A pathosformel da agressão: do mitra tauróctono às imagens de violência racial contemporânea

The pathosformel of aggression: from mithra’s tauroctony to images of contemporary racial violence

                                                                                               Luana M. Wedekin[1]

 

 


Resumo

Uma pesquisa sobre as fontes iconográficas do Atlas Mnemosyne que pretende compreender o olhar de historiador da arte de Aby Warburg leva ao mitreu da Basílica de San Clemente al Laterano em Roma. No local encontram-se relevos com a imagem do mitra tauróctono, identificada na Prancha 8 do Atlas como a pathosformel da agressão. Com Fritz Saxl associamos essa imagem com a fórmula do joelho dobrado, elencando suas transfigurações até a contemporaneidade, em cenas de violência racial, mas também, paradoxalmente, nos gestos de protestos antirracistas. O fenômeno pode ser explicado através do conceito warburguiano de pathosformel, especialmente no seu aspecto de inversão dinâmica, polarização e despolarização da imagem.

Palavras-chave: Pathosformel da agressão; Mitra tauróctono; Basílica de San Clemente al Laterano; Imagens de violência racial.

Abstract

A survey of the iconographic sources of Aby Warburg's Atlas Mnemosyne leads to the Mithraeum of the Basilica of San Clemente al Laterano in Rome. At the Basilica, we see reliefs with the image of Mithras sacrificing a bull, identified as the pathosformel of aggression in the Panel 8 of the Atlas. With Fritz Saxl, we associate this image with the formula of the bent knee, presenting its transfigurations until contemporary times, in scenes of racial violence, but also, paradoxically, in the gestures of anti-racist protests. The phenomenon can be explained through the Warburguian concept of pathosformel, especially in its aspect of dynamic inversion, polarization and depolarization of the image.

Keywords: Pathosformel of aggression; Mithra’s tauroctony; San Clemente al Laterano; Images of racial violence.


 

 

 

 

Início do percurso: o olhar de Warburg

Este artigo é fruto de uma pesquisa que tem sido realizada desde 2017 em busca das fontes iconográficas de Aby Warburg (1866-1929), muito especialmente aquelas do Atlas Mnemosyne (2012), obra desenvolvida pelo historiador alemão e seus colaboradores entre 1924 e 1929[2]. Dentre os aspectos que mais chamam a atenção às centenas de pesquisadores que se debruçam sobre essa obra fundamental está a potencialidade heurística de suas pranchas, com suas montagens de imagens em permanente interrogação e abertura. No Atlas, as imagens estão quase sempre retiradas de seus contextos, e Warburg e equipe realizaram uma “remontagem problematizada dos materiais acumulados durante trinta anos de investigações” (Didi-Huberman, 2013a, p. 227). Ainda em andamento, minha pesquisa busca um contato direto com algumas das obras reproduzidas no Atlas, contemplando-as em seu ambiente original, com o intuito de me aproximar e compreender o olhar de Warburg como historiador de arte.

No início da pesquisa, num dos meus primeiros destinos, ao visitar a igreja de Santa Maria Novella, em Florença, questionei-me: como Warburg viu a ninfa canéfora de Domenico Ghirlandaio (1449-1494), a 10 metros de altura, em meio a centenas de figuras do complexo da Capela Tornabuoni? Uma pista fundamental estava nos escritos do próprio pesquisador alemão, em Ninfa fiorentina: Fragmentos de um projeto sobre Ninfas (Warburg, 2015), datado originalmente de 1901. O projeto – inacabado – consistia inicialmente numa troca de cartas fictícia entre Warburg e seu amigo historiador da arte e linguista holandês Andre Jolles (1427-1497). Este confessava estar enamorado da ninfa no afresco de Ghirlandaio, ao que Warburg respondia, dentre esclarecimentos acerca da identidade da “donzela” no contexto do patrocínio do ciclo dos afrescos pelo mercador e banqueiro florentino Giovanni Tornabuoni (1874-1946). Recortamos aqui um trecho elucidativo:

Se te encanta segui-la no platônico e amoroso enlevo como uma ideia alada através de todas as esferas, a mim ela obriga-me a baixar o olhar filológico para o chão, de que se alçou, e a perguntar com assombro: terá, então, realmente esta rara e graciosa planta raízes no sóbrio solo florentino? (Warburg, 2015, p. 10).

