A Ninfa e a Pérola: inquietações warburguianas dirigidas à série Pratos de Adriana Varejão

The Nymph and the Pearl: warburguian concerns addressed by Adriana Varejão’s Pratos series

                                                                                               Adriel Dalmolin Zortéa[1]

Vera Pugliese[2]

 

 


Resumo

O artigo debruça-se sobre a série Pratos, de Adriana Varejão, a partir de questões teóricas abertas pela presença da imagem da Ninfa na obra do teórico e historiador da arte Aby Warburg, bem como nos desdobramentos pensados pelo filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman. Considera-se as obras Pérola Imperfeita, Nascimento de Ondina e Sereias bêbadas (2009), e Ama divers (2011) da artista, principalmente em diálogo com a Prancha 39 do Bilderatlas Mnemosyne (1927-1929), de Warburg. A partir dessa associação, discute-se Pratos face à sobreposição de três questões: o Nachleben der Antike dos deuses pagãos; a Pathosformel da Ninfa; e, a possível correspondência entre água e Ninfa, avançando a hipótese, central para os estudos warburguianos, de dissolução entre sujeito e objeto.

Palavras-chave: Pratos; Adriana Varejão; Ninfa.

Abstract

The article focuses on the series Pratos, by Adriana Varejão, based on theoretical questions opened by the presence of the image of the Ninfa in the work of theorist and art historian Aby Warburg, as well as the developments thought by the philosopher and art historian French Georges Didi-Huberman. The artworks Pérola Imperfeita, Nascimento de Ondina and Sereias Bêbadas (2009), and Ama divers (2011) by the artist are considered, mainly in dialogue with Plate 39 of Bilderatlas Mnemosyne (1927-1929), by Warburg. Based on this association, Pratos is discussed in view of the overlapping of three issues: the Nachleben der Antike of the pagan gods; Ninfa's Pathosformel; and the possible correspondence between water and Nymph, advancing the hypothesis, central to Warburgian studies, of dissolution between subject and object.

Keywords: Pratos; Adriana Varejão; Nymph.


 

 

Introdução

 

Há certos mergulhos no fundo do abismo que nos retiram do meio dos vivos.

(Victor Hugo, 2002, p. 323).

 

Iniciamos com a plástica[3] de Adriana Varejão (1964), principalmente a partir da série de obras intitulada Pratos (2009-), em diálogo com questões teóricas abertas pela presença da imagem da Ninfa na obra do historiador da arte judeu-alemão Aby Warburg (1866-1929) e, também, em seus desdobramentos pensados na recente produção do filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman (1953).

Em torvelinho de mares azuis ou verdes, para além do oceano pintado como dezenas ou centenas de peças mineiras de azulejos em azul e branco, como é o caso da série Azulejões (2001-) e da incrível instalação Celacanto provoca maremoto (2004-2008), o mar foi objeto de Adriana Varejão em outra série de imagens. Nesse artigo, faz-se necessário investigar as obras Pérola Imperfeita (2009), Nascimento de Ondina (2009), Sereias bêbadas (2009) e Ama divers (2011) face aos comentários da fortuna crítica sobre a obra da artista.

A série é composta por obras de consideráveis dimensões que apresentam estruturas côncavas – como pratos –, das quais debruçam-se, rumo à borda da baixela, conchas, sereias e plantas marinhas, o que é vinculado pela fortuna crítica, como apontaremos abaixo, ao Barroco em sua condição de movimento artístico repleto de vagas, de cornetas e cornijas, de cornucópias e talha em madeira policromada, numa imensidão de dobras que se vincula ao dispêndio material. Não obstante, frente aos poucos estudos suscitados pela série, para além de textos de referência assinados por críticos ou curadores e, ao compreender a complexidade dessas imagens, nossa hipótese é considerá-la a partir de um olhar warburguiano, ou ainda didi-hubermaniano, o que pode gerar consequências na interpretação de obras pouco exploradas de Varejão, como é o caso de Pratos.

O artigo investiga as sereias pintadas em Pratos face ao Nachleben der Antike dos deuses pagãos, compreendendo-as a partir do pano de fundo da sobrevivência do trágico, como nas denominadas forças dionisíacas, que demarcam os estudos warburguianos. Frente às sereias de Pratos, focalizamos a Ninfa a partir de uma temporalidade complexa, seja na sua identificação como criatura amorosa, signo da água, ou afirmação da vida, ou, conforme Aby Warburg (2018, p. 117), força vital da natureza, dialogando, principalmente, com o Nascimento de Vênus (1485) e A Primavera (1482), de Sandro Botticelli (1445-1510), voltando-se aos estudos iniciais de Aby Warburg (2015, p. 72), mas também considerando as têmperas em justaposição de imagens na Prancha 39 do Bilderatlas Mnemosyne (Warburg, 2020, p. 84).

Se não desconsideramos críticas à sobreposição de Ninfa e natureza, como teremos oportunidade de indicar, é imprescindível asseverar a ambiguidade essencial da figura em Aby Warburg e, principalmente, e Didi-Huberman, funcionando como motor de conversão que ultrapassa não somente iconografias, mas também a dualidade entre masculino e feminino. Neste sentido, na chave do retorno das formulações antigas, depreendemos associação entre Pratos e desdobramentos abertos pela noção de Pathosformel da Ninfa, seja a do movimento acentuado, conforme estudada por Warburg (2015, p. 27), ainda em diálogo com as têmperas de Botticelli, seja a do corpo em queda, em clinamen, conforme sustentou Didi-Huberman (2002, p. 8), como indicaremos a seguir.

Além disso, questões teóricas vinculadas à noção de Pathosformel levam-nos a aferir o vento imaginário como função patética capaz de conferir intensidade às sereias de Varejão, ou ainda fazer delas indistintas de seus panejamentos, já que o “acessório inanimado” é carregado de valor afetivo (Warburg, 2015, p. 84). Se a modulação do panejamento aponta-nos um interior agitado, o que configura diálogo com diversas esculturas investigadas como ninfas, caso da Beata Ludovica Albertoni (1674) e do Êxtase de Santa Teresa (1645-1652), de Lorenzo Bernini (1598-1680), é caso de saber, também, conforme Didi-Huberman (2017, p. 110), o que ocorre entre a psyché do tormento (torment) e a physis da tormenta (tormente).

Na irredutibilidade do movimento das borboletas evocadas por Didi-Huberman (2013, p. 10), já que para “toda a tentativa de descrever uma imagem, qualquer coisa como um batimento de asas de borboleta venha dar um sentido a esse esforço, tanto quanto um limite”, trata-se de considerar a Ninfa na efemeridade da ressaca do mar, no quebrar das ondas e nas marés transparentes insufladas de vento, volvendo acima sereias em seus panejamentos translúcidos, confundidos com a maré. Com o mar, o guardião da pérola imperfeita que cedeu seu nome ao Barroco, iniciamos nosso artigo.

 

Sereia, criatura extemporânea 

As sereias da série Pratos, pintadas por Adriana Varejão a partir de 2009, suscitaram pouco interesse da fortuna crítica da artista. Exceções encontram-se na introdução do livro Entre carnes e mares, assinada por Isabel Diegues (2009, p. 41); o livro Pérola imperfeita, publicado pela artista em coautoria com a antropóloga Lilia Schwarcz (2012, p. 261); o catálogo da exposição “Histórias às margens”, escrito por Adriano Pedrosa (2013, p. 204); e, também, o catálogo da exposição “Suturas, Fissuras, Ruínas”, com texto de Jochen Volz (2022, p. 13), escritos sobre os quais nos debruçaremos posteriormente.

A série Pratos foi reproduzida pela primeira vez no livro Entre carnes e mares e, entre outras exposições, exibida para o público na “Suturas, Fissuras, Ruínas” (2022), aberta ao público em 26 de março, que pretendeu ser a mais abrangente mostra já realizada sobre a obra da artista no Brasil. Com caráter antológico, abarca amplo escopo de imagens, selecionadas entre obras do início de 1980 e pinturas inéditas produzidas com exclusividade para a exposição, e contou com as imagens de Pratos em uma de suas salas, cujas paredes foram pintadas em cor azul para a ocasião.

