A matrilinearidade é solar: potências afrorreferenciadas em Beyoncé

Matrilineality is solar: afroreferenced strengths in Beyoncé

                                                                                               Vinícius Oliveira[1]

Maria Simone Euclides[2]

 

 


Resumo

Em situações e percepções afrocentradas, a matrilinearidade se apresenta como locus por excelência dessa dinâmica que entende a mãe como personagem central na constituição de identidades e afrorreferências, enquanto um fenômeno de gestação e nutrição de potências solares. Este artigo, oriundo da monografia “ENTRE COLMEIAS & QUILOMBOS: quando intelectualidade negra e arte se encontram”, atenta-se para as manifestações sobre a maternidade e matrilinearidade presentes nas músicas da multiartista Beyoncé. Elencamos como foco de discussão as obras LEMONADE (2016), e THE GIFT/BLACK IS KING (2019; 2020), de modo a compreender como assumem a matrilinearidade vigor da concepção de alternativas sistêmicas para pessoas negras que, com essas produções musicais, alcançam mais um fôlego de resistência na cisão frente às lógicas de definições de ser e estar eurocêntricas e ocidentais. Assim, o artigo entrelaça discussões da Afrocentricidade junto da Antropologia, à medida que se vale metodologicamente da análise de conteúdo para acepção das dimensões matripotenciais nas músicas.

Palavras-chave: Matrilinearidade; Beyoncé; Afrocentricidade.

 

Abstract

In Afrocentric situations and perceptions, matrilineality presents itself as the locus par excellence of this dynamic that understands the mother as a central character in the constitution of identities and Afro-references as a phenomenon of gestation and nourishment of solar potencies. This article, which comes from the monograph "ENTRE COLMEIAS & QUILOMBOS: quando intelectualidade negra e arte se encontram" (BETWEEN COLMEAS & QUILOMBOS: when black intellectuality and art meet), focuses on the manifestations of motherhood and matrilineality in the music of the multi-artist Beyoncé. We focus on the works LEMONADE (2016) and THE GIFT/BLACK IS KING (2019; 2020), in order to understand how they assume matrilineality in the conception of systemic alternatives for black people who, with these musical productions, achieve yet another breath of resistance in the face of the logics of Eurocentric and Western definitions of being and being. The article thus interweaves discussions of Afrocentricity with anthropology, while methodologically using content analysis to understand the matripotential dimensions of the songs.

Keywords: Matrilineality; Beyoncé; Afrocentricity.


 

 

 

 

Introdução

Ele nunca vira uma mulher amamentar uma criança. Quase teve que dar as costas para Lilith, a fim de parar de contemplá-la enquanto alimentava Akin. A mulher não era linda. Seu rosto largo e liso trazia uma expressão solene, até mesmo triste, na maior parte do tempo. Isso fazia com que se parecesse – e Tino estremeceu diante desse pensamento – fazia com que ela parecesse uma santa. Uma mãe. Claramente mãe. E algo mais (Octavia E. Butler, em Xenogênese, vol. 2: Ritos de Passagem).

 

A maternidade, muitas vezes, faz parte da identidade de mulheres negras, de modo que, quando ganham sua primeira criança, concepções de mundo são reelaboradas, de ser, estar e experienciar a vida, pois, a partir daquele momento, um outro ser humano necessita de atenção e cuidados. Da mesma maneira, entre as diferentes tensões, a maternidade para a mulher negra consiste em um espaço no qual mulheres negras se expressam e descobrem o poder da autodefinição, a importância de valorizar e respeitar a si mesmas, a necessidade de autonomia e independência, assim como a crença no empoderamento da mulher negra, a maternidade promove o crescimento pessoal, eleva o status nas comunidades negras e serve de catalisador para o ativismo social (Collins, 2019), mas nem sempre foi assim.

Vale ressaltar que os efeitos da escravização é a própria culminância da desumanização dos corpos negros/as, suas capacidades projetivas de constituírem elos e laços de familiaridade, tais como a relação de cuidado e amorosidade entre mães negras escravizadas e seus/as filhos/as, tal como a paternidade negra ceifada. Às mulheres negras, o mito do amor materno não contemplava a sua condição de escravizada, apartadas sentimentalmente e emocionalmente de sua maternidade.

Em uma perspectiva contracolonial e existencial, a maternidade constitui um elemento central para a politização de mulheres negras, que, em uma posição de “ativismo socialmente responsável”, voltam-se não só para os interesses próprios das mulheres, mas para o bem-estar de toda a comunidade, ainda que esta maternidade possa, muitas vezes, ser contraditória e sacrificante. As tentativas de equilíbrio se encontram nestes tensionamentos, onde, para além das investidas hegemônicas de enquadrar a maternidade negra dentro de suas concepções, há o contramovimento de mulheres negras que veem a maternidade de modo valorativo e como um processo contínuo de humanização.

Portanto, mesmo quando localizada sob a égide do Ocidente e reproduzindo opressões e situações de dor e trauma, devido aos processos de sequestro, tráfico e escravização transatlânticos, como visto anteriormente, bem como em consequência das definições brancas-ocidentais de masculinidade e feminilidade que são incorporadas por pessoas negras, a família negra ainda desempenha um papel central na resistência e na luta social contra o racismo. Mais do que tudo, o lugar da família é o primeiro local de experiência plena da humanidade que foi negada às pessoas negras desde a escravização (Davis, 2016).

É ainda Collins (2019) quem vai dizer que essa centralidade conferida à maternidade negra reflete como a mulher negra se define principalmente pelo seu papel de mãe, do que de esposa, por exemplo, de modo que a ausência de homens nos eixos familiares não é um grande foco de atenção, pois “ainda que os homens possam estar fisicamente presentes, ou tenham papéis culturais bem definidos dentro da família extensa, a unidade de parentesco costuma girar em torno da mulher” (ibid., p. 298). Essa definição das dinâmicas familiares em contextos afrodiaspóricos aproximam-se da matrilinearidade, enquanto mote constitutivo das sociedades africanas Antes da Era Comum (EAC).

Assim, a acepção de valores, cosmopercepções e ontologias que remontam à ancestralidade africana afirma que há outras possibilidades de entendimento e experienciação da vida para além dos moldes coloniais-ocidentais impositivos sob cujas asas nos encontramos. Em outras palavras, no ato de (re)encontrar-se com elementos afrorreferenciados, há a potência de revisão dos trilhos da humanidade negra (Nobles, 2009) a partir de sua própria centralidade e agência humanizadora.

Neste artigo, oriundo da monografia intitulada “ENTRE COLMEIAS & QUILOMBOS: quando intelectualidade negra e arte se encontram” (Oliveira, 2021), veremos como Beyoncé, em suas obras, recorre à família e a coloca enquanto fonte de aprendizado, além de ser o primeiro lugar em que a experimentação plena da humanidade de pessoas negras pode acontecer. Com isso, atentemo-nos para as manifestações sobre a maternidade e matrilinearidade presentes nas músicas das obras LEMONADE (2016)[3] e THE GIFT[4] / BLACK IS KING[5] (2019; 2020). Tendo essas produções audiovisuais mais como interlocução intelectual do que como objetivo a serviço de um processo analítico, caminhamos rumo à compreensão de como tais elementos afrorreferenciados assumem o vigor da concepção em cadeia, de alternativas sistêmicas para pessoas negras que, com essas produções musicais, alcançam mais um fôlego de resistência e cisão frente às definições de ser e estar assentadas no Ocidente.

