Imagem, corpo, replicante

Image, body, replicant

                                                                                               Maria Bernardete Ramos Flores[1]

 

 


Resumo

Imagem, corpo, replicante. De que forma esses termos se entrelaçam? O corpo vive as implicações culturais que o levam a se reproduzir como cópias, sob o efeito das maquinarias de subjetividades em série. Porém, o vibrátil corpo reage, inventa formas de singularizações e de apresentação visual. Na atualidade, a mistura, entre humano, técnica e ciência, reformula cada vez mais as noções herdadas do humanismo iluminista. Há muitas outras formas de viver, de criar e de imaginar o corpo.

Palavras-chave: Corpo; Imagem; Replicante; Sobrevivência.

Abstract

Image, body, replicate. How these terms are intertwined? The body lives the cultural implications that lead him to play as copies, under the effect of machineries subjectivities in series, and presentations. But the vibrating body reacts, invents ways to singling, and visual presentation. Nowadays, the mixture between human, technique and science increasingly reformulates the notions inherited from Enlightenment humanism. There are many other ways of living, creating and imagining the body.

Keywords: Body; Image; Replicate; Survival.


 

 

 

 

 

O corpo nunca está pronto, mas também nunca está no rascunho (Sant’Anna, 2002, p. 50).

Somos história, somos memória, somos imagem. (Molinuevo, 2002, p. 44).

A antropologia e a filosofia da imagem têm demonstrado que “somos bancos de imagens vivos – colecionadores de imagens – e uma vez que as imagens entram em nós, elas não param de se transformar e de crescer” (Agamben, 2004, p. 39).

 

Quando recebi o convite para fazer uma fala no VI Seminários de Dança, em Joinville, fiquei um tanto perplexa diante do tema do evento: Corpo performático: fazeres e dizeres na dança.[2] Não sendo eu bailarina, o que poderia dizer para contribuir no debate? Demorei bastante para pensar em um título, meu segundo desafio, que fizesse alguma relação. Afinal, o título enuncia as conexões entre conceitos e bases empíricas que façam algum sentido numa fala de 50 minutos, diante de uma plateia de dançarinas e dançarinos, no espaço próprio de artistas. Tentarei, então, juntar os três termos que elegi para compor o título enunciado – imagem, corpo, replicante – que, de modo geral, se ligam às minhas próprias pesquisas e espero que encontrem algumas confluências com o tema do seminário.

 

Imagem

Para expor o que pensei sobre o primeiro termo, imagem, começo fazendo referência a dois relatos míticos que fundam nossa condição de humanos. 1) O mito da caverna: Platão narra a história de alguns humanos que nasceram e cresceram numa caverna, sem nunca sair dali; ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder mover-se, forçados a olhar somente para a parede do fundo, onde são projetadas sombras de outros homens que estão fora e que mantêm acesa uma fogueira. Das paredes da caverna também ecoam sons, de modo que os prisioneiros pensam serem sons das falas das figuras projetadas. Desse modo, os prisioneiros julgam que as sombras, as imagens projetadas na parede, sejam a realidade. Esse mito acompanha a história do conhecimento no Ocidente. O que vemos a nossa volta, afinal, são imagens ou realidades? Como chegar à realidade por trás da aparência que nossos olhos veem? Ou, a aparência é o próprio real? Será que o Outro que vemos diante de nós não nos aparece como um tamatguchi, aquele brinquedinho japonês que consiste em cuidar de um animalzinho virtual que existe por trás da telinha? 2) O relato bíblico do Gênesis informa que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, e a mulher à imagem do homem: somos cópias, portanto, e, condenados à propriedade de cópias, vivemos na busca da perfeição. Perseguimos o modelo, desde a representação de Eva e de Adão no Paraíso, passando por toda a iconografia artística, na história da arte, até a modelagem de corpos de modelos e misses que servem de parâmetro de beleza no nosso cotidiano.

O projeto de toda a vida de Aby Warburg foi compreender o problema da sobrevivência das imagens, ou seja, a reutilização de figuras antigas e a imitação de antigos modelos culturais. Diante dos relevos de Adolf von Hildebrand, escultor alemão da segunda metade do século XIX, Warburg viu, respectivamente, a sobrevivência da Antiguidade nas suas duas acentuações de movimento: a tendência dionisíaca na exageração e a tendência apolínea no autocontrole. As representações de figuras com formas de ninfa na pintura do Renascimento, inspiradas não só na poesia, como também na arte figurativa, suscitaram-lhe a tese da constante irrupção de imagens que sobrevivem ao longo do tempo. Para Warburg (2005, p. 23), a razão pela qual a ninfa estava tão intensamente carregada de significado, na sua inesperada reaparição em meio ao mundo florentino burguês, se encontra no fato de que essa figura tinha já um posto no imaginário dos pintores contemporâneos.

Burucúa (2002, p. 131) nos chama a atenção para não cairmos na tentação de considerar que, diante da persistência, no caso da ninfa, nos encontremos ante uma regularidade. Uma constante da história cultural do ocidente, a qual derivaria de uma espécie de lei geral em termos de encadeamento e de reprodução mecânica de processos psíquicos causados pela visão regular da jovem em movimento. Se Warburg, no seu projeto, denominado Mnemosyne, compôs o Atlas iconográfico das imagens sobreviventes do Ocidente, insistiu, contudo, na identificação do particular e próprio que encerra cada citação da ninfa na larga série. Trata-se de descobrir o desvio individual de uma aparição nova da ninfa com respeito às aparições anteriores, para desmontar nelas o que é igual e contínuo dos anteriores e o que difere e instala a novidade do mundo.

