Pedro Américo entre os tempos: Abizag, Judite, Jocabed, Joana D’Arc e Margarida em telas oitocentistas

Pedro Américo between times: Abizag, Judite, Jocabed, Joana D’Arc e Margarida in 19th century canvases

                                                                                               Daniela Queiroz Campos[1]

Amanda Borba Paitax[2]

 

 


Resumo

O presente artigo tem como mote a análise de cinco telas de personagens femininas pintadas por Pedro Américo no último quarto do século XIX. Foram então selecionadas para a análise as apresentações pictóricas de cinco personagens que evocam outras temporalidades históricas: Judite, Abizag, Jocabed, Joana D’Arc, Margarida. Para a composição de tais figuras, Pedro Américo manipulou tempos que não eram os seus, já que utilizou-se como referencial tanto de textos, como de imagens de díspares temporalidades. As análises aqui elaboradas pretendem abordar diversos tempos, em primeiro lugar nos quais se inserem cronologicamente, em seguida, dos excertos em que são citadas, e por fim, os períodos em que são evocadas pelo artista. Ainda, será problematizada a influência do movimento artístico do Orientalismo, bem como as intervenções Românticas e Neoclássicas nas pinturas. Para tal, delinear-se-á paralelos e correlações entre a interpretação bíblica-cristã, histórico-cultural e ficcional das personagens, bem como a ingerência das viagens à Europa realizadas pelo artista.

Palavras-chave: Pedro Américo; Romantismo; Neoclássico; Orientalismo; Século XIX.

Abstract

This article has as its motto the analysis of fine canvases of female characters painted by Pedro Américo in the last quarter of the 19th century. The pictorial presentations of five characters that evoke other historical temporalities were selected for the analysis: Judith, Abisag, Jocabed, Joan of Arc and Gretchen. For the composition of such figures, Pedro Américo manipulated times that were not his own, since it was used as a reference both texts and images of various periods. The analyses elaborated here intend to address the different times, first in which they are inserted chronologically, then in the excerpts in which they are cited, and finally, the periods in which they are evoked by the artist. Also, the influence of the artistic movement of Orientalism, as well as the Romantic and Neoclassical interventions in the paintings will be problematized. To this end, parallels and correlations will be delineated between the biblical-christian, historical-cultural and fictional interpretations of the characters, as well as the interference of the trips to Europe made by the artist.

Keywords: Pedro Américo; Romanticism; Neoclassical; Orientalism; 19th Century.


 

 

 

O artista e os tempos

Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) foi artista oficial do Império Brasileiro de Dom Pedro II (1825-1891), dedicando considerável parcela de seus estudos e composições às chamadas telas históricas. Nascido no município paraibano de Areias no ano de 1843, aos 13 anos ingressa na Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), onde iniciou os estudos de desenhos industriais (Duque, 2001, p. 238). Três anos depois, finalizou sua formação em Paris com bolsa concedida e financiada pelo Imperador Dom Pedro II. Já na Europa, Américo concluiu sua aprendizagem formal junto à École National Supérieur des Beaux-Arts de Paris. Podemos creditar muitas das características de suas composições a influências de artistas franceses, com os quais ele se relaciona durante sua estada na Europa. Às temáticas religiosas, nota-se os influxos de Hippolyte Flandrin (1809-1864); no tratamento de questões históricas, credita-se principalmente à Léon Cogniet (1794-1880); já os episódios de batalhas e relacionados ao Orientalismo, há uma certeira intervenção de Horace Vernet (1789-1868) e, por fim, Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), contribuiu enormemente para as tonalidades Românticas de suas composições (Sá, 1995, p. 129).

Américo despendeu mais de uma década de idas e vindas entre o Brasil e a Europa, instalando-se por um período mais alongado no Rio de Janeiro somente no ano de 1870 (Duque,1995, p. 140). A partir de então, retorna à AIBA como professor de estética, arqueologia e história da arte, e se dedica principalmente à composição de retratos e pintura histórica (Sá, 1995, p. 141). Nesse contexto, torna-se pintor oficial do Segundo Império brasileiro e colabora ativamente na construção pictórica de um passado idealizado, repleto de heróis e mitos e cuja intencionalidade era o desenvolvimento de um ideário nacional. São de sua autoria afamadas telas que abordam tais princípios, como: Fala ao Trono (1872), A Batalha do Avaí (1873), Independência ou Morte (1888) (Pereira, 2008, p. 25).

Nas três citadas e renomadas telas, Pedro Américo pintou destacados eventos da história do Brasil. Diante daquelas telas, ele compôs imagens como artista oficial do Império Brasileiro. De tal feita, colabora efetivamente na construção de uma iconografia nacional. Por exemplo, em Fala ao Trono retrata o imperador D. Pedro II, auxiliando a construir assim a figura de um monarca nos trópicos. E n’A Batalha do Avaí apresenta, por encomenda, a batalha da Guerra do Paraguai, a qual foi contemporâneo. No entanto, a larga produção pictórica do artista em questão ultrapassa, em muito, a formação de uma iconologia para aquela nascente nação. Como aluno egresso e professor da cadeira de pintura histórica da AIBA, Américo dedicou-se sobremaneira à composição de pinturas históricas de tempos que não eram os seus.

O presente artigo tem como mote a análise de cinco telas de Pedro Américo, todas compostas no último quarto do século XIX, sendo elas: Davi e Abisag (1879), Judite e Holofernes (1880), Moisés e Jocabed (1884), Joana D’Arc (1883) e Fausto e Margarida (1888). Se as cinco mencionadas obras partilham o mesmo período de produção, não podemos defender que elas abordam apenas o findar do oitocentos brasileiro, já que todas elas versam temporalidades históricas outras. Pedro Américo, no século XIX, traz à tona personagens temporalmente dele distantes.