 

Potência ancestral de autodefinição

Ser mãe é conceber a continuidade de um legado, de uma família, de uma ancestralidade inteira. Gerar vida, vida que sucumbe a tentativa cotidiana de nos matar[6]. As mulheres negras e mães no Brasil e nos Estados Unidos são protagonistas tanto das dores do genocídio da população negra (companheiros e filhos), quanto na militância e no enfrentamento cotidiano para manter os seus vivos/as e fortes. Muitos dos esforços despendidos por Beyoncé, que vão desde a denúncia do racismo estrutural em sua arte/política até a sua experiência na/da maternidade, acabam se estendendo à comunidade negra em diáspora. É nessa dimensão que a matrilinearidade emerge como um valor afrocivilizatório central na constituição dos povos africanos, que assume a importância dada à mãe enquanto o bojo de construção e continuidade da cultura, que se desenvolve em termos de harmonia, equilíbrio e o Axé[7]. Da mesma forma que a mãe é quem está no centro da constituição das identidades da comunidade, sendo capaz de matrigestar as potências que existem em cada um de nós.

Ifi Amadiume (1997, p. 29) afirma que “a unidade de produção matricêntrica como a estrutura material básica do matriarcado africana” está presente em todas as sociedades africanas tradicionais. Logo, a colocação do masculino como eixo norteador contorna o paradigma euro-ocidental que tem suas bases patriarcais, o que negligencia e apaga a existência dos sistemas matriarcais nas mais diversas sociedades, além de deturpar as compreensões dos sistemas sociais africanos. A valorização da matrilinearidade e, por consequência, do papel da mãe enquanto uma figura central de poder que constitui uma identidade, está presente nos versos de MOOD 4 EVA[8], os quais direcionam para esse âmbito essencial para a unidade cultural africana:

[Verse 3: Beyoncé]

I'm so unbothered, I'm so unbothered

Y'all be so pressed while I'm raisin' daughters

Sons of empires, y'all make me chuckle

Stay in your struggle, crystal blue water

Piña colada-in', you stay Ramada Inn

My baby father, bloodline Rwanda.[9]

 

Nesses versos e em comunhão ao que bem delineia Nah Dove (ca. 1998), vislumbramos inspirações e resgates à cultura kemética (Antigo Egito), materno-centrada, que procurava a proteção e equilíbrio das pessoas e da comunidade através do âmbito espiritual, concretizado na figura de Maat[10] que carrega consigo os princípios de justiça, verdade, honestidade e paz. Essa divindade (feminina) era reverenciada até mesmo pelo rei, fazendo com que religião e política coexistissem, em que a primeira é tida como o locus do poderio feminino. Aliás, a maternidade significa os processos de responsabilidade coletiva que envolve todas as pessoas na criação das filhas e filhos e no cuidado com os outros. Ao contrário, em sociedades patriarcais/capitalistas, não há valor à maternidade nem à mulher quanto sua importância para a sociedade e cultura (idem).

A organização social centrada na mãe permite que a transmissão, através das gerações, de valores morais e éticos que têm suas bases na harmonia e na comunidade, diferindo da organização patriarcal que se desenvolveu em moldes individualistas (Oliveira, 2018). Desse modo, a matrilinearidade é a unidade cultural africana, conforme apontado por Cheikh Anta Diop (2014), que, ao levantar essa nova concepção, foge das noções ocidentais que durante séculos tentaram apagar o legado civilizacional de África, colocando-a como selvagem, sem história e sem cultura, ao contrário da Europa, o locus originário da civilização.

Na empreitada de colocar o Kemet (Antigo Egito) como progenitor do Estado moderno – pois representa a primeira experiência do que conhecemos enquanto civilização definida como modos de se viver em comunidade em um determinado ambiente a partir de certas normas e regras –, é possível colocar pessoas negras no centro e na vanguarda da história da humanidade, contrariando a Egiptologia que definia a civilização “egípcia” como influenciada pelas culturas caucasianas brancas. Portanto, Kemet pode ser o modelo que permite às pessoas negras visualizarem outras alternativas de constituir sociedades que não sejam balizadas pelos estados modernos ocidentais, localizados em sua patriarcalidade e indiferença ao bem viver africano.

É importante ressaltar que a organização matrilinear não significava o domínio da mulher sobre o homem. Ao contrário, a vida era, bem como ainda é, construída em harmonia e equilíbrio de privilégios e corresponsabilidades. Logo,

O conceito de matriarcado destaca o aspecto da complementaridade na relação feminino-masculino ou a natureza do feminino e masculino em todas as formas de vida, que é entendida como não hierárquica. Tanto a mulher e o homem trabalham juntos em todas as áreas de organização social. A mulher é reverenciada em seu papel como a mãe, que é a portadora da vida, a condutora para a regeneração espiritual dos antepassados, a portadora da cultura, e o centro da organização social. O papel da maternidade ou dos cuidados maternais não se limita às mães ou mulheres, mesmo nas condições contemporâneas (Dove, ca. 1998, p. 8).

 

Na Maafa[11], a branquitude, para manter sua posição hierárquica, define tudo aquilo que tem relação à negritude como ruim, mau, feio, sujo e repudioso. Assim, a construção da identidade e da autoestima de negras/os/es foi minada por esses conceitos estéticos que valorizavam tanto a branquitude e, quanto mais afastada desse parâmetro, pior você seria (Gonzalez, 2020). E por tais circunstâncias, Beyoncé está tranquila criando sua prole enquanto os outros se incomodam com isso[12]. Enquanto mãe, protetora dos valores civilizatórios e culturais africanos, ela transmite esses saberes para sua linhagem, baseando-se em cosmopercepções reumanizantes que não mais definem o belo e o humano a partir do euro-ocidental caucasiano. Trata-se também de um processo de autodefinição enquanto mulher negra, mãe e detentora de sua história quando canta e indaga, ainda, em MOOD 4 EVA:

Why would you try me? Why would you bother?

I am Beyoncé Giselle Knowles-Carter

I am the Nala, sister of Naruba

Oshun, Queen Sheba, I am the mother

Ankh on my gold chain, ice on my whole chain

I be like soul food, I am a whole mood.[13]

 

Nos versos acima, quando se menciona “Oshun, Queen Sheba, Eu sou a mãe!”, reporta de modo direto à potência da mãe, sua força gestacional e organizacional. Essa força que suplanta o medo, o qual dinamiza e oportuniza a vida. Mulheres negras se autodefinem e definem as suas matripotencialidades. Em contextos em que paira a disputa entre as definições negativas que colocam mulheres negras como a outridade e aquelas que são concebidas pelas próprias mulheres em seus contextos e espaços, o conhecimento autodefinido surge para desafiar e substituir as imagens de controle da realidade dessas mulheres, sendo o locus considerado essencial para a sobrevivência (Collins, 2019).

Assim, também, Beyoncé se autodefine em termos afrorreferenciados, tanto nos aspectos que concernem ao universo de O Rei Leão, tratando de sua personagem Nala, que no live action[14] ganhou mais centralidade e importância na narrativa, quanto nas retomadas espirituais negras-africanas, proclamando para si a imagem de Oxum, Òrìṣà feminina guardiã da fertilidade e do futuro. É ainda Jurema Werneck (2009) quem vai dizer que, recorrendo à ancestralidade africana, é possível encontrar as chaves e as armas que podem ser usadas na luta contra a supremacia branca e o racismo. Quanto às figuras femininas e o próprio papel da mulher negra nesse contexto, as tradições yorubanas relacionadas à espiritualidade persistiram e ainda persistem, mesmo com todo o advento da Maafa, e, representadas por divindades femininas, ancoram a luta e fortalecem a luta antirracista.

