Mulheres e tráfico de drogas nos países africanos de língua portuguesa: uma análise bibliográfica e de conteúdo

Women and drug trafficking in Portuguese-speaking African countries: a bibliographic and content analysis

                        Silviana Fernandes Mariz[1]

Francisco Thiago Rocha Vasconcelos[2]

 

 


Resumo

Elaboramos um levantamento da produção acadêmica em língua portuguesa, especialmente nas Ciências Sociais, sobre a participação de mulheres em redes de tráfico de drogas ilícitas entre América Latina, África e Europa, com o objetivo de analisar principalmente a situação das mulheres dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs). De início, situamos o fenômeno em meio aos efeitos da globalização, resultando na fragilização dos Estados frente ao descontrole do fluxo ilegal de mercadorias e pessoas e à “colonização” de rotas prévias de emigração de africanos para Europa, Estados Unidos e Brasil pelas novas rotas do tráfico internacional. Por fim, enfocamos o lugar das mulheres africanas como migrantes, prisioneiras e “mulas” que são recrutadas para transportar drogas.

Palavras-chave: Mulheres; Tráfico de drogas; Brasil-África lusófona.

Abstract

We compiled a review of academic production in Portuguese, especially in the social sciences, on the participation of women in illicit drug trafficking networks between Latin America, Africa and Europe, with the aim of analyzing the situation of women from Portuguese-speaking African countries (PALOPs). First, we situate the phenomenon amid the effects of globalization and the consequent weakening of states in the face of the lack of control over the illegal flow of goods and people, and the “colonization” of previous routes of emigration of Africans to Europe, the United States and Brazil by the new paths of international trafficking. Finally, we focus on the place of African women as migrants, prisoners and “mules” who are recruited to transport drugs.

Keywords: Women; Drug trafficking; Portuguese-speaking Africa.


 

 

 

Introdução

Analisamos a produção, especialmente na área das Ciências Sociais, sobre a participação de mulheres[3] de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) em redes de tráfico de drogas. Esta reflexão integra um programa de pesquisa[4] mais amplo, iniciado em 2019, na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), voltado ao mapeamento temático, conceitual e metodológico no campo dos estudos sobre direitos humanos, violência, crime, segurança pública e justiça criminal na chamada “África lusófona”, especificamente em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Na primeira seção, abordamos a problemática do tráfico de drogas entre América Latina, África e Europa, em uma síntese de questões originadas do programa de pesquisa e que levaram à concepção de um projeto de iniciação científica[5] cujo objetivo foi o de situar o fenômeno da inserção de mulheres no tráfico de drogas em meio a dois fatores históricos e econômicos: 1) os efeitos da globalização nos países africanos, que foram acompanhados de conjunturas de mudança política e de “ajustamento estrutural” da economia por meio de princípios neoliberais, resultando na fragilização dos Estados frente ao simultâneo endividamento e descontrole do fluxo ilegal de mercadorias e pessoas e 2) a “colonização” de rotas prévias de emigração de africanos para Europa, Estados Unidos e Brasil, ligadas ao comércio informal ou à sobrevivência diante de crises econômicas e políticas, pelas novas rotas do tráfico internacional, construídas de maneira assemelhada a um tipo de “tráfico humano” (Cohen, 2019).

Na segunda seção, apresentamos as principais características da produção acadêmica que constituiu o corpus da pesquisa, considerando temas e subtemas, abordagens teóricas e metodológicas, bem como demarcadores institucionais e sociais. A principal metodologia do estudo foi a revisão bibliográfica, com mapeamento e análise dos principais conceitos acionados por seus/suas respectivos/as autores/as[6]. Utilizamos da análise de conteúdo como técnica hermenêutica de comunicações, seja livros, artigos, entrevistas ou debates, através da qual se realiza a interpretação do sentido de palavras, de temas-chave e de suas combinações entre si buscando localizar conteúdos manifestos e latentes (Bardin, 1977). Sendo assim, a pesquisa foi realizada através de leituras analíticas e interpretativas, voltadas para destacar as noções e categorias fundamentais dos estudos e as diferentes narrativas sobre a gênese e o desenvolvimento dos processos analisados, bem como as indicações explícitas ou implícitas para o enfrentamento das questões políticas e práticas.

Na terceira seção, enfocamos a questão de gênero suscitada pela forma de inserção de mulheres nas dinâmicas associadas ao tráfico de drogas como migrantes, prisioneiras e “mulas” que, conscientemente ou não, são recrutadas para transportar drogas. Consideramos que os estudos apontam para esta inserção estruturada em um contexto de maior protagonismo e ao mesmo tempo de fragilização do papel do gênero feminino em sociedades africanas, onde elas tornam-se responsáveis pelas atividades domésticas, além de provedoras, sem necessariamente alcançarem, com isso, posições públicas de comando, seja em nível comunitário ou estatal. Esse contexto favoreceu a inscrição de mulheres nas rotas do tráfico de drogas, como “mulas”, submetendo-as a um papel de gênero subordinado que, uma vez condicionadas pelos problemas econômicos e de integração social nas sociedades em que são imigrantes, as conduz a uma atuação de risco tendo em vista coações, o retorno a seu país de origem ou emigração a um país visto como mais promissor.

Com isto, é preciso sublinhar que, do ponto de vista acadêmico, o interesse por África, no Brasil, não é recente e nem se deu de modo divorciado em relação aos interesses econômicos do Estado brasileiro em estabelecer parcerias comerciais com as nações africanas, sobretudo com as que compartilharam do mesmo projeto colonial português; havendo, portanto, o desejo de estabelecer uma zona de influência geopolítica capitaneada pelo próprio Brasil. Nesse cenário, apesar do significativo incremento de institutos e centros de estudos africanos e afro-brasileiros, o foco principal repousava em temáticas ligadas ao escravismo moderno, buscando enfatizar estratégias e táticas de sobrevivências, construção de redes de solidariedade e resistências nas Américas, saberes ancestrais, entre outras; enquanto questões consideradas negativas, a exemplo do cruzamento temático entre África e criminalidade, permaneceram pouco exploradas, muito possivelmente em razão de uma postura mais crítica ao que se convencionou nomear por “afropessimismo” cuja ênfase incidia mais em assuntos que reforçavam o continente africano como um “problema” internacional e sem solução, em detrimento de seus aspectos positivos com potencial para contribuir nos debates sobre questões ambientais, sustentabilidade, organização e liderança comunitária, por exemplo.

Desse modo, há alguns temas sensíveis (Borries, 2011) que permanecem esmaecidos, quase interditados, a depender de quem e de qual lugar de enunciação realiza a pesquisa. É o caso das pesquisas sobre o envolvimento do continente africano nas rotas internacionais de tráfico de drogas, a partir da participação feminina, que, apesar de ser uma temática relativamente recente no campo das Humanidades, vem ganhando espaço e atenção de diferentes estudiosos/as. A partir do mapeamento realizado, foi possível identificar que ainda temos muito a avançar, sobretudo se consideramos que, por exemplo, mesmo o Brasil mantendo desde a década de 1960 acordos de cooperação acadêmica com países africanos através do Programa Estudante Convênio-Graduação (PEC-G) e mais recentemente da Unilab[7], criada em 2010 com a missão institucional de “promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural, científico e educacional” (Brasil, 2010), esta é uma temática pouco explorada.

Nesse sentido, o presente artigo busca contribuir com esse debate, não a partir de um viés convencional em que África é posicionada como um lugar de atraso e sem solução; mas, visando dar visibilidade e problematizar uma realidade que, ao invés de ser (de)negada ou simplesmente ignorada, necessita ser pesquisada e enfrentada em um esforço de colaboração horizontal entre países que são afetados pelas rotas de exploração do tráfico de drogas em uma geopolítica marcada pela desigualdade

 

Globalização e o tráfico de drogas entre América Latina-África-Europa: a “conexão lusófona”

No continente africano, especialmente nas ex-colônias de Portugal, os atuais PALOPs (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), a partir dos anos 1980, com a crise dos governos socialistas, o processo de democratização se realizou junto com a adesão à economia de livre mercado, o chamado “ajustamento estrutural”, que intensificou a circulação de pessoas e mercadorias, lícitas e ilícitas, e a dificuldade dos Estados em controlar fluxos e fronteiras (Heimer, 1991). Criaram-se “[...] oportunidades de lucro para as redes de contrabando [que] enfraquecem os estados-nacionais ao limitar sua capacidade de reprimir as investidas das redes globais que agridem suas economias, corrompem seus políticos e minam suas instituições” (Naim, 2006, p. 14). Modificaram-se, também, o nível e a forma de articulação política das violências associadas à expansão dos mercados:

[...] em muitos casos, com efeito, trata-se para os protagonistas da violência não de visar o poder do Estado para aceder a ele, ou de tentar penetrar no centro de um sistema político, mas de manter o Estado à distância para dedicar-se a atividades econômicas, ao tráfico de drogas, de objetos roubados, mas também de crianças ou de órgãos humanos etc. (Wieviorka, 1997, p. 30).