Como bem defende o historiador da arte e filósofo Georges Didi-Huberman, “também devemos considerar Fra Angelico como um artista do passado histórico (um artista de seu tempo Quattrocento), tanto quanto um artista do mais-que-passado rememorativo (um artista manipulando tempos que não eram o seu)” (Didi-Huberman, 2015, p. 26). Pedro Américo foi um artista brasileiro do século XIX, assim como Fra Angelico (1395-1455) foi um pintor do Quattrocento florentino. No entanto, ambos, como qualquer outro artista, manipularam tempos que não eram os seus. Por exemplo, Pedro Américo em Tiradentes esquartejado (1893) pintou um suplício que teria ocorrido um século antes. Fra Angelico, por sua vez, em A Anunciação (1443) deu a ver evento que evoca o acontecimento da Antiguidade.

De tal feita, para problematizarmos o chamado anacronismo imagético vamos abordar não apenas os preceitos de Georges Didi-Huberman, mas também os preceitos de outro historiador da arte, Daniel Arasse, para quem: “quer se trate de pintura ou de escultura, o objeto do historiador da arte é em si mesmo anacrônico. […] todo o objeto de arte mistura os tempos, essa é a definição de anacronismo. A ideia de pureza de um tempo linear na história da arte não tem sentido” (Arasse, 2016, p. 138).

Segundo Arasse, cada obra de arte está inserida em, ao menos, três temporalidades distintas. “O primeiro tempo a que pertence a obra de arte é então aquele onde ela está agora, ela é minha contemporânea” (Arasse, 2016, p. 138). Sendo assim, no caso deste artigo, na segunda década o século XXI, momento em que escrevemos. Seu segundo tempo, consiste naquele em que a imagem foi produzida. Nossas imagens em questão foram pintadas por Pedro Américo no último quarto do século XIX. Por fim, nosso terceiro tempo é o que passa entre os dois. Inserimos aqui, ainda, um quarto tempo a perpassar o artigo: o tempo das personagens apresentadas. Não obstante a inexistência física de uma delas, a Margarida de Goethe, outras quatro trazem consigo o tempo de suas existências, sejam eles a Antiguidade das mulheres bíblicas, ou o medievo de Joana D’Arc.

O paradoxo visual é o da aparição: um sintoma aparece, um sintoma sobrevém - e, a esse título, ele interrompe o curso normal das coisas. […] O que a imagem-sintoma interrompe não é senão o curso da representação. […] a imagem-sintoma deveria, então, ser pensada sob o ângulo de um inconsciente da representação. Quanto ao paradoxo temporal, reconhecemos o do anacronismo: um sintoma nunca sobrevém no momento certo, ele surge sempre a contratempo […]. O que o sintoma-tempo interrompe nada mais é que o curso da história cronológica (Didi-Huberman, 2015, p. 44).

 

Sendo assim, “a ideia de pureza de um tempo linear na história da arte não tem sentido” (Arasse, 2016, p. 139). Numa imagem são perceptíveis múltiplas temporalidades. Georges Didi-Huberman revisita o historiador da arte e da cultura Aby Warburg, para afirmar que diante da imagem estamos “[...] diante de um tempo complexo, o tempo provisoriamente configurado, dinâmico, desses próprios movimentos” (Didi-Huberman, 2013, p. 34).

Se nas selecionadas obras de Pedro Américo são perceptíveis a alusão de tempos que não são os seus, não podemos deixar de mencionar as características oitocentistas da arte brasileiras nessas imagens. Pois, como bem menciona Georges Didi-Huberman a respeito de Fra Angelico, Américo era um homem de seu tempo (Didi-Huberman, 2015). O objetivo do presente artigo é analisar as cinco mencionadas telas de Pedro Américo levando em consideração tanto seu contexto de produção, quanto outras temporalidades. Ou seja, os óleos sobre telas foram pintados por um artista acadêmico que foi aluno e professor de pintura histórica da AIBA. No entanto, todas as obras aqui elencadas davam a ver um tempo outro que o vivido pelo artista em questão. Deste modo, analisaremos as composições principalmente através dos seus textos referenciais.

 

O bíblico orientalizante em telas - Abisag, Judite e Jocabed

As telas Davi e Abisag, Judite e Holofernes e Moisés e Jocabed têm como referencial primordial temas bíblicos, todos eles oriundos de textos do Antigo Testamento. Ademais na tríade, Américo revisita o Orientalismo para dar cena às narrativas bíblicas por ele compostas. Utilizamos, no presente artigo, a percepção e as questões de Orientalismo a partir dos escritos e das pesquisas de Edward Said (1979), que elucida:

Tomando o final do século XVIII como um ponto de partida muito grosseiramente definido, o orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente — negociar com ele fazendo declarações a seu respeito, autorizando opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o: em resumo, o orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente (Said, 1979, p. 15).

 

Assim, artistas europeus a partir do final do século XVIII e durante todo o século XIX passam a incluir elementos orientalizantes em suas obras. Seja através da inserção de objetos, gestos e panejamentos considerados tradicionais dos territórios, e também da reformulação de feições dos protagonistas. Podemos citar as várias odaliscas pintadas por Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867) ou as cenas do Marrocos em demasiado estereotipadas de Eugène Delacroix (1798-1868). Grosso modo, estimulados por viagens empreendidas – a princípio ao norte da África – em decorrência das invasões napoleônicas, a temática caracteriza-se pela estereotipação de sujeitos, culturas e tradições, cujas reproduções factíveis através de tão recentes estudos, tornam-se inviáveis.

Pedro Américo, como pintor formado por parâmetros bastante tradicionais de uma Academia de Artes e sobretudo após suas estadas na Europa, passa a caracterizar figuras e cenários bíblicos com tais elementos orientalizantes. Ele foi um homem de seu tempo, e assim pintou temáticas a partir de conceitos em voga na época. O Orientalismo de Américo nas três mencionadas obras o foi apresentado em tomada de cenas interiores, o que segundo Jorge Coli pode ser apontado como uma particularidade bastante característica do movimento neoclassicista. Para Coli, tal movimento detém especial espero pela apresentação do corpo humano em detrimento da imagem da natureza. Sendo assim, tomadas de interiores possibilitavam uma cena geometricamente definida “[...] onde a perspectiva pudesse ser perfeitamente controlada, através de uma visibilidade que repousa em linhas claras. Por isso, ele declina o tema da paisagem: a desordem acidental e “irracional” da natureza não lhe é adequada” (Coli, 2018, p. 118).