Valer-se de Òrìṣà feminina demonstra como há formas políticas e sociais que antecedem à invasão, ao sequestro, ao tráfico transatlântico e à escravização colonial, onde a religião, nesse sentido, tem um caráter exemplar na luta política e no papel das mulheres que, ao assumirem crenças e valores afrocentrados, confrontam as bases que sustentam o Ocidente, bem como a valorização da maternidade, que fornece bases de ruptura.

Pela nascente ocidental que se sustenta pela racialização do conhecimento, colocando a Europa como locus privilegiado do saber, o feminismo (ocidental) utiliza o gênero enquanto categoria analítica e explicativa de ordem universal; ou seja, a partir do gênero, seria capaz de entender as subordinações e opressões das mulheres, independentemente de sua localidade e contexto. E, por esta razão,

os conceitos feministas estão enraizados na família nuclear. Essa instituição social constitui a base da teoria feminista e representa o meio através do qual os valores feministas se articulam. [...] Ainda que o feminismo tenha se tornado global, é a família nuclear ocidental que fornece o fundamento para grande parte da teoria feminista. Assim, os três conceitos centrais que têm sido os pilares do feminismo, mulher, gênero e sororidade, só podem ser compreendidos se analisarmos cautelosamente a família nuclear da qual eles emergem (Oyěwùmí, 2020, p. 86).

 

Significa que, para o feminismo ocidental, o gênero, aquele definidor das relações na família nuclear, organiza-a a partir de noções hierárquicas, em que o homem-marido patriarcal, é superior à esposa e aos filhos – dessa maneira, mulher e esposa chegam a ser sinônimos. E por essas definições, a família nuclear é estrangeira às experiências em África, mesmo com os esforços coloniais e neocoloniais de imposição desse sistema. Então, haverá sempre uma subordinação ao marido patriarcal, mesmo a mãe, que só existe após a definição de esposa. Logo, “na literatura feminista a ‘mãe’, identidade dominante das mulheres, é subordinada à ‘esposa’. Como mulher é um sinônimo de esposa, a procriação e a lactação na literatura de gênero (tradicional e feminista) são geralmente apresentadas como parte da divisão sexual do trabalho” (Oyěwùmí, 2020, p. 90).

Em outras palavras, não olhar a partir de lentes genereficadas, para as culturas africanas e para aqueles que a resgatam na contemporaneidade, é reconhecer que os elementos fundantes e organizadores dessas sociedades são complexos e distintos da cultura ocidental. O papel de mãe nas sociedades africanas pré-coloniais não era subalternizado.

Na autodefinição, mãe, tal como enaltecido por Beyoncé em MOOD 4 EVA, restaura a valorização da maternidade, locus de sustentação do povo negro diaspórico que, em vias de um paradigma mulherista africano, desafia as definições colocadas pelo feminismo (ocidental) desde seus primórdios. As sociedades africanas pré-coloniais eram majoritariamente concebidas a partir da matrilinearidade. Cheikh Anta Diop (2014) assinala que o matriarcado é o grande centro das formações sociais africanas pré-coloniais, de modo que a teoria diopiana se consolida com sua conceituação dos dois berços da humanidade, em um, há o matriarcado e suas concepções baziladas em pacificidade; no outro, o patriarcado com fundações violentas e hierárquicas. Assim, o abandono da matrilinearidade não foi por evolução, mas por invasão do sistema patriarcal.

Construir uma identidade a partir da matrilinearidade faz de Beyoncé uma sábia que recolhe os valores afrocivilizatórios que não subordinam a maternidade, nem a reduz à submissão feminina dentro de um relacionamento conjugal heteronormativo[15]. As dimensões da matrilinearidade e suas potencialidades autodefinidoras aparecem também em MY POWER, música que conta com a participação de Tierra Whack[16], Moonchild Sanelly[17], Nija[18], Busiswa[19], DJ Lag[20] e Yemi Alade.

[Verse 1: Tierra Whack]

I was always in the lead

Who you wanna be? I'm who they wanna be

B-E-A-U-T-Y-E,

never seen so much rage from a queen

Rage from a queen, queen so strong,

thought she was a machine

Girl of your dreams, Synclaire, Regine

 

Turned to the max,

can't forget Maxine

Refer to me as a goddess,

I'm tired of being modest

A hundred degrees, the hottest, if we being honest

Ebony and ebonics, black people win

They say we bein' demonic,

angel in disguise

I hate I have to disguise it,

why you gotta despise it?

Rich in the mind,

that's why I'm making deposits

Carry all the power, it's time to realize it

(They'll never, ever take my power)[21].

 

Nesses versos, ao assumir a figura da rainha enquanto locus de beleza e poder, Beyoncé alcança as rainhas candaces, nome adotado pelas rainhas subsequentes à rainha Candace, aquela

contemporânea de César Augusto no apogeu da sua glória. Este, depois de ter conquistado o Egito, empurrou as suas armadas para o Deserto da Núbia até às fronteiras da Etiópia. Segundo Strabon, estas eram comandadas pelo General Petrónio. A Rainha assumiu, ela mesma, o comando das suas tropas; para dirigi-las, encarregou os soldados romanos, tal como viria a suceder posteriormente com Joana d'Arc, contra o exército inglês. A perda de um olho durante o combate apenas contribuiu para redobrar a sua coragem. Esta resistência heróica impressionou toda a Antiguidade clássica, não pelo facto de a rainha ser negra, mas pelo facto de se tratar de uma mulher: no mundo indo-europeu, ainda não estava acostumado à ideia de uma mulher a desempenhar um papel político e social (Diop, 2014, p. 52-53).

 

Candace era o título atribuídos às rainhas kushitas e que significa “rainha-mãe”, a partir da derivação de ktke ou kdke, em meroítica, língua do povo de Meroe (Kush [Núbia]), também conhecida como os primeiros hieróglifos. Assim,

As candaces, que reinaram, não na qualidade de esposas ou mães, mas por direito próprio, com todos os poderes de administração civil e militar, consolidaram o matriarcado, tradição ainda presente em boa parte das culturas africanas, nas quais as mulheres, principalmente na condição de sacerdotisas, desempenham papel político importante (Lopes, 2021, np.).

 

Se o berço nórdico é violento e patriarcal, o berço meridional (África) é conduzido por vias matriarcais, de modo que a mulher, seja ela mãe ou soberana/rainha, assegurava a continuidade dos sistemas políticos africanos por milênios. Assim,

Sob este modelo estatal africano, a mãe rainha era importante em Núbia, Egito e no resto da África Negra. Mantendo o Egipto como o modelo autêntico deste sistema, Diop mostra a importância económica, política e religiosa da matriarquia (1991: 105). A rainha era a verdadeira soberana, proprietária de terras, guardiã da realeza, e guardiã da pureza da linhagem (Amadiume, 1997, p. 56).

 

Os valores que estão presentes em uma unidade matricêntrica distinguem-se daqueles ocidentais, pois, enquanto estes se sustentam pelo conflito, disputa e individualidade, uma sociedade matrifocal valoriza a compaixão, o amor e a paz. Isso não significa, ao passo, uma posição privilegiada da mulher em detrimento do homem, mas um sistema no qual o foco e a importância são dados a mulher, mas o homem – como filho, tio, marido e pai – também tem sua necessidade reconhecida nessa lógica.

