História da arte, fantasmas e sobrevivências: análise de um projeto de ensino para o Ensino Médio da rede pública

Art history, ghosts and survivals: analysis of a teaching project for public high school

                                                                                               Paulo Henrique Tôrres Valgas[1]

 

 


Resumo

Esse texto analisa quatro das pranchas produzidas em um projeto de ensino para alunos do ensino médio do Instituto Federal Catarinense. A proposta foi conhecer a História da Arte e produzir montagens de imagens inspirados no Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, aprendendo conceitos como Pathosformel, Nachleben e imagem-fantasma. Observa-se a potência da imagem para formação de repertório, sensibilidade e capacidade de pensar pelo visual, sobretudo para observar os sintomas, sobrevivências e fantasmas segundo o pensamento do referido historiador alemão. O artigo demonstra como o Atlas Mnemosyne e as pesquisas de Warburg podem inspirar não apenas pesquisas acadêmicas, mas auxiliar na construção da educação visual de alunos do ensino médio.

Palavras-chave: Projeto de ensino; História da arte; Atlas Mnemosyne; Nachleben; Pathosformel.

Abstract

This text analyzes four of the boards produced in a teaching project for high school students of Instituto Federal Catarinense. The proposal was to learn about the History of Art and produce montages of images inspired by Aby Warburg's Atlas Mnemosyne, learning concepts such as Pathosformel, Nachleben and ghost-image. The power of the image for the formation of repertoire, sensitivity and ability to think visually is observed, especially for the perception of symptoms, survivals and ghosts according to the thought of the aforementioned German historian. The article demonstrates how the Mnemosyne Atlas and Warburg's research can not only inspire academic research, but also contribute to the visual education of high school students.

Keywords: Teaching Project; Art history; Atlas Mnemosyne; Nachleben; Mnemosyne.


 

 

 

Aby Warburg e o tempo dos fantasmas[2]

 

 

Fala-se hoje de um ‘renascimento’ de Aby Warburg para designar o interesse crescente pela sua obra e para reconhecer que ela terá finalmente chegado ao momento da sua legibilidade. Este ‘renascimento’ não é motivado por um interesse arqueológico mas pela descoberta de que todo o trabalho de Warburg – as suas elaborações teóricas, as suas investigações historiográficas, a constituição de uma biblioteca que o ocupou a vida inteira – são um contributo importante para pensar a história da arte, isto é, tanto a disciplina assim chamada – nos seus métodos, nos seus pressupostos – como a própria historicidade das obras de arte (Guerreiro, 2002, p. 389).

 

O historiador alemão Aby Warburg tem inspirado pesquisas sobre História da Arte, baseadas em seus estudos sobre a sobrevivência da antiguidade clássica, sua vasta biblioteca, atrelada à sua imensa erudição, suas viagens pela América do Norte e pela Itália e seu Atlas. Essa trajetória causou grande repercussão no Brasil e inspirou historiadores da arte a pensar a imagem para além das fronteiras e métodos mais tradicionais. Seus conceitos mais conhecidos, Pathosformel e Nachleben, referem-se a formas e emoções cristalizadas, transmitidas por fenômenos de deslocamento temporal e geográfico das imagens, e demonstram as continuidades, rupturas e permanências da tradição clássica. Essa sobrevivência das imagens foi chamada por ele de “história de fantasmas para gente grande”, pois a imagem, tal como um fantasma, se deslocaria e seria transmitida através do tempo, como um sintoma, aparecendo e reaparecendo, sendo uma presença inconveniente, inatual, que rompe com a linearidade e com os evolucionismos metodológicos.

Para organizar seu amplo repertório de imagens-fantasmas, Warburg construiu o Atlas Mnemosyne, um conjunto de pranchas repletas de imagens que, formadas por motivações psíquicas relacionadas a uma determinada época, eram “carregadas para dentro de outras culturas, onde seriam remobilizadas em seus conteúdos psíquicos e reorganizadas em função do novo contexto” (De Mattos, 2006, p. 222). Ele quis investigar as formas e suas transformações, associando imagens para ver suas repetições e pensar a unidade da humanidade através da diversidade de culturas. Seu atlas seria uma “história da arte sem palavras”, um atlas da memória, reunindo o conhecimento acumulado sobre o mundo, transmitido pela memória coletiva através das imagens.