 

Ou seja, em determinados contextos, as redes criminosas também podem estar entrelaçadas com atores do Estado, numa relação típica de estados antidemocráticos ou em crise política e econômica aguda. Este tema tem marcado a preocupação de organizações internacionais que monitoram a estabilidade e o desenvolvimento dos países da África Ocidental. São elas também, em grande parte, as responsáveis pela produção e disseminação de diagnósticos e medidas para as realidades dos países dessa região, das quais derivam noções como: Estados frágeis, Estados quebrados (“broken states”), Estados fraturados, Estados em colapso ou em falhanço, Estados em crise, Estados ineficazes, Estados paralelos ou bifurcados; “Estados-fantasma” ou “Estados-sombra” (Ferreira, 2014). A proliferação de conceitos alternativos indica se tratar de uma realidade muito heterogênea e de “um conceito fluido, demasiado abrangente, indeterminado e com uma forte conotação política” (Ferreira, 2014, p. 30), cuja utilidade e aplicabilidade é questionável. Em decorrência, alguns autores propõem conceitos alternativos; outros, rejeitam-nos.

De toda maneira, estes conceitos tornaram-se usuais na retórica e na prática da comunidade internacional nas últimas três décadas. A sua utilização se dá não somente nas reflexões acadêmicas das Relações Internacionais e da Sociologia, mas também no âmbito do planejamento estratégico e da operacionalização de políticas. Há uma preponderância dos países da África Subsaariana nos rankings e classificações de Estados denominados frágeis ou falhados, com consequências para a persistência dos conflitos violentos no continente, mesmo com o maior número de missões de paz das Nações Unidas, e para a elegibilidade dos fluxos de ajuda externa e de investimento:

Parece existir, a este propósito, uma percepção generalizada de que existe um “problema” com o Estado Africano, uma singularidade ou patologia que reforça as imagens de insegurança, conflito, catástrofe ou fome frequentemente associadas ao continente africano e que contribui para um afro-pessimismo do Ocidente [...] As percepções dominantes no Ocidente parecem [...] tratar a conflitualidade e fragilidade do Estado como se estas fossem uma excepção no sistema internacional, como sendo um fenómeno recente e largamente identificado com África (Ferreira, 2014, p. 12).

 

Um exemplo emblemático desse enquadramento é o de Guiné-Bissau, nas últimas duas décadas. Na esteira de uma discussão sobre a sua estabilização política cuja história desde a independência é marcada por governos autoritários, por golpes de Estado e assassinatos políticos, estes estudos já o consideravam como um “Estado Frágil”, dependente de assessoria internacional para a boa governança e o desenvolvimento. Hoje, o país é classificado como um tipo particular de “Estado falhado”, o primeiro “Narcoestado” africano (UNODC, 2008; O'regan; Thompson, 2013; Vigh, 2019); um dos pontos de articulação da chamada “conexão lusófona” ou “corredor lusófono transatlântico”, rede do tráfico de drogas envolvendo Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, na qual grupos brasileiros exercem papel importante como intermediários entre os fabricantes de cocaína na Colômbia e as rotas de contrabando para a Europa (Voa Português, 2009; Gonzaga, 2020). Por essa razão, Guiné-Bissau tem sido abordado pela imprensa e consultores internacionais como um risco para a segurança regional da África Ocidental, pelos efeitos desestabilizadores que o narcotráfico teria nas relações políticas internas e externas. A classificação como “Narcoestado” marca também um momento específico de mudança na interpretação sobre o país e da ajuda necessária, agora pautada principalmente na Reforma do Setor da Segurança, da Justiça Penal e do controle policial e fiscal sobre fronteiras como condicionalidades para o desenvolvimento.

O conceito de “Narcoestado” se origina da discussão sobre países, principalmente da América Latina, nos quais os Estados sofrem a concorrência de grupos produtores/exportadores de drogas ilegais, como maconha e cocaína (Cadena, 2008). O fornecimento de bens públicos, o monopólio da violência e o controle do território seriam exercidos por um “Estado paralelo” em concorrência aberta, como no caso das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), ou em coabitação com o Estado formal, a exemplo de El Salvador e México. Estes grupos estabeleceriam uma regulamentação da vida social não apenas no sentido da viabilidade econômica dos negócios, na forma de acordos de corrupção entre atores privados e públicos para o escoamento das mercadorias. Trata-se de um controle político sobre territórios associado à influência sobre as normas de convivência – do que é justo e de sua punição – e os valores culturais e suas formas de expressão simbólica – como certa performance da masculinidade guerreira e de fidelidade ao grupo – de uma parcela da população, especialmente a juventude pobre, sendo esta a razão pela qual toda uma discussão acadêmica irá tematizar a existência não somente de um Narcoestado, mas de uma Narco-Cultura, como aspectos de uma singular forma de Estado frágil (Vasconcelos et al., 2022).

Esse enquadramento começa a ser utilizado não somente na América Latina, mas em regiões afetadas pelo fluxo de produção e comercialização de drogas ilegais, como o continente africano, em reforço à perspectiva do pós-11 de setembro de 2001, ao aliar políticas de desenvolvimento às de segurança e combate ao terrorismo. Dá-se especial atenção à África Ocidental como região propícia à desestabilização em decorrência da conjunção de interesses entre narcotraficantes e quadros das forças armadas e elites políticas em países já marcados pela fragilidade institucional e instabilidade política. Assim, além do caso de Guiné-Bissau como “Narcoestado” e da “conexão lusófona”, a África Ocidental também chama atenção para a ideia de “narcoterrorismo” a partir de uma suposta conexão defendida pelo UNODC[8] entre o tráfico de drogas, a Al Qaeda e o ISIS[9] a partir da Nigéria e arredores (Cohen, 2019).

Para a finalidade que nos interessa, o estudo da inserção de mulheres nas rotas do tráfico de drogas, é importante entender um pouco da história do tráfico de drogas, especialmente a cocaína, entre a América Latina e a África, principal rota da mercadoria para a Europa. Desde os anos 1970 surgiram os cartéis que funcionam como “empresas” transnacionais do tráfico de drogas, oriundos da Colômbia, Peru e México, responsáveis pela plantação, produção e distribuição de drogas, principalmente a cocaína e o ópio (Amorim, 2023). Para evitar o controle estadunidense na região do Caribe e contornar a queda do consumo nos Estados Unidos, o cartel Norte del Vale, da Colômbia, talvez tenha sido o primeiro agente criminal latino-americano a desenvolver uma rota própria pela África Ocidental para chegar à Europa. Estas redes de traficantes se conectaram, de início, principalmente com traficantes nigerianos e ganeses, que se espalharam por outros países da África Ocidental, como Benin, Costa do Marfim e Guiné-Bissau. Na década de 1990 estes estados se tornaram pontos de trânsito e países destino de substâncias como a cocaína e a heroína (Eligh, 2019) em conexão com países produtores na América Latina e redes de vendas em cidades dos Estados Unidos, Europa e da antiga União Soviética, bem como rotas aéreas para diversas partes da Ásia (Brown, 2013).

É nesse contexto que aumentaram as conexões com o Brasil, considerado, atualmente, a principal rota de transporte de cocaína para a Europa, a África e a Ásia. No Brasil, o fluxo de cocaína tem origem pelas fronteiras com a Bolívia, Colômbia, Peru e Paraguai, com entradas por meio aéreo (pequenos aviões), terrestre (correios, carros, caminhões e ônibus) e fluvial (pequenas embarcações principalmente na região amazônica) (UNODC, 2023). Parte da cocaína que chega ao Brasil é destinada ao mercado interno, enquanto a outra segue o fluxo do tráfico para mercados externos através dos vários portos ao longo da costa atlântica brasileira, especialmente o porto de Santos, em São Paulo.

