existe movimento feminista em cabo verde?

Caminhando agora para o campo de pesquisa de Carmelita, perguntamos sobre a condição das mulheres no contexto caboverdiano. “Sabemos que as mulheres atuaram ativamente na luta pela libertação de Cabo Verde, embora não tenham recebido o devido reconhecimento por isso. Esse apagamento da atuação das mulheres ao longo da história, como sabemos, não é algo exclusivo de Cabo Verde. Sempre esteve em curso ao longo da história um esforço em demarcar que o lugar do protagonismo, da resistência, do enfrentamento não é para nós. Em processos de independência, revoluções, lutas por libertação, a atuação das mulheres costuma ser invisibilizada e muito carente de registros”. Diante disso, gostaríamos de saber sobre como é a sua experiência hoje enquanto professora e pesquisadora? Você vivencia em Cabo Verde os silenciamentos que vivenciou no Brasil?

As mulheres lutaram e conseguiram reverter a situação em vários pontos, mas ainda continuamos invisibilizadas em algumas áreas por conta de questões históricas que de alguma forma apagaram a nossa participação. Reconhecem que participaram, mas a valorização que os homens tiveram não foi a mesma para as mulheres. Em termos de arquivo, as documentações não mostram, precisamos escrever a história para sobressair a história das mulheres no contexto de Cabo Verde. Continuamos a ter a discriminação das mulheres na política, embora a lei da paridade, que entrou em vigor em 2019, permita cotas para garantir a participação efetiva das mulheres nas listas e para estarem em posição de elegíveis. Isso tem contribuído para que elas tenham posições de tomada de decisão e a situação tende a melhorar (Silva, 2023).

 

De acordo com Carmelita, felizmente o cenário está aos poucos se alterando. São muitas as pessoas que têm se dedicado a pesquisar e registrar a trajetória das mulheres ao longo da história. Além disso, as mulheres, através das suas diferentes formas de organização, têm alcançado importantes avanços no que tange à emancipação política e econômica:

As mulheres estiveram envolvidas em todo o processo de luta pela libertação nacional, embora essa atuação tenha sido apagada ou invisibilizada. Todavia, com o tempo, através das organizações não governamentais, dos movimentos sociais, podemos ver a força e o trabalho que as mulheres têm realizado ao longo do tempo, tanto no domínio da educação, no domínio do emprego, de tal forma que hoje a situação se reverte em algumas áreas. Por exemplo, no contexto de Cabo Verde, eram apenas aquelas pessoas que já faziam parte de uma elite política que ascendiam e alcançavam altos graus acadêmicos, conseguiam bolsa para fazer sua formação fora do país. Hoje isso mudou, temos mulheres médicas que foram criadas por mães que vendem produtos na rua, mulheres vendedoras ambulantes que têm filhos e filhas deputadas, ministros de Estado (Silva, 2023).

 

Mas, apesar dos avanços, Carmelita ressalta que ainda são muitos os desafios que se apresentam para o enfrentamento às desigualdades:

No domínio da política, do emprego, continuamos a ter homens a liderar nessas áreas de tomada de decisão. Curiosamente, as mulheres estão superando os homens na conclusão do ensino superior e no ensino secundário. Mas isso não tem se traduzido em melhores condições de emprego. Elas continuam nos empregos menos qualificados apesar do maior nível de qualificação do que os homens. Aqui é importante falar também sobre a irresponsabilidade parental do pai. Na maioria das vezes, é a mulher que sustenta a unidade doméstica, embora sabendo que ela é que tem menor remuneração, mas tem que dar conta de todas as tarefas domésticas, para garantir a sobrevivência da família e ainda investir na educação e em outras áreas importantes (Silva, 2023).

 

Durante o curso sobre feminismos africanos, citado no início do nosso diálogo, discutimos muito sobre as ferramentas teóricas e conceituais ocidentalizadas e seus limites, quando aplicadas ao contexto africano. Nesse sentido, perguntamos à Carmelita se existe movimento feminista em Cabo Verde e se ela se considerava uma feminista. Carmelita então argumenta:

Vou começar por mim. Eu me considero uma mulher feminista, não porque defendo a mulher, mas porque defendo uma perspectiva de igualdade de gênero e de justiça social. Mas, sobre a pergunta sobre movimento feminista no contexto de Cabo Verde, eu diria que não temos. Temos alguns limites e duas questões que entram como constrangimento. Uma delas é a partidarização política. Somos um país muito pequeno, onde todo mundo se conhece. E quando acontece uma situação que precisamos nos mobilizar em massa para contestar alguma coisa, muitas vezes isso não ocorre, porque a pessoa é do partido A ou B. Se tu participas de alguma marcha que vai de encontro ao teu trabalho, e se tu ocupas algum cargo, pode ter certeza que no dia seguinte você será despedido. Quando te despedem, não vão dizer que é por isso, buscam outras estratégias para justificar. Para ter um movimento, nós precisamos nos organizar, ter uma só voz, termos uma causa. A nossa causa é defender os direitos das mulheres, defender a igualdade de gênero. Se essa é a nossa causa, independente do partido A ou B, nós vamos nos mobilizar, porque é a causa que nos mobiliza e não as questões partidárias (Silva, 2023).