A constituição de imagens faz-se sempre em um diálogo de imagens: imagens deixam-se reportar a outras imagens – esse é o sentido do seu Atlas Mnemosyne (...), planejado, mas jamais concluído. Imersas em contextos, as imagens estabelecem relações entre si, arranjam-se em constelações que são variáveis e permitem ao pesquisador enfatizar um ou outro percurso, transcurso, nexo, contexto, uma ou outra relação, inversão, polarização, Nachleben (Waizbort, 2015, p. 17-18).

 

Georges Didi-Huberman, um dos seus maiores interlocutores, defende um olhar para a História da Arte pela “herança warburguiana”, abrindo-se a uma epistemologia que enriquece a obra pelas suas múltiplas possibilidades, e não mais pelo discurso finalizante do especialista. A potência da imagem se coloca diante de nós, que procuramos aprender a olhar detalhes, trechos, o que atravessou tempos e vêm se apresentar a nós. Assim, a História da Arte cronológica e evolutiva vê-se em apuros: é o sintoma que ganha protagonismo e leva a imagem a produzir desorientação, novas ocorrências de sentido, relações múltiplas, inéditas e perigosas (Didi-Huberman, 2013a).

A essência do ensino e do método de Warburg (...) é tipicamente identificada com a recusa do método estilístico-formal que domina a história da arte no final do século 19 e como deslocamento do ponto central de investigação: da história dos estilos e da valorização estética aos aspectos programáticos e iconográficos da obra de arte tais como resultam do estudo de fontes literárias e do exame da tradição cultural (Agamben, 2015, p. 132).

 

Sob a influência desses autores, buscando transmitir a estudantes uma História da Arte a partir dessa perspectiva, foi criado, no campus Ibirama do Instituto Federal Catarinense, em 2020, o projeto de ensino “História da Arte como uma história de fantasmas para adultos”, de adesão eletiva, coordenado pelo professor Paulo Henrique Tôrres Valgas, com colaboração da professora Susiane Kreibich, atendendo alunos do ensino médio que aceitaram o desafio de conhecer melhor o universo das imagens e da História da Arte.

 

Características e metodologia do projeto

O projeto nasceu do desejo de ensinar História da Arte de forma não convencional, sem apenas listar essencialismos estilísticos ou movimentos artísticos enrijecidos por linhas temporais. O método de Warburg ao organizar sua biblioteca, colocando os livros de acordo com suas afinidades, o que ele chamou de política da boa vizinhança, e a montagem de imagens nas pranchas, constituindo uma experiência de conhecimento por montagem, levaram a pensar um projeto que não apresentasse o conhecimento pronto, mas instigasse os estudantes a construírem o seu próprio caminho. A inspiração metodológica foi, então:

O interesse de Warburg em compreender as imagens como símbolos de circulações, de migrações de homens e de ideias, seu esforço em perfazer os caminhos das conexões, dos encontros entre elementos distintos, sua determinação em entender a fronteira como o próprio terreno da história (Fernandes, 2014, p. 342).

 

O projeto aconteceu entre março e novembro de 2020 e contou com 11 estudantes. Devido à pandemia de Covid-19, apenas um encontro foi presencial; o restante aconteceu virtualmente. Após uma breve introdução sobre arte primitiva, antiga e medieval, a cada semana foi estudado um movimento artístico. Os participantes tinham a tarefa semanal de selecionar imagens que lhes chamavam atenção, refletindo sobre o porquê da escolha (a técnica, o tema, as formas, etc.), sendo acompanhados e questionados pelo professor. Após três meses, foi ministrada uma aula sobre Warburg e sua trajetória, seus estudos sobre a antiguidade clássica, suas viagens à América e a construção do Atlas. Os estudantes entenderam como ele pensou a cultura, a montagem de imagens, a sobrevivência do antigo e as fórmulas de pathos.