Em termos históricos, o país foi usado por redes internacionais como um entreposto central para exportação de drogas desde o início dos anos 1990, quando foi estruturado o mercado da cocaína em São Paulo:

Mingardi (2010) identifica a presença de mulas e traficantes nigerianos em São Paulo já em 2001. Em 1997, Peter Christophe Onwumere, um traficante nigeriano importante, foi detido depois de importar cocaína da Bolívia para São Paulo, onde vivia há sete anos. No entanto, relatórios e outros documentos atestam a presença de outros agentes criminais que usavam o Brasil como base para a exportação de drogas, como, por exemplo, um grupo sérvio com base em São Paulo que contrabandeava cocaína a partir do Espírito Santo [...]. Em 2002, a Polícia Federal identificou um grupo com base em Campinas (São Paulo), que trazia cocaína do Peru para o país. Depois, a droga era enviada para a África do Sul e o Zimbábue. A operação policial levou à prisão de Nelson Yester-Garrido, cidadão cubano que alegava atuar como agente da KGB [...]. Comunicações diplomáticas divulgadas pelo Wikileaks mencionam a apreensão de drogas que viajavam da Cidade do Leste (Paraguai) para Camarões em 2005 e a consequente prisão de um nigeriano. O grande número de prisões relacionadas não foi obstáculo para a criação de muitas redes diferentes [...]. Outras investigações também registraram a forma de atuação do grupo siciliano Ndrangheta, que usava a África Ocidental como entreposto para a cocaína que vinha de São Paulo em direção à Europa [...]. Prisões recentes confirmam que o PCC desenvolveu conexões com a Cosa Nostra [...]. Sob essa perspectiva, Brasil e África figuram no mapa do tráfico internacional de drogas há tempos, apesar de servirem somente de bases de distribuição para evitar os controles e despachar grandes remessas — e obterem lucros altos com isso (Cohen, 2019, pp. 23-24).

 

Considerando as apreensões a partir de 2019, o Brasil se torna um dos principais pontos de partida da droga que chega até o continente africano, especialmente África Ocidental e Central (Amorim, 2023). Segundo o Global Cocaine Report (2023), uma das principais zonas de chegada da cocaína inclui Cabo Verde, Guiné-Bissau e Senegal. A maior parte da circulação de drogas acontece via comércio marítimo, incluindo navios de carga. A cocaína é escondida entre mercadorias legais e em contêineres piratas, podendo também ser descarregada antes de sua chegada ao porto final.

A dinâmica do tráfico de cocaína entre a América Latina e a África Ocidental ainda não foi totalmente desvendada, mas quatro grupos principais estariam envolvidos neste trajeto:

São eles: os traficantes brasileiros, sob o comando do PCC, que fazem a ponte entre as áreas de produção de cocaína e os pontos de trânsito; as redes africanas do tráfico, especialmente aquelas sob o comando de nigerianos, que operam como intermediários entre os latino-americanos e as estruturas locais de produção; as organizações criminosas europeias, principalmente a ‘NDrangheta, que muitas vezes recebem a droga na África e fazem o transporte até o destino final na Europa; e a elite político-militar que fornece proteção aos outros grupos assegurando que as transações não sejam perturbadas (Amorim, 2023, p. 79-80).

 

A partir de alianças com a elite política e as forças estatais, o desenvolvimento de mercados transatlânticos de drogas entre Brasil e África conta também com um mercado de proteções no qual colaboram exércitos, forças policiais e governos africanos. Em Guiné-Bissau, por exemplo, a polícia reuniu uma série de provas que mostra uma rede de atores locais envolvidos em negociações diretas com os traficantes da América Latina, incluindo um presidente, Nino Vieira. Na Guiné Conacri, por sua vez, alega-se que traficantes contaram com a proteção da guarda presidencial pelo menos até 2008. Assim, conectado a diversos países da África Ocidental surgiu um mercado transatlântico de clientelismos, nos quais diferentes produtores e intermediários contavam com redes em permanente conflito umas com as outras. A capacidade de oferecer proteção passou a ser primordial:

Na África Ocidental, acredita-se que o desenvolvimento da competição por proteções e controle da cadeia de valores tenha sido a causa de vários conflitos violentos na região. O conflito no norte do Mali, a competição entre grupos tribais e a rebelião tuaregue em Azawad (que levou à revolta separatista contra o governo de Bamako) podem ser citados como exemplos [...] Na Guiné-Bissau, a rivalidade e a competição estariam concentradas nas forças militares (mais precisamente na Marinha), na polícia e em diferentes redes políticas, o que contribuiria para a instabilidade do país (Shaw 2015). A necessidade de estabilidade e de proteção constantes para garantir a circulação das mercadorias tende a favorecer agentes com acesso a esses privilégios (Cohen, 2019, p. 26-27).

 

Há evidências de que, com a intensa concentração de capital e a competição gerada pelas exportações em atacado, o mercado global e as dinâmicas internacionais que ligam América Latina, África e Europa estão influenciando fortemente os arranjos criminais no Brasil. (Cohen, 2019). Nesse sentido, a competição por renda e pontos de exportação talvez possa explicar o incremento da disputa entre facções na última década em estados do Norte e do Nordeste brasileiro:

O Primeiro Comando da Capital, Família do Norte (FDN) e Comando Vermelho (CV) competem pelo controle dos principais portos e entrepostos de distribuição do país — o porto de Fortaleza, por exemplo, de onde saem veleiros e navios cargueiros carregados de cocaína com destino a Cabo Verde e Europa. Globalmente, explicou-se que os massacres em Manaus foram consequência da competição pelo controle da “rota do Solimões”, mas também se aventou a hipótese de terem acontecido graças à necessidade de assegurar o acesso ao porto da cidade (Cohen, 2019, p. 26).

 

Esse processo de exportação produz um acúmulo rápido de capital, o que talvez explique parte da centralidade da disputa territorial recente no país pelo controle de rotas navegáveis, marítimas e aeroportos. As habilidades necessárias para trabalhar em portos e aeroportos são bem diferentes daquelas necessárias nas “bocas de fumo” e exigem duas tarefas essenciais: transferir e lavar dinheiro do outro lado do Atlântico e recrutar “mulas” estrangeiras[10], capazes do transporte em pequenas quantidades por meio de aeroportos.

Estes fenômenos têm afetado cidades como Fortaleza, capital do estado do Ceará, como um dos fatores que modificam a economia criminal (Matos Jr.; Santiago Neto, 2021), mas ainda são pouco investigados empiricamente. Segundo dados da Polícia Federal em 2009, Fortaleza era a terceira cidade brasileira por onde os traficantes internacionais mais atuam na tentativa de escoar drogas produzidas na América do Sul com destino à Europa e África (Maciel, 2012). As principais conexões são estabelecidas por meio de contato com a “máfia nigeriana”, que utiliza de “mulas” como via de tráfico internacional, especialmente para Holanda e Espanha. As “mulas” têm origens regionais e nacionais as mais diversas, mas países como Cabo Verde, Nigéria, Congo, Costa do Marfim, África do Sul e Guiné-Bissau tem ganhado algum destaque, a considerar os dados de prisões realizadas pela Polícia Federal. Em 2009, por exemplo:

[...] a polícia descobriu que uma cabo-verdiana de 22 anos tentava embarcar para Lisboa levando cocaína dentro de 11 carrinhos de crianças, conhecidos como ´andajás´. O brinquedo estava servindo como meio de ocultação para sete quilos e meio de cocaína pura. A descoberta da droga foi realizada pelo cão farejador da Polícia Federal. Segundo o depoimento da cabo-verdiana ao titular da DRE, ela havia sido contratada em seu país por um nigeriano. Para transportar a cocaína do Brasil para a África, receberia US$ 2,5 mil. Portanto, contou ainda que, quando entrou no Brasil por Fortaleza, seguiu até São Paulo para pegar a ‘encomenda’ e logo depois retornou ao Ceará. O objetivo era seguir para Portugal e de lá, continuaria a viagem para a Nigéria. Ainda segundo a declarante, o primeiro contato obtido com o traficante possuidor da droga foi em Cabo Verde. A Polícia Federal, de acordo com o informe, acredita que a cabo-verdiana pudesse estar a serviço da máfia nigeriana (Maciel, 2012, p. 35).

 

O crescimento deste fenômeno foi um dos fatores que motivou a realização da presente reflexão, uma vez que mulheres africanas parecem ter destaque no papel de “mulas”, o que exige um aprofundamento analítico e maior investimento em pesquisa como subsídio à políticas públicas, não apenas de repressão e investigação, mas de acolhimento e acesso à justiça, diante da situação de vulnerabilidade social daqueles/as que são recrutadas como “mulas” e que acabam tendo como destino o sistema carcerário brasileiro.

Na seção seguinte, apresentamos a caracterização do corpus selecionado para análise, a partir do qual discernimos eixos temáticos e de abordagem sobre o fenômeno.