 

Warburg aponta para o “eixo central” de suas pesquisas: “o tema da influência da antiguidade” (2018, p. 48). Mas o que ele quer dizer com olhar filológico? A vinculação de Warburg com a filologia o aproximaria de estudiosos alemães e italianos, e é hoje uma forte vertente de estudos, especialmente na Itália.[3]

Adi Efal, pesquisadora israelense radicada na Alemanha, ressalta, no fragmento do projeto das ninfas, a preocupação de Warburg em “[...] ecoar a aspiração filológica de preservar a vida da antiguidade ao rastrear as trilhas dos temas, motivos e formas de sua sobrevivência e transfiguração através das eras e culturas” (2016, p. 79-80).

Warburg rastreia a ninfa canéfora de Ghirlandaio e afirma que “ela precipita ao estilo da Vitória de um arco de triunfo romano” (2018, p. 220). Na Vitória está o “passo ligeiro” da ninfa, assim como seus acessórios em movimento, os panos das vestes inflados pelo vento. O historiador alemão apresenta visualmente esses processos de “sobrevivência e transfiguração” da ninfa e ela caminha no Atlas em diversas pranchas: 6, 45, 46, 47, 70, 71.[4] Ele revela nessas montagens de imagens “o conjunto de suas transformações possíveis” (Didi-Huberman, 2013b, p. 302), inclusive seu aspecto de polaridade, uma vez que “Warburg lança a Ninfa na imensa rede das tensões, antíteses, ambivalências e ‘inversões dinâmicas’” (Ibidem.). Voltaremos a esse aspecto mais adiante.

O foco do artigo vem da prancha 8 do Atlas Mnemosyne. Foi por meio dela que cheguei à Basílica de San Clemente al Laterano, em Roma. Este monumento fica muito próximo ao Coliseu e ao Arco de Constantino (presente na Prancha 7), com suas imagens que evocam a ascensão e o pathos do vencedor. Mas San Clemente oferta material diverso. Nela podemos encontrar numerosas camadas de tempo: adentramos no recinto e, à direita, podemos ver os afrescos de Masolino (1383-1447) sobre o martírio de Santa Catarina, em capela datada de 1428; a nave central tem em sua abside um mosaico de estilo bizantino com o triunfo da cruz e arabescos em fundo dourado, que datam de cerca de 1200. Se, então optamos por visitar o setor arqueológico da igreja, vislumbramos uma estrutura paleo-cristã. Descendo ainda mais, em corredores labirínticos, escuros e úmidos, nos deparamos com recintos que remontam ao século II, com relevos com temas de culto mitraico, e um mitreu. Altares de culto mitraico aparecem na Prancha 8 do Atlas Mnemosyne. Se em Santa Maria Novella Warburg olhara para cima para a ninfa de Ghirlandaio, desta vez, mirara para baixo. Encontrou ali o paradoxo do deus solar na profundeza da terra.

 

 

Mitra tauróctono

A Prancha 8 é uma prancha enigmática e gira em torno dos temas dos deuses solares Malakbel e Hélio, da história de Faetonte e do deus Mitra[5]. Para o escopo deste artigo, o foco inicial é o Mitreu de San Clemente (Figura 1).

Figura 1: Mitreu subterrâneo da Basílica de San Clemente, início do séc. III. Roma

Uma imagem contendo no interior, quarto, edifício, velho

Descrição gerada automaticamente

Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Mithraeum_San_Clemente_Rom.JPG

Mitreu é o espaço de culto do Deus Mitra. Sua estrutura, sempre subterrânea, formada por um corredor central e um podium elevado de cada lado, reproduz a caverna que teria sido o contexto original do culto, onde Mitra matou o touro. Esse gesto é reproduzido em relevos, sendo um dos vestígios fundamentais para identificação desses cultos. Templos dedicados ao culto de Mitra aparecem subitamente na arqueologia no último quarto do século I AD e desaparecem no século IV. Foram encontrados mais de 420 sítios desse tipo, geralmente localizados perto de fontes d’água, uma vez que a água fresca parece ter sido requerida para seus rituais. À época de Warburg, o arqueólogo e filólogo belga Franz Cumont (1868-1947) advogava origem oriental (especificamente o zoroastrismo persa) dos cultos mitraicos. Mais tarde, porém, essa teoria foi problematizada em favor de uma provável origem romana e não há consenso absoluto sobre a hipótese de o Mitra romano derivar do Mitra persa.[6]

Neste artigo, o interesse repousa nas imagens do Mitra tauróctono (Figura 2).

