Da longa e inspiradora trajetória de pesquisa: uma entrevista como Maria Bernardete Ramos Flores

                                                                                            

Daniela Queiroz Campos[1]

Tiago da Silva Coelho[2]

 

A presente entrevista é uma peça chave do dossiê História e Imagem da Revista Fronteiras, já que ele tem como ponto de partida o Grupo de Trabalho História e Arte da ANPUH/SC que por sua vez foi fundado no ano de 2015 por Maria Bernardete Ramos Flores. Em Santa Catarina, dentro do campo disciplinar da história, a pesquisadora e professora pode ser apontada como pioneira ao trabalhar com imagens e arte. Como professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) ministrou dispares disciplinas – em nível de graduação e pós-graduação – que tiveram como mote o uso da arte como fonte de pesquisa, dentre elas brevemente citamos o Laboratório de História e Arte e a disciplina Teoria das Imagens. No Programa de Pós-Graduação em História da instituição orientou dispares teses de doutoramento que tiveram como mote Vanda Costa, Victor Meirelles, Candido Portinari, o Grupo Sul.

            Nesta entrevista, Maria Bernardete Ramos Flores perpassa e nos narra sua belíssima e inspiradora trajetória como historiadora. Como ela mesmo fala e escreve, em sua longa vida teceu diversos tipos de tramas históricas. Seu doutoramento sobre a farra do boi, as investigações sobre a Oktoberfest, as pesquisas sobre estética e racismo, os artistas modernistas latino-americanos, o antropoceno.

            Nesse mundo pesquisa sua forma de lidar e escrever sobre imagens destaca-se. Ismael Nery, Xul Solar, Wassily Kandisky, Daiara Tukano, Cascaes tiveram suas formas, cores e composições estudadas por esses olhos inquietos, mão curiosas e cabeça criativa. Ramos Flores concebe a imagem e a arte como acontecimento, os problematiza como elementos antropológicos repletos de tempos impuros, memórias, anacronismos e contradições. Ela nos ensinou e ainda nos ensina como um historiador pode empreender suas investigações e escrever suas pesquisas a partir da arte e da imagem. Boa leitura.

               

Daniela Queiroz Campos e Tiago da Silva Coelho: No texto A imagem como acontecimento. Ou pensando por imagens (de 2010) você discorreu sobre os usos das imagens para uma nova maneira de fazer história. Revisitou os escritos de Giorgio Agamben para colocar que todo ser humano é um banco vivo de imagens. Alguns anos depois, em Olhar as imagens como arquivos de história (de 2015) você fez uma brilhante análise sobre o trabalho de um historiador com imagens e nos questiona se devemos narrar uma história imageticamente ou contar uma história pelas imagens. Como você fez e ainda faz isso como historiadora? Como você escreve uma história a partir da arte?

 

Maria Bernardete Ramos Flores: O texto A imagem como acontecimento. Ou pensando por imagens refere-se ao título da apresentação do dossiê O tempo da imagem que organizei para a Revista ArtCultura, em 2010. O convite para os colaboradores informava que o tema do dossiê tinha como propósito reunir artigos que abordassem a imagem como acontecimento, como fato-objeto/sujeito de estudo, contemplado como pensamento complexo (o próprio objeto pensante), que supõe movimentos, sentidos, tensões, rizomas, contradições e, especialmente, anacronismos. O pressuposto, afirmava-se, era o de que as imagens são fenômenos vivos carregados de memória, misturam passado e presente, são sobreviventes que voltam a fazer sentido num momento histórico. As imagens perpassam sua época de produção, são reapropriadas, ditam crenças e práticas sociais e culturais. São acontecimentos, portanto, detentores de pensamento, de memória, de imaginação, sentimento e vida, já que o passado, qualquer passado da vida humana, não está encerrado da distância do tempo.

            Os colaboradores, estudiosos da cultura, historiadores e críticos de arte, que acolheram o chamado, entenderam o escopo desejado: Mario H. Gradowczyck e José Emilio Burucúa, da Argentina, realizaram um registro empírico da aparição, reaparição e variações de elementos plásticos reconhecíveis na geometria pictórica de Esteban Lisa. Yobenj Aucardo Chicangana-Bayona, da Colômbia, mostrou como a iconografia medieval serviu de referência familiar para elaborar as representações pictóricas dos até então ignorados habitantes do Mundo Novo. Alejandra Gómez, México, analisou a presença do passado hispânico na cinematografia estadunidense. Laura González Flores, também do México, investigou mudanças e permanências conceituais e técnicas no modo de fotografar arquiteturas. O meu próprio artigo mostrou como elementos perdidos da cultura primitiva pré-colombiana e do sonho milenar da humanidade da conquista do ócio irrigaram a concepção de história do artista plástico argentino Xul Solar e do poeta brasileiro Oswald de Andrade.