 

Um breve balanço da produção acadêmica sobre mulheres e tráfico de drogas

No Brasil, as pesquisas sobre tráfico de drogas e o papel de mulheres africanas de língua oficial portuguesa como “mulas” é um recorte muito específico de um conjunto maior de produções acadêmicas que abordam a inserção de mulheres no tráfico internacional de drogas. No entanto, embora trabalhos com este foco específico sejam escassos, a situação de mulheres africanas é retratada em produções mais gerais sobre o tema, em conexão com discussões como trabalho, migração e encarceramento, razão pela qual procedemos a uma verificação que partiu do geral para o particular. Assim, em nossas buscas identificamos cinquenta e sete (57) produções, incluindo TCCs, dissertações, teses, artigos, capítulos de livro e livros. Abaixo, seguem algumas das sínteses a respeito desta produção e suas características, a começar pelo caráter recente da produção sobre o tema mais amplo da relação entre mulheres e tráfico de drogas: com raras exceções, as pesquisas se concentram a partir da década de 2010, envolvendo principalmente as áreas do Direito, das Ciências Sociais e das Relações Internacionais.

Gráfico 01: Linha do tempo da produção acadêmica

Fonte: elaborado pelos autores.

 

Considerando apenas dissertações e teses (12), percebe-se uma produção bastante esparsa, com uma maior preponderância nas regiões Sudeste [São Paulo (5), Rio de Janeiro (1) e Minas Gerais (1)] e Sul [Rio Grande do Sul (2) e Paraná (1)], seguidos de Centro-Oeste [Brasília (1)] e Nordeste [Pernambuco (1)]. A sua classificação seguiu os seguintes temas:

Tabela 01: Produção acadêmica por recorte temático

TEMAS

QUANTIDADE

Processo penal e a crítica da punição

6

Migração, trabalho e tráfico de drogas

10

Inserção de mulheres no tráfico de drogas

21

O encarceramento de mulheres estrangeiras: razões, condições e experiências

18

Acolhimento de migrantes, refugiadas e egressas do sistema carcerário

2

Fonte: elaborado pelos autores.

 

Nestas produções, a abordagem de gênero advém principalmente de sua concepção como uma categoria de análise (Scott, 1995) e de conexão (Collins, 2015) que intrinsecamente se conecta a outros dispositivos de poder a fim de produzir regimes de opressão e subordinação cada vez mais sofisticados e, portanto, violentos. Nesse sentido, a categoria “mulher” nesses estudos emerge como resultado da atualização dos processos de construção das identidades subjetivas de gênero, cujos significados são produzidos e fixados a partir de símbolos e simbologias não disponíveis à livre interpretação e apropriação, pois se encontram sob o controle de diferentes instituições de poder (família, igreja, polícia, ciência, mídia) (Scott, 1995).

Com isto, a partir dessas pesquisas que enfocam a presença feminina africana nas redes internacionais de tráfico, é possível estabelecer uma conexão entre a sua posição ocupada hoje com a que lhe foi imposta no contexto do escravismo colonial, percebendo os processos de permanente construção e atualização da mulher africana como sendo de “segunda classe”, uma espécie de “mulher decaída” (hooks, 1982). Guardadas as devidas especificidades de cada época, pois aqui não se quer incorrer em anacronismos, no entanto, é possível identificar que a sua inserção ocorre mediante processos de atualização que se alimentam não apenas da raça, mas do gênero, ancoradas em formas e tecnologias de poder cuja finalidade é manter a (re)produção da super-subalternização dessas pessoas “como membros degradados e rebaixados do sexo feminino” (hooks, 1982, p. 22). Nesse sentido, o lugar reservado às mulheres africanas nas redes internacionais de tráfico de drogas atualiza a produção da imagem de controle da mulher “mula” (Collins, 2019) não apenas para fins internos ao próprio circuito, mas também externamente ao permitir e disponibilizar, para a sociedade em geral, a produção de simbologias, representações e estereótipos da mulher africana como sub mulher.

Desse modo, as perspectivas de abordagem sobre as “mulas” variam. Na área do Direito e das Relações Internacionais, alguns dos trabalhos se concentram nos aspectos legais e de segurança, considerando as implicações sociais e as políticas de combate ao tráfico de drogas e ao contrabando no Brasil. Outros abordam a discussão internacional sobre o tratamento das “mulas” e as lacunas nas convenções internacionais sobre drogas que não ofereceriam orientações específicas para contemplar as nuances do papel das “mulas”: a Convenção de Viena, que criminaliza a posse de drogas ilícitas, independentemente da finalidade (seja para consumo, transporte ou comércio) o que favoreceria a criminalização das pessoas recrutadas para transportar pequenas quantidades de substâncias ilícitas. Mesmo a legislação concernente ao tráfico de pessoas, a exemplo do Protocolo de Palermo e da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, abriria margem para a prisão de muitas “mulas” por falta de elementos comprobatórios que distinga o envolvimento voluntário ou forçado. Uma síntese de como a questão se apresenta no Brasil é apresentada por Giulia Faé (2020):

As “mulas”, atualmente, conforme o Informativo 602 do STJ, estão sendo enquadradas no tráfico privilegiado previsto na Lei nº 11.343/2006, artigo 33, §4º, diminuindo a pena a ser imposta, uma vez que elas não são traficantes e nem fazem parte da organização criminosa, mas sendo apenas “objeto” de transporte. Porém, o protocolo contra o crime organizado transnacional relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, quando verificado, mostra que há “mulas” que podem ser enquadradas como vítimas do tráfico de pessoas, seja pelo engano (quando chamadas ao trabalho) ou pela coação, ocorre que, a materialidade do fato ilícito, “retira” o tráfico de pessoas (por ser algo de alta complexidade para comprovação), sobressaindo-se o flagrante delito. Dessa forma, verificou-se que há a necessidade de tratar as “mulas” de maneira diferente, não somente por conta da vulnerabilidade, mas também para que se possa dar um tratamento diferenciado a quem merece tratamento diferenciado, de fato. As “mulas” são peças insignificantes na organização criminosa, substituíveis, insignificantes para os traficantes caso haja a sua apreensão, até porque o objetivo de haver a “mula” é exatamente esse, se tornar cada vez mais distante de ser encontrado o "chefe" do tráfico. Por isso, percebe-se que o governo deveria ter uma política que abrangesse, exclusivamente, as “mulas”, para que, quando consideradas vítimas, serem excluídas as penas, mas, quando o ato ilícito for praticado por dolo, que as penas sejam impostas de maneira adequada, nunca se comparando a um traficante internacional (Faé, 2020, p. 04).

 

Como ponto central de conexão entre os mais diversos trabalhos, nesse sentido, há o questionamento do entendimento jurídico que as equipara a traficantes, uma vez que as mulheres são frequentemente coagidas ou impelidas por desespero a participar do crime.

Outros trabalhos, especialmente da área das Ciências Sociais, do Serviço Social e da Psicologia, abordam o porquê de as mulheres serem o grupo que mais vem crescendo, no Brasil, dentro da composição de gênero no trabalho de “mula”, bem como a compreensão dos motivos para se submeterem a esse trabalho e a identificação do perfil socioeconômico (Silva, 2023).

Em um plano micro, em termos de trajetórias pessoais, relações entre papéis de gênero e motivações para ingresso no tráfico, há diversos entendimentos sobre o fenômeno. O primeiro se expressa na investigação de Hannah Prado (2016, p. 117) e relaciona-se à dependência afetiva e submissão de gênero:

M. ganhava R$ 600,00 para levar 50 gramas de droga (maconha) para seu namorado que vendia dentro da prisão por mais de 10 vezes o preço de compra da droga (R$ 7.000,00). Isto acontece, pois, o valor das drogas no interior do presídio é muito alta, por conta da dificuldade de entrar neste espaço. Ela explica que gostava do risco que corria e começou por vontade própria, mas relata que foi também por conta da pressão de amigos do namorado, que a coagiam dizendo que uma mulher deve ‘fortalecer seu homem’ que está preso, ou seja: levar drogas se arriscando do ponto de vista de sua saúde, segurança e recebendo pouco por isto (Prado, 2016, p. 117).

