Podcast como ferramenta para o ensino de História da África

The podcast as a tool for teaching the History of Africa

                                                Igor Santos Carneiro[1]

Tatiana Raquel Reis Silva[2]

 


Resumo

O presente trabalho busca discorrer sobre o ensino de História da África, a partir de Cabo Verde, e a utilização do podcast como ferramenta na sala de aula. Nota-se que muitos docentes possuem dificuldade ao abordar tais temas, seja pela falta de formação adequada na área ou pelos impasses e resistência presentes nas instituições escolares. De modo que apresentamos um breve panorama da situação dos estudos históricos africanos e sua ligação com o ensino de história da África a nível geral e, posteriormente, afunilamos para o contexto brasileiro. Além disso, incluímos a exposição do produto educacional, sendo ele o podcast apresentado como produto para o programa de mestrado profissional em Ensino de História da Universidade Estadual do Maranhão.

Palavras-chave: História da África; Cabo Verde; Podcast; Ensino.

Abstract

This paper aims to discuss the teaching of African history and the use of podcasts as a tool in the classroom. It is clear that many teachers find it difficult to address these issues, either because they lack adequate training in the area or because of the impasses and resistance present in school institutions. So we present a brief overview of the state of African historical studies and its connection with the teaching of African history in general, and then we move on to the Brazilian context. In addition, we include an exposition of the educational product, the podcast presented as a product for the professional master's degree program in History Teaching at the State University of Maranhão.

Keywords: History of Africa; Cape Verde; Podcast; Teaching.


 

 

Introdução

Os conteúdos e temas relacionados à História do continente africano muitas vezes são trabalhados de forma indevida no ensino básico, seja pelo despreparo de muitos docentes ou simplesmente pelo desinteresse dos profissionais e estudantes pelos conhecimentos sobre os países africanos. Em alguns casos, as pessoas tendem a generalizar os povos e as culturas presentes em África, concebendo o continente como um bloco homogêneo. Justamente por isso os africanistas se esforçam para produzir e divulgar conhecimentos no tocante às diversas nações que compõem a África.

A partir disso, nosso esforço no presente trabalho é discorrer sobre o ensino de História da África a partir de Cabo Verde. Este pequeno país insular consistiu em um importante território colonial lusitano entre 1460 e 1975 e possui relações históricas com o Brasil que são pouco conhecidas por nós brasileiros. Historicamente os países estiveram ligados não somente pelo colonialismo português, mas estavam relacionados em torno das produções literárias comuns ao século XX. Os intelectuais dos dois territórios estavam preocupados em formular uma identidade própria para seus conterrâneos.

A partir do pressuposto de que o senso comum de muitos estudantes reserva aos africanos um local de subalternidade e animalidade, é relevante a existência de pesquisas que procurem trazer à tona a importância desses países e suas conexões com outros territórios, incluindo o Brasil. De modo que o continente africano não seja visto como estático e distante de nós. Quando na verdade a nação brasileira possui vínculos históricos com diversas etnias de África e mesmo assim ainda figura entre os países mais racistas e desiguais do globo.

Acreditamos que o ensino de história da África tem muito a contribuir no enfrentamento dos problemas sociais ligados ao racismo. Uma vez que os afro-brasileiros sofrem com o estigma construído em torno dos africanos e neste projeto de estigmatização a História enquanto ciência, consolidada no século XIX, teve um papel importante. Sendo necessário construir discursos outros no tocante a África, narrativas que possibilitem uma abordagem positiva pautada na pluralidade dos modos de vida. A partir disso, é importante refletirmos sobre como devemos levar esses conhecimentos aos níveis mais elementares na educação, ou seja, ao ensino fundamental e médio, com o objetivo de colaborar com a formação de memórias mais profícuas sobre África, seus povos e países na mente dos jovens brasileiros. 

Devido a essa nossa preocupação, abordamos o debate sobre as novas tecnologias no ensino de História, tendo como ferramenta proposta o podcast. A partir de nossa experiência na elaboração de um produto educacional dedicado a história de Cabo Verde que faz parte do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão. Buscamos, assim, contribuir de alguma forma com o trabalho coletivo que vem sendo construído por diversos pesquisadores/as do continente africano preocupados também com o ensino de História da África.

 

Ensino de História do continente africano

Sabemos que durante a consolidação da História enquanto ciência no século XIX os africanos foram relegados a coadjuvantes. Isto porque a História era concebida do ponto de vista do branco e europeu. Os estudos iniciais sobre o continente africano foram construídos em torno de estereótipos, preconceitos e, principalmente, em comparação às civilizações ocidentais. Sendo assim, o discurso elaborado em torno de África era de oposição a Europa, ou seja, o que é ocidental era considerado civilizado e o que era africano algo inferior:

O resultado foi que, baseando-se no que era considerado uma herança greco-romana única, os intelectuais europeus convenceram-se de que os objetivos, os conhecimentos, o poder e a riqueza de sua sociedade eram tão preponderantes que a civilização europeia deveria prevalecer sobre todas as demais. Consequentemente, sua história constituía a chave de todo conhecimento, e a história das outras sociedades não tinha nenhuma importância. Esta atitude era adotada sobretudo em relação à África (Fage, 2010, p. 65).

 

O resultado disso foi que a ciência histórica ficou restrita às narrativas em valorização dos povos europeus e euro-americanos. A história do ocidente passou a ser vista de forma universal em detrimento das “específicas” formas de vida dos povos indígenas, africanos e asiáticos. As populações que não se enquadram aos moldes eurocentrados foram desconsideradas durante todo o processo de consolidação da História enquanto campo científico:

As coisas ficaram ainda mais difíceis para o estudo da história da África após o aparecimento, nessa época e em particular na Alemanha, de uma nova concepção sobre o trabalho do historiador, que passava a ser encarado mais como uma atividade científica fundada sobre a análise rigorosa de fontes originais do que como uma atividade ligada à literatura ou à filosofia. É evidente que, para a história da Europa, essas fontes eram sobretudo fontes escritas (Fage, 2010, p. 67).

 

 De fato, os intelectuais europeus fundamentaram a ciência histórica como algo pouco maleável envolto nas fontes ditas oficiais e, sobretudo, escritas. Algo que facilmente era encontrado no seu próprio continente. Isso garantia a demasiada valorização dos rastros históricos deixados pelos povos na Europa ao tempo em que dificultava qualquer pesquisa que pretendesse investigar os povos africanos. Obviamente, em África há registros escritos, porém algumas sociedades preservam suas fontes de outras maneiras, como por exemplo por meio da oralidade.