O professor, que tinha acesso às pastas virtuais onde ficavam as imagens selecionadas pelos estudantes, fez uma análise das escolhas individuais e identificou possíveis sobrevivências, permanências, tensões e reincidências de formas e conteúdos. Em seguida, apresentou suas percepções de forma que cada um pudesse descobrir o seu fantasma, ou seja, a imagem que o persegue, assombra, que aparece e reaparece em seu repertório; definindo o que então seria seu objeto de pesquisa. Desta forma, como um investigador em busca de vestígios, eles tornaram-se detetives, ou como por vezes brincou-se, ghostbusters, trilhando seus próprios caminhos enquanto continuavam, em grupo, a conhecer novos movimentos artísticos.

Warburg organizava, montava (não necessariamente numa ordem linear de leitura, mas à maneira de peças capazes de serem deslocadas a todo o momento) sobre painéis de madeira (...), recobertos de tecido preto. Instalava, então, esses quadros de imagens nas ilhargas de sua biblioteca elíptica para que as imagens pudessem entrar em diálogo, se pensar entre si, no tempo e no espaço de uma longa história cultural ocidental; para que pudessem também ser observadas, relacionadas, confrontadas na grande arquitetura dos tempos e das memórias humanas (Samain, 2011, p. 36).

 

O passo seguinte foi a organização dessas imagens escolhidas, com ajuda do professor e da estudante bolsista, Luciana Tillmann, construindo cada um a sua prancha nos moldes do Atlas Mnemosyne. Essas pranchas foram publicadas em uma página do Facebook, com o mesmo nome do projeto; cada estudante escreveu um parágrafo sobre o seu fantasma e participou de um vídeo explicando nossa proposta.

As dificuldades enfrentadas na execução do projeto se deram pela pandemia, que limitou os debates devido à falta de presencialidade. Alterações de calendário, períodos sem aula e outros infortúnios impediram a abordagem de todo o conteúdo com a qualidade e o tempo desejados. Os movimentos do século XX e a arte no Brasil, previstos para o segundo semestre do ano, foram tratados superficialmente, o que limitou o repertório dos estudantes na construção das pranchas. Positivamente, há de se destacar o engajamento e o nível de interesse dos participantes, na sua maioria composta por formandos do terceiro ano e com excelente desempenho escolar. 

A proposta deste texto é demonstrar como se procedeu na orientação dos alunos para a construção das pranchas, assim como discutir alguns dos resultados deste projeto, destacando o acesso de jovens estudantes ao mundo da arte e às potências da imagem. Sem querer imitar Warburg, mas utilizar ferramentas inspiradas na sua obra e trajetória, buscou-se ampliar o repertório e a sensibilidade em relação às produções artísticas e desenvolver a capacidade de pensar pelo visual. Os resultados dos trabalhos foram divididos em cinco blocos, sendo que este texto traz uma análise de dois deles, denominado “Sobrevivências da antiguidade clássica” e “A história desmontada”, tratando da ideia de Nachleben e seus desdobramentos. As pranchas não contempladas aqui abordam questões de Pathosformel, imagem dialética e o simbólico primitivo, a serem abordadas em outros artigos. 

 

Sobrevivências da antiguidade clássica

A tese de Warburg sobre Botticelli, de 1893, assim como seus textos posteriores sobre Durer, o Palácio Schifanoia ou Lutero, tratam da transmissão da antiguidade pagã à cultura e sociedade do renascimento pelas imagens, como o movimento das roupas e as emoções cristalizadas em gestos. Iniciaremos analisando duas pranchas do projeto que guardam relação com imagens da antiguidade pagã, sobretudo à ninfa, personagem imagética, mas também teórica de Warburg, capaz de demonstrar seus principais conceitos e a relação do homem com as imagens (Campos, 2020).

Tábata Gribler, de início, selecionou obras que continham ritmos corporais: o balanço de Fragonard, o gesto impetuoso no qual Reynolds pintou João Batista pregando no deserto, a contorção de bruxas possuídas de Salvator Rosa e o cavalo assustado com os relâmpagos de Delacroix. Podemos relacionar com a prancha 32 do Atlas Mnemosyne (2), onde movimentos diversos se cristalizam, como na morte de Orfeu, nos conflitos entre carnaval e quaresma e nas danças mouriscas[3]. Nelas, Warburg dedicou-se à semelhança entre corpos que lutam e corpos que dançam. Em outras pranchas, caça, dança e sequestro se entrelaçam pela semelhança dos gestos que contêm o mesmo pathos.

