Noção de mobilidade em Lafont: retrato de uma mulher negra no Ocidente como externalização da africanidade

                                                                                               Giovanna Trevelin[1]

 

 

LAFONT, Anne. Uma africana no Louvre. Trad. Ligia Fonseca Ferreira. – 1 ed. – Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022, 88 p.


 

 

Quando nos atentamos às obras artísticas como possibilidades de narrar a história, pensar nas relações de gênero que estão entrelaçadas a estes discursos é um importante caminho crítico para compreender a sociedade em que vivemos. Essa concepção pode ainda tomar outra dimensão quando refletimos sobre as presenças e ausências de corpos negros nas principais obras que referenciam a existência social, e este fator perpassa também pelas escolhas de grandes instituições, lugares de memórias: museus, exposições e monumentos públicos.

Partindo desse princípio, o livro de Anne Lafont, Une africaine au louvre en 1800: la place du modèle [Uma africana no Louvre] (2022), motivo desta resenha, nos propõe algumas importantes reflexões a respeito da temática. A autora é uma historiadora da arte francesa, pesquisadora e professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Com alguns projetos na área de história da arte, também é reconhecida por seu livro L’Art et la Race. L’Africain (tout) contre l’oeil des Luimères [A arte e a raça – O africano de (e ao) encontro do olhar iluminista] (2019), que pensa o lugar de corpos negros na arte ocidental como também sujeitos de posição ativa nas construções de suas imagens. Assim, Uma africana no Louvre surge como adaptação de uma conferência ministrada no Instituto Warburg, em Londres, no dia 24 de janeiro de 2018, que toma forma também a partir de suas pesquisas a respeito da arte francesa dos séculos XVIII e XIX em sua ligação com o mundo atlântico. Com isso, a autora sentiu a necessidade de dedicar ao quadro Portrait d’une femme noire [Retrato de uma mulher negra] (1800) um estudo monográfico ainda inexistente em francês, o que não conseguiu fazer na sua primeira obra.

A movimentação principal da autora no livro é pensar a trajetória de Madeleine, a modelo do retrato, e como ela é ativa na produção da obra considerando toda sua simbologia diaspórica e tudo o que isto revela, algo que destoa um pouco de análises artísticas focadas mais nas/nos artistas como criadoras/es. Assim, traz como norteadora a noção de mobilidade, ideia que perpassa todos os motivos de seus estudos sobre a pintura, uma vez que pontua ser o papel do historiador e da historiadora da arte retraçar essa mobilidade da obra dentro de um movimento mais geral, oferecendo uma reinterpretação dos objetos artísticos que fogem do comum olhar espectador nos museus.

A autora começa o texto descrevendo os pormenores da obra de arte que inspira o livro. Neste processo, destaca alguns detalhes que conversam com sua intenção de análise: “[...] realçando a beleza excepcional da jovem africana das colônias” (Lafont, 2022, p. 11); “[...] a jovem africana observa com o corpo inteiro a espectadora ou o observador e engaja uma relação com ela ou ele” (Lafont, 2022, p. 11); “Ela mantém a pose e ocupa seu lugar num momento da história em que a capacidade de ostentar uma postura digna e ereta não era uma situação fácil para as mulheres negras de Paris” (Lafont, 2022, p. 12). Com isso, constata que a modelo se construía de forma revolucionária naquela imagem – tanto do ponto artístico, quanto histórico – e oferecia uma nova imagem da africanidade em um contexto de exploração colonial.

Lafont argumenta ser, esse novo olhar para um corpo negro no Ocidente, um trabalho conjunto da pintora com a modelo, colocando esta última em uma condição ativa em sua performance artística, atribuindo-a o poder narrativo de si mesma: “as modelos participam da produção de sua imagem” (Lafont, 2022, p. 15). Assim, situa a obra em uma possibilidade de somar-se a um projeto de mundialidade, que diz respeito a preservação de culturas diversas a partir de um contato não hierarquizado entre estas, desta forma caminhando para um enriquecimento intelectual, espiritual e sensível das sociedades. Segundo a autora, a partir desse viés de análise, é possível observar as diversas formas que os retratos de mulheres negras assumiram no contexto atlântico e construir um corpus que se revela como fonte e recurso necessários para o conhecimento da vida africana nas colônias. Ainda, a obra trabalhada por Lafont encontra-se, como diz o título, no Museu do Louvre, e só com esta informação já podemos pensar sobre o lugar que uma mulher negra do século XIX, proveniente de uma colônia francesa, ocupa no maior acervo reconhecido da arte ocidental.

O livro conta com uma estrutura fluída na sua divisão em temáticas que se relacionam mutuamente: Mobilidades teóricas e geográficas; No palácio do Louvre; Corpo e Agentividade; O seio nutridor: um leite negro?; O tecido como segunda pele; Arte colonial como matriz da obra-prima; finalizando com uma entrevista com a autora realizada por Amanda Carneiro, pesquisadora com atuação em crítica de arte, curadoria e edição de livros e revistas. Cada tópico é condicionado por um aspecto da obra analisada, onde Lafont busca relacioná-lo a fatores exteriores de tudo aquilo que envolve Madeleine: sua cultura, assim como a cultura em que ela foi inserida; os motivos de ser representada desta forma e como isso se relaciona com a condição colonial das mulheres de alguns países africanos; a relação da cultura europeia com a apropriação das existências destas mulheres; a forma como a pintora e modelo se conectam e, de certa forma, se aproximam na construção do retrato; as cores que remetem a França, demarcando geograficamente a obra; entre outras questões que a análise a partir da mobilidade pode considerar, como, por exemplo, a eventual inscrição da experiência africana no campo artístico e estético das belas-artes ocidentais, apreendendo o Retrato de uma mulher negra, segundo as palavras da própria autora, “não apenas como um todo marcado pelo estilo do olhar colonial, mas também como uma manifestação de africanidade no sistema escravista e pós-escravista” (Lafont, 2022, p. 15).