Figura 2: Mitra tauróctono, 188 A.D. San Clemente al Laterano, Roma

Estátua de pedra

Descrição gerada automaticamente

Fonte: https://www.roger-pearse.com/mithras/display.php?page=cimrm339

Caracterizam sua iconografia: o deus Mitra vestido com costume anatólio e usando barrote frígio, apoiando um joelho sobre o touro, tomando-o pela narina com a mão esquerda enquanto golpeia o animal com um punhal com a mão direita. Ao fazê-lo, olha por cima do ombro na direção do sol. Um cão e uma serpente dirigem-se à ferida e ao sangue do touro, enquanto um escorpião agarra seus genitais. Acompanham a imagem de Mitra os portadores das tochas, vestidos de forma semelhante à divindade, sendo que Cautes aponta a tocha para cima, enquanto Cautopates aponta-a para baixo.

A prancha 8 do Atlas Mnemosyne é significativamente dedicada às imagens relativas ao deus Mitra[7], mas é Fritz Saxl (1890-1948) quem esclarece uma parte do interesse nos relevos característicos do culto mitraico, em três capítulos de sua obra A vida das imagens (1989).[8] Ele observa a persistência e transformação semântica do gesto no qual Mitra submete o touro especialmente através da fórmula do joelho dobrado. Esse é o foco do artigo, e repassaremos aqui elementos fundamentais do percurso visual sugerido por Saxl.

Tomamos essa pathosformel do joelho dobrado do mitreu de San Clemente: a divindade submete o touro. Com Saxl podemos acompanhar sua origem e transformações, que remontam à história da humanidade, ao momento de domesticação dos animais: “uma das maiores conquistas da civilização, e a luta contra o touro, a vitória sobre o animal poderoso, se converteu na imagem do poder heroico” (1989, p. 14). A imagem da figura humana domando o touro aparece na Mesopotâmia, com o herói em pé tomando o animal pela cabeça ou pelo rabo. Em Micenas, a imagem se transforma, o homem submete o touro pela cabeça e tem os dois joelhos flexionados (Figura 3).

Figura 3: Homem subjugando o touro. Gema gravada de Micenas. Atenas, Museu Nacional

Desenho de rosto de pessoa visto de perto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: Saxl, 1989.

Nas esculturas do Parthenon a fórmula aparece bem representada, como na cena de Lápita e centauro (Figura 4). Saxl menciona ainda outros exemplos onde o gesto aparece, com Belerofonte domando Pégaso, e um sarcófago no qual uma Amazona é assim subjugada.

 

Figura 4: Lápita e centauro, métopa do Parthenon, séc. V a.C. British Museum, Londres

Escultura de pedra

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/image/813692003

Ainda na antiguidade pagã há inúmeras cenas de subjugação de animais monstruosos, como nos trabalhos de Hércules. A fórmula do joelho dobrado aparece, neste exemplo, na luta do herói com a Hidra de Lerna (Figura 5).

Figura 5: Sino com relevo com Hércules lutando contra a Hidra de Lerna, 50 a.C., Roma. Museu Thorvaldsen, Copenhagen

Uma imagem contendo velho, pedra, gato, foto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: https://www.thorvaldsensmuseum.dk/en/collections/work/H1098/zoom

O gesto é absorvido no contexto cristão através da figura de Sansão (o Hércules bíblico) que domina o leão, como vemos aqui na gravura de Albrecht Dürer (1471-1528)[9] (Figura 6).

Figura 6: Albrecht Dürer, Sansão matando o leão, c. 1498. Xilogravura, 37,4X27,6 cm. British Museum, London

Desenho de um cachorro

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Albrecht_D%C3%BCrer_-_Samson_Killing_the_Lion_-_WGA7125.jpg

 Saxl afirma não conhecer “nenhum outro caso no qual podemos observar com tal precisão o nascimento de uma imagem” (1989, p. 14). Após inúmeros exemplos da transfiguração do gesto do joelho dobrado elencados por Saxl, sugerimos outras imagens em saltos que chegam ao contemporâneo.