Durante o século XX diversos intelectuais africanos buscaram produzir um outro discurso em torno dos seus territórios. E a partir desse esforço coletivo o campo de estudos foi sendo alterado de forma significativa. Este movimento ainda continua, mas não se trata de gerar uma narrativa revanche contra os ocidentais. A intenção é utilizar a ciência como uma forma de gerar uma nova consciência em torno da história dos povos africanos (Ki-Zerbo, 2010).

De modo que a História enquanto ciência e também disciplina escolar, possui um papel relevante na formação das memórias e das identidades constituindo assim um campo estratégico de luta e desconstrução de estereótipos e preconceitos. Como efetivamente pontua Joseph Ki-Zerbo a respeito da análise do continente africano à luz da História: “A primeira tarefa de análise global do continente africano é histórica. A menos que optássemos pela inconsciência e pela alienação, não poderíamos viver sem memória ou com a memória do outro. Ora, a história é a memória dos povos” (Ki-Zerbo, 2010, p. 32).

Porém, apenas o reconhecimento da relevância do campo histórico para os estudos africanos não é suficiente para firmar o compromisso com uma narrativa honesta sobre os povos africanos. Estudar África é tomar cuidado para não tornar o continente tão singular, mas também não tentar alinhá-lo por demais aos espaços ocidentais. A razão que deve nortear o pesquisador deve ser sempre aberta a trabalhar com diversas realidades (Ki-Zerbo, 2010).

No Brasil, a História enquanto pesquisa e disciplina seguiu um percurso parecido, sendo inicialmente ligada à formulação da identidade nacional do país e, portanto, representava positivamente elites brancas e mártires em desvalorização dos africanos e afro-brasileiros. O século XIX foi marcado pelo fortalecimento de uma narrativa eurocêntrica e tentativas de embranquecimento da população brasileira que foram colocadas em prática até a primeira metade do século XX.

O currículo escolar privilegiava a narrativa histórica da cronologia política centrada em um tempo fixo, uniforme, imutável e regular. Sendo assim, não havia espaço para mudanças, rupturas ou descontinuidades. O Estado era considerado o centro de todo o processo histórico e somente eram valorizados aqueles sujeitos diretamente a ele ligados. Com o avançar do século XX, o Estado passou a se preocupar ainda mais com a formação dos cidadãos que se encaixassem ao sistema social e econômico, além de formar adoradores da Nação a ideia era também possibilitar pessoas aptas ao capitalismo, ou seja, após a abolição da escravidão no século XIX, paulatinamente, a massa de trabalhadores livres foi crescendo e isso significou maior investimento no ensino como meio de inculcar os valores que prezassem pela manutenção da ordem social e, acima de tudo, legitimar os poderes políticos e consequentemente a classe dominadora. A partir daí o conceito de cidadania ganha mais força e é constantemente atrelado ao ensino de História e o intuito era posicionar cada sujeito no seu devido lugar na história e na construção do país (Nadai, 1993; Fonseca, 2006; Bittencourt, 2008).

O ensino de História, durante a primeira metade do século XX, ainda se preocupava com o discurso dos grandes feitos em benefício à coletividade nacional. A História deveria legitimar aqueles sujeitos que prestaram um serviço visando o bem do povo brasileiro. Há o exemplo da sacralização de Tiradentes e da inconfidência mineira, quando na década de 1930 são repatriadas suas cinzas ao Brasil e houve a criação do museu da Inconfidência em Minas Gerais. A História acabou por inventar tradições responsáveis por homogeneizar a identidade brasileira com o objetivo de fomentar o patriotismo, de modo que o ensino de História deveria garantir o compartilhamento delas à população (Fonseca, 2006; Bittencourt, 2008).

A partir da segunda metade do século XX os movimentos sociais ganharam muita força e fizeram pressão para o surgimento de leis e políticas que diminuíssem o grau de desigualdade social. Os ativistas negros rapidamente perceberam que o sistema educacional e o ensino de história eram áreas cruciais em que deveriam atuar o mais rápido possível, visto que isso teria um impacto significativo nos problemas ligados ao racismo presente na sociedade brasileira.

A partir do golpe militar de 1964, o ensino de história se voltou para a sustentação dos governos militares e, portanto, pautava-se na ideia de segurança nacional e desenvolvimento do país. O estudante deveria receber o conteúdo histórico acriticamente como um dado factual. Durante o período de ditadura militar, a partir da isenção de impostos sobre a produção de livros didáticos, estas ferramentas foram amplamente produzidas e inseridas nas instituições escolares, garantindo assim a difusão da narrativa proposta pelo governo ditatorial (Mathias, 2011).

Nas décadas de 1970, mas principalmente 1980 com o enfraquecimento da ditadura militar, surgiram possibilidades outras de se pensar a história da nação e isso gerou novas demandas ao ensino de História que agora deveria refletir propostas teóricas e metodológicas mais democráticas visando a construção de um país pautado na democracia. O ensino de História passa a se preocupar em formar cidadãos capazes de intervir na sociedade, voltando-se assim para a discussão dos problemas que a sociedade brasileira precisava enfrentar. O estudante agora não era concebido como uma mente vazia a ser preenchida, mas passou a ser visto como um sujeito participante da história.

Então passaram a pressionar para que a população afro-brasileira tivesse direito ao acesso à educação e depois que os conteúdos em torno de África fossem inseridos nas matrizes curriculares. Tudo isso aconteceu de forma mais acelerada após os anos de ditadura militar, mas é fruto de uma luta histórica de intelectuais e ativistas negros situados em décadas anteriores.