 

Este caso enfoca a explicação, tomando por base os relacionamentos afetivos da mulher como vítima e não protagonista. Sendo assim, ao se relacionarem com homens traficantes, tem-se a ideia de que a mulher é cúmplice ou passiva. Se atuante e exerce liderança, ela estaria rompendo com esse papel tradicional de gênero. Mas, esta pode ser uma abordagem limitante, posto que, por exemplo, boa parte das mulheres presas na condição de “mulas” eram solteiras. Nesse sentido:

A ideia de passividade pode guardar relação com o discurso atribuído à figura histórica da mula, em que esse passa a ser reafirmado pelo sistema patriarcal no tocante ao ingresso das mulheres no mercado de drogas. Porém a mulher na condição laboral de mula não está apenas como sujeita passiva, porque suas demandas concretas e materiais colocam-na em um lugar de não inércia. Todavia, os “atributos” que são levados em conta para o seu ingresso se estabelecem exclusivamente na relação desigual entre sexo/gênero. Visto que: […] a inserção da mulher no tráfico por meio desta atividade leva em conta a construção social de sua identidade. Atributos de ‘vulnerabilidade’, determinados pelo seu gênero, classe, idade, nacionalidade, etnia etc., não só são necessários como fundamentais para que exerçam esta função. Isto significa que a mulher pelo fato de ser mulher (ou pela construção de gênero socialmente atribuído a ela) se encaixa no papel de mula, pois possui as características que possibilitam o exercício deste papel (Chernicharo, 2014, p. 113 apud Duarte, 2020, p.6).

 

O lugar de “mula” é, em grande parte, ocupado por mulheres, mas esta não é uma atividade exercida exclusivamente por elas (Duarte, 2020). Os homens também atuam nessa atividade, geralmente em travessias que envolvem maior complexidade logística e elevado valor do carregamento. O que se teria hoje é uma apreensão grande de mulheres no exercício dessa atividade em locais específicos, tais como: prisões, portos, aeroportos e rodoviárias. Constata-se, mais uma vez, que o papel da mulher no tráfico de drogas está adstrito aos trabalhos de maior risco e menor remuneração e poder.

Há casos de mulheres usadas como “mulas” que são portadoras de HIV, oriundas de países onde não há tratamento para a doença e que tem sua viagem facilitada, por traficantes, ao Brasil, onde o sistema público de saúde, por um lado, é universal, não excluindo estrangeiros/as; e, por outro, possui um consolidado e reconhecido internacionalmente programa para tratamento de HIV/Aids que é gratuito e de qualidade. Os traficantes as convencem com o argumento de que “mesmo que você seja presa, na cadeia terá tratamento retroviral e você não morrerá” (Tomazoni, 2017, p. 6).

Os estudos apontam que, apesar de não serem maioria, haveria um aumento do número de mulheres envolvidas como “mulas”: segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2023), 50,3% das mulheres presas no Brasil estão nessa condição por crimes relacionados ao tráfico de drogas (Silva, 2023). Em decorrência, um contingente expressivo dos estudos se dedica à realidade das condições carcerárias e experiências de mulheres estrangeiras presas como “mulas” no país.

Ao desenvolver pesquisa bibliográfica com teses e dissertações produzidas na última década (2006-2016) sobre mulheres presas na tipificação penal prevista na Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, nas cinco regiões do país, Joana Duarte (2020) obteve como um dos resultados o aprisionamento de grande parte dessas mulheres como trabalhadoras do mercado informal e ilícito de drogas na condição laboral de “mulas”:

Ser mula, [...] segundo as produções analisadas [...] é ser uma mulher que não chame a atenção da polícia, não tenha perfil de “traficante”, seja honesta e não crie problemas. Por isso ser mula, hoje, no mercado de drogas, segundo essas produções, é como ser a mula do passado colonial, carrega mercadorias e apenas faz a rota mandada. As mulheres atuantes como mulas, de modo geral, transportam drogas para seus companheiros, filhos, netos e maridos presos, tendo de ingressar com a droga no dia de visitas, ou fazem-na em condição de mochileiras, levando de um estado/país para outro. Tipificado como “tráfico” de pequena escala: “já que só é possível manejar a quantidade de drogas que se invisibilize grudada ao corpo ou em seu interior, seja nas cavidades vaginais ou anais. A introdução por meio da ingestão, neste caso, não é possível porque não há horas suficientes para a droga ser expelida.” (Carneiro, 2015, p. 180).

O primeiro caso é o que mais aparece nessas produções, porque são presas em flagrante durante a revista íntima e, conforme apontam as autoras, em alguns casos são usadas para que um carregamento maior entre enquanto elas são detidas. Estamos falando de mulas-iscas que, por vezes, são contratadas justamente para serem presas, sem que as mesmas saibam. Em média, essas mulheres ganham entre 600 e 2 mil reais para atuarem como mulas. Os preços mais baixos são justamente os que implicam maior risco, no caso, o de tentar ingressar no sistema prisional. Outra questão importante é o número de mulheres mais velhas nessa atuação, tanto pelo fato de “chamarem menos a atenção”, bem como por estarem também em condições mais degradantes de acesso ao trabalho formal (Duarte, 2020, p. 04).

 

“Mulas”, portanto, são indivíduos que, conscientemente ou não, são recrutados para transportar drogas, geralmente para outros países. Em casos mais extremos, as drogas são armazenadas em orifícios físicos do corpo humano ou por meio da ingestão, são acondicionadas no estômago em sua forma encapsulada ou em pacotes, embrulhada com plásticos. O objetivo de uma “mula” é contornar os controles no envio de drogas, ao mesmo tempo em que dificulta a chance de ser encontrado o “chefe” do tráfico (Faé, 2020). A detenção e, até mesmo, a morte de algumas “mulas” são vistas vastamente como perdas compensadas pelo lucro proporcionado por aquelas que chegam com sucesso aos seus destinos. Mesmo que o sucesso das empreitadas seja baixo, os riscos econômicos para os empresários envolvidos são muito limitados (Cohen, 2019). As “mulas” são consideradas peças insignificantes na organização criminosa, substituíveis para os traficantes caso haja a sua apreensão.

A utilização de “mulas” pressupõe um contexto social de vulnerabilidade e pobreza capaz de induzir ou coagir indivíduos a assumirem grandes riscos tendo em vista a resolução de conflitos (famílias ameaçadas) ou oportunidades de imigração (fuga de contextos de guerra e fome). Os estudos enfatizam, então, que a participação das mulheres, em atividades do narcotráfico consideradas vulneráveis, refletiria a realidade histórica da “feminização da pobreza”: ao longo dos anos, as mulheres foram submetidas a trabalhos menos remunerados, com menos poder e reconhecimento. A combinação de fatores como pobreza, violência e declínio das oportunidades de emprego criaria um ambiente propício para que os traficantes ofereçam trabalhos ilegais de alta vulnerabilidade, como o papel de “mula”. Devido a essa maior vulnerabilidade, essas mulheres tendem a ser frequentemente capturadas, enquanto o sistema punitivo falha em prender os grandes traficantes (Silva, 2023).

Citando o estudo de Bárbara Soares (2002) sobre mulheres na prisão, Joana Bahia (2013) afirma que, segundo a autora

[...] quando questionadas sobre o lugar que ocupavam no tráfico, 78,4% das presas condenadas por esse delito referiram-se a funções subsidiárias ou a situações equívocas que, por infortúnio, as teriam levado à prisão. Boa parte se definiu como bucha (a pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidora, mula ou avião (transportadora da droga), vapor (que negocia pequenas quantidades no varejo) e cúmplice ou assistente/fogueteira. Algumas mulheres se identificaram como vendedoras — sem especificar em que escalão se situavam —, e apenas uma pequena parte delas utilizou expressões que sugerem papéis mais centrais, como: abastecedora/distribuidora ou traficante, caixa/contabilidade, gerente e dona de boca. Cabe ressaltar as funções relacionadas com o sexo, que também fazem parte do tráfico e que ainda são pouco abordadas na literatura sobre violência (Bahia, 2013, p. 62-63).

 

Este estudo sobre a prisão feminina Nelson Hungria, no Rio de Janeiro, onde se encontram as mulheres estrangeiras que são presas pela Polícia Federal, nos aproxima da problemática principal do nosso artigo: haveria uma predominância de latino-americanas, seguidas de europeias, cuja presença é mais antiga, e de africanas. Apesar disso, o contingente africano teria mais visibilidade na imprensa, nos processos e na representação dos agentes penitenciários. Segundo a pesquisadora:

Isso nos leva a crer que outros critérios estão em jogo nessa visibilidade que não os meramente objetivos (estereótipos). Lembramos também que, em razão da receptividade de refugiados de origem angolana (maior fluxo no período da guerra de Angola, ocorrida entre 1976 a 1991), essa população se encontra em evidência desde o tempo da guerra. Tal fato aumenta a visibilidade dos presos dessa origem, causando generalizações que misturam refugiados africanos com presos africanos de diversas origens. Para muitos agentes, todo africano é traficante, e, por terem experiência na guerra, sabem conviver com a realidade das favelas cariocas (Bahia, 2013, p. 69).

