Apresentação



Como pensar num mundo sem imagens? O simples exercício de imaginá-lo comprova sua impossibilidade, já que nós imaginamos através de imagens. Imagens que só existem dentre nós – as chamadas por Hans Belting de imagens endógenas, as representações “internas” formuladas a partir de nosso cérebro (Belting, 2014, p. 13). Pois bem, somos cercados por elas. Elas nos interpenetram. Nós, seres humanos, as produzimos incessantemente. Seja dentro do nosso corpo, ou fora dele – as imagens exógenas. Para muitos teóricos, como Georges Bataille (2019), talvez possamos começar a nos compreender como seres humanos a partir daí. Sendo os humanos os únicos seres que transformam “[...] formações naturais em imagens e determiná-las como pertencendo a uma esfera própria” (Bredekamp, 2015, p. 16).

Se não podemos pensar num mundo sem imagens, talvez nem sequer possamos imaginarmos nós mesmos, seres humanos, sem elas. E sendo assim, seria demasiado impertinente pensar o ser humano no tempo, ou seja, na história, sem imagens. E aí encontramos acertada justificativa para pensar o dossiê História e Imagem.

Nos tempos de agora, a imagem parece receber atenção ímpar – muito provavelmente em virtude da dita importância que esta ocupa em nossa sociedade. A afirmativa que “vivemos numa civilização da imagem” parece não cessar de ser pronunciada, principalmente pela imprensa de larga circulação e pelo grande público. No entanto, dificilmente um especialista concordaria com tal sentença, uma vez que a imagem foi elemento central em diferentes sociedades e em díspares tempos históricos. Nossa contemporaneidade se diferencia pela rapidez e pela fluidez tanto da produção como da reprodução técnica da imagem. Há muito, as imagens deixaram de apresentar meras ilustrações de textos historiográficos e passaram a ser local de análises e problematizações do historiador, outrora apenas habituado a investigar textos.

O ponto de partida do dossiê História e Imagem é o Grupo de Trabalho (GT) História e Arte da Seção do estado de Santa Catarina da Associação Nacional de História (Anpuh-SC). O presente dossiê reúne pesquisas que têm em seu cerne a imagem e suas relações com os mais distintos tempos. O conjunto de textos – artigos, ensaios, resenha e entrevistas – reunido nessa edição da Revista Fronteiras tem como mote o uso das imagens dentro do campo da história. Apresentamos, assim, uma produção ampla e deveras atual acerca das imagens como objeto, fonte e problemática para o historiador. Sendo que tais imagens são dadas a ver em distintos meios, como fotográfico, fílmico, pictórico, escultórico.

A Professora Maria Bernardete Ramos Flores – quem no ano de 2015 fundou o GT História e Arte da Anpuh/SC – abre e fecha nosso dossiê. Abre com o artigo intitulado Imagem, corpo, replicante, no qual problematiza, aborda e entrelaça os três complexos conceitos. A imagem é pensada sob duas possibilidades: através do mito da caverna de Platão e do texto bíblico do Genesis, no qual nós somos a imagem e a semelhança. As imagens analisadas partem de dispares temporalidades e materialidades, como telas de Giorgio De Chirico do século XX e esculturas tanto da Antiguidade Clássica, como da brasileira Maria Martins. Tal texto aborda o corpo e suas imagens a partir de uma perspectiva de teóricos de peso, como Aby Warburg, Georges Didi-Huberman, Giorgio Agamben, Walter Benjamin. Na mesma linha teórica segue A pathosformel da agressão: do mitra tauróctono às imagens de violência racial contemporânea, de Luana Wedwkin. Quem através do conceito de warburguiano e de imagens da Antiguidade discutiu e analisou fotografias do ano de 2020 que deram a ver a violência policial e a discussão do racismo na atualidade. Vera Pugliese e Adriel Dalmolin Zórtea, em A Ninfa e a Pérola: inquietações warburguianas dirigidas à série Pratos de Adriana Varejão, partiram de uma personagem teórica de Aby Warburg – a ninfa – para problematizar também uma imagem do século XXI, as obras da artista plástica brasileira Adriana Varejão.

As telas de outro conceituado artista brasileiro foram objeto que recebeu destaque em Pedro Américo entre os tempos: Abizag, Judite, Jocabed, Joana D’Arc e Margarida em telas oitocentistas. No artigo, Daniela Queiroz Campos e Amanda Paitax analisaram as telas de Pedro Américo através tanto de texto, como de outras imagens produzidos em diferentes momentos históricos a partir da discussão de temporalidade de Georges Didi-Huberman e Aby Warburg. Partindo de similar escolha teórica, Paulo Henrique Tôrres Valgas faz uma proposta e um exercício bastante diferente. Em História da arte, fantasmas e sobrevivências: análise de um projeto de ensino para o Ensino Médio da rede pública nos apresenta o exercício de montagem de painéis imagéticos, como os do Atlas Mnemosyne, com os alunos. Ainda tendo como mote a temporalidade das imagens, Isadora Muniz Vieira a conjuga com outra discussão bastante em voga, a decolonialidade. No artigo O Regime Escópico da Colonialidade: apontamentos teóricos para o estudo das imagens no campo historiográfico decolonial analisou imagens do dito “outro” em telas de Albert Eckhout, gravuras do século XIX e revistas do século XX.