Esse movimento foi acompanhado pelo avanço dos/as professores/as que adentraram nas universidades decididos/as a contribuir com a produção de pesquisa em torno do continente africano e em seus impactos nas instituições de ensino básico. Diversos intelectuais ligados aos movimentos sociais buscaram formação e adentraram em instituições de ensino superior atuando como docentes. Há também o caso de outros profissionais que desenvolveram uma grande atração pela investigação histórica em torno de África após um longo processo de formação focado em outras áreas. O que todos esses sujeitos possuem em comum é a preocupação com a elaboração e divulgação de conhecimentos de qualidade sobre o continente africano na educação em níveis mais básicos como ensino fundamental e médio:

Olhando para minha própria experiência, entendo que o mais importante para avançarmos de forma adequada no sentido de produzir e transmitir um conhecimento de qualidade é trazermos para primeiro plano a necessidade de estudo e pesquisa. Sem eles, não há como alcançar e transmitir conhecimentos de qualidade. Se esses requisitos são mais fáceis de alcançar quando estamos inseridos no meio universitário (e mesmo nele, nem sempre), eles devem ser estendidos para todos os níveis da educação, pois sem formação adequada e tempo para estudo permanente fica difícil ser um professor dinâmico, atualizado, com capacidade não só de transmitir informações corretas como de captar a atenção dos alunos, num mundo cada vez mais cheio de estímulos interessantes e absorventes (Souza, 2012, p. 19).

 

Apesar desse interesse de muitos docentes situados em instituições básicas, ainda há muita resistência por parte de professores, gestores e pais. Seja pela falta de experiência de alguns ou por preconceitos que acabam dificultando a organização de atividades e projetos pautados na história dos africanos e afro-brasileiros:

Quando nos voltamos para os segmentos menos favorecidos, que frequentam as escolas públicas, nas quais as condições de trabalho são na maior parte das vezes bastante precárias, há uma variável importante que, conforme vários relatos, tem prejudicado a implantação do estudo de temas africanos e afro-brasileiros. Ela diz respeito à resistência, e mesmo oposição aberta, dos adeptos de religiões evangélicas quanto ao ensino de cultura afro-brasileira (Souza, 2012, p. 20).

Uma vez que os professores pouco sabem acerca das sociedades africanas, seus sistemas de pensamento e os processos históricos por elas vividos, têm dificuldade em abordar temas carregados de preconceitos de forma a derrubá-los, ao tratar os fenômenos das culturas afro-brasileiras com base nas lógicas de suas matrizes africanas e dos processos que lhes deram origem. Minha posição é de que somente conhecendo bem as sociedades africanas, suas histórias e os processos que nos ligam a elas, assim como desvendando as noções por trás da construção histórica e ideológica dos preconceitos contra o africano e o negro, teremos condições de analisar com consistência as manifestações afro-brasileiras e o lugar que os africanos e seus descendentes ocuparam no passado e ocupam no presente, no contexto da sociedade brasileira como um todo (Souza, 2012, p. 22).

 

Infelizmente o fundamentalismo religioso tem crescido no Brasil e isso acaba dificultando que diversas temáticas sejam trabalhadas nas instituições escolares. Alguns pais evangélicos concebem os estudos africanos como um problema que ataca sua fé cristã e com potencial perigo de “desviar” seus filhos da única fé que consideram verdadeira. A intolerância religiosa se une ao credo da inferioridade dos povos africanos:

Outro princípio fundamental do qual devemos partir diz respeito aos preconceitos associados aos povos africanos e suas sociedades. Quando o conhecimento sobre o continente começou a se aprofundar, predominavam as ideias de hierarquia entre as raças, baseada em diferenças biológicas, e de hierarquia entre as sociedades, fundada em níveis de evolução. Nesse contexto a África era vista como um continente atrasado, primitivo, habitado por populações em estágios inferiores da evolução humana (Souza, 2012, p. 23).

 

Esses problemas são comuns no cotidiano de qualquer docente que se proponha a trabalhar os conteúdos da História da África com qualidade. Devido a isso alguns desanimam ou nem sequer tentam por medo dos problemas que podem surgir. A situação é mais delicada no caso dos professores que atuam na rede privada, pois a limitação e pressão é maior e estes podem facilmente perder seus cargos.   

 

Cabo Verde: história, cultura e a relação com o Brasil

A república de Cabo Verde é um arquipélago composto por dez ilhas situadas no oceano Atlântico e na parte ocidental do continente africano. Esta Nação foi colonizada por Portugal a partir do ano de 1460 e só conquistou sua independência em 1975. Ao longo dos séculos de colonialismo a sociedade cabo-verdiana foi descrita como mestiça devido ao fato da história oficial descrever as ilhas como espaços desabitados quando os portugueses ali chegaram. Sendo assim, a partir do contato de europeus e africanos advindos da costa atlântica de África teria se formado um povo miscigenado.

Cabo Verde se tornou inicialmente um território crucial para a empreitada colonial lusa no mundo moderno. Visto que se tornou um entreposto comercial entre os continentes europeu, africano e americano, possibilitando o trânsito de pessoas e mercadorias diversas. Apesar disso, o arquipélago sofreu com problemas climáticos causados pela influência do deserto do Saara que contribuiu para longos períodos de secas que provocaram a morte de diversos cabo-verdianos. O clima difícil impossibilitava a colonização voltada para o plantio extenso de gêneros alimentícios como foi visto no Brasil e em outros espaços de colonialismo lusitano.

Durante os séculos XIX e XX, Cabo Verde passou por um severo empobrecimento e a metrópole pouco fazia para melhorar a situação. Além disso, a segunda metade do século XX marca uma drástica alteração da opinião mundial a respeito do colonialismo europeu. Os horrores da 2º Guerra Mundial fizeram com que as pessoas se tornassem mais críticas com as empreitadas coloniais em África e Ásia. Potências como França e Inglaterra passaram a tentar mediar os processos de independências das colônias, mas Portugal se mantinha firme na manutenção do sistema colonial.

O caso específico de Portugal é marcado pela ditadura do Estado Novo, o salazarismo. Esse regime aparece no contexto de nazi-fascismo europeu, a partir de um golpe de estado em 1926. Em 1933, Oliveira Salazar assumiu como chefe de Estado e empreendeu uma política ditatorial e nacionalista de controle dos territórios coloniais.

Salazar decidiu que para dar continuidade ao colonialismo precisava argumentar que Portugal era uma Nação diferente das demais potências colonizadoras. Portanto, a partir da teoria luso-tropicalista[3] do brasileiro Gilberto Freyre, o governo argumentou que o colonialismo lusitano era benéfico e visava paternalmente proteger e desenvolver Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau.

A partir dos anos 1940 e 1950, Cabo Verde assume uma posição “privilegiada” na narrativa portuguesa. Pois o argumento histórico da miscigenação cabo-verdiana passa a servir como prova dos supostos benefícios da colonização. De modo que sempre que o império recebia uma crítica, advinda da Organização das Nações Unidas ou qualquer outra entidade, a resposta era que as colônias eram parte indissociável de Portugal, ou seja, suas províncias. Na prática isso não alterava o drama dos povos colonizados, estes eram explorados e subjugados em seus próprios territórios.