 

Alimenta ainda mais esta percepção o fato de que parte dos envolvidos nos casos de tráfico e transporte de drogas nos processos de quase todos os prontuários das presas são homens de origem africana (angolanos e nigerianos) que já atuam há um bom tempo no mercado de drogas brasileiro e, por extensão, no internacional. As histórias mostrariam uma extensa rede de contatos, pois muitas dessas mulheres viajaram para o Brasil com contatos previamente agendados, atuando na condição de “mulas”, disfarçadas de turistas que retornavam de férias para seus países, com conexões nos voos em Lisboa e Madri.

Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN, 2020), entre junho e dezembro de 2019, o Brasil tinha 34.365 mulheres presas. Desse total, 50,94% (17.506) respondiam por crimes relacionados ao mercado de drogas, tipificado na Lei nº 11.343/2006. Sobre o aprisionamento de mulheres estrangeiras: a maioria é do continente americano (239), com maior incidência sobre bolivianas 37,24% (89); venezuelanas 17,15% (41); paraguaias 15,6% (36); colombianas 10,04% (24); e peruanas 5,02%.O documento ainda aponta o continente africano em segundo lugar em população estrangeira feminina, com 52 mulheres em privação de liberdade no Brasil; desse total 34,62% (18) são oriundas da África do Sul; 19,23% (10) de Angola; e 15,38% (8) tipificado como outros países do continente africano (Duarte, 2020).

Na próxima seção nos aprofundamos nas relações entre Brasil e continente africano, considerando o mercado de drogas e a condição de mulheres como “mulas”.

“Mulas” no comércio transatlântico Brasil-África-Europa

Figura 01: Mapa das rotas de tráfico de cocaína a partir da América do Sul com base em relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) em 2023

Uruguai na rota do tráfico de drogas, adverte a ONU - Prensa Latina

Fonte: Uruguai na rota do tráfico de drogas, adverte a ONU - Prensa Latina.

 

Historicamente, o protagonismo no uso de “mulas” do tráfico remonta à década de 1950, principalmente da parte de nigerianos, quando autoridades nos Estados Unidos identificaram as redes de tráfico de heroína organizadas entre Lagos, Abidijan e Beirute (Cohen, 2019). Nos anos 1960, nigerianos e ganeses exportavam maconha para a Europa e, nas décadas seguintes, passaram a trabalhar com heroína e cocaína. Os empresários do crime nigerianos passaram a ocupar um papel de maior proeminência e parecem ter ampliado sua participação no mercado, figurando agora como importantes subcontratados para empresários brasileiros e envolvidos com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). Nos últimos anos, eles se estabeleceram especialmente em São Paulo e acredita-se que alguns dos organizadores nigerianos do tráfico circulem extensivamente entre diferentes países da Ásia, a Nigéria, o Brasil e a Venezuela (GI-TOC, 2023). O recrutamento de “mulas” se tornou um negócio que abrange diferentes perfis de risco e agentes criminais, cada vez mais interessados na exploração dos perfis mais baratos e vulneráveis, recrutados nos centros das cidades e nas igrejas, importantes espaços para as comunidades imigrantes.

Mas, com o aumento do número de africanos vivendo no país, que subiu de mil no ano 2000 para 30.000 em 2012, há uma maior diversificação das populações: nigerianos, angolanos, congoleses, bissau-guineenses, entre outros, compõem o universo demográfico vulnerável ao apelo e à pressão do tráfico. Ao contrário da imagem criada por programas sensacionalistas brasileiros da TV aberta, focados em casos de apreensões vultosas de grandes traficantes[11], a situação da maioria é de vulnerabilidade e pobreza. Conforme Cohen (2019, p. 28):

A maior parte dos nigerianos e senegaleses pagaram milhares de dólares para conseguir se estabelecer no Brasil depois de cruzar ilegalmente a fronteira do Equador, onde chegam sem o visto. Outros solicitaram um visto temporário antes de viajarem. Ao se ver em São Paulo, a maioria esperava conseguir trabalho, especialmente tendo em vista a Copa do Mundo de futebol de 2014. Acabaram trabalhando com contratos diários ou semanais para grandes construtoras ou ajudando outras pessoas da mesma nacionalidade em seus pequenos negócios. Alguns se acomodavam e socializavam em igrejas evangélicas frequentadas por outros nigerianos. Outros pagavam entre R$ 600 e R$ 800 mensais em contratos informais de aluguel de camas em dormitórios, quantia muito alta para seus salários. Os lucros individuais das mulas são muito baixos em comparação ao risco que assumem. Entrevistas realizadas em São Paulo sugerem que a maioria das mulas recrutadas por nigerianos é formada por conterrâneos, mas também por brasileiros, sul-africanos, congoleses e senegaleses, todos considerados mulas “de baixo custo”. Algumas dessas pessoas desejam voltar aos seus países de origem depois da experiência no Brasil. Apesar de ter consciência do que estão fazendo, a maioria desconhece os riscos de prisão e morte (relacionada à implosão das cápsulas de droga dentro do organismo), e a existência da pena de morte em alguns países da Ásia e do Oriente Médio [...]. Em vez de criminalizadas, essas pessoas deveriam ser consideradas vítimas de uma forma de tráfico humano. Elas devem trazer bagagens de terceiros ou esconder a mercadoria na própria bagagem. Como pagamento, recebem a viagem de retorno ao seu país, mais US$ 1.000,00. O “modelo de negócios” por trás dessa atividade demanda a contratação de muitos indivíduos devido ao alto risco de serem descobertos.

 

Há, portanto, subjacente às motivações individuais, um contexto maior de miséria e de urgência, bem como de construção social de gênero, que favorece a tomada de decisão de mulheres em se arriscarem na função de “mulas”. Em relação às mulheres africanas, especificamente, há poucos estudos sobre sua realidade social, cujo conjunto plural de atribuições sociais e experiências de vida ultrapassa uma visão dicotômica presa a relações afetivas ou de submissão. Nesse sentido, é preciso chamar atenção para as variadas formas de inserção desse público no mercado laboral formal e informal, como negociantes de mercadorias legais e ilegais entre África, América e Ásia (Tran, 2014), e que necessitam ser cuidadosamente analisadas para uma melhor compreensão dos determinantes específicos do tráfico de drogas.

Em relação à África, a contribuição de Silvia Federici (2019, p. 184-186) ilumina um aspecto central: para a autora, os programas de ajuste estrutural, apesar de serem promovidos como uma forma de recuperação econômica, destruíram a subsistência das mulheres, tornando impossível para elas reproduzirem suas famílias e a si mesmas:

Um dos principais objetivos dos programas de ajuste estrutural é a ‘modernização’ da agricultura, ou seja, sua reorganização em uma base comercial e de exportação. Isso significa que mais terra é direcionada para o cultivo comercial e mais mulheres – as principais agricultoras de subsistência do mundo – são deslocadas. As mulheres também foram desalojadas pelos cortes no setor público, que resultam na destruição de serviços sociais (Federici, 2019, p. 184-186).

 

No caso de Angola, por exemplo, o histórico de quarenta anos de conflitos sociais decorrentes das guerras de independência, gerou grande fluxo de deslocados, especialmente para a capital, Luanda, com significativa participação de mulheres e crianças, grupos que estiveram vulneráveis durante o processo de fuga, nos campos de refugiados ou deslocados internos, e no retorno aos locais de origem. Esta situação favoreceu não somente a inserção no tráfico de drogas, mas também a emergência de um circuito de tráfico de mulheres para exploração sexual e de órgãos (José, 2021). Luanda, hoje, é marcada pelo inchaço populacional e desemprego, que fizeram do trabalho informal[12], com pujante predomínio do trabalho feminino em suas fileiras, a principal fonte de renda de grande parte das famílias angolanas:

Segundo Moura [2009], um dos resultados da desestruturação e desintegração familiar e do deslocamento forçado de famílias durante o conflito angolano foi a adopção, por parte das mulheres, de um papel mais preponderante tanto dentro da unidade familiar como nas suas comunidades. Entretanto as nossas próprias observações não sustentam exatamente esta interpretação. Durante a entrevista com os líderes comunitários de Winji-Maka II, em Luanda, indagamos o fato de não haver mulheres na liderança comunitária. Disseram-nos que havia quando foi criada a associação, no entanto tiveram que abandonar as suas funções por serem as garantidoras do sustento da família através do seu trabalho (normalmente no mercado informal), dessa forma passam a não ter tempo para os assuntos comunitários [...] Por outro lado, ainda segundo Moura [2009], a instabilidade das famílias resultante do conflito em Angola e a frustração associada a um processo deficitário de reintegração de ex-combatentes contribuiu para um aumento de casos de violência doméstica. São frequentes os relatos de que, regressados às suas comunidades, sem um emprego ou um papel activo a desempenhar, e perante a liderança económica assumida pelas mulheres no interior da família, os antigos combatentes recorrem ao consumo de álcool e à violência intrafamiliar como forma de canalização das suas frustrações. A suposta mudança nos papéis de género deve, pois, ser analisada com cautela (Nascimento, 2014, p. 09).