Segundo Didi-Huberman (2002, p. 48), para Warburg, a imagem constitui um “fenômeno antropológico total”, a cristalização, a condensação particularmente significativa do que se chama cultura no momento de sua história. Em resumo, a imagem não é dissociada do agir global dos membros de uma sociedade, nem do saber próprio da época, nem da crença: ela reside em outro elemento essencial da invenção warburguiana, que foi o trabalho de história da arte no continente negro da eficácia mágica – mas também, litúrgica, jurídica ou política – das imagens. O instigante pensamento de Warburg sobre o trabalho da imagem na vida da humanidade, junto ao do filósofo alemão Walter Benjamin (1987), especialmente quando trata do conceito de imagem dialética, contribui para que se postule uma concepção de história que tem muito a ver com a sobrevivência de certas formas expressivas (Pathosformeln). Trata-se de um modelo que se afasta da cronologia linear e se descubra no anacronismo, as tessituras da história.

 

Corpo

Segundo termo. Lugar de inscrição, armazenagem e transporte de signos, suporte da memória, o corpo é nosso velho conhecido, embora, paradoxalmente, nunca se deixa conhecer realmente. Se conseguíssemos ler o que está nele inscrito, se dominássemos essa categoria de leitura, declara Michel Serres (2004, p. 78), poderíamos decifrar sua história, atribulações e ondulações como se estivéssemos diante de um livro aberto; sobre sua dança, seu desejo e sobre as máscaras e estátuas de sua cultura, poderíamos igualmente decifrar a enciclopédia de suas descobertas. Como um virtual, um devir constante, o corpo é potência, intensidade, fluxos, versátil, vibrátil, adaptável, performático, que recorda e esquece, que pode mais e pode menos do que acredita poder. Serres afirma que a união da alma ao corpo ou ao que entendemos como somático é tão clara e, ao mesmo tempo, tão difícil de entender quanto a relação do software com o hardware. As novas informações que um software introduz no hardware metamorfoseiam o antigo computador em um novo; da mesma maneira o corpo se metamorfoseia por meio de seus gestos e imitações. Gilles Deleuze (Cf., Jeudy, 2002, p. 109), ao retomar a questão deixada por Spinoza, onde não se sabe o que pode o corpo, diz que nenhuma pessoa tem condições de saber “o que pode um corpo” porque ninguém conhece os limites de suas afecções. Seu poder de ser afetado é constante, independente da proporção das afeições passivas e das ativas.

 

Replicante

O terceiro termo apresenta a palavra replicante, que vem de réplica, do latim replicatione. No dicionário Houaiss, replicante é a pessoa que replica; como termo jurídico: aquele que apresenta a réplica. O verbo replicar: 1 – responder a objeções, a acusações; contestar, refutar; 2 – dizer como réplica ou como explicação; acusar com réplica. No dicionário Aurélio, réplica é ato ou efeito de replicar; replicante: o que se replica, que faz objeção, refutação, replicação. Art. Plásticas: cópia de uma escultura, de uma pintura, etc. Jurado: acusação complementar, uma vez acabada a defesa, e por sua vez, se complementa com a tréplica. Na música: Ritornelo.

Portanto, a palavra replicante remete tanto à ideia de cópia ou duplicata como à de resposta ou contestação. A inspiração para refletir sobre esse paradoxo, contudo, que uso para ir tecendo o argumento de minha fala, me veio do filme Blade Runner, de Ridley Scott (1982), adaptação de uma novela de Philip K. Dike (1968). Replicante é o nome dado aos seres artificiais, aos androides, indivíduos construídos à imagem e semelhança humana, dessa forma replicados, são cópias. Em certo momento do filme, um grupo deles torna-se insubordinado e aparentam obter cada vez mais características humanas, enquanto os humanos parecem adquirir características não humanas. Ao fim, as questões que afligem os replicantes – querer ter mais anos de vida – acabam por se tornar as mesmas que afligem os humanos. Num diálogo da androide Pris, ela diz: “Não somos computadores, somos seres vivos”. E J. F.Sebastian, um dos criadores dos replicantes, sofre de envelhecimento precoce (síndrome de Matusalém) e, tal como os androides, tem poucos anos de vida.

 

Deslizamentos

Com o nó (por onde passam fluxos e intensidades) que enlaça corpo, imagens e atos paradoxalmente replicantes, reflito sobre nossa condição de humanos, sobre a condição do corpo, que ao fim e ao cabo é o que temos de mais concreto. O corpo sofre as determinações culturais que o levam a se replicar, a se reproduzir como cópias, sob o efeito das maquinarias de subjetividades em série. Porém o corpo replica (responde), reage, inventa formas de singularizações. Filmes como Blade Runner (1982), Matrix (1999), Inteligência artificial (2001) representam uma reflexão científica que interroga sobre a realidade da figura humana e pulveriza a noção de humano. Juntamente com as invenções de androides, ciborgues, homens-máquina e pós-humanos, os estudos culturais, com as discussões sobre práticas e representações, os estudos pós-colonialistas, com a afirmação de que não existe alma negra ou alma branca, os estudos feministas, com a declaração de que não se nasce mulher, torna-se mulher, provocaram uma ruptura epistemológica, com impacto no pensamento sobre o descentramento dos eixos identitários do século XIX e do sujeito cartesiano.