Se são muitos os diálogos históricos[4] na pintura de Adriana Varejão, não encontramos em Pratos a marca do azulejo português, bem como da pintura alusiva à carne, as marcas indeléveis da plástica da artista. Nesta série, o mar foi pintado não como azulejos azuis e brancos em desenhos de ondas, mas como torvelinhos de água salgada vindos do mar; forças centrífugas que nos revelam não apenas matéria orgânica, mas seres aquáticos: sereias, como teremos oportunidade de indicar, que avançam das profundezas do oceano, vindas do fundo do mar rumo ao profundo de nós.

 

Figura 1: Adriana Varejão, Pérola imperfeita, 2009

Uma imagem contendo Forma

Descrição gerada automaticamente

Óleo sobre fibra de vidro e resina, 150 x 25 cm (d). Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/br/imagens/categoria/10/obras

Pérola imperfeita (fig. 1), estrutura côncava pintada em óleo sobre fibra de vidro e resina, apresenta-nos um prato fundo no qual visualizamos a pintura do que nos parece a gema amarela de um ovo quebrado. A clara transparente do ovo tornou-se matéria orgânica, como algas e outras plantas do mar. Trata-se de uma forma redonda menor, sob uma forma arredondada maior. O círculo menor foi pintado concêntrico às fibras marinhas, uma massa esponjosa, liquefeita, quase sólida apesar de maleável, que não deixa de nos lembrar um cérebro. Sob o ovo quebrado, o prato é terroso. Em seu título, a obra remete-nos ao Barroco, principal chave de acesso utilizada pela crítica face à obra da artista. Na parte superior da obra, uma forma orgânica recorda-nos uma planta aquática de nome Sagittaria subulata, pertencente à família Alismataceae, remetendo-nos à pelos pubianos, na chave de uma antropomorfização do mar.

As sereias sobrevêm da planta aquática, vinculadas a ela por fios brancos, o que se assemelha a cordões umbilicais, panejadas em volutas transparentes, cujas caudas se sobrepõem à matéria orgânica da obra Pérola imperfeita. Isto deixa incerta nossa hipótese de nascimento destes seres pelo ovo quebrado. Os rostos nos são esquivos, como que visualizados imersos na água, separados do fundo do mar apenas pelo contorno do corpo. As sereias escapam, ou desejam escapar do interior da massa orgânica. Nadam contra a superfície que, neste caso, contempla a borda do prato. Seu movimento é o de uma espiral ascendente, a primeira sobre a última e, assim, sucessivamente.

Obra tridimensional, repleta de sereias debruçadas sobre a borda de um prato de grandes dimensões, uma de suas referências seria o conjunto da obra do português Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905). Segundo a historiadora da arte Marize Malta (2010, p. 142), ele foi ator, cenógrafo quando jovem, cursou cadeiras na Academia de Belas Artes de Lisboa e, ao residir no Rio de Janeiro, entre 1875 e 1879, trabalhou na Imprensa, nas revistas O Mosquito, Psit! e O Besouro, com críticas à política e à sociedade da época. Como diretor da Fábrica de Faiança de Caldas da Rainha, em Portugal, fundada em 1884 por ele e o irmão, Feliciano Bordallo Pinheiro, o artista supervisionou a produção de telhas, tijolos, azulejos e louças, destacando-se diálogo íntimo com a produção de faiança, famosa em Portugal (Malta, 2010, p. 144).

Na obra de Bordallo Pinheiro, objetos são pintados ou esculpidos em dimensão tridimensional, produzindo estruturas côncavas repletas de objetos aquáticos como pequenos moluscos, camarões, algas e outros seres do mar, muitos produzidos em jogo com aspectos de pintura realista.

Segundo informa a fortuna, conforme Adriana Varejão e Lilia Schwarcz (2012, p. 261), Bordallo produziu louças de formatos e tamanhos diversos, “os exemplares iam saindo barrocos decorativos, irreverentes, imaginosos e até fantásticos”, os quais foram retomados pela artista. Apesar da utilização recorrente da chave interpretativa do Barroco[5] pela fortuna de Varejão, isolando as características de volúpia, dispêndio material e teatralidade deste movimento, nós mencionamos a possibilidade de diálogo da série Pratos com a obra da artista Judy Chicago, caso da famosa instalação Dinner party[6]. A obra, apresentada pela primeira vez em 1979 e vinculada aos movimentos feministas, expõe formas vulvares pintadas ou esculpidas em pratos colocados sobre uma mesa triangular, no aguardo das convivas convocadas pela artista.

Além disso, segundo textos da fortuna como o caso de Jochen Volz (2022, p. 13), Pratos associa-se ao gênero artístico natureza-morta, ou ainda às pinturas referentes ao topos do memento Mori vinculado a este gênero artístico desde o século XVII, que o curador também conecta ao “período barroco”. Contudo, ao contrário da natureza-morta, as sereias movimentam-se, não são estáticas. Quanto às louças, encontradas nas naturezas-mortas e em Pratos, Volz (2022, p. 13) recorda a faiança portuguesa em sua associação com as oficinas de Caldas da Rainhas e o próprio Bordallo Pinheiro, sendo a última informação confirmada por Marize Malta (2010, p. 144).

Para José Meco (2020, p. 578), Bordallo realizou essencialmente peças de barro moldado, com uma extraordinária variedade de formas, “cobertas de vidrados de óxido de chumbo coloridas com óxidos metálicos de magnífico efeito, especialmente quando refletem brilhos metalizados e efeitos irisados”, produzindo também “diversos azulejos de tendência naturalista, alguns inspirados pela louça tradicional das Caldas da Rainha de modelos de Palissy[7]”. Mesmo que Meco não se debruce sobre os pratos de Bordallo, já que seu texto se detém na história da azulejaria, o historiador da arte cita azulejos “naturalistas” produzidos pelo artista, entre os quais figuram cabeças de gato sobre folhas de couve, em relevo, o que se considerou expressão do movimento Art Nouveau em Portugal.

 

Figura 2: Adriana Varejão, Ama divers, 2011.

Desenho de uma pessoa

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Óleo sobre fibra de vidro e resina, 150 x 25 cm (d). Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/br/imagens/categoria/10/obras

Até o momento, não foi possível encontrar na fortuna mais informações sobre o recto dos Pratos citados. Não obstante, ao destacar diferenças na produção da faiança e da porcelana, lembramos que, ainda segundo Meco (2020, p. 229), a produção europeia de azulejaria foi profundamente marcada pelo desenvolvimento da primeira, o que permitiu à manufatura realizar peças cobertas de esmalte, decoradas com requinte e “competindo em qualidade com as cobiçadas porcelanas que vinham da China”. Embora seja difícil precisar se Varejão dialogaria, em Pratos, de um modo mais direto com a faiança ou a azulejaria, há uma possibilidade de mediação indireta face às considerações de Meco, pois a porcelana consistiria numa preciosidade do período colonial, principalmente ao considerar a dificuldade de transporte de peças tão frágeis através das veredas no interior do Brasil. Logo, poderíamos lembrar que o princípio modular dos azulejos pintados pela artista nas séries Línguas e Cortes (1998-) e Azulejões (2001-), advém, em grande maioria, do período colonial, o que vincularia as louças a esse período.

Interessa, aqui, apontar quanto o padrão formal do recto de Pérola imperfeita (fig. 1), ou de Sereias bêbadas (fig. 4), se aproxima da porcelana chinesa Ming (1368-1644) que, ainda segundo Meco (2020, p. 315), dialogou com a azulejaria no século XVII. Isto, porque, os azulejos da época passaram a utilizar a pintura em azul cobalto empregada, sobremaneira, nas porcelanas chinesas dessa dinastia, o que pode ser associado à plástica de Varejão a partir da comparação de padrões florais e esmaltação de folhas e ramagens estilizadas das obras Ming e de sua pintura em Pratos por parte de Adriana Varejão.