 

Figura 1: Montagem com trechos das pranchas de Tábata Gribler (1) e Leticia Sezario (5); prancha n. 32 do Atlas Mnemosyne (2); relevo antigo de mênade (3); foto de Florence Welch (4); obra A noite, de Ferdinand Hodler (1889-90) (6) e foto de Timothy H. O’Sullivan (1863) (7)

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Fonte: Arquivo pessoal[4].

Tábata foi instigada a olhar para as ninfas, presentes em pranchas como a 39 e a 46, e interessou-se pelos corpos femininos em movimentos rítmicos, pensando na feminilidade expressada em reuniões e agrupamentos para dançar. A relação com a prancha 32 se dá pela inegável força passional que possuem os seus dançarinos, força que se revela no ritmo, mas também no ato violento: segurar as mãos, controlar o movimento, firmar o corpo e equilibrar-se. Ela escreveu:

A dança representada em minhas escolhas, é muito mais que a união sequencial de passos rítmicos. Ali a fluidez nos leva a imaginar a ancestralidade dos movimentos, das crenças daquelas mulheres de vestes fluidas, a circularidade organizada em que dançam, a união em forma de sororidade latente. Mais que isso, o papel de libertação da arte fica claro: o frenesi estampado em todas as telas, causado por aquelas emoções transpostas em passos.[5]

 

Tábata organizou sua prancha (1) com diversas e atemporais ninfas, enfatizando a ritualística contida nas danças. Em junção com a natureza, os corpos balançam e celebram a vida, sacralizando o movimento. A prancha não se limita à experiência feminina: também encontramos os aldeões de Rubens e a dança de Matisse. Percebendo a ninfa como um “composto indiscernível de originalidade e repetição, forma e matéria” (Agamben, 2012, p. 29), essa figura que para Warburg seria uma deusa pagã no exílio é transmitida a outras culturas e sobrevive na atualidade. Tábata destacou três delas: uma cena de Anne with an E[6], onde adolescentes dançam ao redor de uma fogueira em celebração à caminhada para a vida adulta; a cena final do filme Akelarre (Silenciadas, no Brasil), de Pablo Aguero (2020), onde um grupo de mulheres bascas acusadas de bruxaria se oferecem para realizar um Sabbath para os inquisidores, visando adiar sua execução; por fim, a cantora Florence Welch, que performa uma ninfa contemporânea com coreografias e vestimentas. No clipe da canção Big God[7], por exemplo, ela e outras mulheres vestem tecidos leves e dançam de forma marcante, com gestos violentos, em muitos momentos como que numa possessão demoníaca. Enquanto passa as mãos pelo corpo e pelos cabelos, Florence remete à mênade, atualizando uma dança entre o sentimento de loucura e selvageria da clássica ninfa báquica. A foto de um show (4) é posta em diálogo com um relevo antigo da mênade (3), onde o vestido e o corpo contorcido remetem ao mesmo sentimento extático.

A prancha de Letícia Sezario (5) foi organizada com imagens de camas e de pessoas deitadas. A partir da persistência desse móvel, ela foi instigada a pesquisar os murais de Pompeia e Herculano, observando as manifestações de cenas eróticas em camas, assim como as aparições de Vênus, nascida das espumas do mar e levada à superfície através de uma grande concha – uma versão horizontalizada. Ela pensou a cama como “muito ligada à vaidade, por muitas vezes ser um local de admiração ao corpo, e um local ligado ao amor, pelas relações sexuais e de afeto entre os casais”, como nas obras de Toulouse-Lautrec e Courbet. Ficou evidente para ela a carga emocional muito peculiar neste móvel tão cotidiano e necessário: um local de sentimentos múltiplos, onde há dor e a morte, como no suicida, morto ao leito, pintado por Manet, e sonhos e pesadelos, como na obra de Fuseli, onde um monstro põe-se em pé em cima da mulher que dorme. Em Hodler (6), corpos nus dormem e o único personagem acordado está assustado por uma figura negra.