 

Essa afirmação de Carmelita nos leva a refletir sobre os atravessamentos que se apresentam na organização coletiva de grupos oprimidos. Entretanto, apesar do que ela define como “constrangimentos” para a organização das mulheres caboverdianas, elas têm avançado na luta pela equidade. Nesse sentido, destacamos a importância do desenvolvimento de ferramentas e metodologias capazes de registrar e compreender os processos de participação das mulheres na história. Embora não haja um movimento feminista propriamente dito em Cabo Verde, os relatos de Carmelita mostram que as mulheres caboverdianas têm outras formas de organização e têm alcançado avanços no âmbito sociopolítico, apesar das diferentes barreiras impostas pelo colonialismo, conforme já discutido ao longo do texto. Carmelita também chama a atenção para aspectos de hierarquia de classe e seus reflexos na organização política de Cabo Verde:

Outro problema é a questão do elitismo. Uma organização que é liderada por uma pessoa que é da elite política tem mais possibilidades de conseguir financiamentos das suas atividades, tem mais possibilidades de conseguir mobilizar fundos, mais possibilidades de estar nas redes de comunicação social, onde tem mais possibilidades e visibilidades no trabalho que fazem, as pessoas conhecem. Já no caso de uma associação de trabalhadoras domésticas, por exemplo, quem está à frente da organização é uma trabalhadora doméstica, ela não tem essa rede de contatos para mobilizar fundos. Então essa associação muitas vezes está condenada à morte mesmo antes de se afirmar. Se em algum momento ela consegue avançar, tem por trás uma pessoa da elite a empurrar para que essa organização seja conhecida. Por essas razões, considero que temos aqui feministas, ativistas de gênero. Há aquelas que se identificam como humanistas de gênero, mas eu considero que não temos um movimento feminista engajado, que luta pela causa, que faz as pessoas saírem à rua. Temos feministas sim, temos ativistas. Mas não temos um movimento engajado que seja capaz de mobilizar todas as pessoas, independente da sua posição de classe e partidária (Silva, 2023).

 

A partir desse diálogo com Carmelita, foi possível perceber como o colonialismo se faz presente no tecido social das ex-colônias (nesse caso, Brasil e Cabo Verde), e como ele se perpetua através de relações de poder desiguais, sustentadas por múltiplos marcadores sociais da diferença. Podemos dizer que essas relações de dominação são fluídas e imbricadas, pois, ao mesmo tempo em que demarcam e discriminam determinados corpos, também os invisibilizam e silenciam, a depender do contexto. Registrar alguns episódios da trajetória da Dra. Carmelita é parte de um projeto político em busca de uma sociedade menos desigual, mas é também e sobretudo de reparação, frente às violências impostas pelo colonialismo, especialmente sobre as mulheres negras.

 

Considerações finais

O Brasil já vem há muito tempo se apresentando como uma referência na América Latina, no que diz respeito à organização coletiva da população negra afrodiaspórica, especialmente protagonizada pelas mulheres negras. O movimento de mulheres no Brasil é um dos mais respeitados no mundo e com uma das melhores performances de mobilização social no país. Prova disso é a Constituição de 1988, que contemplou cerca de 80% das propostas apresentadas pelos coletivos de mulheres (Carneiro, 2019). Em Cabo Verde, as mulheres lutaram ativamente no processo de libertação, deixando um legado de consciência política e autonomia econômica para as próximas gerações. Sua luta resultou em equidade de gênero na área da educação. Apesar disso, lá, assim como cá, muito ainda precisa ser percorrido para que as mulheres alcancem condições equitativas em relação aos homens e para que a categoria “mulheres” represente de fato a diversidade de raça, gênero, origem, capacidade e orientação sexual que ela abarca. A estadia de Carmelita no Brasil se materializa como uma ponte entre a potência das mulheres caboverdianas e a potência das mulheres brasileiras. O trânsito através dessa ponte certamente renderá bons frutos para a epistemologia feminista.