 

Genuflexões contemporâneas

Em contexto diverso do focalizado por Saxl (1989), encontramos o gesto da genuflexão num exemplar de escultura paleo-babilônica (Figura 7).

Figura 7: Estatueta de um homem ajoelhado. Dedicado por um habitante de Larsa ao deus Amurru pela vida de Hammurabi, c. 1750 a.C. Bronze e ouro, 20 cm de altura, Musée du Louvre, Paris

https://lh7-us.googleusercontent.com/viAWgBpgnpO-aGnsdTpw7e8_aACWLDfSpA077y-RzUxtfBvYl9hk2JFPbScbL_wdOQbPgeDp412z9ZgTiCaUb3mCVMdrvVJ-94Pbavj57FLg6M5XWHPz9Ut-y_6ADKlg1K2ULMRg4CJ4P-7_mzdJrQ

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Worshipper_Larsa_Louvre_AO15704.jpg

Nessa estatueta votiva, o “adorador de Larsa”, como é também chamado, está em reconhecida postura de oração, levando os dedos à boca.[10] A genuflexão do adorador aparece em outras estatuetas e relevos do período, indicando sempre submissão a uma divindade. É provável que um leitor contemporâneo, ao contemplar a estatueta de Hammurabi em postura votiva não reconheça o rei babilônico do século XVIII a.C., mas considere a postura bastante familiar.

Em maio de 2020, meios de comunicação veicularam repetidamente as cenas nas quais um policial branco submeteu um homem negro com o joelho dobrado em seu pescoço até a asfixia. O policial manteve o joelho sobre o pescoço de George Floyd por 8 minutos, levando-o à morte. Esse crime violento, registrado por passantes que testemunharam a abordagem policial provocou uma série de protestos contra a violência racial em cidades dos Estados Unidos. Nessas demonstrações, paradoxalmente, os manifestantes contra o racismo e muitos policiais repetiam o gesto votivo antigo, numa genuflexão contemporânea.[11] Infelizmente, em outubro de 2020, os meios de comunicação brasileiros testemunharam imagens semelhantes em horror e brutalidade àquelas vistas na morte de Floyd nos Estados Unidos. Luiz Alberto Silveira de Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças do Supermercado Carrefour em Porto Alegre (Figura 8).

Figura 8: À esquerda: O policial Derek Chavin mata George Floyd por asfixia em 25/05/2020 em Minneapolis, nos EUA. À direita, acima: Policiais da cidade de Miami repetem o gesto usado por manifestantes antirracismo nos EUA. À direita, abaixo: Frame de vídeo do espancamento de Luiz Alberto Silveira de Freitas no Supermercado Carrefour em Porto Alegre, em 20/11/2020.

Homem sentado em aeroporto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/08/04/video-de-policiais-mostra-trechos-ineditos-de-abordagem-e-morte-de-george-floyd.ghtml https://noticias.uol.com.br/album/2020/06/01/protestos-eua-george-floyd.htm?foto=18 https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2020/11/20/morte-de-negro-em-supermercado-no-rs-veja-repercussao.ghtml

As cenas de violência foram repetidas à exaustão, e nelas reconhecemos a fórmula do joelho dobrado com a qual iniciamos nosso percurso imagético. Nas sucessivas reproduções das imagens do vídeo, muitas vezes a narração enfatizava o fato do homem ter sido imobilizado com o joelho.

Desejamos chamar a atenção para como a fórmula do joelho dobrado apareceu nas imagens aqui reproduzidas, especialmente pela dimensão paradoxal de seu sentido: de um lado, o gesto marca a ação de subjugar pela força (do culto mitraico à violência racial contemporânea); de outro, porém, a genuflexão indica devoção, submissão e protesto. Como o mesmo gesto pode carregar sentidos tão diferentes? O conceito para compreender esse fenômeno é o de pathosformel. Cunhado em 1905 por Warburg, revela uma noção de história da arte na qual as imagens se referem a “experiências de comoção humana” (Warburg, 2018, p. 228).