 O prazer, as dores corporais da doença e da velhice e os corpos violentados têm em comum uma excessiva passionalidade. Mesclado com horror, os corpos subjugados não podem ser necessariamente tidos como opostos ao erotismo, como na prancha 49 do Atlas, onde Warburg põe lado a lado imagens de bacanais e combates entre deuses marinhos. Guerra, conflito e expressão intensa de sexualidade. Esse deitar pode ser associado ao pós-orgiástico, ao excesso de estímulo (passional, sexual, derivado da dor patológica), inclusive à energia dos combatentes em campos de batalha, onde após os conflitos, ficam expostos corpos estraçalhados, moribundos. O fotógrafo Timothy O’Sullivan captou corpos de soldados mortos em Gettysburg (7), na Guerra de Secessão, ainda guardando o calor da batalha. As fotos de guerra, incomuns à época, chocaram o público americano assim como a obra de Hodler, considerada uma ofensa à “boa moral” – causando tanto escândalo que o quadro foi retirado antes mesmo que sua exposição inaugurasse.

Poderíamos incluir nesta prancha a cama de Van Gogh em Arles, o leito de hospital onde Frida Kahlo sofreu aborto, a mulher solitária que olha fora da janela em Edward Hopper, a cama de Tracey Emin, exposta junto de bitucas de cigarro, lençóis amassados e roupas íntimas numa obra biográfica, após ter passado vários dias deitada com depressão e tendências suicidas. O mobiliário não esteve longe dos olhos de Warburg, que na prancha 79 demonstrou a crescente escalada de poder da Igreja Católica através do crescente refinamento do trono papal.

 

A história desmontada

A prancha 79 também mostra que uma das preocupações de Warburg estava em seu próprio tempo. Nela aparecem os sucessivos casos de violência antissemita e a situação judaica durante a ascensão do nazismo, que explorou o caráter autoritário e militarizado da religião. Imagens com o milagre da transubstanciação, vinculados à suposta profanação judaica de hóstias sagradas, rituais japoneses, culto ao corpo no nazismo e apelo às armas no entreguerras constituem uma história da arte sem palavras.

Num primeiro momento, a prancha não passa de um enigma, de um autêntico quebra-cabeça. Ela é ao mesmo tempo uma única imagem e, no entanto, um mosaico de imagens, um grande quadro-negro que cerca um conjunto de manchas luminosas. Imagens que cintilam como vaga-lumes na noite. O fundo da tela é preto mas não totalmente. É igual a uma abóbada celeste estrelada. Semelhante a um diário noturno, aberto, com suas letras, sílabas, margens, curvas, pontos e silêncios. Misterioso caderno de constelações que os homens, desde a noite dos tempos, procuram desvendar e decifrar. (...) Com poucas palavras: sobrevivências, supervivências, memórias que, de repente, interrogam nosso tempo presente (Samain, 2011, p. 39).

 

O corpo da mulher foi uma presença constante nas montagens dos estudantes. Sua aparição enquanto Vênus, suas simbologias e expressões de feminilidade, a força da mulher, a opressão e a luta feminista – mesmo quando esse nome não existia –, foram aspectos que suscitaram interesse nessa geração de garotas que já não deseja um mundo dominado por homens. Olhando para “deslocamentos e percursos não somente na temporalidade e na espacialidade das imagens, mas, ainda, nos tempos e nos espaços” (ibidem, p. 40), elas foram instigadas a encontrar imagens que circularam diante dos olhos de espectadores e artistas que trataram da temática feminina.