Em Cabo Verde a resistência se dava principalmente pela dimensão cultural, seja pelas manifestações como a tabanca[4] ou pelas produções literárias de denúncia (Moniz, 2009). Não havia muito espaço para um movimento de luta armada naquele momento devido à pressão da ditadura. Os cabo-verdianos viviam um dilema, a intelectualidade do território muitas vezes comprava o discurso de que Cabo Verde era parte de Portugal, porém ao mesmo tempo não conseguiam ver como isso os beneficiava.

O desconforto se tornou ainda mais expressivo a partir da criação da revista Claridade, em 1936. Com nove edições (1936-1966) compostas por poemas, músicas, ensaios etc, que denunciavam o contexto difícil das ilhas, perpassando por temáticas como a fome, a pobreza, a ditadura e a censura. Ao longo das décadas surgiram outros intelectuais ainda mais inconformados com a realidade colonial culminando com a luta por independência em simbiose com Guiné-Bissau, estes sujeitos representam a geração nacionalista, que teve o revolucionário Amílcar Cabral como o maior expoente. Cabral nasceu em Bafatá, Guiné-Bissau, seu pai era professor e chegou a trabalhar em Cabo Verde, território em que a família chegou a residir. A partir desse contato, Amílcar demonstrou preocupação com a situação deplorável causada pelo colonialismo e buscou estudar agronomia, pois considerou essa área de estudos estratégica para o futuro dos territórios colonizados por Portugal, devido a fome ser um dos principais problemas enfrentados pela população (Villen, 2013). Nas décadas de 1950-70, Cabral foi um dos responsáveis pela luta anti-colonial.

No que se refere ao estabelecimento de instituições de ensino em Cabo Verde, podemos pontuar que inicialmente, a partir do século XVI, a educação ficava sob responsabilidade da igreja católica que enviava sacerdotes para ensinar os africanos sobre o catolicismo e o idioma português. A ideia principal era desconectar ao máximo os nativos das línguas e religiosidades africanas, ao mesmo tempo em que possibilitava um maior diálogo entre colonizadores e colonizados (Moniz, 2009).

O ensino de base católica ressaltava a missão colonizadora de “salvar” os africanos. Os monarcas eram entendidos como administradores da ordem cristã e deveriam prezar pela evangelização das pessoas em África e na Ásia. Em contrapartida, com o passar dos séculos, o império luso ficou muito aquém das demais potências colonizadoras. No século XVIII já possuía dificuldades de investir em educação até mesmo na própria metrópole (Moniz, 2009).

O século XIX foi marcado por alguns investimentos no arquipélago, como a criação da Escola Primária na cidade da Praia, em 1845. Houve a criação do Decreto de 14 de Agosto de 1835 que oficializou tanto o ensino primário nas Províncias do Ultramar como também reforçou a responsabilidade do Estado em ofertar, ou seja, ensino público. Mas Portugal não pagava corretamente os docentes, portanto, a Escola acabou fechando as portas (Moniz, 2009).

A primeira Instituição de ensino laico e religioso foi criada em 1866, foi o Seminário de São Nicolau. O ensino proporcionado por esse Seminário era muito similar à educação ofertada na metrópole portuguesa (Moniz, 2009). Havia dois troncos principais de formação, sendo eles Estudos Preparatórios e Estudos Eclesiásticos, a matriz curricular deles estava organizada da seguinte forma:

Nos Estudos Preparatórios, os alunos cursavam as seguintes disciplinas: Literatura Clássica, estudo das Línguas, Filosofia Racional, Direito, Economia Política, Moral, Princípios de Direito Natural, Retórica, Geografia, Cronologia e História, Ciências Físico-Químicas e Matemática. Nos estudos Eclesiásticos, com a duração de três anos, os alunos cursavam: Histórias sagrada, História eclesiástica, Teologia Sacramental, Teologia Dogmática, Direito Canónico, Direito Eclesiásticos, Português, Música e Canto Eclesiástico (Moniz, 2009, p. 220).

 

Notamos que o ensino de História está de acordo com a época no sentido de que a história é concebida como apenas cronologia de fatos e, no caso dos ramos de formação eclesiástica, o estudo se volta para a história da igreja, do dogma, e das escrituras sagradas. Portanto, o ensino de História repassado para os cabo-verdianos era marcado pelo colonialismo e obviamente por uma visão eurocentrada. Muitos quadros da administração foram formados nessa instituição, alguns inclusive tiveram papel importante na formulação da cabo-verdianidade.

A ideia de identidade cabo-verdiana, isto é, a caboverdianidade, teve como um dos seus principais idealizadores, os intelectuais ligados à revista literária Claridade[5] (1936-66). Sendo seus fundadores Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa, eles nunca negaram a influência dos escritores brasileiros tais como Gilberto Freyre, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Manuel Bandeira etc.

Tenhamos em conta isso. Os livros da nação brasileira alargaram-se de mão em mão no momento em que os jovens intelectuais cabo-verdianos descobriram a urgência de rigorosa objetividade socioliterária. E enquanto recebiam o sopro da consciencialização política alastrando pelo mundo em luta contra as oligarquias que a golpes de força assaltavam o poder, por intermédio de aventureiros políticos [...] esses jovens intentaram libertar-se dos processos estereotipados das gerações precedentes [...] (Ferreira, 1973, p. 255).

 

De fato, o Brasil vivenciou transformações políticas e sociais importantes a partir da década de 1930. Apesar da ascensão de Getúlio Vargas à presidência da república, a situação do país continuava difícil. O Nordeste, recorte geográfico criado a partir da década de 1910 e reforçado entre os anos 1920-30 pelo trabalho dos estudiosos da cultura popular, que já vinham de um processo de decadência econômica desde o século XIX, estava relativamente abandonado durante o século XX, e isso permitiu que uma literatura regional preocupada em expor o drama das pessoas, causado pelas secas e pelos mandos e desmandos das velhas oligarquias, fosse colocada em prática. Dessa forma, a região Nordeste emerge tendo como características principais:

[...] a sua natureza, marcada pela ocorrência das secas periódicas e pela rústicidade da formação de caatinga, pela paisagem sertaneja, árida e rústica; e a sua cultura diferenciada, em relação a outras áreas do país, cultura que teria preservado sua autenticidade, que representaria as próprias raízes da cultura brasileira, por não ter sofrido os influxos deletérios da imigração estrangeira. Uma cultura que seria a expressão das nossas raízes ibéricas e da mestiçagem cultural entre as contribuições das três raças formadoras de nossa nacionalidade. Cultura que teria sua melhor expressão nas matérias e formas de expressão populares, nas manifestações culturais das populações rurais ou sertanejas, nos rituais, lendas, contos, poesias, danças, manifestações religiosas, festas, tradições, superstições, na literatura oral, presentes num passado que estaria ficando para trás, na sociedade patriarcal que vinha desaparecendo sob o impacto da modernidade, da sociedade urbana, impacto, do mundo da técnica e do dinheiro da sociedade burguesa e da economia capitalista (Albuquerque Júnior, 2013, p. 39).  