Warburg chegou ao conceito de pathosformeln por meio da investigação dos motivos antigos na arte do Renascimento. Gertrud Bing (originalmente em 1960) explica o ponto de inflexão que Warburg fornece à história da tradição ao constatar que “os artistas, seus clientes e consultores eruditos, ao escolher seus modelos, não estavam preocupados principalmente com o conteúdo das obras antigas, mas com sua linguagem mímica” (2014, s/p). A “mímica clássica” correspondia a “momentos de máxima emoção”, como luta, triunfo, rapto, desespero. Warburg identifica nessas figuras advindas da antiguidade “evidências de estados de espírito que se tornaram imagens” (Bing, 2014, s/p). O Atlas Mnemosyne é, nesse sentido, um “inventário dos movimentos da alma, inscritos nos movimentos do desejo e do corpo” (Didi-Huberman, 2013a, p. 159).

Warburg vai observar um outro aspecto fundamental das pathosformeln: sua polaridade. Didi-Huberman explica esse aspecto:

Não há fórmula patética sem polaridade e sem “tensão energética”, mas a plasticidade das formas e das forças, na época de sua sobrevivência, reside precisamente na capacidade de converter ou inverter as tensões veiculadas pelos dinamogramas: uma polaridade pode ser levada ao seu “grau máximo de tensão” ou se descobrir, em certas circunstâncias, “despolarizada”; seu valor “passivo” pode tornar-se “ativo” etc (Didi-Huberman, 2013b, p. 209).

 

O processo que Didi-Huberman chamou de “inversão dinâmica” (2013b, p. 307) é consistentemente demonstrado na imagem da ninfa. São muitas suas transfigurações entre polaridades:

Mortal e imortal, adormecida e dançante, possuída e possuidora, secreta e aberta, casta e provocante, violada e ninfômana, prestativa e fatal, protetora de heróis e raptora de homens, ser da meiguice e ser da obsessão, a Ninfa realmente cumpre a função estrutural de um operador de conversão entre valores antitéticos, que ela “polariza” e “despolariza” alternadamente, conforme a singularidade de cada encarnação (Didi-Huberman, 2013b, p. 302, grifo do autor).

 

Reproduzimos longamente a citação do historiador da arte francês pois ela nos ajuda a compreender que a transfiguração da fórmula do joelho dobrado (desde a origem da imagem) passa a encarnar contemporaneamente e simultaneamente (como a ninfa) “valores antitéticos”: a pathosformel da agressão e da submissão, da violência e da reverência.

 

Que aprendemos do olhar de Warburg? Algumas considerações

Começamos o percurso de imagens sugeridos neste artigo com uma pergunta sobre o olhar de Warburg para a ninfa de Ghirlandaio. O que podemos aprender com esse olhar? Retornemos pela pista do olhar filológico. Apresentamos, seguindo Saxl (1989), as transfigurações da fórmula do joelho dobrado. A legenda da Prancha 8 do Atlas Mnemosyne identifica o tema da fórmula patética da agressão.[12] Ao observar a persistência da imagem do joelho dobrado, chega-se à noção de pathosformel. Essa afirmação não parece redundante se considerarmos a premissa epistemológica que ela implica. Ao visitar inúmeros acervos de obras antigas, constatei que todas as fórmulas estão ali, e que Warburg destilou seu conceito a partir das imagens, como bem formulou Efal: “O olhar filológico (philologiscer blick), então, não é o olhar que produz uma fórmula de pathos, mas o olhar que reconhece uma fórmula de pathos numa dada obra” (Efal, 2016, p. 84). Essa constatação não é em absoluto imediata para um pesquisador sem acesso a acervos abundantes de obras clássicas[13].

Outra premissa epistemológica diz respeito ao uso das imagens no Atlas, que não é uma ilustração do pensamento de Warburg, mas, como têm afirmado diversos de seus estudiosos, mas muito especialmente Didi-Huberman, as pranchas que passaram a acompanhar suas conferências serviam como “exposições de imagens através das quais o argumento procurava a sua forma visual congruente” (2013a, p. 231).

Parte do efeito “enigmático” que causam as pranchas reside no fato de que o historiador alemão e sua equipe não apaziguaram as tensões e polaridades das imagens, não as uniformizaram em termos de sentido. Seus conteúdos paradoxais estão manifestos, em seus movimentos pendulares entre polos, em seus sintomáticos processos de polarização e despolarização. A Prancha 8 evidencia o paradoxo da ascensão e queda (Hélio e Faetonte), assim como a aparente incongruência de um deus solar cujo culto ocorre no subterrâneo. 