Letícia Dell Andrea observou a mulher como um objeto de desejo, organizando imagens de mulheres retratadas em seus corpos nus e carnudos, propícios para a cópula e a reprodução. À primeira vista, sexualizadas e símbolos de uma feminilidade que bem serve ao patriarcado. Porém, em sua prancha, há rastros de subversão. Baseada nas obras do coletivo Guerrilla Girls, Letícia escreveu:

Ao pensar na figura feminina na arte, observa-se que ela normalmente é representada apenas pela beleza e sensualidade, e como objeto sexual e reprodutivo, dando à figura da mulher uma posição de incapacidade e inferioridade. Este é o reflexo de uma sociedade patriarcal e androcêntrica, que nega a presença da mulher no meio artístico, porém, usa sua imagem como um objeto de desejo.

 

Figura 2: Montagem com trechos das pranchas de Letícia Dell Andrea (8), Kammily Oliveira (9) e Kamilly Ruseler (13); foto de mural de El Mac (2010-11) (10); obra Cante Hondo, de Julio R. de Torres (1929) (11) e obra A crucificação branca, de Marc Chagall (1938) (12)

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Fonte: Arquivo pessoal[8].

A Vênus de Milo, referencial clássico da beleza feminina, sobrevive em Ticiano, Boucher, Velásquez e Goya, vistos no centro da prancha (8). Com nádegas à mostra e/ou olhando fixamente o seu espectador, essas Vênus recusam a sua objetificação e mostram que também podem sentir prazer. Por isso, não há pudor nem vergonha de si. Até mesmo Susana, que segundo o mito bíblico, é espiada em seu banho, olha para o espectador como quem se deleita nesse transgressor voyeurismo. Destaca-se a Olímpia de Manet, que choca com seu corpo humanizado, e a Danae de Gentileschi, deitada sobre um pano vermelho, sendo possuída por Zeus, metamorfoseado em gotas douradas. A Vênus de Willendorf ressurge na corpulenta Sue Tilley, pintada por Lucian Freud, cuja gordura contesta os padrões de beleza femininos, sendo a própria Vênus original vista aqui mais como rainha progenitora que meio de reprodução. Isso mostra que “o olhar sobre as formas e sentidos também se transforma ao longo do tempo e do espaço, alterando a relação do sujeito com as formas” (Waizbort, 2015, p. 12). 

Na parte superior da prancha (8), Letícia colocou obras em que se agrupam mulheres em diversos afazeres e ofícios. Destaca-se o harém marroquino pintado por Ingres e as prostitutas de Toulouse-Lautrec. A serviço do sexo e do divertimento masculinos, esses espaços tornam-se locais de disputas e confrontos, mas também de vínculos e sororidade. A comunhão feminina ao redor de Vênus, que ao ser trazida à superfície pelas ondas, é atendida pelas ninfas, é atualizada nas damas de companhia nas pinturas de Rossetti e Federico Andreotti. A prancha também contém mulheres reunidas dançando e ensinando práticas domésticas a crianças mais novas. Esse compartilhamento das experiências e dos ofícios é marca das relações intergeracionais nas mais diversas sociedades, e coletivos feministas atuais têm reavivado a potência dos grupos de mulheres, que desde a luta pela desobjetificação de seus corpos ao sufrágio, melhores condições de vida, democracia e justiça social, ganham força no apoio mútuo e na união.

De forma crítica, mas poética, Kammily Oliveira perseguiu imagens com flores, encontrando-as como símbolo de feminilidade (9), ora pintadas por impressionistas em tranquilos jardins, ora simbolizando a pureza da Virgem em obras renascentistas, ora aparecendo na cultura oriental. Ainda utilizadas como forma de presentear mulheres, as flores mostram uma união da humanidade pela diversidade de culturas, visto que são referenciadas em diversas culturas, relacionadas aos ritos e religiões, e adquirem significados diversos no tempo e no espaço, do sagrado ao profano. Ela percebeu:

uma ligação entre a figura das mulheres e as flores, que foram sempre relacionadas uma à outra. Cada flor possui um significado diferente e profundo, não são apenas uma decoração bonita da natureza, porém muitos falham em perceber que sua real beleza, assim como a das mulheres, que por muito tempo foram vistas somente pela aparência e não por suas singularidades.