 Os Pratos, a partir do diálogo com a obra de Bordallo, mas para além deles, também apresentam figuras em aspecto tridimensional, além de relevos e excisos, e muitas coisas que saltam da superfície, conchas, moluscos, formas vegetais. Entretanto, a artista soma aos seres do mar citados, outros: é o caso de Ama divers (fig. 2), cujo título explicaremos adiante, com sereias translúcidas cujos corpos parecem ser atravessados pela luz solar. As nádegas são ofertadas, mas não os rostos desses seres aquáticos que, como surpreendidas em seu pudor, escapam de nossos olhos.

Suas faces não são mais que pinceladas de tinta, indiscerníveis quando na proximidade de nosso olho. A dificuldade de apresentar seus rostos talvez seja a procura por captar uma imagem transitória em movimento. Ficamos com suas costas, suas pernas e as solas de seus pés, ou seja, os detalhes fugidios. Sobre um fundo em cores roxa, azul e branca, as três náiades são pintadas em leves tons, nuas ou vestidas com volutas transparentes. Os figos são ofertados abertos e expostos em seu interior vermelho. Poderiam estar mordidos e são tão orgânicos quanto as algas verdes que se entrelaçam aos corpos nus das sereias. O adensamento da matéria orgânica é mais intenso no fundo do prato, ao passo que diminui à medida que atingimos a superfície do suporte.

Segundo a fortuna, Adriana Varejão teria retomado na pintura de Ama divers (fig. 2) as histórias de mulheres pescadoras – as ama divers – que, em certos lugares do Oriente, como em alguns rincões do Japão ou da Correia, saem de casa, há milênios, para pescar e sustentar suas famílias (Schwarcz; Varejão, 2012, p. 267). Esta prática, todavia, estaria arraigada à coleta de um objeto específico, a pérola, apesar das mulheres-mergulhadoras recolherem, também, frutos do mar. Surpreendemo-nos com os atributos dessas sereias sem calda de peixe: uma delas usa uma máscara de mergulho, uma outra, nadadeiras específicas para mergulhos em grandes profundidades, lembrando as ama divers[8] da atualidade.

 

Figura 3: Adriana Varejão, Nascimento de Ondina, 2009

Diagrama de Venn

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Óleo sobre fibra de vidro e resina, 150 x 35 cm (d). Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/br/imagens/categoria/10/obras

Os imensos figos aplicados sobre o suporte de fibra de vidro e resina estão mordidos, e seu interior revela filetes de joias. Pedrosa (2013, p. 204) associou “os figos tridimensionalizados e abertos dispostos no prato [com] o órgão sexual feminino”, bem como Isabel Diegues (2009, p. 46) afirmou que “nestes pratos de sopa são servidas mulheres e conchas, frutos do mar. Mas os pratos não oferecem seus objetos e corpos, e sim os guardam, como em aquários”, mesmo que seja preciso considerar que as sereias não estão guardadas, mas expostas na louça. Se, segundo estes textos, as sereias se ofertariam aos nossos olhos como frutos mordidos, inferimos que elas, conforme a estrutura côncava das peças, são-nos servidas na baixela, como frutos do mar prontos a serem devorados pelos nossos olhos, como mariscos em um ensopado.

Ao chamar nossa atenção para inventários coloniais, Angela Brandão (2017, p. 281) cita documentos testamentários com descrições de “um grande aparato de mesa e de utensílios de alimentação: chocolateiras, fontes de chá, chaleiras, cafeteiras, bules de cafés, várias peças azuis e vermelhas de louças da Índia, toalhas de mesa, guardanapos, pratos para guardanapos, vidros lavrados (...)”. Na referida série de Varejão, para além das sereias servidas nas baixelas, o prato em si já se vincularia à opulência de seus possuidores no período colonial, sem contar que as peças de louça vindas da Índia ocasionariam efeitos de sensualidade que, se vinculados aos Trópicos, interessariam às críticas da colonialidade.

Porém, essas associações entre corpos femininos, joias e frutas mordidas não deixa de ser incômoda. O próprio enquadramento patético dos corpos apresentados por Adriana Varejão, como teremos oportunidade de indicar, reproduz aqueles dos pintores de referência europeia na época da emergência da pintura de cavalete, conforme apontou-nos Georges Didi-Huberman (2002, p. 12-13), em Ninfa moderna, retomando obras como Vênus e Marte (1483), de Sandro Botticelli, Vênus adormecida (1509), de Giorgione, e Vênus de Urbino (1538), de Ticiano, além de títulos famosos célebres de nomes como Jean-Dominique Ingres, Francisco de Goya y Lucioentes, Gustave Coubert e Édouard Manet.

Nascimento de Ondina (fig. 3) oferece-nos uma sereia de cauda azul agarrada a seu rebento, cujo rosto não visualizamos. Entre diversas formas orgânicas, conchas revelam fetos que se misturam a outros frutos do mar. Os fetos insistem sua aparição, como também aparecerão em Sereias bêbadas (fig. 4), em ambos os casos guardados no fundo das conchas. Diferentes formas minerais sobrepõem-se a manchas em diversas cores, que se misturam à sereia em uma desestabilização do primeiro plano da pintura, ocasionando o abalo da relação de subordinação entre figura e fundo, o que envolve uma desierarquização no nível formal propriamente dito.

Aqui, lembramos da relação entre mulheres e seres aquáticos de água doce ou salgada, como é o caso das narrativas de Iara, mulher metade peixe, ou do Boto cor-de-rosa que, a se crer nos relatos, transformaria-se em homem ao longo da noite e seduziria o sexo oposto. Estes seres que habitariam as águas do Norte do Brasil relacionam-se à questão dos mistos ou quimeras pródigos na Antiguidade pagã e, inclusive, no imaginário infernal cristão. Exemplos recorrentes são Melusine, ser metade mulher e metade peixe ou serpente que habitaria rios doces e fontes sagradas, e a Moura encantada, que seduziria homens ao cantar para eles.

Em Sereias bêbadas, nas bordas da obra, o movimento da água circunda as três sereias de caudas verdes, sendo que, de uma delas, visualizamos apenas o dorso mergulhado na água, enquanto as cabeleireiras das outras confundem-se com as algas do mar. Os figos, outra vez, são joias abertas, pintadas em vermelho contra o azulado do mar. São seres mesclados ao mar, pois as sereias não têm individualidade, são um Eon (em grego, aion), do mar, uma força vital e, portanto, eterna.

 

Figura 4: Adriana Varejão, Sereias bêbadas, 2009

Uma imagem contendo Forma

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Óleo sobre fibra de vidro e resina, 150 x 25 cm (d). Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/br/imagens/categoria/10/obras

Não obstante, a sereia não pertence apenas aos nossos dias e aos Pratos de Adriana Varejão. Na mítica Odisseia (canto XII), Odisseu encontra-se com elas depois das peripécias na ilha de Circe, que o instruiu a colocar cera nas orelhas da tripulação e amarrar-se ao mastro da embarcação para ouvi-las cantar. Nessa famosa passagem, elas exclamam ao rei de Ítaca:

Aproxima, Odisseu plurifamoso, glória/ argiva. Escuta nossa voz, a voz das duas!/ Em negra nau, ninguém bordeja por aqui/ sem auscultar o timbre mel de nossa boca/ e, em gaúdio, viajar, ampliando sua sabença, / pois conhecemos tudo o que os aqueus e os troicos/ sofreram na ampla Ílion – numes decidiram-no. / Quanto se dê na terra amplinutriz, sabemos (Homero, Canto XII, vers. 184 - 191).

 

Segundo Daniela Queiróz Campos (2022, p. 280), apesar de Homero não as descrever, a iconografia da sereia, desde o século VII a.C., foi fixada em figura zoomorfa mulher e pássaro, sendo que, mais tarde, ela recebeu cauda de peixe. Porém, para além de conjecturas quanto a seu dorso, a associação da sereia nos textos antigos ao saber, tal qual o conhecimento do ocorrido entre aqueus e troicos citado em Homero, não se subtrai de ser curiosa. Maurice Blanchot (2005, p. 3) em O livro por vir, publicado pela primeira vez em 1959, enuncia que as sereias cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia, que apenas indicava a direção em que se abririam as verdadeiras fontes e a verdadeira felicidade do canto. Tratava-se de um canto ainda por vir, que conduziria seu ouvinte em direção àquele espaço onde o cantar começaria de fato. Como sobreposição entre desespero e deslumbramento, em um convite pérfido às profundezas, tão belicoso quanto irresistível, o filósofo insiste que o canto das sereias despertaria o prazer “extremo de cair”, em busca da narrativa por começar.