O artigo Olhar as imagens como arquivos de história partiu de algo que me inquietava como historiadora. Como enfrentar o silêncio da imagem? Temos bastante dificuldade, metodológica mesmo, para abordar uma imagem historiograficamente. Como fonte? Como testemunha? Como representação? Eu gostaria de insistir de que a imagem, seja de uma obra de arte pendurada na parede do museu, de um anúncio na página da revista ou de um outdoor, em movimento ou fixa, imagem da moda, da arquitetura e do urbanismo, enfim, de qualquer visualidade que aparece nas dinâmicas da vida humana, é um acontecimento que pode ser trabalho nos mesmos nós de relações temporais, políticas, sociais, etc., como qualquer outro acontecimento digno de ser estudado pela história.

Para nós, acostumados ao uso do texto impresso, temos dificuldades em extrair da imagem, que à primeira vista, se apresenta muda, o que ela pode falar, que memórias ela carrega, de que tempos ela se compõe, de que sentidos ela participa no tempo presente? Não ajuda muito fazer perguntas ao artista, pois a obra ganha independência de seu criador diante das nossas próprias inquietações. Amparar-se na sua fortuna crítica, lendo os críticos, pode nos dar algumas pistas. Mas a imagem tem coisas que são da ordem do inverificável, como diz Didi-Huberman, e a cada vez que a olhamos ou a cada vez que ela nos olha, podemos ver algo que havia escapado, através do duplo paradigma da transparência e da opacidade, como afirma Emmanuel Alloa.

Há usos diversos que os historiadores podem fazer das imagens. Ilustrar seus textos, para enriquecê-los com mais argumentos e convencimento; abordá-las na perspectiva da representação de um mundo acontecendo fora dela; como fontes e testemunhas que dão indícios importantes para a pesquisa. Todos estes usos são positivos e apropriados se atenderem aos nossos objetivos de pesquisa e se puderem contribuir para um produto científico de qualidade. Para interpretar a imagem, podemos nos amparar no método iconológico de Panofsky que fornece um caminho seguro para resultados pertinentes e reconhecíveis, quando bem feitos.

Porém, podemos fazer mais com as visualidades, lembrando que o mundo é muito imagético, sempre foi e é cada vez mais, há um campo enorme a ser explorado. Podemos pensar no uso da imagem mais do que testemunha, representação e ilustração. Existe algo mais intrigante do que a frase de Régis Debray? “Mas se a imagem arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida.” Ou as palavras de José Luis Molinuevo? “Somos história, somos memória, somos imagem”. Podemos então perguntar a elas: que tempos, que memórias, que tradições carregam. Alguns caminhos temos naquele que sempre nos inspira, o pensador alemão Walter Benjamin, ou no filósofo italiano Giorgio Agamben, e no historiador de arte, o francês Georges Didi-Hubeman, todos caudatários de Aby Warburg. Todos esses estudiosos concordam que a justaposição de imagens pode abrir para um conhecimento novo, fora da cronologia linear do historicismo. Eles formulam uma concepção de história que tem a ver com as sobrevivências de certas formas expressivas da cultura humana e que fazem sentido no nosso presente. Hoje em dia, o pensador Yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro têm me provocado a experimentar outras formas de pensamento. Deixar de se subordinar às ideias mestras da modernidade, do império do sujeito senhor de todas as coisas da terra, deixando de ser colonialista de si mesmo.

 

Daniela Queiroz Campos e Tiago da Silva Coelho: No seu capítulo do livro Cartas aos jovens historiadores (no prelo) além de contar sua trajetória como professora e pesquisadora, você apresenta reflexões sobre as escolhas teóricas de sua carreira, principalmente a transição para as pesquisas com arte e imagem. Toda uma geração de estudantes de História, principalmente de universidades catarinenses, foi formada tendo os trabalhos sobre a Farra do Boi e a Oktoberfest como aberturas para nova e proveitosas oportunidades de pesquisa, o redirecionamento para os temas da estética mais voltados para a arte tiveram uma motivação mais específica? Como ocorreu essa migração?