 

Neste sentido, Kammily refletiu sobre a condição da mulher, cujo envelhecimento, enrugamento e embranquecimento dos cabelos “não são permitidos”, em comparação com as flores, muito apreciadas apenas durante os dias em que mantêm uma aparência saudável. Na obra do artista estadunidense El Mac (10), conhecido pelos seus murais que exploram a beleza feminina e honra pessoas ordinárias, pouco vistas e marginalizadas, vemos uma mulher idosa, da região do Campeche, no México, que segura flores em um vaso improvisado com uma garrafa plástica de coca-cola, símbolo de um capitalismo que contribui para a ditadura da aparência feminina.

Outra prancha que guarda preocupações sociais e de gênero foi elaborada por Kamilly Ruseler, que teve como alvo a persistência de um espírito combativo na trajetória histórica das mulheres, mesmo diante das tragédias. Ela escreveu, destacando:

a luta feminina em meio a injustiças, guerras, preconceitos e todos os eventos que ferem a humanidade, seja de modo físico ou psicológico. A reação da mulher perante esses atos pode ser de calma e melancolia, porém, destacam-se as atividades revolucionárias, nas quais a mulher reúne forças para mudar a situação trágica na qual ela se insere.

 

Sua imagem inicial foi a obra Cante Jondo (11), de Julio Romero de Torres, que aborda um ciclo de tragédias femininas ao redor do corpo nu de uma musa flamenca, uma homenagem ao estilo musical homônimo da terra do pintor, a Andaluzia. A descrição no site do museu onde a obra se encontra (Museu Julio Romero de Torres, s/d) aborda aspectos interessantes. Diz que a composição contém notas da poesia popular andaluza, “fruto da passagem dos séculos e das diferentes civilizações que a forjaram”. Afirma que os sentimentos e paixões do homem giram em torno da figura central, uma mulher, que é símbolo da perdição: amor, ciúme e morte. Trata-se de uma obra multicultural e temporalmente heterogênea, que conjuga tempos diferentes e modos de viver e se expressar de povos que passaram pela Andaluzia: talheres de Córdoba, querubins barrocos, cantos árabes e mediterrânicos. Da paixão, conquista e morte, a obra sintetiza dramas vividos por mulheres em um mundo hostil e marcado por paixões excessivas. A obra Marc Chagall, A crucificação branca (12), tem uma semelhança compositiva. Ela aborda a história dos judeus, povo de quem fez parte, e, a partir da paixão de Cristo, que figura ao centro, o drama judaico em torno da culpabilização pela morte do Messias, desde a expulsão de Jerusalém ao Holocausto. Fugas, prisões, incêndios de casas e sinagogas, exílio, maculação de símbolos sagrados: a história judaica é marcada por uma trajetória de infortúnios. 

A prancha de Kamilly também congrega o espírito revolucionário operado por mulheres, uma sobrevivência do passado, mas também um fenômeno trans-histórico. São vistas mulheres da história recente, como Frida Kahlo, Rosa Parks, Anne Frank e Malala Yousafzai, mas também da mitologia e da literatura. Andrômeda, oferecida a um monstro para aplacar a fúria de Poseidon; Pandora, criada para atrair castigo aos homens; Ofélia, enlouquecida diante do noivo obstinado com vingança; Lady de Shalott, amaldiçoada em uma torre e morta pela paixão e desobediência. Corpos femininos maculados pelas intempéries da vida, amaldiçoados pela beleza, pela insubmissão, pelo desespero, pelo moralismo e pela religião, como nas imagens que opõe a Olímpia de Manet a uma mulher muçulmana que posa de burca ao lado de seu marido, de sunga, em uma praia. Destaca-se o frame da série The handmaid’s tale (O conto da aia, no Brasil)[9], onde uma jovem serva, cuja boca é costurada, posta ao lado da vestal romana, sacerdotisa de Héstia, de Arnold Bocklin, ambas consagradas para um ofício e silenciadas em seus intentos e desejos.

  Essas imagens sintomáticas não agrupam-se numa visão evolutiva, linear e teleológica. Estamos diante do tempo, e cada imagem remete à outra: a trajetória feminina é colocada como um caminho trilhado até a conquista dos direitos, mas o contemporâneo tem sintomas do passado, que difratam e desmontam a História (Didi-Huberman, 2013a). Por isso, O conto da aia, que se apropria de elementos do passado, como a opressão religiosa, atualiza-os em um futuro distópico no qual a tecnologia oferece aparatos de controle dos corpos, aliada ao conservadorismo moral. Cada vez mais atual, a série demonstra o nó de anacronismos e a impureza temporal no qual estamos sempre expostos.