É evidente que Lafont retoma, já de início, alguns estudos realizados sobre a obra e os leva em consideração para o desenvolvimento de seu trabalho, localizando sua pesquisa nesse espaço. É a partir destes estudos que sabe-se algumas coisas sobre Madeleine – até mesmo seu próprio nome: a modelo chegou à França como doméstica do cunhado da pintora, Auguste Alexandre François Benoist-Cavay, quando este (e sua família) retornaram de Guadalupe, colônia francesa, onde residiam desde o início de 1790. A partir disso, sabe-se que o quadro foi pintado entre 1798 e 1800, entre Anjou e Paris.

O retrato foi realizado por uma artista mulher, Marie-Guillemine Laville-Leroulx, adiciona-se o Benoist como sobrenome de casada. Sobrenome este que lhe afastou, em dado momento, de seu trabalho, uma vez que a pintora foi induzida a abandonar sua carreira para não comprometer a ascensão profissional de seu marido na França da Restauração da dinastia Bourbon (1815-1830). Um fato curioso sobre o casal, é que eram monarquistas no contexto da Revolução Francesa (1789-1799), e nunca deixaram de apoiar o rei. Coloco essa informação como curiosa pois a artista não só foi aluna de Jacques-Louis David, republicano jacobino que se apropriava dos ideais da revolução, como a pintura deste[2] inspirou a constituição de sua obra sobre Madeleine. Outro artista que também serviu de base para a produção do retrato foi Anne-Louis Girodet[3], aliado a ideia de emancipação de pessoas negras escravizadas, construindo até mesmo narrativas artísticas sobre esse processo – incluindo a que foi referência para Benoist. A respeito disso, Lafont sugere abordar o retrato de Madeleine para além da esfera político-artística parisiense da Revolução e do Consulado, uma vez que, embora possuam semelhanças estilísticas, as intenções políticas da pintora e dos pintores eram opostas, provando a dissociação entre estilo e ideologia. Assim, a autora pretende seguir as trajetórias plurais do quadro com uma série de imagens e objetos exteriores a sua filiação estilística tradicional. Considerando a diversidade atlântica presente na obra, sua sugestão é pensar, com base na pintura aqui referenciada, três maneiras que o corpo feminino negro aparece no contexto imperial: o corpo erótico, o corpo nutridor e o corpo vestido, o que embasa seus tópicos de discussão. 

Precisamos, ainda, nos atentar ao fato de que o retrato de Madeleine teve alguns outros nomes no decorrer do tempo histórico: Portrait négresse [Retrato de negra], Portrait d’une femme noire [Retrato de uma mulher negra] e, em uma exposição no Museu d’Orsay, em Paris, no ano de 2019, ganhou o nome de Portrait présumé de Madeleine [Retrato presumido de Madeleine]. Podemos observar, com a própria cronologia dos nomes, o trajeto da história da obra e sua apropriação. É certo que o último, que leva o nome da modelo, é resultado de pesquisas acerca da pintura, responsáveis por revelar sua identidade. Lafont atribui esse movimento de reconhecimento, inclusive por parte do Museu do Louvre, ao trabalho feito por Marianne Levy, que foi retomado por ela neste livro que apresento.

Ao fim, fica explicita a conexão de Lafont com obras artísticas brasileiras, uma vez que ela discorre sobre algumas pinturas, e seus/suas artistas, principalmente quando se refere às mulheres negras enquanto amas de leite no período colonial, e como este fator foi apropriado pela história visual do Brasil.

Anne Lafont acredita em um movimento virtual ou migração real atribuídas a noção de mobilidade, e com isso defende a ideia de que, no campo da arte no sistema imperial, as imagens ecoam por diversos lugares a partir do desenraizamento e transplantação dos/as africanos/as no âmbito do tráfico transatlântico, que reconfigura o mundo de forma definitiva. Assim, considera o retrato de Madeleine presente em uma temporalidade de longa duração, responsável também por destacar a história específica de emancipação das mulheres em África e na diáspora africana nas diferentes apropriações ao longo da história, ainda longe de serem esgotadas.

 

Recebido em 12/12/2023.

Aceito em 12/01/2024.



[1] Doutoranda no programa de História Global da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com projeto

vinculado a linha de pesquisa “História da historiografia, Arte, Memória e Patrimônio”. Florianópolis, Santa

Catarina, Brasil. E-mail: trevelingiovanna@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-0711-8522

[2] Jacques-Louis David. Madame Charles-Louis Trudaine, nascida Marie-Louis-Josèphe Micault de Courbeton, 1794. Óleo sobre tela, 130 x 98cm. Paris, Museu do Louvre.

[3] Anne-Louis Girodet de Roussy-Trioson. Jean-Baptiste Belley, deputado de São Domingos, 1797. Óleo sobre tela, 159 x 111cm. Palácio de Versalhes.