Homi Bhabha, ao analisar o livro de Jacqueline Rose, Pele negra, máscaras brancas, aponta três condições subjacentes ao processo de identificação: existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, visível na troca de olhares entre Eu e o Outro, entre o nativo e o colono, por exemplo; o próprio lugar da identificação é um espaço de cisão; finalmente, a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade pré-dada, nunca uma profecia autocumpridora; é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito ao assumir aquela imagem (Bhabha, 1998, p. 76 e seguintes). O filósofo indiano, ligado aos estudos pós-coloniais, trabalha com a ideia dos interstícios culturais – o entre-lugares –, lugar onde se pode introduzir a “atividade negadora” da cultura colonialista, da violência racista, das identidades hierarquizadoras de gênero, classe etc. “De que modo se formam sujeitos nos entre-lugares, nos excedentes da soma das partes da diferença (geralmente expressas como raça / classe / gênero, etc.)?” (Bhabha, 1998, p. 19). Na fronteira – lugar por excelência da alteridade –, lugar do encontro da diferença, há um terreno deslizante, próprio para “a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (Bhabha, 1998, p. 19). Nos entre-lugares pode-se interrogar, contestar. Segundo Maffesoli, o indivíduo só pode ser definido na multiplicidade de interferências que estabelece com o mundo circundante. A pessoa constrói-se na e pela comunicação, com todas as potencialidades humanas: a imaginação, os sentidos, o afeto, e não apenas a razão. É isso o que permite falar de “abertura” da pessoa, abertura aos outros, abertura às diversas características do Eu (Maffesoli, 1996, p. 201).

Daí a importância da noção de performance ao conectar diferentes formas de ação humana, em diferentes âmbitos – no teatro, nas artes em geral, e, também, especialmente, na vida cotidiana, por meio das práticas e das imagens. Vivemos criando e projetando imagens a todo o momento diante das demandas variáveis de identificação, isto é, ser para um Outro, implicando práticas, sempre provisórias, a construírem representações de si na ordem diferenciadora da alteridade e na ordem das competências que estamos dispostos a desempenhar. A performance artística, ademais, com suas exacerbações, talvez seja o que melhor possa responder à questão sobre o que pode o corpo.

 

Réplicas

O nacionalismo moderno com seu cortejo de práticas e discursos (imperialista, militarista, industrialista, racista, sexista, classista, etarista), que se instaurou no Ocidente no período que vai da segunda metade do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, fez emergir um rol de investimentos sobre a perfectibilidade humana. Se a perfeição pode ser incrementada, se o humano pode, pouco a pouco, num ilimitado grau, melhorar a si e sua espécie, o ideal de perfeição devia ser colocado como objetivo a ser alcançado na vida cotidiana, gradativamente. O liberalismo já havia apostado na autoperfectibilidade para formar o caráter e a moral do indivíduo. O nacionalismo investiu na perfectibilidade da nação, mediante a política de raça, ou seja, por intermédio daquilo que Foucault denominou biopolítica, que consiste na intervenção no corpo da população para a melhoria da espécie. A perfectibilidade individual passa a ser vista, então, como parte da perfectibilidade da espécie humana, o que traz em seu bojo os princípios da teoria racial e a consequente, nonsense, classificação da humanidade em raças superiores e inferiores.

Quando, em 1869, Francis Galton publicou Hereditary genius, não desencadeou apenas a crença de que o controle da hereditariedade dos genes fosse garantia para a melhoria da espécie. Imprimiu também uma engenharia social que não colocava em dúvida de que a raça humana podia e devia ser metamorfoseada, melhorada, física, mental e moralmente. Outra contribuição, não menos importante, para a formulação da doutrina moderna de perfectibilidade veio do biologista francês Lamarck, cuja obra, no início do século XIX, assegurou que cada órgão dos organismos animais  se desenvolve com o uso repetitivo, ou, ao contrário, seu não uso poderá enfraquecê-lo e até atrofiá-lo. Se o lamarkismo significa que o desenvolvimento dos órgãos é proporcional aos exercícios que executam, então o indivíduo pode consciente e substancialmente modificar seu esquema corporal e, ainda, passar para sua prole o grau de melhoria adquirido (Flores, 2007).

A descoberta da peculiaridade plástica do corpo humano, do fato de que ele pode ser reparado, educado, fabricado, metamorfoseado, se por um lado foi vista positivamente como condição para a melhoria da espécie humana, por outro, criou a sensação de insegurança diante das possibilidades abertas. Junto da noção de perfectibilidade, aparece um sentimento de incerteza diante da figura humana. O Dr. Frankenstein (1818), de Mary Shelley, feito de pedaços de cadáveres, é a metáfora, em parte do desejo da perfeição (uma espécie de super-homem é possível, ainda que na ficção). Da outra parte, o Frankenstein não representa apenas o poder de criação de um ser artificial. Nele, também, repousam algumas das principais questões que angustiaram os homens do século XIX: já que o homem feito em laboratório se transformou num monstro assassino, teme-se que a artificialidade da vida leve a humanidade à ruína; há o temor de que a criatura se volte contra seu criador e, ainda, que a criatura se reproduza por conta própria.

O conto de Mary Shelley insere-se no movimento de proliferação de autômatos, considerados réplicas de humanos ou de animais – pássaros de madeira que cantam para marcar as horas no relógio da parede, pianistas de madeira que movimentam mecanicamente o teclado do piano, e tantos outros exemplos. Esses artefatos incidem sobre a crença na capacidade da máquina em simular um ser vivo. Autômatos, brinquedos animados e outros objetos mecânicos, museus de cera com suas figuras sinistras, as fantasmagorias (espetáculos cujas personagens eram silhuetas recortadas em papel, iluminadas por trás, e que se movimentavam por trás de uma tela branca transparente; entretenimento que levou Benjamin a tomá-lo como paradigma para refletir sobre a modernidade), criaram um fascínio no homem do século XIX e, ao mesmo tempo, a dúvida sobre a própria realidade humana (Moraes, 2002).[3]

O tema das incertezas em relação ao humano aparece nas letras, nas artes, na filosofia, expressando uma crise de identidade. No conto O homem de areia (1817), de Hoffmann, Natanael foi tomado por uma terrível loucura ao descobrir que havia se apaixonado perdidamente por uma boneca mecânica; o medo alastrou-se por toda a cidade, pois os amantes não tinham mais certeza se estavam diante de uma mulher verdadeira ou de uma boneca de madeira. O médico e o monstro (1886), de Stevenson, problematiza o misterioso deslocamento da sensualidade amorosa para a criminosa, violando a tênue fronteira entre o bem e o mal. No Dr. Jekyll embute-se em seu nome o médico assassino – I kill –, em Mr. Hyde – hidden – esconde-se o mistério da conjunção entre o desejo de matar e amar.