 

Maria Bernardete Ramos Flores: Olha, é uma vida muito longa. Há muito o que contar, embora tenha começado a carreira profissional já com idade avançada, casada e com filhos. Minha formação inicial, a graduação em história, deu-se sob a obscuridade do governo civil-militar, mas depois abracei com entusiasmo a cada novidade teórica que aparecia em abundância, a partir da década de 1980, quando houve a retomada da leitura de Marx e Nietzsche, a tradução de E. P. Thompson e de Michel Foucault. A descoberta de Walter Benjamin, através da coletânea Magia e técnica, arte e política, publicada no Brasil em 1985, desconsertou nossa visão de história, ao afirmar que a história dos derrotados, os sonhos não realizados, merecem ser contados pela História. Paulo Freire era um dos grandes nomes a inspirar nossa prática pedagógica para uma educação cidadã. No sonho de uma educação política do povo brasileiro se sustentavam nossos projetos educacionais.

Ao longo das décadas seguintes, até a atualidade, não param de surgir novas perspectivas historiográficas que, de uma forma ou de outra, vão fazendo parte de meu repertório historiográfico. Costumo pensar ultimamente que, ao contrário do que dizem, de que a vida é curta, acho que ela é longa, e tem sido generosa comigo. Contudo vejo que me falta vida para realizar os diversos projetos que vivem na minha cabeça; falta tempo de vida para experimentar o novo pensamento que circula nos meios acadêmicos nos últimos anos. A descoberta do Antropoceno, como uma era geológica que traz risco real para a vida de todos os seres do planeta, nos tem convencido de que precisamos abandonar o pensamento antropocêntrico e aprender a pensar ecocêntrico, aprender a perspectiva do pensamento indígena com seus saberes da floresta. Reflorestar o pensamento e deixar de ser colonialista de si mesmo. Atualmente, se insurge o pensamento do quilombola Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo. O autor de A terra dá, a terra quer teve morte súbita no último dia 3 de dezembro, mas “o lavrador de palavras”, como ele se autodominava, já produziu novo abalo no pensamento colonial que ele chama de cosmofóbico, o medo que os eurocristãos monoteístas têm do saber cosmológico politeísta dos povos africanos, indígenas e quilombolas. Bispo Nêgo propõe substituir as palavras desenvolvimento sustentável por biointeração; coincidência por confluência; saber sintético por saber orgânico; transporte por transfluência; dinheiro (troca) por compartilhamento; colonização por contracolonização.

A minha graduação deu-se entre os anos de 1970 e 1973, nos anos mais fechados e de maior repressão da Ditadura civil-militar brasileira. Na ocasião, na historiografia événementielle imperava, preocupada com a cronologia dos grandes eventos – especialmente políticos e militares, nomes dos reis e sua sucessão, guerras de conquista territoriais, nascimento, crescimento e declínio das civilizações, na ordem da visão do progresso – que recebíamos através de aulas expositivas, de apostilas e dos grandes compêndios da História Geral da Civilização Ocidental. No mestrado (1975-1979), já nos últimos anos da Ditadura, chegou a vez da École des Annales, conhecida pelo método quantitativo-serial aplicado à História Econômica – movimento dos preços, safras, crescimentos e crises –, aos estudos da população, com a História Demográfica, e aos fatos mentais, abordados pela História das Mentalidades.

Entrada a década de 1980, o mundo historiográfico se abriu, primeiro com a chegada de novos historiadores na École des Annales, como Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Michelle Perrot, Mona Ozouf, questionando seu caráter homogeneizante, ao não contemplar as diferenças de classe, gênero, geração, regiões, diferenças entre urbano e rural, entre cultura erudita e popular. A introdução desses autores provocou a abertura da história para novos temas, problemas, abordagens e fontes, aspectos fundamentas para a criação das especificidades de interesses: história do cotidiano, das mulheres, das culturas populares. Ao mesmo tempo, na Inglaterra, autores como Thompson, Raymond Williams, Hobsbawm, Christopher Hill, Perry Anderson, abrigados na New Left Review ou na Past and Present, analisavam a sociedade como uma totalidade em movimento, na qual a experiência humana não era submissa a qualquer forma de determinismo mecânico. Era uma história marxista que criticava os marxistas ortodoxos e mecanicistas.