O monólogo final de LEMONADE (2026), “Redenção”, amarra toda a discussão da matrilinearidade como a agência ancestral transformadora e curativa, além da importância que a família e a ancestralidade têm como fonte de conhecimento e força para enfrentamento de dificuldades:

Take one pint of water,

add a half pound of sugar,

the juice of eight lemons,

the zest of half a lemon.

Pour the water from one jug then into the other several times.

Strain through a clean napkin.

Grandmother,

the alchemist,

you spun gold out of this hard life,

conjured beauty from the things left behind.

 

Found healing where it did not live.

Discovered the antidote in your own kit.

Broke the curse with your own two hands.

You passed these instructions down to your daughter

who then passed it down to her daughter[22].

 

Ademais, a figura da avó conjurada acima remonta à relevância de mulheres negras para a sobrevivência do povo negro em diáspora e como ela, mesmo nos contextos de desumanização, foi capaz de dar continuidade à sua cultura e história. Lélia Gonzalez (2020) salienta a importância de se reconhecer a resistência que mulheres negras, pós-abolição, tiveram por conseguirem incutir saberes e valores do povo negro dentro da sociedade branca. A mulher negra, portanto, é o grande personagem na resistência, na manutenção de reinvenções para em meio e para além da dor. E, por isso, Beyoncé traz a fala de Hattie White:

[Spoken: Hattie White]

I had my ups and downs,

but I always find the inner strength

to pull myself up.

I was served lemons, but I made lemonade.[23]

Hattie White é a avó de Jay-Z e o trecho acima é do discurso realizado na sua festa de aniversário de 90 anos. Aqui, entendemos o porquê do álbum se chamar LEMONADE, em referência à fala de White. O ditado popular “se a vida lhe der limões, faça uma limonada” se baseia no saber ancestral e proverbial que, entre metáforas e conhecimentos sobre a vida, pretende ensinar algo importante a alguém (Santos, 2016). Esse ditado, em específico, contém a sabedoria de tirar proveito até mesmo das situações mais difíceis. É conseguir fazer uma limonada doce e refrescante, mesmo com um limão amargo e azedo.

O lugar da família, de acordo com Angela Davis (2016), era o local de experiência plena da humanidade que foi negada às pessoas negras escravizadas e, por isso, não havia como diminuir mulheres negras pelo trabalho doméstico, como acontecia com mulheres brancas. A mulher negra, em tais contextos, não performava passividade; pelo contrário, se mostrava combativa, de maneira explícita ou não. Seja contribuindo para rebeliões e fugas de escravos, seja aprendendo a ler e a escrever e transmitindo esse conhecimento para os seus, as mulheres negras sempre desafiaram o sistema racista e escravista.

Assim, a ancestralidade compõe a força motriz cotidiana para o enfrentamento e solução dos problemas. Com a avó, conhecedora da vida, de seus dilemas e calos, é possível aprender a garimpar o ouro através das dificuldades e, ainda assim, conseguir perceber a beleza ao redor. A família, como um todo, é a força motriz cotidiana, a energia vital que sustenta pessoas negras em suas batalhas diárias. É a colmeia que concentra os primeiros esforços de sobrevivência ao advento da Maafa. Rememora as nossas raízes africanas de respeito ao que os mais velhos têm a dizer e a nos ensinar, já que as suas experiências de vida mais vastas lhes conferem mais sabedoria também (De Jesus, 2010). Com o acréscimo da ancestralidade e da ética do amor, pessoas negras podem se curar.

Então, mesmo que com o sequestro transatlântico, o cárcere, a venda e a escravização de corpos africanos, que culminaram na tentativa de apagamento de elementos culturais, ontológicos, filosóficos desses povos; ainda assim, não foi possível destituir essas pessoas de seus valores e práticas filosófico-culturais. Romper com o Ocidente é ter consciência desses valores e de onde vieram; é reconhecer a ancestralidade que toda pessoa negra carrega dentro de si, as potencialidades que temos para mudar o mundo. Se reaproximar de África, portanto, é assumir a importância do matriarcado africano para a construção de um bem viver baseado em paz, harmonia e justiça. E, nessa costura do passado ancestral com os desafios do presente, se manifestam componentes de afrofuturidades que permitem traçados multitemporais em prol da existência negra no mundo de modo pleno e agenciado por e para pessoas negras (Oliveira; Euclides, 2023).

 

A mãe/ìyá é quem acende o sol da comunidade

No processo de autodefinição da mulher negra enquanto mãe, é possível vislumbrar como ela também é capaz de cooperar para a construção de identidades e o empoderamento daqueles que estão à sua volta. Alude-se às referências sobre o papel matrigestor, não só da mulher, mas de toda a comunidade, que é capaz de acender o Sol de todos (Ani, 2017).

Nesse sentido, a pele negra e o cabelo crespo se inserem como elementos significativos para a construção da/s identidade/s negra/s em um duplo movimento: em uma primeira instância, são marcados por estereótipos negativos que procuram diminuir qualquer tipo de proximidade com a negritude/negrura do ser, depois, essas insígnias passam a ser entendidas pelas pessoas negras como locus de beleza, poder, autonomia e independência (Fanon, 2020; Gomes, 2019; Gonzalez, 2020). O enaltecimento da pele escura é tema central de BROWN SKIN GIRL, parceria com Blue Ivy Carter, Wizkid[24] & SAINt JHN[25], presente no álbum THE LION KING: THE GIFT (2019) e em sua versão audiovisual, BLACK IS KING (2020):

[Intro: SAINt JHN & Blue Ivy Carter]

Brown skin girl

Your skin just like pearls

The best thing in the world

I'd never trade you for anybody else, singin'

Brown skin girl

Your skin just like pearls

The best thing in the world

I'd never trade you for anybody else, singin.[26]

 

Ainda, nos versos acima, ao enaltecer e fortalecer aspectos identitários tão caros e difíceis de serem construídos positivamente para pessoas negras em diáspora, onde a colocação do negrume da pele como sinônimo de negatividade, os versos reforçam o processo de reumanização através da dimensão estética. “Nunca troque você por mais ninguém”, ao reconhecer-se negra, empoderar-se da negritude e de toda riqueza identitária, herdada e recriada. Lembramos de Kabengele Munanga (2015, p. 45-47) que tão sabiamente define os objetivos da negritude enquanto:

buscar o desafio cultural do mundo negro (a identidade negra africana), protestar contra a ordem colonial, lutar pela emancipação de seus povos oprimidos e lançar o apelo de uma revisão das relações entre povos para que se chegasse a uma civilização não universal como a extensão de uma regional imposta pela força - mas uma civilização do universal, encontro de todas as outras, concretas e particulares.

 

Em outras palavras, é a restituição da África de sua história e cultura, sem mais a imposição de valores e modos de ser e estar oriundos de outros lugares do mundo. É a aceitação da negritude, da pele e também do social e cultural, a construção de identidade a partir dela e envolta em solidariedade com os seus. Trata-se da “proclamação-celebração sobre todos os tons de identidade, de personalidade coletiva, visando o retorno às raízes do negro como condição de um futuro diferente da redução presente. Os negros decidem assumir o desprezo para fazer dele fonte de orgulho” (Munanga, 2015, p. 48, grifos do autor).