Este artigo teve a intenção de documentar importantes reflexões que emergiram no diálogo com a Dra. Carmelita, muito embora a profundidade de suas colocações seja campo fértil para mais explorações e explanações. A conversa com Carmelita flui com facilidade, dada a sua habilidade de relacionar o conhecimento teórico com a sua realidade concreta de forma crítica, nos convidando sempre a fazer o mesmo movimento. Destacamos ainda o convite feito por ela para que nós, sujeitos subalternizados que falam a partir do Sul global, possamos dedicar mais tempo e atenção para conhecer a heterogeneidade territorial e cultural de África, no intuito de estabelecer redes que possam nos fortalecer ante a hegemonia do Norte global.

 

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 01/04/2024.

Aceito em 06/06/2024.



[1] Mestra em Manejo e Conservação de Recursos Naturais. Técnica em Assuntos Educacionais Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC). Brasil. E-mail: aleoriente5@gmail.com | https://orcid.org/0009-0000-3614-7037

[2] Doutora em Serviço Social. Assistente Social. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC). Brasil. E-mail: patricia.moraes@ifsc.edu.br | https://orcid.org/0000-0003-1821-7411

[3] O artigo foi produzido a partir da disciplina “Tópicos Especiais em Assuntos Interdisciplinares - Feminismos Africanos: conectando saberes e ações transnacionais”, ministrada pelas professoras Dra. Vera Gasparetto e Dra. Miriam Pillar Grossi, no programa de doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, no primeiro semestre de 2023.

[4] De acordo com Pereira (2015, p. 10), Cabo Verde era um arquipélago deserto, constituído por dez ilhas, das quais apenas nove foram povoadas, embora em épocas diferentes. Ao sul, em Sotavento, temos as ilhas de Maio, Santiago, Fogo e Brava. Mais ao norte, são as ilhas de Barlavento: Boa Vista, Sal, São Nicolau, Santa Luzia (deserta), São Vicente e Santo Antão. Primeiro, deu-se o povoamento de Santiago (a ilha maior, onde atualmente está sediada a capital, cidade da Praia); logo em seguida, do Fogo, e depois, da Brava. Santo Antão e São Nicolau, em Barlavento, foram povoadas com gente vinda de Santiago e do Fogo, no século XVII, ao passo que só houve um verdadeiro povoamento de São Vicente a partir dos finais do século XVIII. Essas diferenças temporais, dentre outras coisas, resultaram em diferenças culturais e linguísticas entre as ilhas de Barlavento, com maior proximidade com a cultura europeia, e as de Sotavento, que têm mais proximidade com a cultura africana (alta Guiné). A respeito da língua, há variantes que podem ser agrupadas em duas variedades: ao sul, os crioulos do Sotavento (Brava, Fogo, Santiago e Maio), com marcas mais vincadas das línguas africanas (o Mandinga, o Wolof e o Timené), e ao norte, os crioulos do Barlavento (Boa Vista, Sal, São Nicolau, São Vicente e Santo Antão), mais influenciados pelo português.

[5] A UFSC hoje conta com a Política de Enfrentamento ao Racismo Institucional, aprovada como RESOLUÇÃO NORMATIVA Nº 175/2022/CUn, de 29 de novembro de 2022, a qual dispõe sobre a Política de Enfrentamento ao Racismo Institucional em suas diferentes formas de manifestação no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2022).

[6] Carmelita relata que teve que ir quase um semestre à aula com outra professora para fazer a recuperação da nota que o professor não queria que ela fizesse. A professora da recuperação afirmava que precisava saber se iria avaliar Carmelita, afinal, ela havia frequentado a aula desde o primeiro dia e feito todos os trabalhos. A contenda foi parar na Pró-Reitoria, a qual destacou que precisava de um parecer do Colegiado do curso, para onde então se encaminhou a discussão. Ao final, o professor aceitou que Carmelita fizesse uma nova avaliação. Entretanto, a nota foi a mesma da primeira.        

[7] Para a pesquisadora Cida Bento (2021), o branqueamento no Brasil foi uma iniciativa da elite branca brasileira, que consiste em considerar o seu grupo como o padrão de referência para toda uma espécie, fazendo apropriações simbólicas que favorecem a autoestima e o autoconceito do grupo branco, em detrimento dos demais, legitimando assim sua supremacia econômica, política e social. Esse projeto de branqueamento da população contou com políticas de incentivo à vinda de imigrantes europeus, ao final do século XIX e início do século XX, promovidas pelo Estado brasileiro com vistas a promover a mestiçagem e branquear o país, elevando-o assim ao nível de “civilizado”. Kabengele Munanga (2020) explica que no Brasil se desenvolveu um modelo racista universalista, no qual predominava a negação absoluta da diferença, sugerindo que essa homogeneidade seria alcançada através da miscigenação e assimilação cultural. Por isso a mestiçagem é entendida por ele como “uma etapa transitória no processo de branqueamento na ideologia racial brasileira” (Munanga, 2020, p. 133).