Indaga-se, assim, sobre os limites das necessidades humanas, sobre a ideia da supremacia do homem no universo, repercutindo na recusa das formas seculares do antropomorfismo; recusa que, pelo menos desde o fim do século XVIII, entrando pelo século XIX, funda uma crise na representação da figura humana no pensamento europeu, dando asas à imaginação e a novas sensibilidades em relação às incertezas diante do corpo humano.

 

Sobrevivências

O conhecimento do corpo é infindável, pois, ao mesmo tempo em que está sempre sendo redescoberto, jamais é totalmente revelado (Sant’Anna, 2001, p. 79). “O corpo nunca está pronto, mas também nunca está no rascunho”, disse Denise Sant’Anna (2002, p. 50). Sim, é verdade. Porém, existem imagens no nosso horizonte como se fossem miragens gravitacionais. Imagens de musas e de Apolo infinitamente retornam como fantasmas. O nu – um estudo sobre o ideal em arte, de Kenneth Clark (s.d., p. 34-35), traça a história do nu masculino e do feminino desde a Antiguidade grega até o modernismo europeu. Clark chama a atenção para o padrão de perfeição, encontrado na forma visível da geometria, com expressão na escultura e na pintura, proporcionado ao espírito do homem ocidental desde o Renascimento até o século XX, é a memória do tipo físico peculiar que se cultivou na Grécia, entre os anos 480 e 350 a.C. O livro de Clark teve várias edições e traduções desde que foi publicado pela primeira vez, em 1956, na Inglaterra. Segundo Lynda Nead (1998, p. 27), situa-se entre as obras que garantem o discurso histórico sobre a arte. Nele, a tradição clássica e idealizadora da representação adquire a força de uma norma cultural geral. Outros modos de representar – o nu-gótico, barroco, o não europeu – são categorizados como transgressivos, como um “outro” cultural. Curiosamente, diz a autora, há pouco interesse em revisar ou rechaçar o “último clássico” sobre o tema do nu artístico.

As teorias raciais formuladas no século XIX, que vinham perdendo credibilidade científica, ganham novos investimentos políticos, médicos e educativos, na década de 1920. Em vários países, notadamente na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, o discurso da “regeneração racial” imiscuíra-se em vários programas político-institucionais, cuja aplicação prática passava a ser imprescindível para a “salvação da nação” (Bizzo, 1994, p. 95). Em 1925, Mein Kampf, de Hitler, fora publicado; Hereditary genius, de Galton, reeditado; algumas profecias anunciadas por Spencer, Wallace, os Darwin e, sobretudo, Haeckel e as Ligas Monistas tiveram sua reentrada no cenário político-literário (Bizzo, 1994, p. 91). Leonard Darwin, filho de Charles Darwin, dividia seu tempo entre combater a legislação de amparo aos pobres e promover a instalação de leis eugênicas. Não só se tornara o líder do movimento da eugenia na Grã-Bretanha, como, também, fora eleito presidente da Federação Internacional das Sociedades Eugênicas, em 1921. Em 1926, com a sociedade para a Educação Eugênica transformada em herdeira da Sociedade de Eugenia, fundada em 1907, Leonard Darwin publicou o tratado The need of eugenic reform, concluindo: “Se a raça está deteriorando por causa de elevada taxa de multiplicação dos tipos mal-adaptados [...] o Estado tem o dever de evitar a procriação...” (Bizzo, 1994, p. 87).

Na arte, a escultura se tornou o veículo mais visível do retorno da beleza clássica, pregada pelos defensores da eugenia, no entreguerras, na Europa e na América. Na Alemanha os famosos nus de Arno Breker (Fig. 2) recriam a beleza helênica, representativa do homem viril como símbolo da pureza racial. No filme documentário Olympia – Os deuses do estádio, sobre as Olimpíadas de Berlim, de 1936, Leni Riefenstahl associa estátuas da Antiguidade clássica aos atletas. E o próprio complexo olímpico era ornamentado por inúmeras obras de arte, altares e estátuas de deuses e heróis, vencedores olímpicos, reis e generais da Grécia antiga. A beleza extraída de esculturas gregas contextualizada a elementos germânicos tornava-se uma espécie de emblema mítico, a celebração da beleza da forma humana. Ao mesmo tempo, corpos dos atletas, talhados pelos exercícios físicos, considerados continuadores ou restauradores da tradição, serviam de modelo para a escultura. Arno Breker usava como modelo atletas da equipe alemã. Por exemplo, a obra Siegerin (Fig. 4) esculpida para ornamentar o estádio, teve como modelo a lançadora de dados Ottilia Fleicher, que ganhou medalha de ouro na sua modalidade (Cornelsen, 2006).