Valorizar a pele negra, enquanto fonte de beleza, é contrariar os movimentos de negação da humanidade a pessoas negras. Lembrando do Bairro Liberdade em Salvador, Lélia Gonzalez (2020) traz as memórias e a saudade ontológicas de África, a Mãe-Terra que nos foi tirada pelo sequestro e cárcere escravista. Essas lembranças emergem pelo próprio sentimento e perpetuação de valores e elementos culturais africanos que, dentro de nós, pessoas negras, nunca se deixam morrer. Com isso, as reflexões dessa intelectual sobre Ilê Aiyê, bloco de carnaval baiano criado em 1974, levantam o objetivo de exaltar a beleza negra-africana, de modo a construir também uma revolução estética ao lado da revolução cultural. O bloco, ao exaltar a beleza (da mulher) negra, o faz sem a sexualização de seus corpos, ao contrário do que faz o sexismo e o patriarcado. Ilê Aiyê realiza isso a partir de elementos ético-estéticos que conduzem à descolonização desses corpos por se distanciar das compreensões de beleza e estética que são puramente ocidentais. E, tal como em Ilê Aiyê, a ancestralidade e a centralidade negra aparecem nos outros versos na voz de Beyoncé na mesma música:

[Verse 2: Beyoncé]

Pose like a trophy when Naomi's walkin'

She need an Oscar for that pretty dark skin

Pretty like Lupita when the cameras close in

Drip broke the levee when my Kellys roll in.[27]

As três mulheres negras citadas nos versos acima são tidas como figuras de empoderamento para as “meninas de pele marrom” que, aos olhos hegemônicos, são excluídas das definições de beleza que se concentram nas características referentes à brancura. Naomi Campbell é atriz britânica e uma das supermodelos mais famosas e reconhecidas da história; Lupita Nyong'o é uma atriz quênio-mexicana vencedora de prêmios; e Kelly Rowland é cantora e compositora, bem como fez parte do Destiny’s Child, girlgroup que também lançou Beyoncé aos olhos do mundo. Para além disso, o empoderamento transcende a beleza: seja como super-modelo, atriz e cantora, ou qualquer outra ocupação profissional, as mulheres negras não devem ser ignoradas em sua humanidade.

Pensar a centralidade de mulheres negras quanto a sua mulheridade é romper com a universalidade do pensamento ocidental que subalterniza e marginaliza corpos negros incansavelmente. É, também, estabelecer outros suleadores de perspectivas e epistemologias, compreendendo África como berço da humanidade e da civilização, onde reside uma unidade cultural compartilhada por todas as pessoas africanas (Moraes; Ribeiro, 2019).

I think tonight, she might braid her braids

Melanin too dark to throw her shade (Shade)

She minds her business and wines her waist

Gold like 24K, okay.[28]

 

A pele negra, que sofreu inúmeras feridas e que carrega consigo até hoje as cicatrizes e traumas de um povo, é a mesma pele que “chega chegando”, se centraliza em suas dimensões de ser e estar e resgata a sua ancestralidade africana. A pertença negra é algo a ser sempre evitada, repudiada. Ninguém, seja quem inventou (a categoria coisificada: negros), seja quem foi abarcado pela compreensão, todos aqueles complacentes à égide ocidental tentam fugir de qualquer estreitamento com essa denominação.

Esse processo é sobre reduzir o corpo ao visível, à pele e à cor, determinando posições hierárquicas a partir disso, através de uma criação ficcional, em que a identidade europeia seria o ápice da humanidade e civilização. O ser negro/a/e, então, é um constante devir, apoiado na premissa de que muitas vezes será necessário retomar à sua negritude/africanidade que foi tomada pelo Ocidente (Mbembe, 2018; Santos, 1983). E nem mesmo todas as investidas contra essa pretidão foram capazes de exterminá-la, nem ao menos escondê-la ou embranquecê-la (Nascimento, 2016). O ser negro/a/e é potente, é solar demais para desaparecer e ser depósito de amargura por si.

O trançar dos cabelos, citado nos versos acima, também remonta às tradições africanas, como salienta Nilma Lino Gomes (2002, p. 44)

O uso de tranças é uma técnica corporal que acompanha a história do negro desde a África. [...] Tal prática explicita a existência de um estilo negro de pentear-se e adornar-se, o qual é muito diferente das crianças brancas, mesmo que estas se apresentem enfeitadas. Essas situações ilustram a estreita relação entre o negro, o cabelo e a identidade negra. A identidade negra compreende um complexo sistema estético.

 

Esse uso de tranças, para além da questão estética, aproxima a ancestralidade e o cuidado para com o cabelo crespo que, desde a infância, é tratado com zelo pelas mães de crianças. A matrilinearidade, portanto, tem um papel central na perpetuação desses valores estéticos.

Ainda em BROWN SKIN GIRL, é a figura da mãe que é invocada para toda vez que dúvidas e inseguranças possam surgir quanto às qualidades que a mulher negra possa vir a ter: “Se alguma vez você estiver em dúvida, lembre-se do que Mamãe disse a você” [If ever you are in doubt, remember what Mama told you]. Ter a mãe como o alicerce empoderador que piramida a autovalorização também se aproxima do que Ìyá (traduzida erroneamente como “mãe” do yorùbá para as línguas ocidentalizadas)[29] significa para todas as sociedades africanas pré-coloniais. Refletir sobre Ìyá é reconhecer a centralidade que ocupa no sistema de senioridade yorubano, além de sua própria matripotência que

descreve os poderes, espiritual e material, derivados do papel procriador de Ìyá. A eficácia de Ìyá é mais pronunciada quando são consideradas em relação a sua prole nascida. O ethos matripotente expressa o sistema de senioridade em que Ìyá é a sênior venerada em relação a suas crias. Como todos os humanos têm uma Ìyá, todos nascemos de uma Ìyá, ninguém é maior, mais antigo ou mais velho que Ìyá (Oyěwùmí, 2016, p. 3).

 

No culto aos Òrìṣà, Ìyá protege não só o seu orí (cabeça), mas o de sua prole, invocando o orikí (louvor à cabeça) para nutrir. Esse louvor à cabeça refere-se à importância que Ìyá tem e que faz emergir as qualidades das pessoas em um processo de empoderamento, de modo que “Ìyá recite continuamente o orikí de seus filhos para elevar a autoestima e estimulá-los a melhores patamares, especialmente nos momentos em que é necessário” (Oyěwùmí, 2016, p. 16-17). Tal louvor já está nos princípios de BLACK IS KING. Com o capítulo “Preto”, Beyoncé começa a narrar a trajetória afrocentrada de retorno a si, abençoada pelas palavras da mãe:

Bless the body, born celestial.

Beautiful and dark matter.

Black is the color of my true love’s skin.

Coils and hair catching centuries

of prayers spread through smoke.

You are welcome to come home to yourself.

Let black be synonymous with glory.[30]

 

Essa posição que Ìyá ocupa se aproxima, em contextos diaspóricos, das discussões concernentes ao mulherismo africano[31], pois expressa a centralidade de mulheres negras no seu pensamento e ação. Os elementos principais que formariam o pensamento mulherista são

terminologia própria e autodefinição; centralidade na família; genuína irmandade no feminino; fortaleza, unidade e autenticidade; flexibilidade de papéis, colaboração com os homens na luta de emancipação e compatibilidade com o homem; respeito, reconhecimento pelo outro e espiritualidade; respeito aos mais velhos; adaptabilidade e ambição; maternidade e sustento dos filhos (Moraes; Ribeiro, 2019, p. 597).