Não obstante, como notará Didi-Huberman (2017, p. 15) em Ninfa profunda, nós podemos, sob o poder da fatalidade, a força inevitável (a deusa Anankè dos antigos), suprimir, ou crer suprimir um objeto, mas não se poderia nunca suprimir um meio, principalmente o meio fluido, o elemento material de ar, água e desejo, pois “uma vez colocado em movimento, o meio torna-se sempre soberano”, no qual nadam as sereias de Varejão. Esta situação concerniria menos ao objeto visível que ao meio visual, como um processo de figuração, que equivaleria cair para ascender, como investigaremos adiante.

 Ao retomar a Odisseia, Blanchot (2005, p. 5) insiste que foi a atitude de Odisseu diante das sereias, seu ato de tapar os ouvidos com cera, como a “espantosa surdez de quem é surdo porque ouve”, que comunicou a elas “um desespero até então reservado aos homens, e para fazer delas, por desespero, belas moças reais, uma única vez reais e dignas de suas promessas”. Franz Kafka (2017, p. 2) no conto denominado O silêncio das sereias, também aposta no silêncio moderno das sereias, num tom bastante benjaminiano, aliás: como a aura, a sereia teria declinado na sociedade moderna tão pobre em experiência, conforme apontou Walter Benjamin (1987, p. 187) em Experiência e pobreza, texto publicado originalmente em 1933, mesmo que declinar, quedar, não repercuta nunca em desaparecer.

 

Ninfa, criatura antiga

Ventos sobreviventes, alçando as criaturas da história a lançarem-se, novamente, na confusão marinha. Focalizamos as sereias de Pratos a partir de questões teóricas abertas pela Ninfa na obra de Warburg e, também, na de Didi-Huberman. Neste primeiro eixo, investigamos Pratos face ao Nachleben der Antike dos deuses pagãos, pois corpos em movimento foram interpretados por Warburg, conforme apontou Didi-Huberman (2013, p. 219), a partir de uma “personagem transversal e mítica, a heroína da Pathosformel: a Ninfa”.

Estudos dedicados à Ninfa destacam-na como personagem teórica de Warburg. Em artigo recente, Daniela Queiróz Campos (2020, p. 237), que foi pioneira no estudo da Ninfa no Brasil, investigou-a como capaz de alegorizar conceitos cunhados ou operacionalizados por Aby Warburg, caso de Nachleben der Antike, Pathosformel e Mnemosyne. Vera Pugliese (2021, p. 28) lembra-nos que a “Ninfa impessoal, concebida como objeto teórico, atravessa a obra de Warburg da Antiguidade à Modernidade”.

Portanto, a Ninfa transbordaria a criatura mitológica para tornar-se um problema teórico, apesar de vincular-se intimamente aos mitos antigos. Em textos antigos, como é o caso da Ilíada (Canto XXIV, vers. 561-562) a Nereida Tétis[9], descrita como Ninfa, foi a mãe de Aquiles, cujo casamento esteve, de resto, na origem da lendária Guerra de Tróia. Na já citada Odisseia (Canto V, ver. 79), outra criatura descrita como Ninfa, Calipso, prole do titã Atlas, manteve Odisseu na mítica ilha de Ogígia por sete anos.

É interessante notar que não somente a Ninfa é vinculada à Antiguidade, como as ninfas antigas são, inclusive, relacionadas ao mar, como é o caso das Nereidas, ou das Oceânides, para o mar, e as Náiades, para a água doce. O filósofo Giorgio Agamben (2012, p. 50), em seu ensaio Ninfas, lembrou-nos de sua associação à água, conforme investigou a partir do famoso Tratado de Paracelso. Neste texto, denominado Sobre ninfas, silvos, pigmeus, salamandras e outros espíritos, e escrito pelo alquimista suíço Philippus von Hohenheim (1493-1541), conhecido pelo pseudônimo Paracelso, haveria certa doutrina para os nomeados espíritos elementares, cada qual associado a um elemento: a Ninfa ou ondina à água, os silfos ao ar, os pigmeus à terra e as salamandras ao fogo.

Nesse sentido, a associação das sereias pintadas por Varejão, em específico na obra Nascimento de Ondina (fig. 3), com a Ninfa revela-se coerente com o pensamento warburguiano, pois as sereias de Pratos associam-se à água, chegam a confundir-se com as ondas do mar em um misto de espuma, água e sal, inserindo-se no horizonte de sobrevivência destas criaturas antigas. No que pode, segundo Didi-Huberman (2015, p. 8), ser considerado seu único trabalho dirigido às cátedras universitárias[10], a sua tese de doutorado sobre O nascimento de Vênus (fig. 5) e A primavera (fig. 6) de Botticelli, Warburg (2015[11], p. 84) deteve-se nas madeixas e vestimentas plissadas das personagens retratadas pelo artista florentino, nomeando-as “acessórios em movimento”. Foi a partir do movimento do vento que Warburg aferiu a sobrevivência da Ninfa, apontando sua aparição no Quattrocento florentino.

 

Figura 5: Sandro Botticelli, O nascimento de Vênus, 1483

Sandro Botticelli, Nascimento de Vénus, 1483. — Luís Carvalho Barreira

Têmpora sobre tela, 172,5 × 278,5 cm. Acervo: Galeria de Uffizi. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Nascimento_de_V%C3%AAnus#/media/Ficheiro:Sandro_Botticelli_-_La_nascita_di_Venere_-_Google_Ar

Foi por um deslocamento do olhar a seguir os panejamentos em movimento que Warburg (2015, p. 78) identificou que, aos doutos e artistas do Renascimento, interessava, na Antiguidade, o movimento, legado pelos antigos a partir das artes figurativas, como sarcófagos romanos, mas também fontes textuais, como os hinos homéricos. Talvez seja possível afirmar que Warburg foi capturado pelo movimento dos panejamentos dos quadros de Botticelli e, frente às cabeleireiras insufladas de vento, bem como diante das volutas transparentes, ou das dobras eriçadas pela ventania do pintor florentino, investigou o Nachleben der Antike no Renascimento italiano, apontando-o como um tempo de tensões, impurezas e sobredeterminações.

Mesmo que em parte seguinte desse trabalho detenhamo-nos na noção de Pathosformel, lembramos que o movimento sobreveio dos antigos rumo aos artistas do Renascimento para apresentar a vida em toda a sua intensidade, o que extrapolaria a chave do retorno ao antigo, para tratar, também, de um retorno do antigo (Pugliese, 2016, p. 209). Se, para Didi-Huberman (2002, p. 135-136), em Ninfa Moderna, Aby Warburg colocou-nos diante da consideração da necessidade coletiva, cultural, da sobrevivência dos deuses antigos, é possível investigar a sobrevivência das divindades fluviais, ondinas, sereias e carregadoras de água nos Pratos pintados por Adriana Varejão, misturadas ao mar, como em Sereias bêbadas (fig. 4), ou ainda feitas dele.

Isso, porque, ainda segundo o Tratado de Paracelso, ao menos em sua interpretação por parte de Agamben (2012, p. 50), a Ninfa seria um espírito elementar definido, principalmente, por ser, no aspecto, totalmente semelhantes aos humanos, excetuando-se não terem sido gerados por Adão, “mas pertencerem a um segundo grau da criação”; grau definido por não ter alma, não ser homem, nem animal (pois possuem razão e linguagem), nem mesmo espírito (já que têm corpo), sobreposição de carne “tosca e terrena”, e “sutil e espiritual”.