Entre Davi e Abisag, Judite e Holofernes e Moisés e Jocabed, a única composição que apresenta uma vista exterior é a terceira que, por sua vez, apresenta a natureza somente como uma profundidade a ser garantida, na contribuição para o todo da tela. Todavia, essa especificidade comum é somente um dos pontos a serem destacados nesse momento, não podendo em hipótese alguma serem delimitadas a partir desse único elemento.

Dentre as cinco pinturas abordadas neste artigo, a história de Davi e Abisag é a única em que Pedro Américo realiza a pintura de um nu feminino (Figura 1). A obra, contudo, não é a única do artista a apresentar o corpo feminino desnudo. Pedro Américo, entre os anos de 1862 e 1863, compôs o primeiro quadro de nudez da arte brasileira, A Carioca (1863), uma alegoria ao Rio Carioca, fonte de abastecimento à cidade do Rio de Janeiro (Oliveira; Nery, 2016).

Em Davi e Abisag, os principais elementos contrastantes dizem respeito, primeiramente, à diferença da representação dos corpos e, em seguida, às características das ornamentações apresentadas. A jovem Abisag é apresentada em um nu viçoso e voluptuoso. Seu corpo acompanha a horizontalidade da tela e é dado a ver de costas, o que faz nítida menção a Odalisca (1814) de Dominique Ingres. Em contrapartida a idealizada do corpo da jovem mulher, o realismo com o qual a pele flácida e opaca do velho Davi nos antepõe as temporalidades, tornando-as elementos iminentes na composição. O conjunto da obra ainda apresenta tessituras nobres em cores quentes, associadas aos áureos objetos circundando os punhos, os pés, tornozelos e orelhas.

 

Figura 1: Pedro Américo Figueiredo e Melo. Davi e Abisag

Uma imagem contendo no interior, pessoa, deitado, homem

Descrição gerada automaticamente

Óleo sobre tela, 215,5 cm x 171,5 cm, 1879. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

 

Pedro Américo pinta em tela, história com forte referência textual. No início do primeiro livro bíblico dos Reis, a personagem Abisag foi apresentada como uma jovem que estava a serviço do rei Davi de Israel (1040 a.C. - c. 970 a.C.). Em contrapartida aos grandes feitos de um reinado glorioso, descritos sobretudo nos livros de Samuel da bíblia cristã, Davi, ainda reinando, é anunciado em seus últimos anos de vida:

O rei Davi estava velho, em idade avançada; por mais que o cobrissem de roupas, não conseguia aquecer-se. Por isso disseram-lhe seus servos: “Procure-se para o senhor nosso rei uma jovem virgem que assista o rei, cuide dele e durma em seus braços, para que o senhor nosso rei se aqueça.” Procuraram, pois, em todo o território de Israel uma jovem bela e acharam Abisag, a sunamita, e a trouxeram ao rei (Livro dos Reis, Bíblia Cristã, capítulo 1, versículos 1-3).

 

Atento ao texto bíblico, Américo realiza a obra retratando o rei de Israel como descrito, com idade avançada, em companhia de uma jovem mulher, quem o envolve em seus braços na tentativa de aquecê-lo. Porém, ao analisarmos a tela, sublinhamos uma divergência no que concerne à necessidade apresentada. Visto que, se a intenção da presença da jovem mulher era somente para aquecer o monarca, não havia a necessidade alguma de apresentá-la nua. Consonante, a representação de Davi descoberto também poderia ser questionada, mantendo a problemática da falta de calor em seu corpo.

Curiosamente, na tela os olhares se cruzam, mas não com a mesma intensidade. O olhar calmo e submisso da jovem Abisag contrasta fortemente com a expressão apavorada do rei Davi ao talvez constatar a crueldade de um tempo que já não lhe concebe mais a vivacidade que permitia a manutenção de seu harém, como em tempos passados. Ainda, o confronto de realidades, ao exibir um corpo longevo e suas marcas, sua flacidez, suas sobreposições e seu olhar profundo, nos braços de um corpo escultórico, vigoroso e desejável, nos encaminha para uma compreensão a respeito da intencionalidade de Américo. Com relação à objetificação do feminino, idealizado e de traços europeus, o artista apresenta a personagem feminina como seus contemporâneos – e ele mesmo – gostariam de imaginá-la, caso um dia se projetassem na figura de Davi.

A questão do Orientalismo também se faz bastante presente na obra. Podendo ser observado não só no pano que encobre a cama feito com pele animal e da cabeça de um leão aos pés de Davi, confiando a esse elemento o ideário exótico do mundo para além da Europa, também se faz presente no veludo componente do cenário. Os acessórios, ricamente ornados em ouro e pedras preciosas, e que por sua vez podem ser observados nos objetos em cima e ao lado da cama, e nas sandálias do rei e, principalmente, nos únicos adornos de Abisag, em seus punhos, tornozelo e orelhas, também compõem a temática Oriental. Ainda, essa pode ser constatada a partir da escolha da paleta de cores pelo artista, o qual optou por tonalidades em vermelho, branco e dourado, característica comum à próxima obra a ser analisada. Fabriccio Miguel Novelli Duro, ao analisar o orientalismo da obra de Américo, sublinha a visível influência das telas Morte de Sardanapale (1827) de Eugène Delacroix (1798-1863) e Os cherifas (1884) de Jean-Joseph Benjamin-Constant (1845-1902) (Duro, 2019, p. 991).