 

Dessa forma, o Mulherismo Africana visa “o equilíbrio de um povo a partir do papel matriarcal e materno-centrado[32], ou seja, traz à tona o papel das mães africanas como líderes na luta pela recuperação, reconstrução e criação da integridade cultural negra” (Moraes; Ribeiro, 2019, p. 600), sendo o caminho sempre sujeito a mudanças para a libertação da humanidade, tendo como potência a experiência histórica desse grupo social (Collins, 2017). Dentre todas as esferas nas quais o empoderamento pode servir para tensionar as matrizes de dominação e subjugação de corpos marginalizados, a atuação no campo da estética e da cultura se faz fundamental, visto que também faz parte de um projeto maior que culmina, não só no empoderamento individual, mas, mais importante, no empoderamento e na transformação ao nível coletivo para que se gere justiça social.

Em OTHERSIDE, a relação transcendental entre a “mãe” e seus filhos/as/es continua:

[Verse 1: Beyoncé]

If the storm comes

If we burn up

If the wells run dry

You're my reason

To believe in

Another life

 

[Chorus: Beyoncé]

If it all ends

And it's over

If the sky falls fire

Best believe me

You will see me

On the other side.[33]

 

A potência localizada em Ìyá pode ser entendida desta sua relação com orí. Estando no orí o destino de cada pessoa, antes da vida terrena, cada ser humano escolhe aquele que irá guiá-lo após o nascimento, em sua viagem à terra, de modo que a escolha de um bom orí significa um bom destino em vida terrena. Essa escolha se dá a partir do àkúnlẹ̀yàn (o ato de se ajoelhar para escolher) diante da entidade criadora. Quanto a Ìyá, sendo quem gera a criança antes mesmo das relações familiares, é digno de nota que “para os iorubás é fundamentalmente um processo espiritual em que Ìyá é a entidade que incuba e dá à luz uma alma já existente” (Oyěwùmí, 2016, p. 5). Por isso, a figura paterna não é central, pois a concepção é mais espiritual do que biológica e se estende à pré-vida e ao pós-morte.

Tanto Ìyá quanto a sua prole nascem juntas, independente se é a primeira vez sendo Ìyá ou não (a cada nascimento, nasce Ìyá). Ainda, a posição de parto yorubana se chama ìkúnlẹ̀ (ajoelhar-se) e se relaciona com o termo abiyamọ (nascimento de Ìyá), de modo que se aproximam, na cosmologia, de àkúnlẹ̀yàn. Assim, o orí também se relaciona com a própria escolha, Ìyá introduzirá a alma no plano terreno, pois ela, junto da entidade criadora, doa e cocria a vida.

A relação de Ìyá com a prole é considerada de outra dimensão, pré-terreno, pré-concepção, pré-gestacional, pré-social, pré-natal, pós-natal, vitalício e póstumo. Assim, a relação entre Ìyá e prole é atemporal. [...] Ìyá é um compromisso para toda a vida, e a prole permanece uma criança para a Ìyá, independentemente da idade (Oyěwùmí, 2016, p. 8, grifos meus).

 

O encontro “do outro lado” se dá na dimensão da relação de Ìyá (mãe) e seus filhos, que transcende ao nascimento até a estadia no plano terreno. Da mesma forma que remonta às cosmovisões sobre a vida para culturas africanas que, na ciclicidade e no espiralar, não entende a morte como o fim da vida, mas apenas um outro lugar para onde se vai e, de lá, se cuida de quem ficou.

Não esquecer que o que a mãe (Ìyá) diz conduz a duas direções: valorizar a potência que as suas palavras detêm, pois são carregadas de axé (energia vital) e valores espirituais imensos e reconhecer que são palavras/invocações que elevam o espírito de quem as ouve. Portanto, é necessário que se lembre que a mãe disse que “Sua pele é como pérolas, a melhor coisa do mundo. Nunca trocaria você por ninguém” [Your skin just like pearls, the best thing in the world. I'd never trade you for anybody else]. A beleza, para a sociedade yorùbá, está na própria existência e quem a possibilita é Ìyá.

 

Considerações finais

Os valores que estão presentes em uma unidade matricêntrica distinguem-se daqueles ocidentais, dado que, enquanto esses se sustentam pelo conflito, disputa e individualidade, uma sociedade matrifocal valoriza a compaixão, o amor e a paz. Não significa, ao passo, uma posição privilegiada da mulher em detrimento do homem, mas um sistema em que o foco e a importância são dados a mulher, mas o homem – enquanto filho, tio, marido e pai – também tem sua necessidade nessa lógica.

Tendo sido as categorias e compreensões de mulher e gênero invenções e imposições ocidentais às sociedades pré-coloniais, em específico, às sociedades yorubanas, neste trabalho aponta-se para a necessidade de localizar as compreensões de gênero e a dualidade entre o feminino e o masculino, pois as mesmas não dariam conta das dinâmicas e complexidades das culturas africanas pré-coloniais. Enfatiza-se, ainda, a necessidade de não olhar a partir de lentes genereficadas para as culturas africanas e para aqueles que a resgatam na contemporaneidade, pois os elementos fundantes e organizadores dessas sociedades são complexos e distintos da cultura ocidental. O papel de mãe nas sociedades africanas pré-coloniais não era subalternizado como se percebe hoje em outro contexto já atravessado e marcado pelas intervenções euro-ocidentais. Na verdade, as mulheres eram valorizadas justamente pelo seu elo criador e exerciam poder político em suas sociedades.

O intuito deste artigo foi compreender as multidimensões que a maternidade e, mais além, a matrilinearidade aparecem nas obras de Beyoncé. Aqui, percebemos a ética-estética que gira em torno da mãe e de sua prole e como tal relação se constrói em termos de vitalidade, solaridade, permanência e vivacidade. Costurar tais dimensões da arte e da música com um arcabouço afrorreferenciado possibilita uma compreensão e percepção de outros horizontes que podem ser vividos e que cooperam, em certa medida, para o tensionamento das amarras ocidentais. Se o feminismo branco e liberal expõe que a mãe é reduzida à categoria de mulher e esposa, ao imergimos nas bases éticas e estéticas de tais produções audio(visuais), percebemos nuances de outra concepção: da mãe como categoria e personagem central, protagonista da vida e de sua continuidade. 

Considerando as obras de Beyoncé que foram aqui expostas, LEMONADE e THE GIFT / BLACK IS KING, é possível admitir a importância que a arte tem ao apresentar narrativas pluriversais que não estejam em consonância às lógicas e definições euro-ocidentais, de modo a assumirem a agência e potencialidade de promover a retomada às humanidades. Tão cara neste processo artístico, a colocação afrocêntrica e afrorrefereciada no processo artístico é um dos meios de emancipação e rompimento contra as amarras colonizadoras, pois é capaz de ser solar no movimento de retomada de si – pessoa negra. E, ao compreender a arte como o espaço de construção e partilha da vida, Beyoncé intenciona e referencia suas produções com o intuito de tensionar as cosmopercepções de cada um.

Ainda que o artigo gire em torno de uma artista estadunidense e suas obras, dialogando com suas dimensões éticas-estéticas, as referências ali contidas, elaboradas e produzidas se aproximam das experiências de mulheres negras em outras partes da diáspora africana, inclusive no Brasil. O sul do norte, onde Beyoncé está localizada, ainda que de modo um pouco fluido – já que, ser uma mulher milionária não impede os atravessamentos raciais que procuram minar sua existência e toda a contribuição que pode fazer para com pessoas negras –, costura-se com o sul do sul, mesmo que cada localidade da diáspora tenha suas especificadas, há sempre algo compartilhado entre todas as pessoas negras: as inúmeras violências racistas que, em suas tecnologias, ceifam nossas vidas e tramam nossas mortes de modo escancarado e impunitivo.