O livro sobre a farra-do-boi, fruto de meu Doutorado (1987-1991), defendido na PUC-SP, foi caudatário desses autores lidos na década de 1980, os quais deram as bases teórico-metodológicas para a formulação da Nova História Cultural, a vertente que dominou boa parte da produção historiográfica brasileira até bem recentemente. A História Cultural nunca teve uma formulação teórica pura. Com sua hibridez, assimilou o culturalismo marxista inglês, interessando-se pelas disputas das classes trabalhadoras, pela vida no mundo do trabalho, suas lutas econômicas e políticas, pela da moradia, alimentação, família. As classes trabalhadoras, dotadas de experiência, entram na luta de classes e da configuração da consciência de classe, como sujeitos da história.  Pelo viés foucaultiano, foram abordados os jogos de verdades que se dão na linguagem e nas performances, mostrando que novas sensibilidades são inventadas, que o governo é incrustrado no corpo, que a sexualidade não teve sempre o mesmo significado, que os sujeitos aparecem e desaparecem em meio às disputas discursivas, que a experiência dá-se em meio aos jogos de poder, que os objetos históricos são aqueles que brotam dos problemas que as sociedades criam politicamente, enfim, que a verdade é relativa ao momento histórico, que não há um sujeito único na história.

Metodologicamente, além da excentricidade do tema, a tese sobre a farra-do-boi foi recebida como uma novidade, mas eu não fui a única a inserir-se no contexto historiográfico. Seguindo a tendência da época, vários colegas do Departamento de História da UFSC defenderam o doutorado, ao longo dos anos de 1990. Joana Maria Pedro abordou questões do feminismo e gênero; Élio Cantalício Serpa e João Klug dedicaram-se à história da igreja e das instituições religiosas; Maria Teresa Santos Cunha, à história do livro e da leitura; Cynthia Machado Campos, à história das instituições disciplinares; Sérgio Schmitz, às econômicas; sem contar com os que fizeram o mestrado na mesma época, Cristina Scheibe Wolff e Roselane Neckel (feminismo e gênero) e Henrique Pereira Oliveira (história da roda dos expostos – instituição que recebia crianças para adoção, no século XIX). Foi com esse perfil que o grupo de docentes do Departamento de História propôs a criação do Doutorado na Universidade Federal de Santa Catarina, em 1998, tendo a História Cultural como área de concentração.

Já o livro que trata da Oktoberfest, de Blumenau, publicado em 1997, com a mesma linha de pesquisa, mostrando que as diversas festas étnicas que surgiram na década de 1980, em Santa Catarina, fizeram parte de um movimento mais geral, no Brasil, na Europa e nas Américas, inspirou muitas teses e dissertações na história, no urbanismo e no turismo. São várias as suas facetas que despertaram o interesse teórico-metodológico. Primeiro, por tratar da emergência da indústria do lazer e do turismo de massas. Segundo, por refletir sobre as novas teorias culturais que forneciam noções de positividade às diferentes culturas étnicas, quebrando preconceitos raciais. Terceiro, o fenômeno da globalização fizera com que os locais procurassem criar suas representações, criar imagens de si, configurando suas identidades, para fazer frente à diluição das fronteiras. Enfim, o livro Oktoberfest lida com a mercadorização da cultura, com a invenção de tradições, com a criação de um brand para a cidade embelezada para o turista.

Foi a partir da reflexão do embelezamento da cidade de Blumenau sob o projeto político de estetização da cidade física e dos moradores, para criar as imagens de povo branco, saudável, asseado, ordeiro e trabalhador, que passei a me interessar pela questão da estética na modernidade. A Estética, como teoria do gosto e do belo, surgida no século XVIII, na Europa, foi por excelência o campo filosófico dentro do qual as ideias-mestras da modernidade se gestaram e se desenvolveram, tais como as dicotomias entre arte e artesanato; belo e feio; bom gosto e falta de gosto, bom ou mau caráter moral, urbano e rural; civilizado e primitivo; cultura e natureza; civilidade e selvageria. A estética moderna foi a teoria das subjetividades, da percepção do Eu e do Outro, da educação das emoções e do controle de si. Enfim, a estética foi o princípio que fundou as questões raciais, de classe e gênero.

Se a estética foi a filosofia do belo, a arte funcionou para realizar a visualidade da nação moderna, criar a imagem de beleza, o que demandou dos artistas participação nas políticas raciais, de classe e gênero na formação das nações modernas. A tarefa era a de pintar ou esculpir corpos, seguindo os cânones clássicos. No Brasil, o médico eugenista Renato Kehl estava convencido de que, se o homem foi capaz de talhar no mármore a Vênus, é capaz também de criar tipos vivos com a beleza de Doryphoro, para melhorar a plástica humana. O historiador de arte inglês Keneth Clark, autor de um livro clássico – O nu. Um estudo sobre o ideal da arte – afirma que o padrão de perfeição, encontrada na forma visível da geometria, com expressão na escultura e na pintura, proporcionado ao espírito do homem ocidental desde o Renascimento até o século presente – século XX –, é a memória do tipo físico peculiar que se cultivou na Grécia, entre os anos 480 e 350 a.C. A sobrevivência do modelo da Vênus Capitolina e seus desdobramentos na quantidade de cópias na versão da Vênus de Médicis, passando pelo Nascimento de Vênus de Boccitelli, recebendo um novo impulso com a pintura de Renoir, tem sido o núcleo da história da arte ocidental e da transformação da matéria natural em formas elevadas de cultura.