O contexto de desenvolvimento do Orientalismo como vertente de pesquisa e estudos é compreendido desde as últimas décadas do oitocentos, quando é percebida a necessidade de busca e investigação mais remota de personalidades cujas vivências poderiam ser apropriadas de alguma maneira aos propósitos iniciais de fortalecimento dos Estados[3]. Tais empenhos lançaram-se à Idade Média, com o intuito de identificar confluências, tanto diretas, por meio de figuras relacionadas às histórias das Nações, quanto por meio de alegorias, sobretudo através da religiosidade cristã. No sentido de busca de meios que justificassem o sentido comunal entre as potências europeias da época, a recuperação de fontes literárias e costumes católicos medievais serviram para o estabelecimento de uma concepção unitária cultural (Duro, 2018, p. 93).

Consoante a esse viés religioso, cresce o interesse pela porção Oriental do planeta. Ao mesmo tempo em que o Velho Continente reconhece as origens cristãs em regiões do Oriente (como Jerusalém, Palestina e Egito), há a crescente curiosidade pelo ‘exotismo’ de hábitos e tradições tão distintos em tais localidades. Assim, Davy Depelchin defende que “[o] interesse pelo Oriente está parcialmente enraizado no passado da Europa. A identidade religiosa da Europa cristã lança uma luz especial sobre a Palestina, enquanto o Egito e a Grécia são considerados os centros culturais da civilização ocidental” (Depelchin, 2010, p. 24).

Assim, o Orientalismo é grosso modo empregado a partir de uma dupla função. Primeiramente, de vincular capítulos histórico-bíblicos mais remotos com a já consolidada tradição cristã europeia. Ao mesmo tempo, agrega àquela unidade cultural almejada, elementos do ‘exótico’ Oriental, fosse por meio da aquisição de artefatos ou pelas representações artísticas.

Contudo, é necessário ressaltar que a repercussão desse Orientalismo no ideário europeu estava longe do factual. É justamente em decorrência da dependência de concepções criadas somente através do intercâmbio material que uma aura de exotismo paira sobre o Oriente segundo os europeus. Tal cenário passa a se transformar somente na quarta década do século XIX, à medida em que estudiosos viajam de fato a tais localidades, acumulando relatos e explorando a veracidade – e os mitos – das hipóteses.

Pedro Américo pôde atestar de perto as referências ao Oriente. Após retornar à Europa depois de um período como professor de magistério na Escola Imperial de Belas Artes do Brasil, Américo realiza duas viagens nas quais adentra à cultura oriental, conhecendo países como Turquia, Argélia, Marrocos e Grécia:

E seguindo os passos de Delacroix, de seu mestre Horace Vernet e de muitos outros, Américo não perdeu a oportunidade de observar a paisagem desértica e os costumes do povo “e aproveita sua estadia naquela colônia para fixar aspectos da natureza e tipos daquela região exótica e pitoresca”. Com isso, tornou-se, provavelmente, o único pintor brasileiro do século XIX a ter este contato com o "oriente” (Sá, 1995, p. 142).

 

É nesse contexto que a pintura histórica bíblica[4] reorganiza suas diretrizes, afastando-se das apreciações Renascentistas e originando iconografias de disposições realistas, a fim de reelaborar episódios e narrativas religiosas. Dessa maneira, faz-se necessário considerar o que Hond (2010) defende, sendo “a Bíblia é um livro oriental, escrito por orientais, e, portanto, o conhecimento deste contexto oriental é essencial” (Hond, 2010, p. 135). Assim sendo, os artistas estabelecidos na Europa no período – como é o caso de Pedro Américo – passam a caracterizar figuras e cenários bíblicos com elementos “orientalizantes”. Tal caracterização pode ser percebida a partir de apresentações de feições de traços árabes e roupagens e paisagens semelhantes às observadas durante as excursões pelo continente africano e o Oriente Médio, elementos os quais foram referenciados para “exotizar” as comunidades não europeias. No entanto, a problemática exposta em tais modificações consistia na estereotipação daqueles sujeitos, culturas e tradições, cujas reproduções factíveis através de tão recentes estudos, tornam-se inviáveis.

Consoante à temática, no ano de 1880, Pedro Américo realiza uma composição inicialmente denominada Judite rende graças a Jeová por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holofernes, que mais tarde sua reconhecida apenas por Judite e Holofernes (1880) (Figura 2). Seria essa, dentre as imagens escolhidas, a mais ricamente ornamentada com traços Orientalistas, altamente em voga na França do século XIX.

Detentora de um dos livros de Deuteronômio, no Velho Testamento da bíblia cristã, Judite é apresentada no texto bíblico como uma jovem mulher de classe abastada e recém viúva, habitante da cidade de Betúlia (também denominada Meselieh), cercada pelo exército de Nabucodonosor II (c. 642 a.C - 562 a.C), o mais eminente rei do Império Neobabilônico. Os 16 capítulos componentes do livro apócrifo relatam a libertação do povo de Betúlia por Judite que teria, por intervenção divina, concebido um plano a fim de recuperar a autonomia da cidade com o menor derramamento de sangue factível. O paganismo de Nabucodonosor e sua tropa é apresentado enfaticamente na maneira com a qual estes se comportam, em uma vida de vícios e pecados, desabitada por Deus. Nesse contexto, surge a figura de Holofernes, general do exército babilônio responsável pela tomada de Betúlia.