Contudo, há também a partilha de referenciais, filosofias, modos de ser, estar e pertencer ao mundo que localizam-se num passado ancestral que sempre se dispõe a ser resgatado e atualizado; há o sopro vital em cada corpo negro que se mantém de pé e que é energizado através das artes. Casas de candomblé e terreiros de umbanda tem suas mães enquanto lideranças espirituais, guiadas a partir de preceitos e filosofias africanas construídas e atualizadas a todo momento; nenhuma tradição se fixa no tempo. Ainda, a própria maternidade negra imersa em precariedade que, em várias horas de trabalho para conseguir alguma fonte (mínima) de renda, constrói redes de apoio para a criação das crianças da comunidade; a matripotência se manifesta na coletividade e na compreensão de que não se cuida e educa uma criança só, que um sol se acende apenas quando todes contribuem para isso.

Entender a matrilinearidade a partir de uma posição afrorreferenciada permite a reelaboração de concepções acerca do amor, da maternidade, da infância e da família, pois tensiona as bases universais que sustentam a ontologia euro-ocidental e cooperam para a dominação e colonização dos seres. Na Maafa, alcançar essa dimensão significa que há possibilidades afastadas do sistema-mundo capitalista e que, na prática que situa a ancestralidade amefricana a partir de sua importância, é possível apre(e)nder com o passado a viver o presente e tecer bons caminhos em direção ao futuro.

Assim sendo, recolocar a matrilinearidade em seu contexto correto permite ressignificar esse passado ancestral, tornando-o o fôlego necessário para vias de concepção de identidades e aproximações para com a cosmopercepção calcada na africanidade. Ademais, permite que haja a agência e a centralidade dos sujeitos africanos quanto à sua própria história que, tendo por base sua identidade cultural resgatada, emerge a possibilidade de união entre africanas e africanos tanto em diáspora quanto no continente. Que nunca esqueçamos das palavras que nossa (terra africana) mãe nos disse e que também lembremos de, para lá, voltarmos.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 01/03/2024.

Aceito em 04/06/2024.



[1] Mestrando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (PPGAS/FFLCH-USP). Universidade de São Paulo. Brasil. E-mail: ovnzcs@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-0805-480X

[2] Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora no Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa (DPE/UFV). Brasil. E-mail: maria.euclides@ufv.br | https://orcid.org/0000-0002-2409-9303

[3] Beyoncé Knowles-Carter, “LEMONADE”. California: Parkwood Entertainment, Columbia Records, 2016. Download digital (45:49 min). Beyoncé Knowles-Carter, “LEMONADE FILM”, (California: Parkwood Entertainment, Columbia Records e HBO, 2016), Download digital (65 min).

[4] Beyoncé Knowles-Carter, “THE LION KING: THE GIFT”, (California: Parkwood Entertainment e Columbia Records, 2019), Download digital (54 min).

[5] Beyoncé Knowles-Carter, “BLACK IS KING”. Roteiro: Beyoncé Knowles Carter; Yrsa Daley-Ward; Clover Hope e Andrew Morrow. Música: Beyoncé Knowles-Carter e Derek Dixie. (Los Angeles: Walt Disney Pictures e Parkwood Entertainment, 2020), Download digital (85 min).

[6] Atila Roque, em referência ao Atlas da Violência de 2020, desenvolvido pelo IEPA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que em 2018, 75,7% dos homicídios acometeram pessoas pretas e pardas. Da mesma forma que os níveis de homicídios em uma década subiram em relação a pessoas negras do que para pessoas não-negras. Os dados se tornam ainda mais gritantes quando outros marcadores sociais são colocados à mesa, como gênero e sexualidade. Mulheres cis negras e mulheres trans negras são mais vítimas de violência e morte. Nos Estados Unidos, mesmo a população negra sendo demograficamente inferior – apenas 14% da população total – os índices de homicídio contra negros/as/es superam a de pessoas brancas. Atila Roque, “Precisamos falar sobre o genocídio do negro brasileiro” https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2021/Precisamos-falar-sobre-o-genoc%C3%ADdio-do-negro-brasileiro.

[7] Axé pode ser traduzido como força ou energia vital que existe em cada ser. É a força sagrada que, envolta e comungada pelo e com os ancestrais e orixás, revigora a vida e potencializa os/as/es sujeitos/as/es. Sem o seu axé, a sua energia vital, nenhum ser humano é capaz de viver em plenitude, sucumbindo à morte.

[8] MOOD 4 EVA é a sexta música do álbum THE LION KING: THE GIFT (2019/2020) e conta com a participação de Jay-Z – marido de Beyoncé e pai de seus três filhos, Blue Ivy Carter e os gêmeos Sir e Rumi Carter. Jay-Z é considerado um dos maiores rappers da história e, em 2024, recebeu o Grammy Dr. Dre de Impacto Global, dedicado aos artistas que tiveram impacto significativo na indústria da música, em suas várias seções – e Childish Gambino – Childish Gambino é o nome utilizado por Donald McKinley Glover no cenário musical. Ator, cantor, rapper e humorista, Gambino/Glover dá voz a Simba em sua fase adulta no live action de O Rei Leão (2019). No ano anterior, sua música This Is America foi lançada e obteve muito sucesso ao abordar, tanto na letra quanto no videoclipe, as inúmeras violências que pessoas negras sofrem na “terra da liberdade e da democracia”.

[9] Tradução livre: Eu tô tão de boa, eu tô tão de boa / Cês tão estressados enquanto eu crio filhas / Filhos de impérios, vocês me fazem rir / Enquanto cês tão na luta, eu tô em águas cristalinas / Bebendo piña colada enquanto cês se hospedam no hotel Ramada / O pai dos meus filhos é da linhagem de Ruanda.

[10] Maat é a mãe de Rá, como também sua filha (e esposa). É quem assegura o equilíbrio cósmico e é graças a ela que o mundo funciona perfeitamente. De acordo com Lopes e Simas (2020), Maat é o sistema moral e ético do povo kemético, de modo que é objetivo deste a perpetuação de Maat.

[11] O conceito de Maafa é cunhado pela autora intelectual Marimba Ani e utilizado por Aza Njeri. Faço uso dele ao longo do texto, de acordo com a sua definição, enquanto um substituto de definições ocidentais (tais como a própria diáspora) das experiências de pessoas negras. Assim, Maafa é o apocalipse negro ou holocausto negro decorrente do tráfico transatlântico para vias de escravização nas Amérikkkas genocidas. É o fenômeno transcultural, transtemporal e transterritorial que assola o povo negro e que culmina na diáspora africana. Desse modo, pessoas africanas, desde o processo de sequestro transatlântico, até os dias contemporâneos, tiveram sua desumanização consolidada a partir da redução de suas etnias diversas a apenas a categoria coisificada: negros.

[12] Remonta ao contexto criativo de FORMATION (2016) sobre a movimentação de pessoas brancas estadunidenses acerca do cabelo crespo de Blue Ivy, sentindo a responsabilidade (diga-se racismo) de elas mesmo definirem como Beyoncé deveria, ou não, cuidar dos cabelos da própria filha.

[13] Tradução livre: Por que você me irritaria? Por que se importaria? / Eu sou Beyoncé Giselle Knowles Carter / Eu sou a Nala, irmã de Naruba / Oxum, Rainha de Sabá, eu sou a mãe / Ankh na minha corrente de ouro, jóias por toda a corrente / Eu sou tipo comida para a alma, sou um estado de espírito.