Essas reflexões sobre o trabalho da arte e sobre o trabalho das imagens nas políticas raciais do Brasil, com a instalação da República e a passagem do regime escravagista para o capitalista, com a modernização e da formação da modernidade brasileira, foram as que desenvolvi num projeto, que consumiu 10 anos de pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro A estética do racismo. Ciência e arte na política da beleza. Nos diversos capítulos, tentei mostrar que, concomitante as teses médicas, educacionais, sanitaristas e higiênicas que apareciam em obras literárias, acadêmicas, ensaísticas, além dos projetos de Estado, davam argumentos para as demandas oficiais, ou apenas de cunho ideológico, para artistas participarem do movimento de racialização, ou da estruturação do racismo brasileiro. Não, sem entre tensões que podemos observar no trabalho dos artistas no ofício de operar a obra de acordo com suas posturas filosóficas e políticas. Aceitar a tarefa do embranquecimento da nação, seguindo os cânones artísticos, ou rejeitando os cânones e partindo para outras experimentações, desejando outras cosmovisões para a vida humana?

No subtexto dessas abordagens da eugenia ou do racismo brasileiro, começam a aparecer minhas inquietações a respeito da sobrevivência das imagens, a força que ela exerce na vida humana, desde aquele gesto bíblico da criação do Homem à semelhança de Deus. Daí, a conclusão a que chega Agamben, de que nossa memória é feita de imagens, as quais tendem, sem cessar, no decorrer de sua transmissão histórica (coletiva ou individual), a se solidificar em espectros, e ela se agita, justamente, para voltar à vida. E nisso, é possível entender, nesse fenômeno antropológico, a noção warburguiana de Nachleben, o que também contempla a tese do anacronismo presente na imagem, como tem demostrado Didi-Huberman, em toda a sua obra de história da arte.

 

Daniela Queiroz Campos e Tiago da Silva Coelho: Em Santa Catarina você foi pioneira ao trabalhar com imagens no âmbito da história. Foram diversas orientações, muitas teses de destaque como a da Luciene Lehmkuhl, Jaqueline Wildi Lins e do Mário César Coelho. E foram dispares edições anuais do História e Arte, nas quais muitos historiadores da arte participavam de um profícuo debate que de certa feita conquistavam jovens graduandos e pós-graduandos aqui em nosso estado. Como você percebe a sua contribuição para o campo?

 

Maria Bernardete Ramos Flores: Não dá para citar todos os trabalhos aqui, de teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso de graduação, orientados por mim, os quais abordaram temas artísticos com foco na perspectiva imagética. Luciene Lehmuhl, no mestrado sobre o Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis e depois no doutorado, sobre a presença da obra O café de Portinari na Exposição do Mundo Português, em Lisboa, em 1940. Mário Coelho também fez mestrado e doutorado comigo. No mestrado, toma a porte Hercílio Luz como Cartão Postal da cidade, a partir da arte moderna do ferro, e no doutorado sobre os Panoramas perdidos de Victor Meirelles, discutindo o momento em que a imagem da paisagem de beleza sublime, sobrevivência da estética romântica, desperta interesse de público e da indústria dos panoramas. Jaqueline Wilde Lins fez uma tese sobre Valda Costa, artista que morreu cedo, sem nunca ter constado dos anais da história da arte em Santa Catarina ou das páginas de crítica de arte.

Citando mais alguns, rapidamente, Jacinta Milanez Gislon abordou as cidades contemporâneas como cidades-cenários, para atender ao gosto do turista por pastiches; Daniela Queiroz Campos, organizadora esse dossiê, refletiu sobre a presença de imagens antigas de ninfas na pin-ups modernas. Thayse Fagundes e Braga abordou as inúmeras igrejas de estilo gótico que se disseminaram pelas cidades catarinenses, no risco do arquiteto alemão Simão Gramlich, quando o que se pratica no Brasil era a arquitetura moderna. Everson Antunes abordou os filmes Laranja Mecânica entre outros, perguntando se a imagem pode matar; Fátima Costa Lima refletiu, a partir de leituras benjaminianas, a alegoria do Cristo Mendigo do carnavalesco Joãozinho Trinta. Ana Lúcia Vilela trouxe Hélio Oiticica, numa perspectiva da psicanálise. Marilange Nonnenmacher sobre o memorial do antigo trapiche Miramar como lugar da memória que reverberava nas obras dos artistas locais.