Outra premissa warburguiana é o interesse nos temas e as imagens de seu tempo, muitas delas veiculadas em meios de comunicação de massa, como aquelas que parecem nas Pranchas 78 e 79 do Atlas. A coleção obsessiva de notícias sobre a I Guerra Mundial levou Warburg a um colapso psíquico do qual, como é sabido, demorou 5 anos para se recuperar[14]. Didi-Huberman afirma que a biblioteca Warburg adquiriu “pelo menos mil e quinhentas obras de guerra” entre 1914 e 1918 e reuniram-se cerca de cinco mil fotografias sobre o tema (2013a, p. 192). O arquivo de guerra de Warburg “compreendia setenta e duas caixas com cerca de 90.000 fichas” (Didi-Huberman, 2013a, p. 194).

O percurso da fórmula do joelho dobrado apresentado por Saxl (1989) levanta questões pertinentes aos pesquisadores da imagem: como as imagens nascem? Quais seus significados? Por que perdem força e desaparecem? Por que retornam? Analisar “constelações” de imagens é a melhor forma de se aproximar da compreensão destes processos. Constatamos, portanto, sua persistência. A origem dessa imagem está na comoção humana. Por isso a imagem nasce, por isso ela retorna, atualizada, carregada de energia. Se antes, a imagem aparecia nos relevos em pedra, nas esculturas, hoje aparece na reprodução infinita do mundo digital. Como afirmou Didi-Huberman, em Warburg a imagem é “pensada como fantasma atuante” (2013a, p. 201).

A transfiguração do gesto da submissão do touro testemunha o esforço heroico da humanidade em apaziguar o temor gigantesco que sentia diante das forças naturais. O touro como símbolo das forças da natureza, os monstros das narrativas mitológicas como forças do desconhecido, talvez do inconsciente. Quando o gesto aparece na agressão do homem pelo homem, o equilíbrio é desigual e ele deixa de ser heroico. A lógica da compreensão das imagens através das pathosformeln não serve aqui à naturalização da violência. Ao contrário. Sua aparição nas circunstâncias atuais parece apontar que a agressão do tipo que vimos em atos de racismo indica sim a manifestação de forças profundas. Reveladas no grande manancial da “memória dos gestos”, grande tema do Atlas Mnemosyne de Warburg, as imagens de violência racial vêm altamente polarizadas e mobilizam seu polo oposto: a reverência às vítimas, protesto aparentemente imóvel e mudo, mas que carrega consigo as grandes forças energéticas que levam às grandes transformações culturais. A história da arte não é somente sua testemunha, mas sua ciência interpretadora.

 

Referências bibliográficas

BING, Gertrud. Aby M. Warburg. (Originalmente publicado em Rivista Storica Italiana, LXXII, p. 110-113, 1960). Engramma, n. 116, maggio 2014. Disponível em http://www.engramma.it/eOS/index.php?id_articolo=1559 Acesso em: 25/04/2021.

BINSWANGER, Ludwig. Aby Warburg: La guérison infinie. Paris: Payot & Rivages, 2011.

CHALUPA, Ales. The origins of the Roman cult of Mithras in the light of new evidence and interpretations: the current state of affairs. Religio, v. XXIV, n. 1, p. 65-96, 2016.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a gaia ciência inquieta. Lisboa: KKYM+ EAUM, 2013a.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013b.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Ninfa fluida. Essai sur le drapé-désir. Paris: Gallimard, 2015.

EFAL, Adi. Figural Philology: Panofsky and the Science of things. Lonon/NY: Bloomsbury, 2016.

GANGUI, A. De tauroctonías y estrellas: Mitra y la vida de una imagen. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 4, n.3, p.247-263, set. 2020. Disponível em: ˂https://www.publionline.iar. unicamp.br/index.php/mod/article/view/4563˃. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v4i3.4563.

SAXL, Fritz. La vida de las imágenes. Madrid: Alianza, 1989.

SEARS, Elisabeth. Panel 8: Introduction. Disponível em:  https://warburg.library.cornell.edu/image-group/panel-8-introduction?sequence=923 Acesso em 25/04/2021.