 

Considerações finais

Didi-Huberman descreve como a ideia do Atlas revelou-se a Warburg não somente como um “resumo em imagens,” mas um “pensamento por imagens.” (2013b, p. 383). Executar esse projeto e retomá-lo para analisar o que foi produzido reforça a ideia de que tratou-se de uma bela experiência, que proporcionou aos participantes o conhecimento do mundo das imagens, a identificação e a reflexão sobre seus fantasmas, suas sobrevivências e (re)aparições na história e na cultura visual, utilizando o exercício da montagem. É evidente que ele poderia ter sido muito diferente se executado por outro professor, em outro contexto, com outros alunos, pois a construção do conhecimento e a busca de referências é um caminho bastante próprio.

Fantasmas não cessam de aparecer. Não seguem seu caminho, ficam a nos assombrar enquanto suas causas não se resolvem. Melhor que fiquem, afinal de contas, já não nos interessa uma história da arte onde as imagens são guardadas nas gavetas, catalogadas, encerradas, enquanto buscamos a próxima imagem e sua finalização. Esse projeto mostrou que, além de potente, a imagem pode ser enriquecedora e inclusiva, atingindo não apenas os eruditos, mas jovens estudantes em busca de conhecimento.

 

 

Referências bibliográficas

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SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. Revista Poiésis, n. 17, p. 29-51, 2011.

WAIZBORT, Leopoldo. Apresentação. In: WARBURG, Aby. História de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 

Recebido em 01/10/2023.

Aceito em 15/11/2023.



[1] Doutorando em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de História no Instituto Federal Catarinense (IFC). Brasil. E-mail: paulotorres_1989@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0003-0190-4864

[2] Projeto apoiado pelo edital de Ensino 12-2019 do campus Ibirama do Instituto Federal Catarinense.

[3] Dança de mouros, ou de personagens vestidas à moda dos mouros, praticada na Antiguidade.

[4] Imagens disponíveis em: <https://www.facebook.com/Hist%C3%B3ria-da-Arte-como-uma-hist%C3%B3ria-de-fantasmas-para-adultos-103725198182581> (1, 5); <https://www.frieze.com/article/brian-dillon-disquieting-life-and-times-aby-warburg> (2); <https://educalingo.com/pt/dic-es/menade>(3); <https://www.pinterest.co.uk/ode79/florence-welch/> (4); <https://www.frieze.com/article/brian-dillon-disquieting-life-and-times-aby-warburg> (5); <https://en.wikipedia.org/wiki/Ferdinand_Hodler> (6) e  <https://en.wikipedia.org/wiki/Timothy_H._O%27Sullivan> (7). Acesso em 30 jun. 2022.

[5] Esse e os próximos trechos no decorrer do texto foram escritos pelos próprios estudantes para a página do projeto no Facebook (2020), cuja referência encontra-se no fim do texto.

[6] Série baseada no livro Anne de Green Gables (1908), de Lucy Montgomery.

[7] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_kIrRooQwuk> Acesso em: 26 mar. 2022.

[8] Imagens disponíveis em:<https://www.facebook.com/Hist%C3%B3ria-da-Arte-como-uma-hist%C3%B3ria-de-fantasmas-para-adultos-103725198182581> (8, 9 e 13); <https://artsandculture.google.com/asset/11-campeches-mac/AgHY-yM1PrX2rg?hl=pt-BR> (10);

<https://museojulioromero.cordoba.es/sala/sala-4-el-origen-de-lo-hondo/cante-hondo> (11) e <https://offlattes.com/archives/467> (12). Acesso em: 28 jun. 2022.

[9] Na série, baseada no livro homônimo de Margaret Atwood (1985), mulheres são feitas de escravas sexuais, visando a procriação em um mundo distópico e em crise de natalidade.