 

Como visto na citação acima, a região Nordeste surge como um espaço em risco, um território que deve ser preservado. A partir disso o regionalismo aparenta ser um movimento conservador que deseja que a “cultura” de um “povo” não sofra mudanças. É importante frisar que dentre essas características citadas acima, muitas pertencentes a estados específicos, serão generalizadas para toda uma região. Movimento parecido com o que vemos em Cabo Verde, pois os intelectuais elegeram as características da ilha de São Vicente como centrais para a identidade de território.

Na década de 1930 alguns setores da classe média brasileira desejavam mais atuação política, maior investimento em modernização industrial e na formação de cidadãos conscientes, viabilizada por maiores preocupações com respeito ao sistema educativo, pretendiam também eleições democráticas e ampla liberdade de expressão (Fausto, 2013). Ainda assim, Getúlio Vargas centralizou o poder em torno do executivo e não houve grandes alterações no sistema político até 1937. Daí em diante, com o Estado Novo brasileiro, Vargas estabeleceu um regime político problemático composto pela censura, tortura e perseguições. Entretanto, “a oposição, silenciada nos primeiros anos do Estado Novo, concentrou-se nos setores letrados da classe média urbana” (Fausto, 2013, p. 102).

A literatura realista regionalista se tornou uma das formas de denúncia e resistência, trazendo à tona a situação das pessoas que viviam na parte mais empobrecida do país. De modo que não se defendia mais o intelectual isolado, desligado da realidade, nem se aceitava a prática da arte pela arte. O momento exigia uma literatura e arte social que servissem como instrumentos de ações partidárias e que defendessem reformas políticas que pareciam a todos urgentes e necessárias. Essa tendência se evidenciaria de forma mais nítida dos anos 1930 em diante (Costa, 1999).

Em Cabo Verde havia problemas parecidos, o arquipélago era território colonial de Portugal desde 1460, devido ao processo de colonização diferenciado dos demais territórios africanos, os cabo-verdianos eram considerados cidadãos lusos, e, portanto, durante o século XX, uma classe média letrada passou a reivindicar melhorias sociais para o espaço. Apesar disso, o clima no império português era péssimo, devido à instalação da ditadura fascista de Salazar, o Estado Novo Português (1933-74).

Entretanto, a literatura cabo-verdiana do período dos anos 1930-40 não objetivava criticar a ordem colonial. Mas os claridosos, por exemplo, clamavam pela melhoria social do arquipélago, eles queriam oportunidades sociais, melhoria econômica e desenvolvimento. O que desejamos ressaltar é que havia diferenças entre os projetos regionalistas, tanto a nível de Brasil, como em comparação entre nós brasileiros e os cabo-verdianos. Mas se tem algo que ambos os projetos possuem em comum, é que os intelectuais do regionalismo literário teriam feito um esforço exaustivo de levantamento das características da natureza, da história econômica e social da área. Eles procuraram elaborar uma memória cultural que pudesse solidificar a imagem da região (Albuquerque Júnior, 2011).

De modo geral, a literatura regionalista procura pincelar a região Nordeste como o elo frágil do capitalismo no Brasil. Se São Paulo, Rio de Janeiro e o Sul significavam as maravilhas capitalistas, o Nordeste aparece como a região precária do país (Albuquerque Júnior, 2011). A literatura procurou mostrar um Brasil arcaico, uma possível essência brasileira. Enquanto o Sul/Sudeste eram descritas como regiões repletas de estrangeirismos e com uma população europeia.

Já os intelectuais cabo-verdianos, ao invés de rejeitar a ordem burguesa e preocupados também em expor as mazelas sociais do espaço, procuraram denunciar o Estado colonial por não desenvolver as ilhas. É importante frisar que o século XX foi dramático no arquipélago, pois muitas pessoas foram vitimadas pela seca que causava a fome generalizada dos habitantes, mas penalizava principalmente os grupos sociais mais empobrecidos:

À semelhança das décadas anteriores, durante a primeira metade do século XX, Cabo Verde foi duramente devastada pela seca, saldando-se na morte de milhares de pessoas por causa da fome. Neste período, ao contrário das décadas anteriores, outros destinos de emigração além dos EUA, para países europeus como Portugal, Holanda, França e para outros países africanos como Angola e Senegal. São Tomé e Príncipe também se destacou como destino de emigração, mas as pessoas foram levadas enquanto trabalhadores contratados para as roças agrícolas (Carvalho, 2019, p. 252).

 

Devido a esses problemas, ficou visível que Cabo Verde era um território de carência constante. Aliás, apesar de ser considerado uma extensão de Portugal e sua população ser considerada civilizada e cidadã, os intelectuais não notavam na prática os benefícios de tais afirmações. Por isso eles passaram a cobrar uma postura desenvolvimentista do império lusitano, ou seja, clamavam por um regime político que prezasse pela melhoria social das ilhas:

[...] esboça-se um cabo-verdianismo que encerra uma crítica à potência colonizadora, por sua incapacidade em tentar livrar o país do atraso e da decadência, colocando-o na trilha do progresso econômico, por meio da criação de condições capazes de emparelhá-lo com as nações européias. Nesse momento, a perspectiva economicista prevalece em relação às ideias de autonomia política. Prepondera uma posição que, longe de propor uma ruptura com o instituído, reafirma os mecanismos estruturais que objetivam o ajustamento do sistema. Transparecem, dessa forma, anseios de mudança contidos na proposta de uma solução portuguesa para administrar o arquipélago (Hernandez, 2002, p. 120).