A crença na possibilidade de intervenção no corpo para melhorá-lo, embelezá-lo, purificá-lo, seguindo os padrões da beleza clássica, ganha ênfase por meio das políticas nacionais, de cunho étnico-racial, passando pelo nazismo, os fascismos, os chamados Estados Novos, como Brasil, Portugal, Espanha, Grécia, e até as chamadas democracias liberais, como França, Inglaterra, Estados Unidos. Imagens da Antiguidade, de Apolo (Fig. 1) e Afrodite (Fig. 3), são consideradas modelos de imagem ideal de homens e mulheres de carne e osso. No Brasil, o complexo escultórico do Palácio Capanema foi composto pelas esculturas: Monumento à juventude (Fig. 6), para o jardim; Mulher sentada, para o terraço (Fig. 7), Moça reclinada, para o mezanino (Fig. 8), entre outras obras.

 

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Escultura de homem em fundo branco

Descrição gerada automaticamente com confiança média

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4

Estátua de homem

Descrição gerada automaticamente

 

 

 

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Estátua verde de pessoa

Descrição gerada automaticamente

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8- monumento

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Iphan e Ministério da Cultura elaboram plano de ocupação ...

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O silêncio das esculturas do Palácio Capanema – EXPORVISÕES

 

1.       Apolo Belvedere (cópia da escultura original feita em bronze). Leochares, cerca de 350-320 a.C. Atenas;

2.       Prometeu, Arno Breker, 1935. Alemanha Nazista;

3.       Afrodite, Praxíteles. cerca de 350 a.C;

4.       Siegerin, Arno Breker, 1936;

5.       Pomona, Aristide Maillol, 1921;

6.       Monumento à juventude, Bruno Gorgi, 1947. Palácio Capanema, jardim externo;

7.       Mulher sentada, Adriana Janacópulus, 1944. Palácio Capanema, terraço;

8.       Maternidade, Celso Antonio, 1941. Jardins da Praia de Botafogo.

É verdade que, no Brasil, não houve um investimento na arte da escultura, da monta do que ocorreu na Europa e em alguns países da América, no período. Porém, os editais e as encomendas, a correspondência do ministro, a crítica na imprensa, as obras que foram realizadas e as que ficaram em maquetes, fornecem um material suficiente para se afirmar que o projeto simbólico veiculado por uma linguagem visual era informado pela estética do “retorno à ordem”, aquela que imperou nos regimes fascistas do entreguerras, a que nos referimos acima. Os escultores escolhidos para realizarem as obras estudaram na Europa com os grandes mestres que primaram pela escultura classicista: a reconfiguração do corpo ou sua reintegração, que havia sido fragmentado, descorporificado, metamorfoseado pelas vanguardas artísticas, a exemplo de Pamona (Fig. 5) de Aristide Maillol, autor de diversas obras oficiais de diversos países, na América e Europa (Flores, 2007).

 

Manequins

Se as réplicas inquietaram no século XIX, frente à potência criadora do corpo, nas primeiras décadas do século XX aparece o tema dos manequins que, congelados na imobilidade de um espaço praticamente fechado, acabam por transformar o corpo em coisa, conforme analisa Eliane Moraes (Moraes, 2002, p. 105). Nele, a figura, particularmente a feminina, podia ser evocada como uma mera ilusão, um simulacro, para ser infinitamente repetida pelas ruas da cidade. Os manequins – associados aos autômatos – provocam sorrisos entre os surrealistas que os têm como seres mais mortos que os mortos, que reclamam prerrogativas de vida, que geram sentimentos inquietantes, que fazem interrogar sobre a realidade da figura humana, como vemos no Apolo de Alberto Savinio (Fig. 13) e na Vênus de Milo de gaveta de Salvador Dali (Fig. 14). Ou, ainda, na escultura O impossível, da artista surrealista brasileira Maria Martins (Fig. 12).

Em A Grande Máquina de Giorgio de Chirico (Fig. 9), bem como em suas Musas inquietantes (Fig. 10) e Heitor e Adrômaca (Fig. 11), a figura de uma mulher, como nos manequins, apresenta um rosto sem feições. Seu corpo gigantesco, é composto de uma assamblagem de diferentes ferramentas: réguas, esquadros, segmentos de molduras – parece um cavalete fragmentado. O artista oferece-nos a imagem de um monumento estruturado geometricamente, mas, ao mesmo tempo, nega a ordem, a volumetria e a simetria das estátuas da Antiguidade. Para De Chirico, o motivo do manequim não só servia para representar uma metáfora do corpo ou um meio de alcançar a coisa referida como humana, quanto, também, para trivializar as estátuas (Flores, 2008, p. 108). Sobre Musas inquietantes, escreveu (Valsecchi, 1972, p. 734). “É a hora do crepúsculo e sombras oblíquas são projetadas pelas estranhas figuras, estátuas decapitadas, manequins, colunas esculpidas, junto com instrumentos coloridos de um rito mágico e irônico”. Pela leitura de Argan, no quadro Musas inquietantes, “é inútil procurar significados recônditos, relações profundas: o significado, o princípio de relação é a negação de qualquer significado ou relação, a conversão consciente da realidade em não-realidade, do ser em não-ser.” (Argan, 1992, p. 496).

 

 

9

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10

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O Impossível de Maria Martins, 1946

 

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Venus de Milo com gavetas – Passeiweb.com – Seu portal de estudos na ...

9.       A grande máquina, Giorgio De Chirico, 1925. Óleo sobre tela. 156.2 x 93.3 cm;

10.    Musas inquietantes, Giorgio De Chirico, 1916. Óleo sobre tela. 97 x 66 cm;

11.    Heitor e Andrômaca, Giorgio De Chirico, 1917. Óleo sobre tela. 100 x 70;

12.    O impossível, Maria Martins, 1945. Escultura em bronze, 79,5 x 80 x 43,5 cm.

13.    Apollo, Alberto Savinio, 1931. Têmpera sobre tela, 127,5 X 74 cm.

14.    Vênus de Milo com gavetas, Salvador Dali, 1936. Reboco pintado com puxadores de metal e pompons, 98 x 32,5 x 34 cm.