Sabida a notoriedade e beleza estonteante de Judite, Holofernes a convida para um banquete em seu acampamento, “[…] a fim de comer e beber conosco. Seria vergonhoso para nós deixar partir tal mulher sem ter tido relações com ela; porque se não soubermos conquistá-la, zombará de nós” (Livro de Judite, Bíblia Cristã, capítulo 12, versículo 11-12). Previamente intencionado, Judite aceita o convite do general que, extasiado, bebe exageradamente junto de seus companheiros. Mais tarde naquele mesmo dia, já sozinha com Holofernes extenuado pelo vinho em seu leito, Judite retira da cintura do general a sua espada e, clamando aos céus, suplica: “Senhor, Deus de todo o poder, volvei nesta hora vosso olhar à obra de minhas mãos, para a exaltação de Jerusalém, pois é este o momento de virdes em auxílio de vossa herança e de executar meu plano, para a ruína dos inimigos que se ergueram contra nós!” (Livro de Judite, Bíblia Cristã, capítulo 13, versículo 4-5). Com dois golpes de espada, a jovem viúva decapitou a cabeça do general, coloca-a em uma sacola e a exibe em praça pública, livrando então o povo do mal.

 

Figura 2: Pedro Américo Figueiredo e Melo. Judite e Holofernes

Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Óleo sobre tela, 229 cm x 141,7 cm, 1880. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

 

É desta maneira que o livro deuterocanônico consagra a personagem de Judite em uma metáfora que apresenta a força religião monoteísta judaica sobrepujando o paganismo politeísta. A composição de Américo trata do momento posterior à decapitação de modo excessivamente estereotipado. Sônia Gomes Pereira (2008), sublinha que a temática da tela é reconhecível apenas em elementos de hierarquia secundária no primeiro plano, no qual se fazem visíveis a arma utilizada pela heroína e a cabeça de Holofernes. No mais, “a tela Judite de Pedro Américo associa uma figura centralizada, com uma movimentação de braços absolutamente simétrica, com um fundo mergulhado na sombra, que torna os seus componentes cortina e outros objetos – dificilmente reconhecíveis” (Pereira, 2008, p. 72).

Assim, Judite foi apresentada de corpo inteiro, com feições calmas. Ela foi pintada com vestimentas e acessórios que remetem a outro tempo histórico, de acordo com os objetos que circulavam na época em que foi realizada, entre o Oriente e a Europa. A espada ensanguentada e a cabeça do general são expostas de maneira secundária, ao chão, caracterizando uma tomada de cena bastante original de Américo, na qual já podemos notar uma certa modernidade na arte brasileira oitocentista. Além dos elementos presentes na protagonista, o plano de fundo que compõe o cenário gradativo, contém panejamentos e tapeçarias não concordantes com os produzidos no centro europeu, sendo, à vista disso, realizado com características orientalizantes, a fim de reforçar o caráter exótico da produção.

Tendenciosamente, o corpo e o rosto de Judite são representados de acordo com os padrões europeus do século em que foram pintados. O decote, o corpo voluptuoso, os cabelos longos e as características de suas feições foram realizados de maneira a torná-la desejável, não para o general Holofernes, mas para os homens europeus do século XIX.

É também a partir dessa compreensão que Pedro Américo, em 1884, realizou a obra Moisés e Jocabed (1884) (Figura 3), já na cidade de Florença. O ano de 1884 é consideravelmente produtivo à Américo que, mesmo afastado do Brasil há certo tempo, manteve seus laços com a terra natal a partir do envio de obras para a exposição em salões e que posteriormente seriam adquiridas pelo Governo Imperial (Sá, 1995, p. 147).

Jocabed, esposa de Imran (também seu sobrinho), deu à luz a três filhos: Miriã, Aarão e Moisés. De acordo com o livro Êxodo, da bíblia judaico-cristã, Jocabed é obrigada a se separar de seu filho Moisés aos três meses de idade, deixando-o em uma cesta para percorrer o Rio Nilo (Egito), a fim de convencer a filha de um faraó a criá-lo.

Na contramão das duas primeiras imagens aqui analisadas, Pedro Américo garantiu à personagem feminina uma expressividade intensa, de preocupação e desespero de um ato em nome da vida de seu filho. Jocabed é assim apresentada tensa, com lágrimas escorrendo em seu rosto, cuja mão se inclina para enxugá-las. No entanto, a passagem bíblica não apresenta tamanha comoção, sem sequer citar o nome de Jocabed:

Um homem da casa de Levi casou-se com a filha de um levita, a qual concebeu e deu à luz um filho. Vendo que era belo, conservou-o escondido durante três meses. Mas, não podendo escondê-lo por mais tempo, tomou um cesto de junco, calafetou-o com betume e piche, colocou nele o menino e pôs entre os juntos à margem do rio (Êxodo, Bíblia judaico-cristã, capítulo 2, versículos 1-4).

 

Figura 3: Pedro Américo Figueiredo e Melo. Moisés e Jocabed

Desenho de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Óleo sobre tela, 151 cm x 105 cm, 1884. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

 

Apesar do enfoque emotivo da última obra a ser abordada, os demais detalhamentos mantêm-se no ideal Orientalista das pinturas de Pedro Américo. Tais percepções são salientadas quando nota-se o tecido da roupagem de Jocabed, intencionalmente mais pesado, integrado por búzios e trançamentos. Contudo, a mulher bíblica é também a mulher atraente, vivaz e robusta. Novamente, apresentada com traços europeus e um decote desconhecido na época em que provavelmente teria vivido, Américo traz a femme fellah, outra construção dos orientalistas.

Para Fabriccio Miguel Novelli Duro (2018), os ornamentos e a combinação cromática eleitos por Américo difere em demasia daquela empregada por pintores europeus que apresentaram semelhante temática no período. No entanto, as vestimentas que o pintor brasileiro pinta em sua Jocabed são bastante semelhantes às utilizadas por seus pares europeus, sublinha o lenço que envolve a cabeça, o longo decote e o caimento do traje

Duro ainda sublinha que as chamadas femme fellah foram apresentações femininas geralmente dadas a ver em paisagens nas proximidades de um rio. Elas portam consigo ora vasilhames com água, ora seus filhos. Essa associação entre mulher, criança e paisagem está em consonância com importantes características da personagem bíblica Jocabed. “O contato de Américo com tal modelo seria possível uma vez que a difusão da imagem dessas mulheres, consideradas um “tipo egípcio”, ocorreu por meio de pinturas, gravuras e fotografias, em exposições, periódicos ilustrados, álbuns e publicações de viagens dedicadas” ao Oriente no decorrer de todo o século XIX (Duro, 2018, p. 282).