 

Nesse sentido, a inserção de mulheres africanas nas rotas de emigração é estruturada em um contexto de maior protagonismo e ao mesmo tempo de fragilização do papel do gênero feminino em sociedades africanas, tendo em vista que, tradicionalmente, elas são as responsáveis pelas atividades domésticas e, mais recentemente, passaram a acumular a função de provedoras, sem necessariamente alcançarem, com isso, posições públicas de comando, seja em nível comunitário ou estatal. Ao atuarem como “mulas”, estas mulheres submetem-se tanto a um papel de gênero subordinado, como à acusação de cumplicidade com o narcoterrorismo. Condicionadas pelos problemas econômicos e de integração social nas sociedades em que são imigrantes, mulheres se submetem a uma atuação de risco tendo em vista coações, o retorno a seu país de origem ou emigração a um país visto como mais promissor.

Por outro lado, para Bruna Bumachar (2016), refletindo a partir de estudos sobre a participação de mulheres africanas na “informalidade” e comparando com a situação de africanas presas, afirma que:

[...] a participação dessas comerciantes na “informalidade” urbana não significa necessariamente uma prática de marginalização feminina, sendo os rendimentos obtidos por elas relevantes para os orçamentos familiares e a economia nacional. Isso pode se desdobrar mesmo quando há mobilização de práticas econômicas nas fronteiras entre os universos “(in)formais” e “(i)legais”. Para as rabidantes, por exemplo, Grassi (2002) destaca a ausência de escrúpulos – ou seja, a possibilidade de recorrer a atividades “ilegais”, como lavagem de dinheiro e transporte de drogas – e a capacidade de realização de viagens internacionais enquanto dois dos principais recursos utilizados por essas mulheres para obtenção de sucesso nos negócios. [...] Ao que tudo indica, o mesmo ocorre com parte significativa das estrangeiras presas. Envolvidas em atividades remuneradas “informais” em seus países de origem, muitas delas vêem no transporte de cocaína uma das possibilidades para manejarem os elementos sociais e econômicos disponíveis de acordo com a situação e as oportunidades. Tal possibilidade, no entanto, não deve ser reduzida somente às questões econômicas emergenciais, como bem mostra o caso de Ndzira, uma moçambicana, negra, cuja família tive a oportunidade de conhecer nos arredores de Maputo na ocasião da produção das vídeo-cartas, em 2012. Residindo com seus pais, a irmã mais nova, as duas filhas e duas sobrinhas numa casa de caniço composta de um quarto e uma sala-cozinha, Ndzira decidiu garantir os recursos necessários para construir uma outra, de alvenaria, para sua família. Amante do Brasil, a moça de 25 anos viu nas suas três vindas a São Paulo a oportunidade para realizar não apenas o sonho familiar de viver na casa própria de concreto, mas também o sonho pessoal de conhecer o país das suas adoradas novelas. E, de quebra, teria a chance de deslanchar sua minguada atuação como comerciante com a venda, em Maputo, das mercadorias compradas no Brás, bairro comercial localizado no centro da capital paulista (Bumachar, 2016, p. 81).

 

Diferentes contextos, portanto, favoreceram a inscrição de mulheres nas rotas do tráfico de drogas. Os estudos sobre consequências de guerras civis, o protagonismo feminino no comércio e os circuitos de migração configuram eixos centrais para a compreensão da realidade de países como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Uma das táticas para a compreensão da situação de mulheres como “mulas” do tráfico se dá nos estudos sobre encarceramento. Em um estudo-reportagem, por exemplo, Isabel Nery (2019) analisou, através da triangulação transatlântica (África-América-Europa) de uma mulher condenada por tráfico de droga, o problema da emigração, das questões de gênero, da criminalidade e do jornalismo:

Jesufina estava grávida da terceira filha quando viajou de Cabo Verde para o Brasil, onde se abasteceria com os “pacotes” de cocaína que lhe pagariam para transportar. A «mula», como ficam conhecidas as mulheres que levam e trazem droga em pequenas quantidades, é apanhada no aeroporto. Nunca mais regressará a casa. Nem aos filhos menores que deixou em Cabo Verde. Condenada a cerca de cinco anos de prisão, tem o bebé como reclusa no Estabelecimento Prisional (EP) de Tires, perto de Lisboa. A Cabo Verdiana é apenas uma das cerca de 200 estrangeiras que povoam o sistema de reclusão português. Nas cadeias portuguesas, estas mulheres representam cerca de 18 % das condenadas. A maioria tem filhos, e muitas vivem com eles na prisão. O tráfico de droga é a principal causa de detenções de mulheres estrangeiras em Portugal (Nery, 2019, p. 93).

 

No Brasil, mesmo que a maior parte dos estudos se volte à situação de presas estrangeiras latino-americanas, foi possível localizar pesquisas que se depararam com mulheres africanas, a exemplo de análise das condições judiciais de tratamento de uma mulher namibiana, mãe solteira e HIV positiva que foi criminalizada pelo tráfico internacional de drogas no Brasil (Fernandes, 2022). Em relação aos países de língua oficial portuguesa, destacamos estudo (Silva; Eiterer, 2017) que aborda, entre outros casos, o de Leleti Khumalo (pseudônimo), que nos parece representativo de tantas trajetórias:

Leleti Khumalo é de Cabo Verde, afirma que veio para o Brasil de forma ilegal com o sonho de ganhar dinheiro e realizar uma “cirurgia” para que pudesse engravidar. Tem menos de 30 anos de idade, negra, tem dificuldade em compreender o português falado no Brasil. Ao chegar ao Brasil, ela foi presa no aeroporto por transportar drogas. Leleti conta que em seu país trabalhava em um salão de beleza, tem mais irmãos e que brigava muito com sua mãe por causa de seu sonho de vir para o Brasil. Em seu país natal, ela deixou namorado e amigos, acreditando ser possível retornar rápido. Quando já na penitenciária, teve muita dificuldade para adaptar, talvez em função do não domínio da língua e desconhecimento das leis brasileiras. Está em regime fechado, não recebe  visitas,  trabalha  em  uma  das  empresas  instaladas  dentro  do  complexo penitenciário. É por meio da remuneração deste trabalho que compra produtos de higiene  pessoal  e  outros  objetos  autorizados,  como  sandálias,  frutas,  biscoitos. Comunica-se muito pouco com seu companheiro e familiares e quando o faz é por meio do telefone público. [...] Afirma que tem vergonha de sua condição de presidiária e indica que no Brasil tem a possibilidade de receber um tratamento mais humanizado. O que nos faz nos perguntar sobre a realidade dos presídios em Cabo Verde. A condição de presa estrangeira dificulta ou torna a vida de Leleti mais complexa do que das demais. As dificuldades em compreender hábitos e costumes de um outro país que não o seu, compreensão e domínio da norma culta mesmo que seu país de origem, de colonização portuguesa, utilize o português. É visível as dificuldades de domínio da cultura local, bem como da língua portuguesa na variante brasileira. Durante nosso período de pesquisa presenciamos em vários momentos choro e queixas de muita saudade por parte de Leleti [...] A partir do que ela relata, sua família mora em uma zona periférica da cidade de Praia, capital de Cabo Verde. Ainda muito jovem, sofreu com as imposições culturais de seu país, onde a mulher está condicionada a um respeito ao pai e, após o casamento, ao marido. Segundo Leleti, não é permitido separação, traição por parte das mulheres, podendo elas serem devolvidas ao pai caso não correspondam ao esperado, ou seja, cumprir seu papel de mãe e esposa dedicada. As relações familiares em seu país nos indicam uma condição de submissão sobre o julgamento do masculino, que coloca as mulheres em um lugar de menor valor. Marcas  deixadas  por  um  processo  de  colonização  portuguesa  e expropriação do povo caboverdiano (Silva; Eiterer, 2017, p. 810-811).

 

O estudo de situações como estas merece maior investimento, mas costuma esbarrar em uma série de problemas, a exemplo dos relativos a determinações legais, como a de deportação após cumprimento de pena ou acordos de extradição. Nesse sentido, temos o estudo de Sousa (2017) que pretendia, de início, ser uma pesquisa sobre mulheres cabo-verdianas que estavam presas por tráfico de drogas no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, na região metropolitana de Fortaleza, no Ceará, considerando as relações entre as mulheres e suas famílias, bem como as rotas comerciais de drogas que interligam o Nordeste brasileiro como escoamento da produção da Bolívia e da Colômbia para países da África e Europa. O estudo, no entanto, foi interrompido por acordo de extradição das detentas entre os governos brasileiro e cabo-verdiano.