 

A elite cabo-verdiana possuía um projeto de manutenção do colonialismo, mas com viés de modernização da estrutura econômica. Durante muito tempo as produções farão críticas tímidas ao colonialismo, focando somente na crise, nas secas e na pobreza. Entre os anos de 1950 e 1960, é que os intelectuais deixam de considerar esses males como os únicos problemas e passam a um clima de maior criticidade. Porém, o movimento claridade se encontrava em estreita ligação com o pensamento de sua época (Hernandez, 2002).

 

Por que estudar a história de Cabo Verde?

Historicamente os conteúdos sobre África foram ignorados e tratados como conhecimentos inúteis ao aprendizado do povo brasileiro. Prova disso é que durante muito tempo na história das Universidades brasileiras, os cursos de História nem sequer contavam com disciplinas específicas para a História da África. E mesmo que hoje diversas instituições já tenham sido obrigadas a se atualizar, ainda há uma proeminência de disciplinas sobre a Europa.

Além disso, nossos referenciais teóricos majoritariamente são eurocentrados, pois muitos de nós temos dificuldade de conceber os povos africanos como produtores de conhecimentos. Por isso, além de estudarmos suas histórias e culturas, podemos também buscar referenciais e teóricos africanos como centros irradiadores de saber. O reflexo dos séculos de desinteresse de nossa sociedade pela história da África pode ser notado no ensino básico, onde diversos docentes se encontram despreparados para trabalhar temáticas sobre o continente.

A contradição aparece a partir do momento em que tomamos noção de que o Brasil recebeu milhões de africanos que deram surgimento aos afro-brasileiros que formam o país atual. Entretanto, os problemas com o racismo são rotineiros e formam uma barreira social que deve ser enfrentada de diversas formas, sendo o ensino de História da África na educação básica um dos elementos cruciais para a mudança, a médio e longo prazo, acerca da concepção negativa em torno dos africanos e afro-brasileiros fortemente presente na consciência dos brasileiros.

O Brasil, país com grande quantidade de pessoas negras, não pode continuar a se referenciar apenas no perfil europeu. Estudar a história da África significa recuperar a autoestima de muitos estudantes que não se sentem representados pelo modelo dos países europeus. A própria identidade nacional do país está em contínua alteração e reconstrução e o ensino de História tem um papel ao contribuir para a constituição de uma identidade afro-brasileira positivada e na construção de outras interpretações e representações dos alunos acerca desses temas (Oliva, 2012; 2009). Além disso, o estudo do continente africano pode contribuir com a desestabilização das ideias estereotipadas em torno dele, sendo uma forma de enfrentar o racismo fortemente presente em nossa sociedade. Afinal o papel do historiador deve ser este, o de ser desestabilizador de ideias naturalizadas (Gandelman, 2003).

Um grande dilema que o/a docente de história pode se deparar ao dar aula, são as generalizações a respeito de África. Isso ocorre quando os estudantes não conseguem refletir sobre a pluralidade do continente e dos países que ali existem, são levados então a entender África como um espaço animalesco, pobre, caricato e exótico. A questão norteadora é como ensinar a história desses povos que foi ignorada na historiografia oficial e substituída pela história de um único continente, camuflando a rica diversidade em nome do monoculturalismo (Munanga, 2015). É justamente por isso que pesquisas que visam abordar a história e a cultura de países específicos contribuem para que esses problemas sejam minimizados. Por isso a importância de se estudar Cabo Verde, mas também Moçambique, Guiné-Bissau, Tanzânia, Nigéria, Madagascar e outros países.

A partir do momento em que o docente consegue explicar que o continente é formado por uma pluralidade de povos, línguas e culturas, os estereótipos podem ser fragilizados e os alunos são levados a conhecer outras realidades, entendendo assim que África definitivamente não é um país. O ensino de história da África pode contribuir com as discussões sobre a heterogeneidade dos espaços, incluindo o próprio Brasil:

Nenhuma sociedade pode se pensar como homogênea ou como possuidora de uma única inscrição cultural/identitária. As diferenças das mais diversas ordens - de origem, gênero, profissão, cor, idioma, idade, região, escolaridade, território, religião - criam sulcos de formatos distintos dentro das sociedades e entre diferentes sociedades (Oliva, 2012, p. 33).

 

Além do mais, Cabo Verde, assim como o Brasil, foi colonizado por Portugal, ambos os países foram simultaneamente territórios lusitanos. Mas a atuação do país colonizador se deu de formas diferentes devido às especificidades de cada espaço. Isso é importante para demonstrarmos aos estudantes as diferentes frentes de atuação do imperialismo e da colonização, os levando a refletir de forma complexa sobre os acontecimentos históricos.

Historicamente os cabo-verdianos surgiram das relações entre povos da costa de África e europeus advindos de Portugal, Inglaterra, Espanha e etc. Portanto, a narrativa oficial os descreve enquanto uma população miscigenada. As ilhas de Cabo Verde, apesar da sua exiguidade territorial, serviram como importantes pontos de comércio marítimo e de portos estratégicos que possibilitaram o processo de desenvolvimento do sistema colonial em outros territórios.

O arquipélago de Cabo Verde exemplifica bem as conexões estabelecidas entre o continente africano e o americano, pois, entre 1460 e 1975 consistiu em uma peça central na constituição de rotas marítimas comerciais e em diálogos culturais e políticos com o Brasil. Inicialmente, Cabo Verde serviu como entreposto comercial português de relevante importância para a empreitada colonial tanto em outros territórios africanos como a Guiné-Bissau, mas também esteve em ligação com determinadas regiões do Brasil por meio de companhias do comércio que comercializavam os mais variados itens e também participavam no tráfico humano de africanos. A partir do século XX as conexões entre o arquipélago e o Brasil se deram a partir da dimensão cultural e política, no período de efervescência do modernismo literário autores dialogavam sobre os problemas sociais de ambos os territórios e produziram obras importantes para repensar a identidade de seus próprios espaços.

