O Regime Escópico da Colonialidade: apontamentos teóricos para o estudo das imagens no campo historiográfico decolonial

The Scopic Regime of Coloniality: theoretical notes for the study of images in the decolonial historiographical field

                                                                                              

Isadora Muniz Vieira[1]

 


Resumo

No presente artigo apresento a categoria de regime escópico da colonialidade afim de ressaltar sua potencial contribuição para os estudos historiográficos que versam sobre imagens numa perspectiva decolonial. Inicialmente, introduzo a categoria de análise de regime de historicidade, contextualizando na sequência a consolidação do regime moderno de historicidade e sua relação dialética com o chamado “Novo Mundo”. Descrevo as maneiras pelas quais, no interior de um regime escópico da colonialidade, encobre-se os outros tidos como “selvagens” e “não civilizados” por um olhar pautado num sistema de alteridade de constituição do sujeito moderno. Tal constituição conta com um aparato que ora subexpõe e ora sobreexpõe de sujeitos, tornando-os (in)visíveis, e apagando as diferentes experiências estéticas e escópicas desses sujeitos postos à margem da sociedade no projeto de dominação imposto pela Matriz Colonial de Poder.

Palavras-chave: Regime escópico da colonialidade; Modernidade/colonialidade; Imagens.

Abstract

In this article I present the category of the scopic regime of coloniality in order to highlight its potential contribution to historiographical studies dealing with images from a decolonial perspective. Initially, I introduce the analytical category of regime of historicity, contextualizing the consolidation of the modern regime of historicity and its dialectical relationship with the so-called "New World". I describe the ways in which, within a scopic regime of coloniality, others considered to be "savages" and "uncivilized" are covered up by a gaze based on a system of alterity in the constitution of the modern subject. This constitution relies on an apparatus that sometimes underexposes and sometimes overexposes subjects, making them (in)visible, and erasing the different aesthetic and scopic experiences of those subjects placed on the margins of society in the project of domination imposed by the Colonial Matrix of Power.

Keywords: Scopic regime of coloniality; Modernity/coloniality; Images


 

 

Introdução: regime de historicidade

O presente artigo é um desdobramento de minha pesquisa de doutorado em Ciências da Linguagem, financiada pela CAPES. Após um percurso na graduação e no mestrado em História, senti a necessidade de expandir meus diálogos teóricos com a filosofia da imagem para tentar dar conta do que mais me inquietava, que era a produção de imagens e sua relação com a colonialidade. Durante a escrita da minha tese, tive a oportunidade de criar uma nova categoria de análise, a de regime escópico da colonialidade, a partir da própria categoria de regime de historicidade cunhada por François Hartog (2015), mas dessa vez dialogando mais fortemente com as discussões do grupo Modernidade/Colonialidade e até mesmo com a teoria psicanalítica. Na ocasião, trabalhei com fotografias e fotorreportagens veiculadas na imprensa catarinense no contexto da ditadura militar brasileira. Busco, portanto, fazer aqui uma síntese dos principais apontamentos teóricos trabalhados na minha tese de doutorado, defendida em agosto de 2023.

O historiador François Hartog, em sua obra de 2015, introduz a ideia de “ordens de tempo” ou regimes de historicidade, referindo-se às diferentes formas como as sociedades lidam com o tempo histórico. Essas ordens de tempo se impõem sobre os sujeitos, muitas vezes de maneira imperceptível, e entram em conflito com aqueles que tentam desafiá-las. Hartog (2015) explora a relação da sociedade com o tempo, destacando a importância dos regimes de historicidade, que são conjuntos de regras transitórias e inconstantes que moldam a maneira como uma sociedade percebe o passado, presente e futuro. Relaciona-se com a noção de “experiência” e “expectativa”, conceitos formais e gerais, para analisar a temporalidade dos sujeitos ao longo da história (Koselleck, 2006). A experiência refere-se ao passado atual, enquanto a expectativa está relacionada ao futuro presente, incorporando esperança, medo, desejo e análise racional. Essas categorias são cruciais para compreender a dinâmica temporal na história, indicando como a concepção do tempo histórico evolui ao longo das experiências individuais e coletivas das sociedades.

Ressalta-se que “experiência” e “expectativa” não são categorias que implicam numa total simetria complementar, de forma perfeitamente simétrica. Ao contrário, não se pode afirmar a expectativa totalmente a partir da experiência. Utilizando-se de metáforas espaciais para tornar o tempo inteligível, Koselleck institui que é mais conveniente falar em termos de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” do que o contrário, visto que “a presença do passado é diferente da presença do futuro” (Koselleck, 2006, p. 311). A experiência que os eventos já passados proporcionam tem sentido espacial, visto que ela se une em muitos “estratos” (no sentido próprio de estratificação geológica) de tempo que se interpenetram, se misturam, criando diversos presentes simultâneos. Por isso não é plausível falar numa experiência cronologicamente medida, uma vez que ela é formada pelo todo que se recorda da vida própria ou coletiva. Toda experiência é composta por muitos estratos de tempo diferentes, não é linear, cumulativa de um passado organizado e ordenado.

A expectativa, da mesma forma, tem sua própria metáfora. Não convém falar em “espaço de expectativa”, mas em horizonte, numa linha que abre para o futuro novos espaços de experiências possíveis, mas um espaço que nunca pode ser de fato alcançado. A possibilidade de se conhecer o futuro, apesar de muitos prognósticos, sempre vai se deparar com um limite absoluto que é próprio da linha e todas as suas metáforas que dela fazem uso: a linha do horizonte nada mais faz do que impelir à caminhada, sem dar esperanças de ser um dia capturada.