Daí Didi-Huberman (2013, p. 307) ao retomar a obra Os deuses no exílio (2020), de Heinrich Heine (1797-1856), escrita em 1854, lembrar a importância dessa obra para a compreensão, em Warburg, da noção de Nachleben der Antike. A obra assevera-nos que os deuses pagãos atravessaram temporalidades diversas, ou iconografias antitéticas. Heine (2020, p. 44), ao enunciar as sobrevivências dos deuses antigos, escreve que, “por ocasião da vitória definitiva do cristianismo”, os “pobres deuses e deusas foram obrigados a fugir ignominiosamente e vieram se esconder entre nós, sobre a terra, valendo-se de todo tipo de disfarce”, pois “o verdadeiro Deus apareceu com a cruz”.

Sendo mais que animais, e menos que seres humanos, as ninfas seriam criaturas diversas da matéria adâmica e, portanto, restritas em matéria de pecado e de salvação. Contudo, sua especificidade da Ninfa em relação às outras criaturas não adâmicas é que elas podem receber uma alma. A Ninfa teria finitude mortal se, ao unir-se a um mortal, desse à luz a um filho com ele (Agamben, 2012, p. 50). Para retomar às singularidades formais dos Pratos, notamos, também, a sereia pintada por Varejão agarrada a seu rebento, como em Nascimento de Ondina (fig. 03), ou os mariscos que ofertam formas de fetos no interior de conchas em Sereias bêbadas (fig. 04), o que a aponta como criatura já vinculada ao humano[12].

As próprias conchas pintadas em Nascimento de Ondina (fig. 3) associam-se à têmpera O nascimento de Vênus (fig. 5), pois, como é sabido, ela é saída do mar, nascida da genitália decepada de Urano. Inclusive, se há violência nos mares de Botticelli, pois lembramos a impureza primordial vinculada ao movimento anadiômeno, relativo à deusa da beleza nascida da castração do céu dos antigos, há também nos mares de Varejão, cujo aspecto movimentado não se subtrai de forças dionisíacas, cujo movimento muito se assemelha ao vento nas cabelereiras, com em Pérola imperfeita (fig. 1). Daí Didi-Huberman (1999, p. 11), em Ouvrir Vénus, problematizar a forma do mar a partir de um misto de espuma, esperma e sangue, remetendo-se ao Banquete (197b), cuja datação remonta ao ano 350 a.C., de Platão (c. 427 a.C. – c. 347 a.C.). Neste texto, Platão reflete sobre a impureza do Amor, asseverando que, para o platonismo, o Amor não é somente duplo, mas vinculado à Beleza, “pois no feio não se firma amor”.

Não obstante, as ondas do mar, conforme aponta-nos, plasticamente, Ama divers (fig. 1), não vão sem uma fluidez da figuração que joga com o Nachleben der Antike (Didi-Huberman, 2015, p. 113). Se as sereias que mergulham em direção ao fundo do mar em Ama Divers (fig. 2), retornam de lá, na direção diametralmente oposta, isto é, para fora do oceano, em Pérola imperfeita (fig. 1), a força centrífuga que cria sucessivas ondas pode ser associada, sob a égide de uma hipótese, ao eterno retorno nietzschiano, conforme explicitado em A gaia ciência. O aforismo de Friedrich Nietzsche (2012, p. 205), “você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes”, reflete sobre a repetição na diferença[13], o que poderia dialogar com a temporalidade complexa investigada por Didi-Huberman (2018, p. 175), a partir, entre outras coisas, do livro Origem do drama trágico alemão (2013), de Walter Benjamin.

Ao olhar Pratos novamente e, já que enunciamos eternos retornos, apontamos o quanto as sereias são seres dotados de infamiliaridade, fundidas à natureza, como investigaremos a seguir, à beira de um mar verde, quase assombrado, com corpos frios, duros e escorregadios, mesmo que nomeados de bêbados. Asseveramos que Sigmund Freud (2021, p. 77) em seu texto Infamiliar (no alemão, Das Unheimliche), publicado pela primeira vez em 1919, apontou que, na repetição involuntária, até mesmo o inofensivo torna-se infamiliar, impondo-nos a ideia do fatídico, do inescapável. Para Freud (2021, p. 85), se a teoria psicanalítica tem razão em afirmar que todo afeto, toda moção de sentimento, transforma-se em “angústia por meio do recalque”, “essa espécie de angustiante seria então o infamiliar[14]”, daí a afirmação freudiana da repulsa humana pelo corpo morto, esvaziado de vida, mórbido, mesmo que muito semelhante ao languido da embriaguez, como, ainda, apontaremos.

Se, na esteira de Didi-Huberman (2017, p. 100), o próprio tempo é um mar por excelência, essa infamiliaridade da sereia em seu movimento intermitente, recorda-nos que as formas, as vestes translúcidas, as madeixas esvoaçantes e as espumas são também aberturas afetivas, e efetivas. Daí o pathos, ou, arriscamos, o olhar dirigido ao infamiliar, figurar cristalização de emoções humanas, considerada por Horst Bredekamp (2017, p. 226) como a excitação de um esquema pelo movimento, sendo-nos, portanto, permitido pensar que impulsos originários, pulsões descarregadas energicamente no tempo são aqui apresentadas. Como seres marcados pela efemeridade, em passant, a Ninfa não configuraria mais que uma aparição, em meio às vestimentas translúcidas, atravessadas pelo vento que atraem agora o nosso olhar.

 

Ninfa, vento sem causa

Texturas animadas, vestes esvoaçantes, superfícies em movimento. Detemo-nos, em um segundo eixo, nas sereias a partir de seu movimento acentuado, acompanhado pelo pathos nas formas dos panejamentos ou ainda pela própria água do mar. Ao cunhar a noção de Pathosformel, Warburg aferiu que os panejamentos (fig. 5), não eram apenas formas[15], mas fórmulas. Estas fórmulas apontavam que as pinturas em movimento não derivavam, exclusivamente da observação da natureza por parte do artista, mas também do olhar dirigido a outras imagens, como escreveu Sandra Szir (2019, p. 24), sobre a Ninfa, no catálogo da exposição “Ninfas, serpientes, constelaciones. La Teoría artística de Aby Warburg” (2017) – curada pelo historiador da arte José Emílio Burucúa no Museu de Belas Artes de Buenos Aires, na Argentina.

Em Pérola imperfeita (fig. 1) funcionaliza-se uma relação entre o próprio corpo à mostra pelo esvoaçar do tecido inflado de ar, pois o vento precisa de corpo para aparecer. Sobre o movimento dos corpos artes plásticas, Philip-Alain Michaud (2013, p. 84) enuncia que, se desligado dos textos antigos, a imperiosa metamorfose de Clóris em Flora, ou a rotação das três Graças em A primavera (fig. 6) aparecem diante de nós como deslocamentos de um único corpo. Trata-se de interpretação em que as sucessivas posições são pintadas simultaneamente, “uma vez sob a forma de translação, outra sob a de rotação”, pois a “pluralidade das figuras dá lugar a uma série de modelações que afetam corpos simples”, como nas sereias pintadas umas sobre as outras em Pérola imperfeita (fig. 1), ou em Ama divers (fig. 2), que também poderiam ser interpretadas como o movimento contínuo de um mesmo corpo.

Na Prancha 39 (fig. 7), do Bilderatlas Mnemosyne, que possui como eixo conceitual: “Botticelli. Estilo idealizante. Primeiro e segundo Amor no estilo antigo. Palas Athena como bandeira do torneio. Imagens de Vênus. Apolo e Dafne = Metamorfoses. O chifre de Achelous”, Warburg (2020, p. 84), fixou as duas grandes têmperas de Botticelli sobre as quais se dedicou na tese de doutorado. Trata-se de associação curiosa das partes insensíveis do corpo humano (os cabelos, feitos de células mortas), e os galhos e folhas de árvores, pois como lembrou-nos Didi-Huberman (2015, p. 27), em Ninfa fluida, Botticelli não conferiu pathos visível a nada que não o panejamento (a coisa morta), os cabelos (a coisa insensível) e o vento (a coisa invisível). Como em Sereias bêbadas (fig. 4), frente à total imobilidade dos corpos apresentados, são as ondas que volveriam à natureza.