São muitos os trabalhos. E muitos são os suportes e as linguagens desses acontecimentos imagéticos. Arquitetura, artes visuais, cinema, quadrinhos, fotografia, indústria gráfica. Tivemos por base principal a compreensão de que a arte cria o mundo ao trazer ao mundo novas visualidades, apreendidas na dinâmica viva e complexa da imagem como portadora de memória, tradição e temporalidades múltiplas.

Esse modo de fazer o trabalho da história demandou um aprendizado constante. Tudo começou quando nosso programa de história, na UFSC, adotou a História Cultural como área de concentração. De início, despertamos o interesse de candidatos a mestrado e doutorado formados em Artes Visuais pela UDESC, quando lá não havia ainda cursos de pós-graduação. E também da própria UFSC, do curso de Arquitetura e Urbanismo. Foi preciso, portanto, uma relação de diálogo e compartilhamento de experiências entre orientador e orientados. Os estudantes dotados do conhecimento específico da linguagem e do campo de seu objeto de estudo; a professora, com os saberes próprios do oficio da disciplina da história. A experimentação dava o curso do trabalho em realização. Mas sabíamos que se tornava necessário criar e demostrar as bases epistemológicas para essa novidade historiográfica – trazer a perspectiva da Estética, tendo a Arte e a imagem como dimensões importantes na vida social.

Foi esse o empreendimento que fizemos nas 8 edições do Colóquio História e Arte, entre 2009 e 2016. Criou-se antes o Laboratório de História e Arte e a Linha de Pesquisa Arte, Memória e Patrimônio (ao longo dos anos, houve variações do nome, porém a essência permaneceu por um bom tempo). Nesses espaços institucionais, com o envolvimento do grupo de professores e estudantes, organizamos as várias edições do Colóquio, sempre com financiamento da CAPES. Contamos ainda com a parceria da professora Patricia Peterle, do Departamento de Literatura da UFSC. Nesses Colóquios, apresentávamos nossas pesquisas ao debate público. Como sabíamos que nossa proposta tinha um caráter interdisciplinar, convidávamos pesquisadores de áreas que pudessem fornecer referências diversas, tais como, da filosofia, da antropologia visual, do urbanismo, da literatura e da crítica literária e, especialmente, da crítica de arte e de artistas visuais. A cada edição, foi publicado um livro com as conferências e as pesquisas apresentadas.

O último Colóquio, em 2016, recebeu o título Arte e Pensamento. Operações historiográfica. Considerávamos, a essa altura, que já tínhamos algum conhecimento acumulado e que seria hora de mostrar algum resultado consolidado, daquilo que foi sempre o objetivo: a escrita da história de acontecimentos artísticos, de modo a proporcionar abertura para um campo de pensabilidade que trace percursos fora do pensamento que orienta o pensamento entendido como representação. Para isso é preciso pensar a / na fronteira, fazer desse limiar também um espaço do exercício de observação e da fala. Pensar a obra com a obra de arte. Pensar a imagem como espaço de temporalidades múltiplas, o que requer contemplar o anacronismo na história. Enfim, é preciso o gesto que incide na prática historiográfica, operando na concatenação entre história e arte, porque considera que a arte é ato que reitera o humano; que a atividade artística é acontecimento que deixa rastros dessa humanidade; tentamos ainda uma escrita da história capaz de produzir um tipo de experiência estética.

 

Daniela Queiroz Campos e Tiago da Silva Coelho: A estética foi o fio que conduziu seu trabalho naquele momento de transição temática, mas depois outros conceitos e percepções se desdobraram na sua pesquisa, as temporalidades, os anacronismos, as decolonialidades, os mitos e agora o antropoceno. Você consegue traçar uma linha que congregue sua trajetória? Ou prefere se perceber dentro das possibilidades plurais?