Ainda, é possível perceber a estruturação atípica da imagem. Sendo a única de caráter Orientalista a apresentar uma paisagem, a disposição de Jocabed também difere das demais obras apresentadas. Apresentada na modalidade três por quatro, o corpo feminino fica restrito a um tronco deslocado à direita, sendo possível conceber suas vestimentas somente um pouco abaixo de sua cintura, e apenas metade de seu rosto. Outra questão que chama a atenção na composição do artista é a tonalidade escolhida para a pele de Moisés. O personagem nesse caso é pintado como um bebê de características caucasianas, mesmo tendo pais hebreus e tendo nascido no continente africano. Por fim, nota-se também a escolha da representação de pinheiros ao fundo da imagem, vegetal que difere das palmeiras costumeiramente utilizadas nas composições orientalistas, justamente por serem nativas das regiões. Tal lapso de Pedro Américo ainda é uma incógnita ao que condiz à sua intencionalidade, podendo ou não ter sido conscientemente posicionado na obra.

 

Uma heroína histórica - Joana D’Arc

Para além de muitas personagens bíblicas, Pedro Américo também se dedicou a pintar outras personagens históricas. Assim, ele revisitou outros tempos. Talvez o mais interessante aqui seja pontuar que se Abisag, Judite e Jocabed foram personagens descritas em textos bíblicos, outrora elas também foram personagens históricas.

Joana D’Arc, por sua vez, insere-se em díspar contexto. Primeiramente temporal, a personagem não viveu durante a Antiguidade, mas na Idade Média. Em seguida, ela não constitui uma personagem bíblica, mas uma heroína histórica. No entanto, sua existência esteve intimamente relacionada à Igreja Católica, que apesar de a ter perseguido e condenado à morte em seguida assimilou a personagem que foi canonizada.

Apesar do curto período vivido, historiadores, católicos e personagens notáveis da história francesa reforçaram a figura de Joana D’Arc (c.1412-1431) em seu post mortem. Na contramão da perspectiva comumente difundida da jovem mulher guerreira salvadora de uma pátria, uma compreensão esmiuçada de sua vida revela uma trajetória de perseguições e hostilidades, até sua condenação à morte, aos 19 anos de idade. A arte, intermediando essa polaridade, fará parte de processo imprescindível para a reafirmação de alguns aspectos de sua vida em detrimento de outros, a fim de construir, juntamente com a historiografia tradicional, um ideário da simbologia nacional francesa.

 

Figura 4: Pedro Américo Figueiredo e Melo. Joana D’Arc

Mulher sentada na pedra

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Óleo sobre tela, 229 cm x 156 cm, 1883. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

Segundo uma narrativa histórica tradicional francesa, Joana D’Arc como personagem célebre é iniciada nos seus 17 anos de idade, quando, guiada por Santa Catarina de Alexandria (c.287-c.305), Santa Margarida de Antioquia (c.289-c.304) e pelo Arcanjo Miguel, apresenta-se ao então Delfim Carlos VII (1403-1561) com o intuito de receber um exército para comandar e libertar a cidade de Orleans (França) do domínio inglês. Somente após uma série de provações, dentre elas o reconhecimento do Delfim disfarçado entre os nobres e a prova de sua virgindade perante clérigos da Igreja Católica, Carlos VII finalmente concede um contingente de cerca de 4 mil homens que, pelas ordens da jovem, garantem o fim do cerco de Orleans. Tal vitória significou a guinada francesa, fato que direcionou a França como triunfante ao fim da guerra, e condecorou Carlos VII como o novo rei francês. Assim, a Joana D’Arc de Américo é construída aos moldes da perspectiva do historiador oitocentista Simonde de Sismondi, que escreve:

Um sentimento religioso de penitência, de amor e de esperança cobria todos os corações; era necessária apenas uma centelha para produzir uma explosão. Uma jovem camponesa de Domrémy nas fronteiras da Lorraine, Joana D’Arc, a Donzela de Orléans, acendeu essa centelha e a sorte dos franceses mudou (Sismondi, S. Histoire des Français. Paris. T.13, p. 102).

 

Dois anos após o feito, Joana D’Arc foi condenada à morte na fogueira. Aprisionada por traidores da pátria francesa, a jovem libertária foi levada à presença do bispo Pierre Cauchon (1371-1442), favorável à vitória inglesa na guerra. Cauchon, depois de acatar inúmeras acusações, a condenou como assassina e herética. Em 30 de maio de 1431, Joana D’Arc foi queimada viva na Place du Vieux Marché, em Ruão, e suas cinzas são jogadas ao Rio Sena, a fim de evitar cultos de qualquer gênero em sua homenagem.

Somente 25 anos depois do ocorrido, revisitou-se o processo condenatório e Joana torna-se mártir da Igreja responsável por encerrar a sua breve vida de maneira trágica e cruel. Napoleão Bonaparte (1769-1821), imperador da França no ano de 1803, transformou a jovem camponesa em símbolo da nação. A Igreja Católica revisa as documentações no século XX e atesta à Joana D’Arc o título de beata em 1909 e de santa em 1920. Analisando o contexto, e os percalços em torno da vida e morte da santa, são esclarecidas as decisões tomadas pela entidade católica, bem como as transformações de seu posicionamento, principalmente nos anos que seguiram à sua morte. Jules Michelet (1798-1874), historiador francês, traz em sua obra Histoire de France (1869), a santa historicamente consolidada:

Admirando, amando essa personalidade sublime eu mostrei até que ponto ela é natural. O sublime não está fora do natural, a multidão é um herói. A personalidade encantadora dessa jovem camponesa era o centro e reunia tudo. Ela agiu justamente porque não possuía nenhuma arte, nenhuma taumaturgia, magia ou milagre. Seu encanto é sua humanidade. Ela não tinha asas, esse pobre anjo; é o povo, é fraca, ela somos nós, ela é todo mundo (Michelet, 1869 apud Kimmich; Gossman; Kaplan, 2013, p. 157).