A própria interpretação da Ninfa como força vital da natureza, como mencionado acima, é curiosa se pensada a partir de Pratos. Aby Warburg (2018, p. 117), escreveu sobre a obra Ninfa carregando flores, um friso romano, hoje no Museu do Louvre, em Paris. Neste sarcófago do tipo báquico, a Ninfa portaria um maço de cimbalárias. Para Warburg (2018, p. 117), o significado arqueológico da figura é secundário, pois devemos “compreender essa ninfa como um símbolo da afirmação da vida, assim como era entendida no século XV”, o que vincula a Ninfa, ao menos na compreensão warburguiana, à natureza. Isto é plasticamente apresentado em A primavera, principalmente na deusa Primavera a carregar flores sobre as dobras do vestido que, como aferiu Warburg (2015, p. 68), deve sua fatura a antigas formulações patéticas, seja a estatuária da deusa Flora, ou da deusa Pomona.

 

Figura 6: Sandro Botticelli, A Primavera, 1482-1485

Sandro Botticelli, A Primavera, c. 1482, têmpera sobre painel. Florença: Galleria degli Uffizi. Fonte: (Warburg, 2015a).

Óleo sobre têmpera, 203 x 314cm. Acervo: Galeria de Uffizi. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Primavera_(Botticelli)#/media/Ficheiro:Botticelli-primavera.jpg

É digno de nota que, na porção inferior direita da Prancha 39, Warburg justapôs diversas imagens do episódio mitológico do rapto da ninfa Dafne pelo deus Apolo, pinturas atribuídas a pintores como Pollauiuolo, Pseudo-Antonio da Monza e Hans von Kulmach, além da própria alegoria da Abundância (1480-1485), de Sandro Botticelli, que guarda semelhança formal com a deusa Vênus em O nascimento de Vênus (fig. 5). Na antiga estrofe, conforme narrado nas Metamoforses (Canto I, vers. 549-550) de Ovídio, para fugir das investidas do deus, a ninfa Dafne foi transformada pelo pai, Peleu, em loureiro, sendo que “cresce-lhe a ramagem o lugar dos cabelos e os ramos no lugar dos braços”, o que configura associação com Sereias bêbadas (fig. 4), que confundem cabelos e ramagens aquáticas.

Esse é mais um exemplo de associação entre a Ninfa e as forças da natureza, o que condiz com o tema da Prancha e, inclusive, com a têmpera A primavera (fig. 6), no caso de Zéfiro e Clóris na porção direita da pintura. Lembramos que para Didi-Huberman (2015, p. 92) em Ninfa fluida há na perseguição erótica de A primavera uma junção, um jogo, de conflito de atrações e repulsões, de belezas e de repulsas, de graças e monstruosidades, bem como um “vento espermático” (genitalis spiritus), na fecundação da ninfa pelo vento, o que também se relacionaria com os fetos, seres fecundados, nas conchas de Nascimento de Ondina (fig. 3).

Mesmo que seja preciso lembrar esses episódios mitológicos e sua sobrevivência como problemáticos, pois trata-se de perseguições eróticas, com pano de fundo violento, é interessante lembrar, em que pese o valor da associação da mulher com a natureza, o que o papel da Ninfa em Warburg extrapola uma dualidade de gênero. Didi-Huberman (2013, p. 219), lembrou-nos desse poder encarnacional da personagem, além de estudos de Luana Wedekin (2018, p. 1943-1944), pois “tentar compreender a ninfa somente como projeção de um imaginário erótico masculino é esvaziá-la de sua potência como imagem e como encarnação de um feminino capaz de superar o dualismo opressor/vítima”, o que é plasticamente figurado na Prancha 47 do Bilderatlas Mnemosyne (Warburg, 2020, p. 103).

Além disso, Maura Voltarelli Roque (2019, p. 225) lembra que as divisões de gênero soam incompreensíveis diante da própria “natureza fluida da Ninfa”, pois “ver a imagem da Ninfa, este objeto a um só tempo teórico e de desejo, simplesmente como uma imagem diminuída pela fantasia masculina, é diminuí-la justamente em sua potência ambígua”. A Ninfa fala-nos de cargas psíquicas, o que é coerente, ao menos, com textos do próprio Didi-Huberman (2016, p. 205), caso de Peuples exposés, peuples figurants, onde ele discorre que, na sobrevivência dos deuses antigos, a Ninfa é uma figura paradigmática, “indiferente ao gênero (...), dado que se encarnam tanto nas criaturas de Ghirlandaio como nos adolescentes encaracolados de Verrocchio ou Leonardo”, como um operador privilegiado de conversão.

 

Figura 7: Aby Warburg, Prancha 39 do Bilderatlas Mnemosyne

https://lh7-us.googleusercontent.com/c82lMF_IkXyxc8SDwwf2E-Hoxj8YHfXtctQMgUQTi2MnIyQ-TI_6bMooFttuz3UgiC3lUw_Bh6uuR0ZpVwQSZwWdGPlRxlKSlqg7nMPYKtiYEj_47k7ODwbgc1lncc2ArxBwVLYVqRJe0ECy2EEkqw

Fonte: Warburg, 2020, p. 85.

Portanto, famosa pelos acessórios inanimados em movimento – o que configura o pathos da imagem refere trata de uma indistinção, como vimos (fig. 31) –, a Ninfa em Warburg se situaria entre “um corpo, uma vestimenta e um movimento”, conforme Roland Recht (2012, p. 40). Tal é o caso das sereias pintadas acima por Varejão, que esvoaçam seus véus (fig. 1 e 2), enquanto se mostram indiscerníveis de suas próprias formas corpóreas e do meio aquático no qual mergulham. Mas, essa queda no meio aquático, ou essa confusão entre corpo e panejamento, não é desprovida de valor teórico. Essa percepção é proporcionada pela consideração de que a Ninfa funcionaliza não apenas características iconográficas e poéticas, mas patéticas, Didi-Huberman (2002, p. 132).

A Pathosformel do corpo tombado, caído, foi investigada por ele Ninfa moderna, principalmente ao partir da hipótese de que uma imagem não resulta jamais em um ponto isolado, mas sim em um dinamograma[16], no qual a figura da Ninfa deslisa progressivamente até tombar por completo (Didi-Huberman, 2002, p. 16-17). A partir da palavra latina clinamen, como se verá adiante, significando tanto movimento de pender como inclinação de um corpo, Didi-Huberman investiga corpos no abandono à horizontalidade, como em um movimento sem détour, numa estrutura de sintoma, retomando obras de diversos pintores na hipótese de que, com a modernidade, a Ninfa lentamente ganha o chão, caindo, ou deitando-se, tal qual Sereias bêbadas (fig. 4).

No que Didi-Huberman (2002, p. 17), nomeia de bifurcação sintomal, ocorre uma dissociação entre a nudez da ninfa e o panejamento, que adquiriria autonomia formal, voltando-se para às bordas do quadro, in paregon. Em Ninfa profunda, a peripécia entre o corpo e o panejamento foi investigada não apenas como deslocamento de uma apresentação corpórea, nomeada pelo autor como bifurcação sintomal, mas como indistinção entre corpo e meio líquido. Se Didi-Huberman (2017, p. 34) retoma o “esquema clássico” da Ninfa dormindo, encontrada “em Ticiano, Velázquez, Rembrandt, Goya”, para interpretar os romances oceânicos Victor Hugo (1802-1885), lembra-nos que a produção plástica e textual do autor é contemporânea da Ninfa dormindo de Ingres.

Todavia, é a própria indistinção, entre o meio aquático e o corpo que é buscado aqui, pois em uma maré centrífuga, somos nós também levados por ela. Essa queda da Ninfa, segundo Vera Pugliese (2021, p. 27), condiz com a “identificação de um esvaziamento secular do referente: a perda da transcendência”, na secularização dos “acessórios em movimento”, o que, também, aponta preocupação warburguiana com a energia contida e carregada nas Pathosformeln. Sabemos que, como um processo de memória – fraturado, lacunar –, a onda com suas sereias vai se refazer. Neste lugar, reside sua própria condição de aparição (Didi-Huberman, 1998, p. 9): a onda está aí, diante de nós, mas logo pode quebrar-se contra a areia ou o rochedo, pode perder-se neste imenso oceano para, como latência, volver acima mais tarde.