 

Maria Bernardete Ramos Flores: Com a criação a nova área de concentração do Programa de Pós-Graduação, implantada em 2018, meu movimento foi o de criar a disciplina Decolonialidade Estética. Imagens da América Latina, cuja ementa procurava refletir como as artes participaram da conquista colonial e como a partir delas despontam na atualidade novas narrativas, novas visualidades que questionam as imagens estereotipadas dos povos submetidos. As discussões da disciplina, repetida em 2019, me levaram a dar novo rumo aos projetos de pesquisa. Iconografia do Brasil. Arte Primitiva e Modernismo sobre visualidades emergente foi o primeiro projeto dessa nova etapa. Esse se desdobrou no seguinte: Mitos e magia na arte brasileira: Sobrevivências e Antropofagias. A propósito da decolonialidade estética. Acabei me apaixonando por artistas de “raiz”, fincados na tradição, na terra, no local de origem. São formas de fazer artístico que expõem, nas imagens que constroem, outros modos de se relacionar com a natureza, com o meio ambiente, os animais, as florestas, os rios e as sociedades humanas. O artista folclorista catarinense Joaquin Franklin Cascaes, na década de 1970, diante da exploração da “natureza” da Ilha de Santa Catarina, que vinha pondo em risco a sua geomorfologia, sua riqueza em variedades de espécies marinhas, aves e outros animais, sua vegetação peculiar de mangues e restingas, sua mata atlântica, desenhou aproximadamente 30 boitatás, um ente mitológico protetor dos campos. Cascaes, em sua saga ficcional na humanização do mito e na mitologização do humano, criou, com sua arte visual, seus desenhos em bico-de-pena, uma metáfora da mitosfera ilhoa, na crença de poder reviver o tempo em que se conversava com as estrelas, as árvores, os rios e os mangues. O tempo em que os animais falavam e os mitos se comportavam como gente. Quer dizer, muito antes de Bruno Latour alertar para a questão climática, antes de se falar em Antropoceno, o artista catarinense já se colocava o problema da destruição da natureza.

Isto me levou para o estudo da cosmologia dos povos ancestrais do Brasil, através da abordagem da arte indígena contemporânea, que traz para a cidade, suas linguagens artísticas, os saberes da floresta e seus mitos de cura do planeta, para a cidade. Sob outro aspecto, criam intervenções nas representações arquetípicas, impressas em livros ou em outras estampas, do “índio” brasileiro, num ato de decolonialidade, denunciando, quebrando imagens estereotipas, numa espécie de iconoclastia. E nisso, é possível ver uma outra cosmologia, ao largo dos saberes brancos, ocidentais. A arte do Coletivo Mahku, por exemplo, em destaque na 35ª Bienal (2023), exposta também no Masp entre março e abril do mesmo ano, tem origem nas tradições, nos mitos e histórias do povo Huni Kuin da terra indígena Kaxinawá, localizada no Acre. Nos seus grafismos e cores, que afetam nosso olhar e nossa experiência estética, os signos da floresta emitem sinais que nos levam a pensar na urgência da defesa da floresta para salvar a vida dos indígenas e dos não-indígenas, dos humanos e dos não humanos, como têm reiterado os pensadores e ativistas indígenas Ailton Krenak e Davi Kopenawa.

 

Daniela Queiroz Campos e Tiago da Silva Coelho: Como uma das fundadoras do GT de História e Arte da Associação Nacional de História (Anpuh)/SC você chamou atenção para a necessidade de discutir esta temática dentro dos espaços/domínios da disciplina da História e também da profissão de historiadora, visto que as orientações e aulas nas diversas áreas de atuação com imagem/arte. Seja pela existência do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA), ou mesmo a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), aparentemente dentro da Anpuh o tema parece não gerar grande apelo, como você viu esse processo no momento de criação do GT na Anpuh/SC? E como você percebe essa discussão atualmente?

 

Maria Bernardete Ramos Flores: Naquele momento do Simpósio Nacional da Anpuh em Santa Catarina (2015), quando criamos o GT de História e Arte/SC, havia um grande empenho da Direção Nacional da ANPUH no reconhecimento da profissão de historiador que, de fato, foi aprovada em 2020. Essa conquista pôs fim a uma luta da categoria que vinha desde o tempo em que me lembro como gente no campo da história. Nessa última etapa, o grupo que liderava o debate do projeto deparou-se com o “assédio” de profissionais com formação em outras áreas, e que lecionavam em seus respectivos cursos, por exemplos, as disciplinas História da Arte, História da Educação, História das Ciências, História das Religiões, que reivindicavam inclusão no estatuto de reconhecimento da profissão de Historiador. Pelo que acompanhei, os profissionais História da Educação, com formação em Pedagogia, e os da História da Arte, com formação em cursos de Artes, foram os mais aguerridos nessa reivindicação. Logo, com pertinência, responsabilidade e compromisso com a área, houve um cuidado para evitar essa contaminação e fragilização do campo de atuação do historiador, legitimado pela formação nos cursos de História.