 

A técnica

As vanguardas artistas participavam, filosoficamente, do clima de rejeição ao século XIX com seu cortejo de práticas disciplinares, próprias da cultura capitalista, racional, utilitarista, pragmática, conquistadora e colonialista. Os efeitos da técnica sobre as coletividades e os indivíduos vinham causando inquietações filosóficas, antropológicas e sociológicas e se transformando em tema do pensamento dos maiores intérpretes da crise pela qual passava a Europa, nos albores do século XX, como Spengler, Heidegger, Simmel, Ortega y Gasset, Keyserling que, de modo geral, chegaram à seguinte conclusão: já que a técnica é inexorável e, ao mesmo tempo, contraditória, escravizadora de homens e promessa de felicidade iluminista, o que resta esperar? Que a técnica na sua potência libere o humano do fardo do trabalho.

Assim, se no otimismo de Olympia, Leni Riefenstahl aproxima corpos de homens e mulheres esculpidos na pedra aos corpos dos atletas como cópias da beleza grega, no filme de Fritz Lang, Metrópolis (1927), o medo da mecanização moderna põe em dúvida, por sua vez, o futuro do humano. O enredo é ambientado no século XXI, numa grande cidade governada autocraticamente por John, um poderoso empresário. A classe abastada e privilegiada vive na superfície, enquanto os operários, escravizados pelas máquinas, vivem em extrema miséria no subterrâneo da cidade. A metáfora é, por demais, evidente: a máquina conduz à destruição do indivíduo. Rotwang, um inventor louco que está a serviço de John, informa que seu trabalho está concluído: criara um robô à imagem de um homem. Não haverá mais necessidade de trabalhadores humanos e, em breve, ninguém conseguirá diferenciar um ser vivo de um robô.

Antes mesmo da entrada em cena do robô na vida cotidiana e, muito longe, do que assistimos hoje sobre a inteligência artificial, Freder acusara o pai de transformar as máquinas em novos deuses. E frente ao sofrimento dos trabalhadores, surge uma líder espiritual, Maria, com uma mensagem de esperança e de paz, que exorta os operários a aguardarem por um intermediário que virá dialogar com a classe governante e libertará os operários da existência miserável. John, então, ordena ao inventor que seu robô tenha a imagem de Maria e que se infiltre entre os operários para semear a discórdia e destruir a confiança que sentem por ela.

Porém, cumprindo-se os planos de Rotwang, não é só entre os operários que o robô Maria implanta a discórdia. Ao dançar sedutoramente nas festas dos ricos, suscita um sentimento de luxúria e desejo que conduz a comportamentos humanos autodestrutivos; enquanto, entre os operários, o robô apela, ironicamente, à morte das máquinas. Privados das palavras apaziguadoras da boa e verdadeira Maria e incitados pelo ódio instilado pela Maria robô, os operários dão azo a toda uma série de atos violentos, destruindo as máquinas que alimentam e sustentam toda a Metrópolis, incluindo a Cidade dos Operários, que fica totalmente inundada.

Contudo, se a técnica assusta pela mecanização humana, há outro mito que aflige a humanidade: ao perderem o Paraíso, os humanos receberam o castigo de ter que ganhar a vida com o suor do rosto. Desde então, sua natureza passou a ser a constante autocriação para superar a vida animal. “El hombre empieza cuando empieza la técnica”, afirma Ortega y Gasset (1957, p. 45), em Meditación de la técnica. Para o filósofo espanhol, a vida do humano é inventada, como se inventa uma novela ou uma peça de teatro. A vida humana seria então, na sua dimensão, uma obra de imaginação? – pergunta o filósofo. Seria o humano uma espécie de novelista de si? É ele que forja sua figura fantástica e, ao realizar essa obra, faz-se técnico. A vida não é só contemplação, pensamento, teoria. A vida é produção, fabricação, portanto, há latente no homem a técnica, e não se pode afirmar que o mundo corporal seja a-mecânico (Ortega y Gasset, 1957, p. 33).

Como exemplo representativo dessa ideia, vemos o autômato do filme A invenção de Hugo Cabret (2011), ambientado nos anos de 1930, em Paris. Hugo herdara do pai a capacidade de consertar quaisquer coisas e, também, um autômato que havia encontrado em um museu com um diário que o pai escrevera sobre como consertá-lo. O menino passa seu tempo livre tentando achar peças para colocar sua herança a funcionar; ele se relaciona com o autômato como a querer descobrir nele um fio de humanidade, uma mensagem ou a reconquista de um afeto perdido com a morte do pai. Hugo não é seu inventor, mas quer ajudá-lo, quer consertá-lo, quer salvá-lo para salvar-se a si. Nós, espectadores, sentimos que a qualquer momento se rompa a finalidade predeterminada da máquina, que o autômato se humanize e que preencha o vazio que atormenta a vida do menino que perdera o pai. E, de fato, a capacidade de desenhar do autômato, a semelhança de seu criador, conecta Hugo com a memória perdida.