 

Ninfa, dissolver-se no mar 

 “Elas eram para mim aquelas ondulações monstruosas e azuis do mar, o perfil de um desfiladeiro diante do mar. Era o mar que eu esperava encontrar, se fosse a alguma cidade onde estivessem. O amor mais exclusivo por uma pessoa é sempre o amor de outra coisa” (Marcel Proust, 2016, p. 245).

 

Como o mar somente se retira para voltar a quebrar na praia, uma imagem apenas deixa-nos para voltar a obsedar-nos em seguida. Não se trata de uma imprecisão, antes de uma sobreposição entre nossa sensibilidade e as coisas que vemos, próximas e longes como o balanço do mar. Na morbidez dos corpos caídos, há ainda uma languidez que aproxima Sereias bêbadas da queda da Ninfa, descrita por Didi-Huberman (2002, p. 16): um corpo tombado na água. A Pathosformel do corpo da “sereia bêbada”, dobrado sobre si mesmo onde a cabeça é torcida para a direita numa estranha pose, parece-nos recordar um corpo morto, tombado sobre o fundo da água, como a Ofélia (fig. 8) shakespeariana pintada por John Millais.

Com efeito, o corpo morto foi associado por Didi-Huberman (2019, p. 21), em Ninfa dolorosa, à própria figura da Ninfa. Isto, porque, na última versão do Bilderatlas Mnemosyne, é justamente uma das montagens dedicadas à figura paradigmática da Ninfa, a Prancha 39 (Warburg, 2020, p. 85), que trata de uma junção de imagens sobre os motivos da “feminilidade se aproximando perigosamente da negatividade violenta e assina”, sucedida pelo tema expressivo da dor extrema, seja a de Orfeu desmembrado na Prancha 41 (Warburg, 2020 [1929], p. 89), a de Laocoonte na Prancha 41a (Warburg, 2020, p. 91), e, finalmente, a Prancha 42 (Warburg, 2020, p. 93) consagrada ao motivo do cadáver deposto, do luto e da lamentação sobre o corpo de Cristo.

Nos rompantes da alma frenética, seja face ao luto ou não, indicamos que as sereias são nomeadas por Varejão como “bêbadas” o que, em certo sentido, implica em associá-las ao estado dionisíaco por excelência, como teorizou em outro contexto Friedrich Nietzsche (2020, p. 121), em O nascimento da tragédia, livro publicado pela primeira vez no ano de 1872: a embriaguez dos corpos, como em uma “descarga patológica” que o filósofo alemão associa à catarse aristotélica, no auge do abandono de si que já tivemos a oportunidade de indicar.

 

Figura 8: John Millais, Ofélia, 1851-1852

Hamlet e a representação de Ofélia na arte e na cultura pop – Palavra acesa  no caos

Óleo sobre tela, 76,2 cm x 111,8 cm. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:John_Everett_Millais_-_Ophelia_-_Google_Art_Project.jpg

Ponderamos que Warburg não descobriu na Antiguidade apenas imagens de calmaria e equilíbrio, “mas animada por movimentos apaixonados” (Recht, 2012, p. 54), sendo-nos salutar lembrar, também, que a palavra paixão tem sua raiz calcada no termo pathos, como aprofundaremos posteriormente. Dotada de capacidade de unir causa interna e causa externa, a Pathosformel estaria vinculada à “necessidade (...) de resolver, pela imagem, conflitos psíquicos”, ou funcionar como um “campo de expressão, mas também de experimentação de ansiedades individuais, de tensões” (Recht, 2012, p. 56). Horst Bredekamp (2017, p. 226) também citou a sofisticação da fórmula de pathos nas manifestações do panejamento estudadas por Warburg: “A manifestação mais refinada das fórmulas de pathos encontra-se no reforço psicodinâmico dos cabelos e das vestes como formas expressivas de energia interiores”.

Além disso, ao retomar Victor Hugo, principalmente nas obras Os trabalhadores do mar (2022), e O homem que ri (2014), publicados respectivamente em 1866 e 1869, Didi-Huberman insiste na correspondência entre olhar uma mulher e afundar em um fluido. Não obstante, a extensão do problema didi-hubermaniano seria colocado também a partir da questão, cabal em Victor Hugo, de saber o que ocorre entre a psyché do tormento e a physis da tormenta. Já em Ninfa fluida, Didi-Huberman (2015, p. 101), havia nos falado de uma eterna relação entre os tormentos e as tormentas, o spiritus atmosférico e o spiritus psíquico, remetendo-se à obra A primavera (fig. 6) como uma paisagem psíquica, “onde a meteorologia das tormentas segue de mãos dadas com a sintomatologia dos tormentos”.

Retomando à noção de clinamen, Didi-Huberman (2017, p. 92), a partir da noção de imanência utilizadas na obra de Lucrécio (c. 94. a.C. – c. 50. a.C.), principalmente em seu poema filosófico Sobre a natureza das coisas (De rerum natura), lembrou a ação de tombar (tomber) para aceder (accéder), como na ascese platônica, aliás, “duas ações que designam o mesmo verbo latino accidere”, pois esta “situação de queda nada mais é que uma situação de imanência”. Já em trabalho anterior, Ninfa moderna, Didi-Huberman (2002, p. 12-13) considerou a queda na chave fenomenológica do clinamen, já que é “fundo das coisas que se encontra a verdade das coisas”.

É o caso, ainda segundo Didi-Huberman (2017, p. 108), de uma dilatação entre sujeito e objeto que tangencia, também, uma dissolução entre o sujeito pintado e o espaço desenhado, como na desestabilização entre plano e fundo que notamos, por exemplo, em Sereias bêbadas (fig. 4). Na hipótese do meio fluido como processo figural, lembramos que, se a Ninfa uniria causa interna e causa externa, as sereias relacionam-se não apenas a Pathosformel nas Sereias bêbadas, mas dialogam com as questões do corpo caído, pois associam-se à questão entre interioridade animada expressa mediante movimento externo.

Este estudo tangencia Warburg (2015, p. 72), pois “pessoas movidas apenas em seu interior” expõem seu pathos pelo movimento, o que, em alguma medida, está presente no livro A dobra. Leibniz e o Barroco de Deleuze (2009, p. 219), publicado pela primeira vez em 1991, quando ele se refere justamente ao panejamento na arte barroca, como no êxtase e furor em esculturas como a Beata Ludovica Albertoni, para não falar no Êxtase de Santa Teresa (fig. 9) – obras do escultor Gian Bernini.

 

Figura 9: Gian Lorenzo Bernini, O êxtase de Santa Teresa, 1647-1652

O Êxtase de Santa Teresa, Gianlorenzo Bernini | Historia das Artes

Escultura em mármore. Acervo: Igreja de Santa Maria dela Vittoria (Roma). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_%C3%8Axtase_de_Santa_Teresa#/media/Ficheiro:Ecstasy_of_Saint_Teresa_September_2015-2a.jpg

Nesse sentido, lembramos de Teresa d’Ávila em seu êxtase divino, ex-tasies, como um sair de si, quase em um estado de derretimento, cuja beleza exige reprodução integral: 

Via em suas mãos um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e chegava às entranhas. Ao tirá-lo me parecia que as levava consigo e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar aqueles gemidos, e tão excessiva suavidade que põe em mim essa enorme dor que não há como desejar que se tire nem se contenta a alma com menos que Deus. Não é uma dor corporal, mas espiritual, ainda que não deixe o corpo de participar em alguma coisa e até bastante. É uma corte tão suave que se passa entre a alma e Deus que suplico eu a sua bondade que a dê a experimentar a quem pensar que eu minto (D’Ávila, 2021, p. 267-268).

 

Frente à trama de saberes vinculados às referências históricas, lembramos que a imagem é também um impasse, uma espera pretensa ou irremediavelmente adiada, como numa experiência interminável. É nosso próprio fascínio derivado do incessante olhar a vagar nesse quebrar de ondas, como num mar revolto que apenas começa a se erguer e, agora, precisará ser interrogado. Neste sentido, será preciso arriscar, nossa cegueira face às ondas do mar, já não é “possibilidade de ver, mas impossibilidade de não ver”, como lembrou-nos Maurice Blanchot (2011, p. 24) em O espaço literário.