 

A construção da imagem de Joana D’Arc perpassa, grosso modo, duas perspectivas ambíguas. Se muitas vezes tivera apresentação pictórica associada à sua armadura de guerra, como no caso da tela Joana D’Arc na coroação de Carlos VII (1854) de Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), em outras foi dada a ver como uma mártir, ardendo nas chamas da fogueira na tela, como na iluminura do manuscrito d’Les Vigiles de Charles VII (cerca de 1484) de Martial d’Auvergne (c.1420-1508). Como as obras aqui mencionadas bem exemplificam, as imagens foram consagradas à Joana D’Arc em díspares tempos históricos. Esta foi dada a ver em vários códex franceses do século XV e XVI – cujo um número significativo hoje é conservado na Bibliothèque National de France (BnF). Um retrato à óleo foi dedicado a ela ainda no século XVI – Joana d’Arc, retrato dos vereadores (sem data) de autoria desconhecida – e hoje conservado junto ao Musée d’Histoire et d’Archéologie de l’Orleans. Apesar da significativa apresentação imagética da de Joana d’Arc nos séculos XV e XVI, é no século XIX onde a dita heroína recebe mais ampla representação pictórica e escultural. Sublinhamos que no referido período as academias de arte elegem a pintura histórica como mais prestigioso gênero artístico.

Pedro Américo teve contato com muitas das imagens europeias dedicadas à Joana d’Arc, mas optou por pintá-la em um cenário distinto. Ele nos dá a ver não uma guerreira. Se sua tela apresenta no primeiro plano uma camponesa, no segundo plano dá indícios que trata-se de uma santa (Figura 4). Na obra, a jovem mulher traz consigo o olhar assustado que testemunha, pela primeira vez[5], a visão mítica de uma das três santidades que a acompanhariam pelo resto de sua vida, e auxiliariam a derrotar os ingleses na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), e, por fim, seriam o motivo de seu sentenciamento. O fato de Américo decidir retratar uma cena cotidiana, permite ao espectador cogitar inúmeras possibilidades de acontecimentos que resultaram na cena final. No óleo sobre tela, Joana D’Arc é ainda uma adolescente, veste as roupas simples de uma camponesa que colhia flores, jogadas ao chão após o espanto. O como, o aonde e o quando, têm infinitas respostas, todas corretas, a partir da ausência de elementos iconográficos mais evidentes. A partir dessa perspectiva, podemos compreender os demais elementos da obra, como é o caso do anjo que surge ao fundo da tela.

Américo apresenta situações diversas nos dois planos de sua tela. Para Jorge Coli, ele toma como parâmetro um modelo bastante usual por artistas do século XIX. “Relacionar o ‘atual’ e o ‘alegórico’ foi, com certa frequência, um problema para os artistas do século XIX. A solução mais corrente e banal consistia em isolar os dois campos” (Coli, 2018, p. 106). No primeiro plano, apresentou a cena de comum, de uma camponesa entre vasos de flores e um jarro de água. No segundo plano, por sua vez, nos deu a ver um cenário mítico, no qual figura ser alado – provavelmente um anjo – por entre uma luminosa nuvem.  

O fato de Pedro Américo ter optado em apresentar uma cena de Joana D’Arc por suas origens – e não pelo que se tornou a partir de seus 17 anos – manifesta, mesmo indiretamente, o contexto no qual estava inserido. De volta ao Brasil nos anos de 1870, Américo não obteve o êxito esperado na consolidação de sua carreira. Apesar da fama efêmera com a realização de composições como Batalha do Campo Grande (1871), os percalços em sua carreira foram consideráveis, e, seu sucesso parco, comparado ao europeu. Retornando ao Velho Continente na década de 1880, o artista passa a ponderar a respeito das temáticas a serem abordadas nas próximas composições, e abandona a pintura cívica, aproximando-se de temáticas históricas, religiosas, das alegorias e dos Orientalismos. A partir dessa perspectiva, percebe-se a intenção comercial das composições seguintes do artista, na qual a obra Joana D’arc está inserida.

 

A personagem literária transformada em personagem pictórica - Margarida

No ano de 1888, Pedro Américo, de retorno ao Brasil – ainda que temporariamente –, finaliza a composição Fausto e Margarida (1888). Margarida, a personagem fictícia de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) que em Fausto, cuja primeira edição data de 1808, é, a princípio, par romântico do protagonista que nomeia a obra. A cena eleita para ser pintada pelo artista consiste no capítulo do primeiro livro de Fausto, traduzido do alemão como “Um Caramanchão” (“Ein Gartenhäuschen”). O trecho aborda o momento em que Margarida e Fausto entram no caramanchão – que pode ser entendido como uma casinha no meio de um jardim – ficando a sós, ocasião em que Fausto aproveita para roubar um beijo de sua amada. Nas páginas escritas por Goethe, a reação de Margarida ao ato é recíproca, respondendo “Amado meu! Amo-te com a alma inteira!” (Goethe, 2011, p. 271), sendo o casal logo interrompido pelo demônio Mifistófeles.

 

Figura 5: Pedro Américo. Fausto e Margarida

Pintura de uma pessoa

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Óleo sobre tela colada sem madeira, 34 cm x 23 cm, 1888. Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Contudo, Américo utiliza de sua liberdade artística para não apresentar o instante tal qual a literatura. Na tela, Margarida esquiva-se do beijo de Fausto, traz suas mãos unidas para evitar que o homem as toque e desvia o olhar longínquo, demonstrando desinteresse. Outros elementos presentes no quadro também se destacam. Primeiramente, os lírios brancos – utilizados, enfaticamente na arte oitocentista, para evocar pureza ou maternidade – caem ao chão, subentendendo a perda da castidade de Margarida (mencionando o fato que ocorrerá nas páginas seguintes). Na tela, ainda é notória a imagem de Mifistófeles no segundo plano, atrás de uma cortina, propositalmente desfocado.