Foi durante o século XX que os diversos povos africanos organizaram os movimentos que reivindicavam as independências de seus territórios. No caso específico de Cabo Verde isto aconteceu em simbiose com a Guiné-Bissau e teve como expoente revolucionário Amílcar Cabral. Inicialmente engenheiro agrônomo e funcionário do regime colonial lusitano, filho de pais guineenses com ascendência cabo-verdiana, Cabral não se conformava com a situação difícil causada pelo colonialismo português e defendeu que Guiné e Cabo Verde, devido as suas relações históricas, deveriam lutar juntos pela emancipação. Dessa forma foi fundado, em 1956, O Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que buscou resistir a Portugal e, mais precisamente no ano de 1963, organizou lutas armadas contra o exército luso. Amílcar Cabral tornou-se um dos maiores símbolos da resistência contra a presença dos países europeus em África. Ele foi assassinado no ano de 1973, porém isso não impediu que Cabo Verde e Guiné-Bissau se tornassem independentes no ano de 1975 (Villen, 2013).

De modo que estudar a história de Cabo Verde é aprender sobre a relação desse espaço com outros e entender a dinâmica atlântica presente nessa longa temporalidade que marca o período moderno e contemporâneo. Contribui assim para que os estudantes percebam a dinamicidade presente em África e seu papel na construção do próprio Brasil que conhecemos hoje.    

Talvez dessa forma consigamos romper com o que Anderson Oliva chamou de microesfera das experiências coloniais nas salas de aula. Isso acontece porque, segundo o autor, as instituições escolares ensinam uma memória de história e de pertencimento que ignoram as trajetórias de vida dos discentes. Portanto, a sala de aula se torna uma forma de colonização do imaginário (Oliva, 2012). Sendo assim, alguns conteúdos são cruciais para quebrar com esse círculo vicioso e levar os discentes a conhecer diversas realidades que antes eram ignoradas.

 

O podcast como ferramenta para o ensino de História da África

Aprender sobre o continente africano é algo que alguns de nós já entendemos ser importante e, apesar de muitos não atribuírem importância a isso, felizmente temos mecanismos legais que obrigam a presença dessas temáticas nas instituições, sendo o principal deles a Lei 10.639/03. Porém, acreditamos que não basta apenas acreditar na importância de ensinar sobre África, mas temos que nos preocupar também com os meios, técnicas, referenciais e sobretudo ferramentas que serão utilizados nesse processo de elaboração das aulas.

Sabemos que a formação de muitos docentes no tocante ao continente africano é muito fragilizada. Implica em um quase completo desconhecimento sobre os países que existem ali e/ou em narrativas estereotipadas sobre os povos africanos. De forma conjunta, diversos historiadores africanistas têm produzido pesquisas de qualidade que objetivam sanar essas lacunas na historiografia presente no Brasil. Entretanto, a nossa preocupação é com a chegada disso nas salas de aula.

As instituições de ensino básico contam com estudantes cada vez mais apegados aos seus celulares que os conectam a um mundo de informações sobre todos os mais variados temas. Infelizmente nem sempre os conteúdos feitos na internet são elaborados com rigor científico e com o objetivo de produzir cidadãos críticos. Portanto, ao mesmo tempo que as tecnologias podem ser positivas elas também apresentam sérios perigos, mas é óbvio que o docente dificilmente vai conseguir impedir que discussões pautadas em narrativas criadas na internet cheguem em sua sala de aula. Então talvez seja melhor unir-se às tecnologias aproveitando o que elas possuem de melhor.

As novas tecnologias ampliam o potencial cognitivo do ser humano (seu cérebro/mente) e possibilitam mixagens cognitivas complexas e cooperativas. Uma quantidade imensa de insumos informativos está à disposição nas redes (entre as quais ainda sobressai a Internet). Um grande número de agentes cognitivos humanos pode interligar-se em um mesmo processo de construção de conhecimentos (Assmann, 2000, p. 9).

 

O podcast, por exemplo, tem ganhado muitos adeptos, os jovens consomem semanalmente programas disponibilizados em sistemas de stream privados, mas também no Youtube. Os/as professores/as de história podem ver esse espaço como um território em disputa que deve ser ocupado por eles/as. Poucos são os podcasts preocupados com a História da África. Devido a isso, como proposta de Produto Educacional para o mestrado em Ensino de História da Universidade Estadual do Maranhão propomos a elaboração de um podcast intitulado Pod África[6].

Este produto voltado para os estudantes do 9º ano do ensino fundamental está dividido em episódios curtos para que os docentes possam utilizá-los em sala de aula. O currículo prescrito para este período centraliza a discussão em torno das independências em África. Porém, além de tratarmos desse tema, abordamos também o processo de colonização de Cabo Verde e sua importância para as conexões atlânticas e chegamos a abordar a ditadura do Estado Novo Português presente nos territórios do continente africano colonizados por Portugal, visto que o currículo para o 9º ano também solicita que os regimes totalitários sejam trabalhados.

Portanto inserimos, a partir do podcast, o continente africano no debate em torno dos regimes totalitários na tentativa de sanar o problema comum dos docentes que trabalham apenas o nazismo e o fascismo no continente europeu tangenciando África. Visto que o regime do Estado Novo nasceu ligado ao contexto de nazi-fascismo e impactou diretamente os territórios em África. Os africanos encontraram meios de resistir a tudo isso, o podcast visa abordar como esse processo se deu e no que ele culminou.

Ainda em outro episódio ressaltamos as conexões culturais entre Cabo Verde e Brasil por meio das produções literárias de autores como Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego e os cabo-verdianos Manuel Lopes, Jorge Barbosa e Baltasar Lopes. Os escritores do arquipélago citavam os brasileiros como referência nos processos criativos. Aproveitamos para ressaltar a importância da literatura na resistência contra o colonialismo português que contribuiu para a luta de independência e na estruturação de projetos outros de identidade nacional que se distanciaram da metrópole lusitana.

De modo que o/a docente pode utilizar um ou vários episódios para basear sua aula, exibir aos estudantes, provocar debates ou propor pesquisas que aprofundem mais ainda o que foi ouvido. Da mesma forma, por se tratar de um podcast, ele pode ser utilizado em tarefas de casa sendo ouvido em qualquer local e hora do dia. Os estudantes podem ter uma ferramenta mais atrativa e que esteja mais conectada com sua realidade moderna.

Apesar das amplas abordagens que o podcast pode proporcionar, sabemos que muitos docentes possuem receio de utilizar novas tecnologias em sala de aula. Seja pelo medo de não atingir os seus objetivos como também pela falta de traquejo com tais ferramentas. Entretanto, é possível utilizá-lo como um instrumento em potencial que abre um leque de possibilidades em contexto de sala de aula, desde que o/a professor/a esteja disposto/a a enfrentar os novos desafios (Moura; Carvalho, 2010, p. 89). Uma forma de o professor aproveitar o podcast como ferramenta é utilizá-lo como meio de reflexão crítica sobre os assuntos ali tratados, tendo em mente que os estudantes não são meros usuários, mas como críticos do conteúdo exposto e podem ser levados a pesquisar mais, sob orientação do/a professor/a, e expandir os conhecimentos aprendidos a partir do podcast.  