            Mas a criação de um GT-Nacional de História e Arte não dependeu dessa política da direção da ANPUH-Nacional. Como já estávamos na 7ª Edição do Colóquio de História e Arte, sempre no âmbito regional, embora com a participação de pesquisadores nacionais e internacionais, nosso entendimento era de que deveríamos nacionalizar o evento. O entendimento foi de que o caminho seria a criação de um GT-Nacional, mas para esse processo, o regimento da ANPUH exige que a proposta seja apresentada por, pelo menos, três GT-Regionais (acho que ainda há essa cláusula nos estatutos da ANPUH).

Nosso primeiro movimento, portanto, foi o de criar os GTs regionais, convidando colegas da história de outros universidades a se engajarem em suas respectivas ANPUHs regionais. Em Santa Catarina, fizemos “o dever de casa” e criamos o GT de História e Arte, nos moldes que existe atualmente. Na ocasião, em 2015, acorreram muitos adeptos da ideia, que assinaram a proposta apresentada na Assembleia, a qual foi bem acolhida e aprovada. Acontece que os colegas de outras ANPUHs Regionais que haviam demonstrado interesses em dar concretude ao projeto de um GT-Nacional de História e Arte, atendendo ao pré-requisito – exigência de três Regionais –, que seria apresentado no próximo encontro nacional da ANPUH, em 2017, não conseguiram levar a cabo o intento. Santa Catarina ficou sozinha nesse caminho. A ideia do Nacional morreu por ali.

Na verdade, o Colóquio de História e Arte, nas suas várias edições, a despeito dos resultados, os quais considero que renderam importantes frutos acadêmicos para o saber historiográfico, não conseguiu sair do meio no qual foi gestado. Embora tivesse alcançado projeção nacional e até internacional através da participação de convidados para as conferências, a maioria dos que abraçaram o evento com mais entusiasmo vinha de áreas afins, crítica de arte e literária, urbanismo e antropologia, psicanálise e filosofia. Em algum momento, dado o envolvimento, com entusiasmo, desses colegas, vários deles filiados no Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA), ou na Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), discutiu-se a possibilidade de algum destes assumirem, vez ou outra, uma edição do Colóquio de História e Arte, numa espécie de rodízio, fazendo-o girar pelo país. Acontece que as nossas disciplinas são vinculadas às áreas do conhecimento, conforme a estrutura dos órgãos de fomento, CAPES e CNPq.  Nesses órgãos, cada disciplina conta com um Comitê próprio que recebe as demandas, procede a avalição de mérito e concede aportes em recursos financeiros. Como é sabido, todos os projetos do Colóquio de História e Arte em Santa Catarina, em suas diversas edições, foram enviados em nome do Programa de Pós-Graduação em História de Santa Catarina, vinculado diretamente ao Comitê de Avaliação de História da CAPES. Com as subsequentes edições, o Colóquio foi ganhando o estatuto de Evento Anual, o que lhe garantia não só uma identidade, mas ainda o mérito da antiguidade e continuidade nos critérios de distribuição dos recursos. Se um pesquisador de outro Programa de Pós-Graduação, de Arte, por exemplo, assumisse o projeto, esse seria encaminhado para o Comitê de Avaliação próprio da sua disciplina. O Colóquio de História e Arte perderia a sua identidade, as vantagens da antiguidade e da continuidade, além da perda dos objetivos que nossa proposta tinha, o compromisso com um saber próprio para a pesquisa histórica, para o campo da historiografia. 

Havia a presença de historiadores renomados, de outras Universidade, nos nossos Colóquios, mas não o suficiente para disseminar o interesse nessa linha de pesquisa no campo da história. Ademais, convém lembrar que entre os historiadores, depois dos anos de 1990, anos paradigmático do pós-estruturalismo e suas discussões sobre relativismo cultural, sobre os usos epistemológicos da análise do discurso, da linguagem e da representação, assistimos a uma retomada de parâmetros que procuravam depurar a disciplina da história, preservando seu caráter de cientificidade. O que se pesquisava, discutia e produzia no Laboratório de História e Arte, de modo geral, foi visto com muitos bons olhos pelos historiadores mais focados no campo específico do conhecimento disciplinar historiográfico. Reconheço que há, muitas vezes, pouca compreensão no fato de se trazer da Estética, da Arte e da imagem temas que abrigam dimensões importantes na vida social, cultural e política, especialmente política da nação.

 

 

Recebido em 12/12/2023.

Aceito em 12/01/2024.



[1] Professora de História da Arte do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Brasil. E-mail: camposdanielaqueiroz@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-9681-0977

[2] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (2012) e docente do Instituto Federal de Santa Catarina - IFSC, campus Araranguá. Brasil. E-mail: tiago.coelho@ifsc.edu.br | https://orcid.org/0000-0002-7766-5604