Outro locus relevante para pesquisas que abordam a inserção feminina africana nas redes do tráfico de drogas são as instâncias de acolhimento, estatais ou da sociedade civil, de refugiadas, migrantes e egressas do sistema penitenciário (Souza, 2017; Pellegrini, 2022a; 2022b), como revela o depoimento de Rose, de Cabo Verde:

Fui presa no Brasil pela Polícia Federal no aeroporto, onde fiquei três dias, depois fui transferida para o presídio e fui me adaptando no lugar juntamente com as outras mulheres presas. Tive quase depressão por conta que minha ficha ainda não tinha caído sobre o que tinha ocorrido comigo. Com o tempo fui aceitando a situação em que fiquei um ano e cinco meses. Se existe o inferno é lá no presídio, passei por muita humilhação. Logo em seguida, com a tornozeleira fui encaminhada numa instituição religiosa que me acolheu e está ajudando no que é necessário até o final do processo (Pellegrini, 2022a, p. 255).

 

As diversas situações de precariedade indicadas nos estudos demonstram o quanto esta é uma realidade que se torna cada vez mais relevante a ser investigada, sobretudo com o estabelecimento de um maior fluxo de pessoas e mercadorias entre Brasil e África, a exemplo da situação de Fortaleza, no Ceará, como ponto de conexão. Entre as principais orientações teóricas encontradas nas pesquisas, estão as que relacionam precariedade laboral, imigração e vulnerabilidade de gênero como sobreposição que oportuniza os circuitos de tráfico de drogas e a condição de mulheres como “mulas”, em um processo de criminalização e penalização de mulheres africanas de países de língua portuguesa, e não somente, que reitera o legado histórico colonial.

 

Considerações finais

No presente trabalho elaboramos um levantamento da produção acadêmica em língua portuguesa, especialmente na área das Ciências Sociais, sobre o tema da participação de mulheres em redes internacionais de tráfico de drogas entre América Latina, África e Europa. O objetivo foi analisar principalmente a situação das mulheres dos PALOPs nestas redes, uma vez que elas fazem parte das preocupações de pesquisa surgidas na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) sobre o tráfico de drogas no Nordeste brasileiro.

Foi possível constatar que a abordagem desse tema é recente, principalmente a partir da década de 2010, com o cruzamento entre quatro subtemas principais: 1. processo penal e crítica da punição; 2. migração, trabalho e tráfico de drogas; 3. encarceramento de mulheres estrangeiras: razões, condições e experiências; 4. acolhimento de migrantes, refugiadas e egressas do sistema carcerário. Em cada um, buscamos localizar estudos que tiveram como foco as mulheres africanas em geral e, em seguida, as de países de língua oficial portuguesa.

Pudemos constatar que há problemáticas gerais que afetam as mulheres independentemente da origem nacional e que dizem respeito ao somatório de vulnerabilidades sociais e de gênero em condições laborais precárias e subalternas. Ao procurarem na mobilidade internacional uma forma de elaborar um novo futuro, mas que elas acabam se colocando em situações de risco na condição de “mulas” do tráfico de drogas, onde encontram e compartilham um desfecho comum: a prisão como destino. Enquadradas como traficantes, estas mulheres passam por experiências de sofrimento que, no caso das estrangeiras, se somam às dificuldades de inadequação cultural, de compreensão dos processos e da própria vida na prisão. Se não retornam ao seu país de origem, elas se veem por conta própria ou, quando muito, contam com o apoio das poucas organizações que trabalham no acolhimento a migrantes e egressos do sistema penitenciário.

Em relação aos PALOPs, pudemos constatar algumas demarcações, como o fluxo mais corrente de tráfico de drogas entre Brasil e Cabo Verde, e a sobreposição entre tráfico de drogas, de pessoas e de órgãos, principalmente em Angola e em Moçambique. Mas estas demarcações são superficiais, pois há falta de estudos que aprofundem o conhecimento destas realidades e que possam subsidiar ações de promoção de direitos humanos e de cidadania para mulheres que buscam protagonismo, mas que se veem colocadas em uma dupla subordinação, vinculada ao gênero e à colonialidade: a responsabilidade de sustento da família em funções laborais de pouco prestígio (agricultura e pequeno comércio de rua) e o entrelaçamento com oportunidades de risco no mercado de drogas em contextos, muitas vezes, de migração forçada.

Longe de reiterar um “afropessimismo” que corrobora imagens negativas sobre África, buscamos com este estudo alertar para uma realidade que necessita ser pesquisada e enfrentada em um esforço de colaboração horizontal entre países que são afetados pelas rotas de exploração do tráfico de drogas em uma geopolítica marcada pela desigualdade.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 01/04/2024.

Aceito em 22/05/2024.



[1] Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC), atualmente professora adjunta do Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência e da Radicalização (LEVIR). Brasil. E-mail: silviana_mariz@unilab.edu.br | https://orcid.org/0000-0002-3561-2344

[2] Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente professor adjunto do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab). Coordenador do Laboratório de Estudos da Violência e da Radicalização (LEVIR). Brasil. E-mail: fvasconcelos@unilab.edu.br | https://orcid.org/0000-0003-3807-3187

[3] Por esse termo, compreendemos também as identidades trans femininas, embora não as tenhamos localizado na produção analisada.

[4] Programa “Direitos Humanos, Violências, Segurança Pública e Justiça Criminal: um mapeamento da produção acadêmica sobre a ‘África lusófona’”, criado em 2019 com os objetivos: 1. realizar mapeamento temático, conceitual e metodológico no campo dos estudos sobre direitos humanos, violência, crime, segurança pública e justiça criminal em “África lusófona”; 2. analisar as concepções de políticas públicas de segurança e justiça criminal nestes países; 3. favorecer a comparação entre a produção e as realidades dos países da “África lusófona” entre si e com o Brasil, bem como pesquisas empíricas.

[5] Projeto de Iniciação Científica “Mulheres e tráfico de drogas nos países africanos de língua portuguesa”, aprovado em edital interno da Unilab, iniciado em 2022 e finalizado em 2023.

[6] Utilizamos como fonte para extração de dados o banco de teses e dissertações da Capes e o buscador Google Acadêmico, com o uso das seguintes palavras-chave com conectores booleanos: “tráfico de drogas” + “mulheres” + “mulas”; “tráfico de drogas” + “África” + “mulas”; “mulheres no tráfico” + “estrangeiras”; e em associação com o nome de países: Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde Brasil. Foram localizadas cinquenta e sete (57) produções, incluindo TCCs, dissertações, teses, artigos, capítulos de livro e livros, que serão melhor discriminados posteriormente.

[7] Apesar da sua centena de grupos de pesquisa, em maioria concentrados na área das Humanidades e alguns deles especializados em África contemporânea ou nos estudos feministas em África, a abordagem dessas temáticas não foi encontrada na forma de artigos em revistas especializadas; quando muito, localizamos trabalhos de conclusão de curso de graduação (TCC) sobre tráfico de órgãos desde África.

[8] Refere-se ao Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime cuja denominação em inglês, United Nations Office on Drugs and Crime, dá origem à sigla.

[9] Refere-se ao Estado Islâmico do Iraque e da Síria cuja denominação em inglês, Islamic State of Iraq and Syria, dá origem à sigla.

[10] No Brasil, a maior quantidade de “mulas”, não brasileiras, presas em aeroportos brasileiros no período de 2018 até os quatro primeiros meses de 2021 eram nigerianas (UNODC, 2023).

[11] Há alguns casos de mulas “de elite”, como a sobrinha de Odumegwu Ojukwu, ex-presidente da “Biafra independente”, detida em 2015 quando chegava de São Paulo em um voo com escala em Dubai carregando 2,4 kg de cocaína. Outro caso foi o de Okolo Emenike Kingsley, empresário que trazia 9,15 kg de cocaína nos sapatos que carregava na mala (Cohen, 2019, p. 07).

[12] Em Angola as chamadas zungueiras – muitas vezes com os filhos pequenos amarrados às suas costas – vendem de tudo nas ruas: panelas, utensílios domésticos, frutas, biscoitos e doces, dólares e kwanzas, roupas, bebidas, livros, jornais etc. (Nascimento, 2014). Já em Guiné-Bissau, temos as bideiras, vendedoras de peixes, e em Cabo Verde as rabidantes, comerciantes transnacionais.