O que há de novo e inédito com as tecnologias da informação e da comunicação é a parceria cognitiva que elas estão começando a exercer na relação que o aprendente estabelece com elas. Termos como “usuário” já não expressam bem essa relação cooperativa entre ser humano e as máquinas inteligentes. O papel delas já não se limita à simples configuração e formatação, ou, se quiserem, ao enquadramento de conjuntos complexos de informação. Elas participam ativamente do passo da informação para o conhecimento (Assmann, 2000, p. 10).

 

Outro ponto interessante para a utilização do podcast é que como ele é dividido em episódios que podem tratar de temas diversos, os professores e estudantes podem escolher o que querem ouvir e trabalhar em determinada aula ou até mesmo em casa. Isso é uma característica das ferramentas ligadas à internet:

As redes funcionam como estruturas cognitivas interativas pelo fato de terem características hipertextuais e pela interferência possível do conhecimento que outras pessoas construíram ou estão construindo. Com isso, o/a aprendente pode assumir o papel de verdadeiro gestor dos seus processos de aprendizagem (Assmann, 2000, p. 11).

 

Os anos de pandemia da Covid-19 forçaram as instituições escolares a utilizar a internet como meio de minimizar impactos do vírus na situação escolar, visto que o distanciamento social era a principal forma de se proteger da infecção. De modo que os celulares, computadores, tablets etc., se tornaram comuns na rotina educacional de muitos alunos e alunas, mas também no cotidiano dos docentes (Silva, 2021, p. 87). Apesar da importância dessas ferramentas, não defendemos o ensino a distância como forma de substituição ao ensino presencial e não acreditamos que as tecnologias podem suprir o papel do/a professor/a. Entendemos que em um momento emergencial foi necessário recorrer a elas e que isso não significa que não houve um impacto negativo no ensino-aprendizagem de muitos jovens. Impacto este que está sendo sentido agora nas instituições escolares e de ensino superior.

 

Considerações finais

O processo de constituição da História enquanto campo científico foi sustentado por bases eurocêntricas, ou seja, de forma a desconsiderar toda e qualquer forma de pensamento que foge das epistemologias do norte global. Isso significa dizer que o campo de estudos priorizou as narrativas que valorizam a Europa tornando a sua história universal. Enquanto os povos africanos se tornaram subalternos na história do seu próprio continente. Vimos que o século XX foi marcado pelo levante de intelectuais do sul global que inquietos com os discursos homogeneizadores buscaram produzir narrativas outras, sendo estas mais plurais e honestas.

Dentro desse grande continente chamado África abordamos o pequeno arquipélago de Cabo Verde. País colonizado por Portugal que possui ligações históricas com o Brasil desde os tempos remotos dos séculos XVI e XVII, devido ao comércio triangular entre África, Europa e América. Entretanto, centralizamos outro tipo de elo, situado no século XX por meio da literatura regionalista produzida em Cabo Verde e no Brasil. Demonstra assim que estamos mais próximos dos cabo-verdianos do que pensávamos.   

A partir disso, podemos nos perguntar “como levar tais conhecimentos científicos para a sala de aula?”, diante de tantos problemas que aparecem sempre que os/as professores/as tentam ensinar algo sobre África. Além disso, como tornar o ensino de história mais atrativo em um contexto de novas tecnologias? O podcast aparece como umas das muitas ferramentas para chamar atenção dos estudantes e levar conhecimento de qualidade em meio a um território disputado, o mundo da internet. Os/as docentes precisam ocupar este terreno e utilizar o espaço ganho como difusor dos resultados científicos das pesquisas, algo que parece difícil se pensarmos que os profissionais da educação estão sempre com cargas de trabalho exaustivas. Entretanto, o desânimo não pode nos abater, uma vez que devemos lembrar que o esforço advém de uma coletividade preocupada com a resolução dos problemas instituídos durante os séculos de colonização e que perduram até hoje.

 

 

Referências bibliográficas

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VILLEN, Patrícia. Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo. Expressão Popular: São Paulo, 2013.

Recebido em 01/03/2024.

Aceito em 06/06/2024.



[1] Graduado em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão (PPGHIST-UEMA). Assistente do curso de Licenciatura em Educação Quilombola (LIEQ) vinculado ao Programa de Formação Docente para a Diversidade Étnica (PROETNOS) da Universidade Estadual do Maranhão. Brasil. E-mail: igorsantosuema@gmail.com | https://orcid.org/0000-0001-7073-3515

[2] Doutora em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora adjunta do departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Coordenadora Geral do Programa de Formação Docente para a Diversidade Étnica (PROETNOS), Coordenadora do Nucléo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre África e Sul Global (NEÁFRICA). Brasil. E-mail: tatianaraquel.reis@gmail.com | https://orcid.org/0009-0004-9208-3313

[3] Teoria que defendia que a colonização portuguesa teria criado um mundo único nos trópicos, diluindo os elementos africanos em valorização da herança portuguesa. Um dos principais argumentos que surgiram dessa tese foi o discurso da mestiçagem amplamente defendido por Gilberto Freyre.

[4] Gênero musical de origem guineense.

[5] É importante pontuar que os claridosos não prezavam pela emancipação de Cabo Verde. Os fundadores da revista Claridade eram membros de uma elite e buscavam uma maior aproximação com a metrópole. Entretanto, eles ajudaram a construir a ideia de cabo-verdianidade que posteriormente foi trabalhada por Amílcar Cabral e a geração que o acompanhou entre os anos de 1950-60. Esta geração de intelectuais nacionalistas buscava conectar os cabo-verdianos ao continente africano os distanciando de Portugal. Amílcar Cabral argumentava que o colonialismo havia criado um abismo social e cultural entre as elites nativas e as massas populares. Devido a isso seria necessário que os intelectuais das elites passassem por um processo de “reafricanização” para que abraçassem a luta de libertação (Comitini, 1980). Portanto, a geração de intelectuais ligados a Amílcar Cabral avançaram mais ainda no desenvolvimento da identidade nacional de Cabo Verde.

[6] O Pod África está hospedado no Spotify.