 

Os ciborgues

Se os robôs representam máquinas que receberam qualidades humanas, fazem confundir as fronteiras entre humano e artefato técnico, como em Blade Runner, Matrix, Inteligência artificial, nos ciborgues, frutos da cibernética, é o próprio corpo, é o próprio humano, que recebe a potência da técnica e da ciência. A mistura entre humano, técnica e ciência reformula cada vez mais as noções herdadas do humanismo iluminista e inventa outras formas de viver, de criar e de imaginar o corpo. Na novela Morde e assopra (2011), de Walcir Carrasco, o robô criado por Ícaro à imagem de sua falecida esposa, representada pela atriz Flávia Alessandra, é programado com as mesmas lembranças da mulher. Toca piano e, gradualmente, vai adquirindo personalidade e sentimentos. Já, no filme Mulheres perfeitas (2004), os homens da cidade, por meio de um programa computadorizado, implantam chips no cérebro das suas mulheres e as transformam em ciborgues. Elas se tornam eternamente felizes, obedientes, belas, potencializadas em suas qualidades, corrigidas de seus defeitos, o que resulta num alto desempenho, tanto sexual quanto como esposa e dona de casa, em um padrão estético. O tema do filme é uma crítica feminista à sociedade patriarcal norte-americana, mas podemos tomá-lo como exemplo para pensar que a era da revolução digital tem consequências profundas para a vida humana e nos leva a concluir que a performance do corpo humano é sem limites.

A noção de ciborgue como homem-máquina fascina a uns e assusta a outros. O ciborgue anuncia a imagem performática do pós-humano, como resultado das promessas da ciência e da tecnologia. No nosso cotidiano, o corpo ideal do body building – atlético, sexy e clean – tem sido analisado como reflexo desse pensamento cibernético com impacto numa nova postura estética do corpo que toma forma ante a valorização da performance: o que é belo está, cada vez mais, relacionado com o desempenho desejado. Na perspectiva da performance, as máquinas de musculação, as próteses estéticas, as intervenções cirúrgicas, a toxina botulínica, a cosmética, os anabolizantes, os complementos alimentares, os diets e light, são meios que a tecnologia disponibiliza para atingir um corpo de alto desempenho, essencialmente performático, e que se anuncia como pós-humano ou corpo-passagem de informações, e não corpo-invólucro ou recipiente de uma substância pensante.

 

O pós-humano

A primeira ordem de perguntas que nos vem à mente seria: quais os perigos a serem avaliados diante da possibilidade ilimitada de intervir no corpo? No que estamos nos tornando? Adorno temeu a emergência de uma sociedade totalmente administrada pelo poder da informática e da mídia; Hokheimer, o domínio da razão instrumental; Marcuse, a redução ao homem unidimensional. As reflexões mais recentes, diante dos novos processos advindos da digitalização do corpo e da engenharia genética, com as implicações nas composições híbridas entre homem e máquina, orgânico e inorgânico, clonagens e manipulações genéticas, tendem para os discursos ligados ao universo pós-orgânico, pós-biológico e pós-humano. Ainda se mostra válido persistirmos nas margens tradicionais do conceito de homem? – pergunta Paula Sibilia (2002, p. 18). Ou, pelo contrário, seria talvez preciso reformular essa noção herdada do humanismo liberal e inventar outras formas, capazes de conter as novas possibilidades que estão se abrindo? O corpo humano, como uma figura orgânica, é obsoleto? Paula Sibilia considera que não é tão simples assim. “O corpo biológico ainda se ergue. E a sua materialidade se rebela: por vezes, ele parece ser orgânico, demasiadamente orgânico. A teimosia do sensível persiste, o humano parece estar enraizado em sua estrutura de carne e osso. Ao menos, talvez, por enquanto” (Sibilia, 2002, p. 94).

O filósofo Michel Serres (2010) também apresenta argumentos otimistas. Ele considera que, com as novas tecnologias, estamos entrando numa nova sociedade, a “sociedade pedagógica”, em que qualquer um pode ter acesso a um número muito grande de informações, em qualquer lugar. A “era do conhecimento”, maravilhosamente, coloca-se diferente da “sociedade de controle”, pensada por Deleuze, das coleiras eletrônicas, própria da sociedade de consumo, e diferente também da “sociedade disciplinar”, pensada por Foucault, do homem produtivo, da sociedade industrial. A internet, afirma Serres, veio para dar acesso a todos à informação. As universidades a distância, em toda a parte e sempre presentes, substituirão os campi, guetos fechados para adolescentes ricos, campos de concentração do saber. Pode-se viver agora, conforme o filósofo, como Robin Hood. Na floresta, fora do espaço jurídico, num espaço do não direito, toda espécie de criação é possível. Nas florestas, à noite, o oposto das Luzes, diz ele, viveram as bruxas, mulheres camponesas, excluídas das universidades, que, no entanto, chegaram a certo número de plantas desconhecidas do farmacêutico, venenos, remédios etc. De certa maneira, há uma bruxa nas novas tecnologias, conclui Michel de Serres.

A biopolítica tinha como meta capturar a vida para controlar, disciplinar e medicalizar os corpos dos indivíduos para transformá-los em força produtiva e signo racial, deixando-os morrer ou fazendo-os viver (Foucault, 1992, p. 249); a biotecnologia aponta para a criação da própria vida, combinando orgânico e inorgânico, natural e artificial, alternando o código genético, criando espécies, fazendo clonagens. Assistimos à passagem do homem-máquina para o homem-informação. O homem supera as suas próprias limitações biológicas. A vida, decifrada pelo manual de instrução inscrito no código do DNA, com a ajuda dos instrumentos digitais, deixou de ser um mistério. A morte, momento final irreverente irreversível, agora é declarada tecnicamente, com decisões a serem tomadas: interromper o suporte artificial, autorizar a extração de órgãos para transplante, efetivar o enterro ou conservá-lo por meio da criogenia.