TONIN, Thays. A recepção italiana de Aby Warburg entre filologia e historiografia da arte. Entrevista à Monica Centanni (IUAV). Palíndromo, v. 11, n. 24, p. 162-179, maio 2019.

WARBURG, Aby. L’Atlas Mnémosyne. Paris: L’Ecarquillé, 2012.

WARBURG, Aby. Domenico Ghirlandaio. Lisboa: Ymago, 2015.

WARBURG, Aby. A presença do antigo. Campinas, Editora da UNICAMP, 2018.

WEDEKIN, Luana M. No caminhar da ninfa: processos de potencialização e domesticação da imagem em Warburg e Panofsky In: Anais [recurso eletrônico] do 27o Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, setembro de 2018, São Paulo, SP. São Paulo: ANPAP/UNESP, 2018. v.1. p.1931 – 1946.

WEDEKIN, Luana M. Dispersão e concentração no fazer história da arte: Aby Warburg no Palazzo Doria Pamphilj. In: RODRIGUES, M.A.A.; ROCHA, C.S. (org.) Anais do XXIX Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. Goiânia: ANPAP, 2020. p. 360-375.

 

Recebido em 27/09/2023.

Aceito em 09/11/2023.



[1] Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); M.A. History of Art (The Courtauld Institute of Art). Professora do Departamento de Design e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Brasil. E-mail: wedekinluana@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-2454-6134

[2] A pesquisa ampliou-se em 2019 com a participação da Prof. Dra. Sandra Makowiecky, do PPGAV/UDESC. Já foram investigados os seguintes monumentos: Santa Maria Novella (Florença), Palazzo Schifanoia (Ferrara), Villa Farnesina (Roma), Oratório de San Bernardino (Perugia), Templo Malatesta (Rimini), para mencionar os principais. O andamento da pesquisa foi prejudicado desde 2020 pela pandemia e redução da mobilidade entre países.

[3] Ver entrevista com a pesquisadora Monica Centanni (Tonin, 2019).

[4] Ver Didi-Huberman (2013b, p. 302; 2015); Wedekin (2018).

[5] Para uma análise do tema em Warburg num percurso diverso do que desenvolvemos aqui, ver Gangui (2020).

[6] Sobre essa controvérsia, ver Chalupa (2016).

[7] Das 30 imagens na prancha, 14 estão associadas ao culto mitraico. Ver: http://www.engramma.it/eOS/core/frontend/eos_atlas_index.php?id_tavola=1008

[8] Warburg estava especialmente interessado na “psicologia e fenomenologia da ascensão”, como expressou em carta a Fritz Saxl em 07/01/1929 quando estava na Itália. (Sears, sd.) Mas Saxl chama a atenção para a transformação do gesto, argumento que ele apresenta visualmente e é o que nos interessa aqui.

[9] Igualmente da tradição da gravura da Europa Setentrional, ver Israhel van Meckenem, Sansão matando o leão, c. 1475. Gravura, 135X103cm. British Museum, London. Fonte: https://www.britishmuseum.org/collection/image/51697001

[10] Nosso foco não é na posição das mãos, mas esse seria um gesto votivo sobre o qual encontramos menção (de advertência contra a idolatria) no Livro de Jó (31:27): “jamais meu coração deixou-se seduzir em segredo e minha mão não foi levada à boca para um beijo”.

[11] Esse gesto associado à luta antirracista aparecera em 2016 quando o jogador Colin Kaepernick se ajoelhou durante a reverência a bandeira dos Estados Unidos antes de um dos jogos da NFL (National Football League) como forma de protesto contra a injustiça racial nos EUA. Outros atletas repetiram a postura em esportes diversos, causando grande polêmica nacional.

[12] Cf.: http://www.engramma.it/eOS/core/frontend/eos_atlas_index.php?id_tavola=1008

[13] Refiro-me aqui especialmente a acervos de arte antiga referenciados no Atlas, como as coleções do Museu Vaticano, do Museu Capitolino, do Museu Archeologico Nazionale di Napoli. A esse respeito ver Wedekin (2020).

[14] Sobre o sofrimento psíquico de Warburg, ver Didi-Huberman (2013b), Binswanger (2011).