Talvez, como muitas outras imagens, Pratos de Varejão leva-nos a um perpétuo movimento. Para além de sua borda material, a imagem persegue nosso olhar, ela promete voltar, talvez já tenha retornado. Nestes termos, o pensar da imagem pode ser confundido com o pensar do próprio sujeito. A imagem expõe, nas palavras de Emmanuel Alloa (2017, p. 9-10), “para fora de si, a força de se expor ao que ela não pode ainda pensar e ao que há talvez de mais difícil a pensar (...), um sensível impensado porque inesgotável em sua exterioridade”.

Para além das chaves hegemônicas da fortuna crítica e diante de questões teóricas abertas, principalmente, pelas noções centrais em Warburg de Nachleben der Antike e Pathosformel, investigamos como postulados teóricos permitem ao historiador da arte abrir as imagens além de interpretações correntes e usuais. Neste sentido, interpretamos como os conceitos operatórios, longe de inibir a adoção de metodologias ligadas à investigação das imagens de Varejão, levam-nos a considerar os detalhes ínfimos, ou ao recolocar de questões que se sedimentaram na interpretação da obra frente aos críticos. Não obstante, em um deslocamento da pesquisa dirigida aos aspectos formais ou de conteúdo da imagem, atentamo-nos também à experiência estética, por vezes empática, de estar diante da imagem.

 

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 28/10/2023.

Aceito em 19/12/2023.



[1] Doutorando e Mestre em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília (PPGAV/VIS/IdA/UnB), com bolsa CAPES. Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (HST/CFH/UFSC), com bolsa PET e, mais tarde, IC/CNPq. Vinculado ao Laboratório de Teoria e História da Arte (LaTHA/UnB). Cadastrado nos grupos de pesquisa Cartografias do discurso historiográfico artístico: a montagem, a temporalidade complexa, o retorno crítico e o deslocamento (UnB), Montagem no discurso historiográfico artístico (UnB/CNPq) e Lab|HABA - Laboratório de Historiografia da Arte no Brasil e Américas (UFRJ/CNPq). Brasil. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9004537654401468. E-mail: adrielzortea@outlook.com | https://orcid.org/0000-0001-5823-2638

[2] Professora de Teoria e História da Arte no Departamento de Artes Visuais, atuando no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB) e coordenando o Laboratório de Teoria e História da Arte (LatHA/PPGAV/UnB). Realizou pós-doutorado na CEHTA/EHESS, Paris (bolsa FAP-DF, 2019-2020), preside o Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) na Gestão 2023-2025, filiado ao CIHA, é líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Montagem no Discurso Historiográfico Artístico (UnB/DF) e vice-líder do Grupo de Pesquisa Laboratório de Historiografia da Arte no Brasil e Américas (Lab|HABA/EBA/UFRJ). Pesquisa sobre Teoria e Historiografia da Arte, sobretudo acerca do Instituto Warburg, recente teoria da arte francesa e Historiogafia da arte no Brasil, com inúmeras publicações. Brasil. E-mail: verapugliese@gmail.com | https://orcid.org/0000-0001-8101-4751

[3] O termo “plástica” e suas variantes são remissões à História Natural (Naturalis historia) de Plínio, o Velho (23-79), que utilizou, a partir do termo plasteae (argila), a noção para referir-se à própria materialidade das obras a partir de sua feitura, muitas vezes em argila, de onde, em última instância, deriva a palavra “plástico” (Lichtenstein, 2007, p. 73).

[4] Podemos citar, dada a centralidade do tema para esta plástica, as gravuras de Theodore de Bry (1528-1598), cuja edição revista e com imagens das histórias de Hans Staden (1525-1576), fornecem estrutura às investigações antropofágicas da artista, como em Proposta para uma catequese. Parte I díptico: morte e esquartejamento (1993), e Proposta para uma catequese. Parte II díptico: aparição e relíquias (1993), ambas as telas sob a égide da Antropofagia, ou um “canibalismo às avessas”, em que é Cristo engolido pelos indígenas, ou seja, o cristianismo deglutido pelos povos originários. Além disso, o tema das territorialidades, ativada por obras como Carne à moda de Post (1996) ou Carne à la Taunay (1997), possibilita a reflexão sobre a apatia das telas de olhares estrangeiros sobre o Brasil Colônia. A artista trata as feridas da história, cortadas das idealizadas paisagens dos referidos pintores Frans Post (1612-1680) e Nicolas-Antoine Taunay (1755-1830) e servidas como carne crua em imaculadas peças de louça da Companhia das Índias, a partir de relações conflituosas entre periferia e metrópole, ou ainda entre passado e presente.

[5] Tivemos a oportunidade de apontar a retroalimentação na utilização da chave do Barroco no Brasil por parte da artista e de sua fortuna crítica, bem como limitações na compreensão desse movimento, ou em sua interpretação face à plástica de Varejão, quando utilizada de forma homogeneizante, para a interpretação da obra da artista, principalmente frente à pressupostos teórico-metodológicos warburguianos.

 Cf.: https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/39721 

[6] No âmbito dos movimentos feministas, Judy Chicago homenageia 1038 mulheres compreendidas pela artista com “esquecidas” pela história. Trata-se de uma instalação onde, sobre um tablado formado por azulejos brancos, encontramos uma mesa triangular com 13 lugares de cada lado (o número de pessoas presentes na Santa Ceia), totalizando 39 pessoas. Para cada mulher sentada à mesa há um prato com uma vulva pintada ou esculpida, à exceção de dois lugares, destinados à Sojourner Truth e Ethel Smyth. Sobre azulejos, no chão, o referido tablado nomeado Heritage floor apresenta nomes de 999 mulheres letras douradas, somando com os 39 lugares à mesa, 1038 mulheres. Cf.: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/13406/1/RSCoitinho-min.pdf

[7] Bernard Palissy (1510-1589), era um oleiro huguenote francês, famoso por tentativas de recriar a porcelana chinesa.

[8] Conforme foi possível verificar. Cf.: https://www.kanpai-japan.com/japan-travel-guide/ama-divers

[9] Na mitologia grega, umas das 50 filhas de Nereu, o velho deus marinho, e netas do titã Oceano e da titânide Tétis.

[10] A produção intelectual de Warburg é formada principalmente por escritos curtos dirigidos a conferências, e não por grandes volumes (Recht, 2012, p. 10-11).

[11] O trabalho inédito foi defendido na faculdade de Strasbourg em oito de dezembro de 1891, aceito em cinco de março de 1892 com o título de “doutor em filosofia”, mas o texto impresso saiu apenas no ano de 1893 (Didi-Huberman, 2015, p. 8).

[12] Escusado lembrar que, conforme apontou Daniela Campos (2017, p. 73), ao retomar Aby Warburg (2015, p. 70), Simonetta Vespucci – que segundo sua investigação a partir do historiador da arte alemão poderia ter dado feição às ninfas pintadas por Botticelli, como seria o caso da deusa da primavera, em perfil na têmpera O nascimento de Vênus (fig. 5) – foi uma mulher morta aos 20 anos de idade, logo após casar-se.

[13] Conforme conceituação oferecida por Gilles Deleuze no livro Diferença e repetição (2018).

[14] Para Freud (2021, p. 85), “se isso é mesmo a natureza secreta do infamiliar, então entendemos porque o uso da língua permitiu que o familiar se deslizasse para seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem realmente de novo ou de estranho (...), afastado pelo processo de recalcamento”.

[15] Como lembrou-nos Giorgio Agamben (2012, p. 27-28), “Warburg não escreveu, como teria sido possível, Pathosform, mas Pathosformel”, o que destaca “o aspecto estereotipado e repetitivo do tema imaginário do artista”.

[16] O dinamograma, segundo Didi-Huberman (2013, p. 154; 157), é um tipo de grafo da imagem: “o impulso dos eventos de sobrevivência, diretamente perceptível e transmissível pela sensibilidade sismográfica do historiador das imagens”, ou ainda, “uma forma das formas no tempo”.