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Desenho de rosto de pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

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Homem de barba e bigode

Descrição gerada automaticamente com confiança média

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Uma imagem contendo olhando, velho, em pé, água

Descrição gerada automaticamente

15.    Autorretrato com boneca. Hans Bellmer, 1934;

16.    A boneca. Hans Bellmer, 1934;

17.    A boneca. Hans Bellmer, 1935;

18.    Autorretrato com olho ferido, Francis Bacon, 1972;

19.    Estudo para um Retrato olhando para a direita. Francis Bacon, 1962.

20.    Crucificação, Francis Bacon, 1933.

Sueli Rolnik (2002, p. 311) afirma que a arte “constitui um manancial privilegiado de potência criadora ativo na subjetividade do artista e materializado em sua obra”. Ou como lembra Forest Pyle (2000, p. 124), “quando fazemos ciborgues – ao menos quando o fazemos nos filmes – também fazemos e desfazemos nossas concepções sobre nós mesmos”. Nos anos de 1930, Hans Bellmer produziu uma série de bonecas desmembradas, de beleza mórbida, contida no cenário de decadência urbana, erotismo e abuso físico. Todavia, as bonecas eram também uma arma de combate ao fascismo da época, uma ofensiva crítica a uma ideologia do perfeito e puro nazista. A aparência das bonecas assemelha-se a autômatos desequilibrados, reproduções humanas de contornos roliços, e mesmo fálicos, ou simplesmente seres mecanizados, sem força motora para agir nem capacidade para lutar pela sua vida e dignidade. O mais fascinante nelas, ou o mais chocante, são as suas anomalias que produzem corpos sem nenhuma construção narrativa das esculturas. As suas anomalias configuraram corpos plásticos e fragmentados com personificações móveis, passíveis, adaptáveis, articuláveis e incompletas. (Fig. 15, Fig. 16, Fig. 17).

Entretanto, hoje, citando mais uma vez Suely Rolnik, a anomalia dos artistas é festejada! Ela faz girar o mercado da arte. Sua obra tende a ser clonada, esvaziada do problema vital que ela cartografou. Ela agrega valor de glamour cultural à moda. Ao artista não clonado restam, em geral, poucas saídas para fazer circular sua obra. O destino de muitos é trabalhar nos departamentos de criação das agências que produzem as identidades prêt-à-porter, design, publicidade etc. No meio da arte o capitalismo renovado vai encontrar os artífices de suas clonagens. “A mesma desestabilização que intensifica as misturas e pulveriza as identidades implica também na produção de kits de perfis-padrão de acordo com a órbita do mercado” (Rolnik, 2002, p. 310-312).

Porém, lembremos que a arte cria pensamento, se concordarmos com essa afirmação de Gilles Deleuze. O objetivo da arte seria o de dar acesso ao corpo aquém da organização, à vida não estabilizada, à vida como força inorgânica. A pintura de Francis Bacon (Fig. 18, Fig. 19, Fig. 20) desfazendo o rosto e o organismo, em vez de correspondências formais, constitui zonas de indiscernibilidade, de indecidibilidade, ao plasmar na figura humana a potência inorgânica que anima o corpo (Deleuze, 2007, p. 29). Em Mil platôs, Deleuze e Guattari (1995, p. 13) conceberam o corpo sem órgão, o corpo inorgânico, um corpo-devir, como luta contra a subjetividade hegemônica, contra as identidades fixas, contra a lógica binária/dualista ligada à reflexão clássica da “árvore-raiz, o pensamento vertical. Em oposição, nosso pensamento deve ser ‘rizoma’, que se espalha, que se derrama, feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado por intensidades”. Somente intensidades passam e circulam.

 

Performance

Na interpretação do filósofo português José Gil (2004, p. 197), Pina Bauch faz correr um fio que serpenteia entre todos os gêneros de espetáculos (ou performances). Para uma só peça, pode convocar elementos provenientes do balé clássico, da dança moderna, do music-hall, do circo, da dança étnica, do teatro de rua, da festa de salão ou da festa de feira. Trata-se de uma obra rizomática, cuja composição é alcançada depois de muitas ramificações. Os devires pululam nos jogos, nas mudanças bruscas de atitudes corporais e nas falas das personagens. A dança de Pina, repetindo modelos e saltando para fora deles, fazendo o corpo dançante, entrega-se como abertura ao mundo por meio da recusa dos critérios determinantes dos modelos de representação. No movimento dançarino de Pina, talvez, possamos perceber o jogo dos e das replicantes: copiamos, replicamos, somos réplicas de modelos culturais, mas não de forma sujeitada. Somos replicantes rebeldes; nosso corpo é insubordinado, inventa novas “artes de ação” (performances), singularizadas.

E nesse mesmo jogo de encenações, encontramos as performances das noivinhas cartografadas por Suely Rolnik (2006). Ao pôr em movimento o desejo, a psicanalista brasileira nos faz acompanhar aspirantes a noivinhas em uma viagem histórica e geográfica, ao longo dos anos de 1970 e 1980. No percurso rizomático, vemos gestos de territorialização. A replicação de modelos atendendo ao desejo do Outro. Porém, nada garante fixidez no território das subjetividades. Nos corpos vibráteis, num devir constante, os afetos e suas afecções (Deleuze) fazem com que a vida das máscaras vestidas como artifícios (Rolnik) para as performances cotidianas se desgastem e não tenham uma vida muito longa.

 

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Recebido em 12/12/2023.

Aceito em 12/01/2024.



[1] Doutora em História, professora titular aposentada do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do CNPq-PQ 1B. Brasil. E-mail: mbernaramos@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-9438-031X

[2] Este texto, com algumas modificações, foi apresentado originalmente no Seminário de Dança / Festival de Dança de Joinville, em julho de 2012, na Mesa Redonda E por falar em ...corpo performático.

[3] No capítulo V – “A vida dos simulacros”, a autora traz excelente abordagem desse contexto.