Nesse enquadramento, apresentam-se duas suposições a respeito da escolha de Pedro Américo quando compôs a obra. A primeira, recentemente defendida por Raysa Ortiz Blyth (2023, p. 33-34), é a de uma obra que reverbera a própria vida do artista, em uma alegoria na qual Margarida é apresentada como a recém proclamada República Brasileira, com suas cores verde e amarelo, desdenhando o trabalho do até então pintor oficial do Império Brasileiro, traduzido na figura de Fausto, cujos trajes estão de acordo com a bandeira italiana, país que o receberá após uma tentativa fracassada de restabelecimento no Brasil. Tal perspectiva pode ser assimilada a partir do ideal de alegoria defendido por Jorge Coli, quem defende que: “na alegoria revolucionária não existe apenas uma ‘dissolução’ da linguagem ‘erudita’ na ‘popular’, mas um diálogo entre ambas. Desse modo, a grande pintura não ficará indiferente às novas questões do discurso visual” (Coli, 2018, p. 81).

Não obstante, a análise pode partir de uma perspectiva um tanto mais simplista. Américo pode ter decidido dar à obra literária interpretação própria, apresentando a personagem feminina seduzida pelo ambicioso Fausto. Tal fato que acarretará uma série de tragédias, como a morte da mãe e do irmão de Margarida, por um tranquilizante fornecido pelo protagonista e através de um duelo para com o mesmo, respectivamente. Tal sequência de episódios desequilibra a razão de Margarida, que termina presa por afogar o filho do casal. Independente da escolha interpretativa, Margarida é a apresentação do desejo do homem, passível de insanidades para ter suas vontades arrematadas.

Compreendendo o contexto em que, tanto a obra literária quanto a obra pictórica foram compostas, e considerando a contemporaneidade dos artistas, nota-se enfaticamente a perspectiva Romântica anteposta. Goethe, unanimemente reconhecido como representante do movimento romântico literário alemão, coincide com o, ainda que pouco explorado, romantismo de Pedro Américo. Em sua dissertação, Ivan Coelho de Sá esclarece “[…] o Romantismo fixou-se no relativismo individual, e no egotismo, isto é, na valorização do homem subjetivo, com uma personalidade própria, marcada por uma gama de sentimentos que normalmente o toma incompreendido e inadaptado à sociedade” (Sá, 1995, p. 56).

Dessa forma, tanto o texto redigido pelo escritor alemão na primeira década do século XIX, como a tela pintada por Pedro Américo na década de 1880 expõem o caráter Romântico que perpassava todo o século XIX, coincidente com outros movimentos artísticos e literários, como já abordado.

Cinco telas entre tempos

Nestas páginas buscamos analisar cinco telas – Davi e Abisag (1879), Judite e Holofernes (1880), Moisés e Jocabed (1884), Joana D’Arc (1883) e Fausto e Margarida (1888) – pintadas no final do século XIX por Pedro Américo. Essas cinco obras dão a ver imagens de mulheres, tratam de cinco personagens que são bíblicas, históricas e literárias. O problema que nos acompanhou desde o início destas páginas foram os diferentes tempos que nosso artista em questão manipulou para compor cada uma dessas personagens e seus respectivos cenários. Para tal, ele manipulou textos que foram escritos e imagens que foram traçadas por outros artistas em épocas distintas.

 Ele revisita a Antiguidade através de três personagens do Antigo Testamento, o medievo a partir de Joana d’Arc e o início do século XIX através da personagem Margarida, descrita e criada por Goethe. Ademais, muitos outros tempos foram revisitados, já que por exemplo vários artistas de ao longo de séculos apresentam pinturas, esculturas, gravuras de Judite, Joana D’Arc, Abisag, Jocabed. Podemos mesmo defender que essas imagens abordam o século XXI, pois neste ano de 2023 estamos vendo, analisando e problematizando cada uma delas.

Pedro Américo faleceu aos 62 anos de idade, em Florença, na Itália, no ano de 1905. Um novo século havia acabado de começar. Como um homem estritamente ligado à história de sua época, quantas outras faces de Américo ainda poderiam ser descobertas às luzes de um novo tempo? Mais de um século depois de sua morte, percebemo-nos diante do pano de Didi-Huberman, sendo “como diante de um objeto de tempo complexo, tempo impuro: uma extraordinária montagem de tempos heterogêneos formando anacronismos” (2015, p. 23). Não obstante, as telas nos revelam muito mais que as técnicas ou temáticas, as imagens trazem as várias facetas dos tempos em que se inserem.

 

Referências bibliográficas

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VON GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. 34. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

                                                              

Recebido em 29/10/2023.

Aceito em 18/12/2023.



[1] Professora de História da Arte do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Global da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Brasil. E-mail: camposdanielaqueiroz@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-9681-0977

[2] Graduanda do curso de História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Brasil. E-mail: amanda.paitax@hotmail.com | https://orcid.org/0009-0007-3054-258X

[3] O fim do século XVIII e o século XIX foram fortemente marcados por revoluções e lutas de independências, fazendo com que as potências europeias (como França e Alemanha) reafirmassem suas influências, dando início não só a políticas como o neoimperialismo, como também à ratificação da história da nação, havendo então a necessidade de imposição de seus mitos e heróis.

[4] A Pintura Histórica Bíblica diferencia-se da Pintura Religiosa Bíblica no que concerne às suas intenções. Enquanto a primeira foi utilizada para a apresentação em concursos nos quais as técnicas e procedimentos eram analisados e julgados, a segunda comporia os templos religiosos, a fim de contribuir para a devoção pública.

[5] O título original da obra é “Joana D’Arc ouve pela primeira vez a voz que lhe prediz o seu alto destino”.