Tendo como o enfoque a fotografia, Wilson de Oliveira Neto, em Retratos em Feldgrau: fotografias de soldados alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), analisou e discutiu a prática fotográfica no século XX. Através de retrato de soldados alemães devidamente uniformizados que não encaravam o inimigo no campo de batalha, mas as lentes de uma câmera num estúdio fotográfico. Em O mundo dos trabalhadores/as das minas de carvão no Sul do país nas fotografias (1945-1964), Bruno Mandelli apresentou uma análise histórica a partir das fotografias que davam a ver não soldados, mas trabalhadores em minas de carvão no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Sob a perspectiva da reprodutibilidade técnica da imagem, em Entre espadas y sandalias. Un análisis histórico e iconográfico de los posters orientalistas en el péplum italiano hacia mediados del siglo XX, Ezequiel Cabrera discute os pôsteres da indústria cinematográfica italiana de meados do século XX. Rodrigo Rui Simão de Medeiros, por sua vez, aborda imagens fotográficas nas páginas de revistas brasileiras do século XX, em Carnes que atravessam o tempo: moda, corpo e fotografia.

Em A questão da imagem e o conhecimento histórico, Elisa Pomari teve como enfoque não uma imagem propriamente dita, mas sua historiografia e teoria. Assim, conduziu uma interessante análise sintética sobre os usos das imagens pela área de História.

Giovanna Trevisan assina a resenha do livro Uma africana negra no Louvre, de autoria da historiadora da arte francesa Anne Lafont. O texto, intitulado Noção de mobilidade em Lafont: retrato de uma mulher negra no Ocidente, nos apresenta de uma maneira crítica e instigante o primeiro livro de Lafont publicado no Brasil.

Por fim, o dossiê é fechado com chave de ouro, uma entrevista com Maria Bernardete Ramos Flores. Nela, a historiadora nos conta um pouco de sua longa e inspiradora trajetória de pesquisa. Ela foi uma pioneira em trabalhar com imagem e arte no campo disciplinar de História no estado de Santa Catarina. Para Ramos Flores, as imagens atravessam o tempo. “As imagens perpassam sua época de produção, são reapropriadas, ditam crenças e práticas sociais e culturais. São acontecimentos, portanto, detentores de pensamento, de memória, de imaginação, sentimento e vida [...]”. Ela destaca a importância da imagem de variados suportes e técnicas de feitura nas pesquisas do campo disciplinar da história e insiste que imagens são acontecimentos.

As imagens talvez sejam tão importantes para o historiador, pois diante delas estamos diante do tempo. Pois, “diante de uma imagem, enfim temos que reconhecer isto: que ela provavelmente nos sobreviverá, somos diante dela o elemento de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento do futuro, o elemento da duração” (Didi-Huberman, 2015, p. 16).

Além dos textos que compõem o dossiê, este número traz outras importantes contribuições sobre outras temáticas relevantes e atuais. O texto Evaluating different strategies in Ukraine and its effects on the international systems, de Soheil Etesami e Hossein Ghadiri, aborda reflexões sobre as consequências da guerra recente entre Rússia e Ucrânia, considerada como o maior e mais importante conflito militar na Europa após a Segunda Guerra Mundial. O artigo mostra como está correndo o desequilíbrio de poder nas relações entre grandes poderes após o ataque da Rússia na Ucrânia, o que inclui oportunidades e ameaças para atores internacionais.

Juscelino Barros entrevistou a professora Juliana Teixeira Souza. Publicada com o título História pública, racismo e intolerância religiosa: desafios e possibilidades, a entrevista traz algumas considerações a partir da experiência da professora, sua atuação no ensino superior e as barreiras que se impõem no enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa. Além disso, a professora nos provoca a refletir sobre as possibilidades de proposição para a mudança do nosso cenário.

Finalizando este número, temos o relato No contexto de Fronteiras: a trajetória da Revista Catarinense de História. No texto, é narrada a trajetória da Fronteiras: Revista Catarinense de História (FRCH), mostrando como este periódico passou por variadas mudanças desde a sua criação e foi se moldando para atender às expectativas dos leitores, dos autores, agências reguladoras e de fomento, assim como das bases indexadoras nos últimos anos. O texto foi escrito após a análise em dados de diversificadas fontes e base de dados. A ideia de escrever este texto foi para compartilhar com os leitores a história da revista, em diversos contextos, assim como visou-se tornar público os avanços e desafios enfrentados por esta revista. 

Desejamos a todos um feliz 2024 e uma agradável leitura!

 

Profa. Dra. Daniela Queiroz Campos

Prof. Me. Tiago da Silva Coelho

Organizadores do Dossiê História e Imagem

 

Samira Peruchi Moretto

Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História

 

 

Referências bibliográficas

BATAILLE, Georges. O Nascimento da Arte. Lisboa: Sistema Solar, 2019.

BELTING, Hans. Antropologia da imagem. Para uma ciência da imagem. Lisboa: KKYM, 2014.

BREDEKAMP, Horst. Teoria do ato icónico. Lisboa. KKYM, 2015.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo. História da Arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.