[14] Live action é a definição para produções cinematográficas e audiovisuais que utilizam seres humanos nas interpretações, ao invés de animações. Também é considerado válido para obras que, assim como O Rei Leão (2019), através da tecnologia de realidade virtual procuram dar o aspecto real dos personagens; ou seja, que leões se parecessem com os leões reais nas savanas africanas.

[15] Hoje, já se tecem algumas críticas, dentro da própria lógica ocidental e do feminismo, acerca da interrelação que Oyewùmí faz. Sempre foi muito corriqueiro ouvir o termo de “mãe solteira” que, por sua etimologia, colocaria a maternidade como submissa ao status de relacionamento – aquilo que a autora já havia chamado atenção tempos antes. Para o afastamento dessas terminologias, atualmente, o termo mais indicado é “mãe solo”.

[16] Rapper, cantora e compositora norte-americana, nascida na Pensilvânia.

[17] Musicista e dançarina sul-africana, é conhecida pelo ritmo criado por ela chamado Future guhetto punk, em uma mistura de música eletrônica experimental, afro-punk e edgy-pop com jazz e hip-hop. Para ouvir seu último lançamento, a música Yebo Teacher: <https://open.spotify.com/album/>. Acesso em: agosto de 2021.

[18] Nija é compositora e produtora musical que teve seu trabalho reconhecido após compor músicas para Beyoncé, Jay-Z e outros artistas, como Cardi B, Lady Gaga e Ariana Grande.

[19] Nascida em Mthatha, Eastern Cape, África do Sul, Busiswa é cantora, compositora e poeta. Em 2014, foi considerada uma das 200 jovens mais influentes da África do Sul. Para ouvir seu último álbum, The Side of My Story: <https://open.spotify.com/album/463tygnGpxLPDT9NZqEXRu>. Acesso em: agosto de 2021.

[20] DJ e produtor musical considerado o pioneiro do Gqom, gênero musical de dança eletrônica que surgiu em 2010 na África do Sul.

[21] Tradução livre: [Verse 1: Tierra Whack] Eu sempre estive na liderança / Quem você quer ser? Eu sou quem eles querem ser / B-E-L-E-Z-A, / nunca vi tanta fúria em uma rainha / Fúria em uma rainha, uma rainha tão forte, pensaram que ela era uma máquina / A garota dos seus sonhos, como Sinclair era para Overton / Aumentado ao máximo, não posso esquecer da Maxine / Refira-se a mim como uma deusa, estou cansada de ser modesta / Cem graus, a mais quente, se formos honestos / Ébano e dialeto negro, o povo preto ganha / Eles dizem que nós somos demoníacos, anjos disfarçados / Eu odeio ter que disfarçar minhas raízes, por que você tem que desprezá-las? / Minha mente é rica, é por isso que estou fazendo depósitos / Eu carrego todo o poder, é hora de perceber isso / (Eles nunca, nunca tomarão meu poder).

[22] Tradução livre: Tome um litro de água, adicione meio quilo de açúcar, o suco de oito limões, a raspa de meio limão. Despeje a água de um jarro em seguida, várias vezes, no outro. Passe por um guardanapo limpo. Avó, a alquimista, você tirou o ouro desta vida dura, conjurando beleza das coisas deixadas para trás. Encontrou a cura onde não vivia. Descobriu o antídoto em seu próprio kit. Quebrou a maldição com suas próprias mãos. Você passou estas instruções para sua filha, que depois as passou para sua filha.

[23] Tradução livre: [Discurso: Hattie White] Eu tive meus altos e baixos, mas eu sempre encontrei a força interior para me levantar. Eles me serviram limões, mas eu fiz uma limonada.

[24] Cantor e compositor nigeriano. Estando no mundo da música desde os onze anos de idade, Wizkid em 2020 lançou seu quarto álbum de estúdio, Made in Lagos, que lhe possibilitou o feito da primeira canção nigeriana a entrar nas paradas da Billboard Hot 100, principal classificação de desempenho musical nos Estado Unidos, com a música Essence. Para ouvir o álbum: <https://open.spotify.com/album/>. Acesso em: agosto de 2021.

[25] Rapper, cantor, compositor e produtor musical americano.

[26] Tradução livre: [Intro: SAINt JHN & Blue Ivy Carter] Garota de pele negra / Sua pele é como pérolas / A melhor coisa do mundo / Nunca troque você por mais ninguém / Cantando: Garota de pele negra / Sua pele é como pérolas / A melhor coisa do mundo / Eu nunca trocaria você por mais ninguém, cantando.

[27] Tradução livre: [Verse 2: Beyoncé] Pose como um troféu quando as Naomis entram / Ela precisa de um Oscar por essa pele bem escura / Bonita como a Lupita quando as câmeras dão um close / A beleza quebra o dique quando minhas Kellys chegam.

[28] Tradução livre: Eu acho que esta noite ela vai trançar suas tranças / A melanina é muito escura pra conseguir escondê-la / Ela cuida da própria vida e mexe a cintura / Ouro tipo 24 quilates, tá bem?

[29] A palavra Iyá, yorùbá, não tem nenhuma marcação de gênero e, portanto, quando nos referimos a essa figura central na sociedade yorubana, não estamos pensando na mãe ocidental que está subordinada às categorias de esposa e mulher, sendo estas últimas sinônimos. Sobre a sociedade yorubana, Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (2016) vai dizer que, com a colonização, houve a entrada e a imposição de perspectivas ocidentais, que são guiadas por sistemas de raça, gênero e outros marcadores de diferença. A sociedade yorubana sofreu transformação em suas cosmopercepções que, a partir desse encontro, foram afetadas por essa cosmovisão generificada do Ocidente. Em outras palavras, com o advento da modernidade-ocidentalidade, categorias como gênero e raça surgem como eixo determinantes das posições sociais às quais as pessoas são inseridas, isso porque a própria Idade Moderna, erigida em parte pelo desenvolvimento do capitalismo, altera as relações e as concepções sociais e culturais.

[30] Tradução livre: Bendito seja o corpo, nascido celestial. Bela e escura matéria. O preto é a cor da pele do meu verdadeiro amor. Serpentinas e cabelos que apanham séculos de orações espalhadas pela fumaça. Você é bem-vindo a voltar para casa, para si mesmo. Que o negro seja sinônimo de glória.

[31] Falar sobre matrilinearidade e matripotência é falar sobre mulherismo africana. Isso porque aquelas categorias remontam a uma discussão afrocentrada, ou seja, reconhece e valoriza o legado das civilizações africanas pré-coloniais e, portanto, não se deve correlacionar conceitos que têm origens ocidentais. Como Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí (idem) afirma, a “mãe” é uma categoria imposta pelo Ocidente às sociedades ocidentais. Se quisermos fazer o esforço de rompimento para com as amarras coloniais-ocidentais, devemos também admitir a problemática de teorias e conceitos localizados, mas que são incutidos como universais e onipresentes, tais como o gênero.

[32] É importante ressaltar que quando se fala em matrilinearidade, chega-se à discussão da possível exclusão de sujeites que, ou não são mães ou não têm um útero. A questão para o mulherismo é que a relação uterina não se trata do âmbito fisiológico, mas sim de “um conjunto de valores e comportamentos de gestar potências” (ibid.), sendo que qualquer pessoa pode gerar e nutrir essas potências.

[33] Tradução livre: [Verse 1: Beyoncé] Se a tempestade vier / Se nós queimarmos / Se os poços secarem / Você é meu motivo / Para acreditar em / Outra vida / [Chorus: Beyoncé] Se tudo chegar ao fim / E acabar / Se do céu cair fogo / Melhor acreditar em mim / Você me verá / Do outro lado.