Um regime de historicidade, portanto, não tem a pretensão de falar da história de um tempo passado. Não se trata de uma cronosofia nem de um discurso sobre a história. A partir de diversas experiências de tempo, o regime de historicidade ajuda a compreender não o tempo em si, não todos os tempos ou ainda a totalidade do tempo, mas a identificar “crises” do tempo que reconfiguram a relação entre passado, presente e futuro. O importante, para Hartog, é compreender como diferentes lugares, tempos e sociedades articulam as categorias de passado, presente e futuro, percebendo possíveis deslocamentos de uma ordem do tempo: “De que presente, visando qual passado e qual futuro, trata-se aqui ou lá, ontem ou hoje?” (Hartog, 2015, p. 38).

Eventos que abalam de maneira significativa e duradoura as relações de uma sociedade com o seu tempo acabam por inaugurar um novo regime de historicidade. Hartog cita, por exemplo, a queda do Muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética[2] como fenômenos que levaram o mundo ocidental a modificar a forma com que lida com o passado, presente e futuro. Antes ainda, todos os eventos que marcaram o século XX, como as guerras mundiais, colocaram a sociedade ocidental diante da sensação de que o passado não mais servia para tirar lições e que o futuro se tornava cada vez mais incerto.

 

Regime moderno de historicidade

Para Hartog (2017a), o regime moderno de historicidade é caracterizado pelo predomínio do futuro sobre as demais categorias, em função da distância crescente entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, categorias que ele próprio menciona tomar de empréstimo de Koselleck. A partir da modernidade, o tempo assume o papel de ator protagonista de uma história em processo/progresso. A história “feita pelos homens” era vista em aceleração.

A ênfase no futuro otimista próprio do regime moderno atravessa a virada para o século XX e é notável em ocasiões como a Exposição Universal de 1900, em Paris, com exibições de aparelhos elétricos e maquinarias das mais variadas. É também no século XX que progresso e revolução passam a compor duas faces de uma mesma moeda. A concepção do tempo como vetor de progresso data da Europa Iluminista e, apesar de se pretender uma afirmação nova, ela nada mais é do que a retomada de uma visão cristã da ordem do mundo – criação, encarnação e, por fim, apocalipse –, dessa vez laicizada (Hartog, 2017b).

A interpretação marxista da história ganha força após 1917 e se passa a considerar que, para a verdadeira Revolução acontecer, é necessário saltar para além do presente, forçar uma guinada para o amanhã. Novamente uma nova aceleração se impõe com promessas do fim de um velho e antiquado mundo, com a Revolução, sob o olhar dos crentes, sendo o auge próprio do progresso e a realização efetiva da História.

Contudo, após a Primeira Guerra Mundial e mais ainda após a Segunda, a crença ilusória da História-progresso-linear que servia de base para a civilização ocidental começou a esvanecer, pelo menos parcialmente. Porém, na segunda metade do século XX, tal crença é reativada em contextos de governos que dela necessitam para justificar medidas de ordem e, por isso mesmo, violentas, como é o caso da ditadura militar brasileira. No Brasil, o senso comum e o discurso do regime imposto pelos militares nunca interromperam de fato a percepção de uma história rumo ao progresso, pelo contrário, reforçaram o positivismo republicano. A bandeira nacional e demais símbolos patrióticos pós 1889 são exemplos óbvios disso.

Frente a toda epistemologia europeia, é importante refletir que modernidade não é apenas um fenômeno exclusivamente circunscrito no continente europeu, ao contrário do que pensam muitos autores, como os já citados aqui. Enrique Dussel (1993) afirmou que a modernidade é sim um fato europeu, mas impossível de ser dissociado do mundo não-europeu. A modernidade não compõe necessariamente apenas um dualismo entre “velho” e “recente”, ou somente uma relação do tempo histórico dos povos europeus isoladamente. Existe, antes de tudo, uma relação dialética com a chamada “periferia”, produto próprio desse fenômeno da modernidade. A Europa passou a se afirmar como o “centro” de uma suposta História Mundial a partir da consolidação do que o autor chamou de “mito irracional”:

A modernidade originou-se nas cidades europeias medievais, livres, centros de enorme criatividade. Mas “nasceu” quando a Europa pôde se confrontar com o seu “Outro” e controlá-lo, vencê-lo, violentá-lo: quando pôde se definir como um “ego” descobridor, conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade. De qualquer maneira, esse Outro não foi “descoberto” como Outro, mas foi “en-coberto” como o “si-mesmo” que a Europa já era desde sempre. De maneira que 1492 será o momento do “nascimento” da Modernidade como conceito, o momento concreto da “origem” de um “mito” de violência sacrificial muito particular, e, ao mesmo tempo, um processo de “en-cobrimento” do não-europeu (Dussel, 1993, p. 8).

 

Ainda que sua ênfase fosse à invasão dos espanhóis ao que passou a ser chamado de América Espanhola, Dussel propõe uma reflexão válida a todas as antigas colônias do continente americano. O mito a que se refere Dussel foi construído em cima de pilares filosóficos que tentavam justificar, inclusive geograficamente, a centralidade da Europa em relação ao chamado “Novo Mundo”[3]. É um mito consolidado a partir da ideia de que o continente europeu nada tinha a aprender com outras culturas, visto que acreditava em sua realização plena. Não apenas isso, o mito reforçava que a Europa teria o direito absoluto de dominar os outros povos desprovidos de direito algum, pois seriam inferiores. Eis a concretização do eurocentrismo que sacralizou o poder do chamado “Norte” sobre o “Sul”, do “Ocidente” sobre o “Oriente” e do projeto colonial que materializou o “desenvolvimento” da “razão” (Aufklärung).

Do ponto de vista dos já citados Hegel e Habermas, o “descobrimento” da América não é um fator significativo da constituição da Modernidade como um novo tempo histórico. A autocertificação a qual se referiu Hegel pode ser pensada não somente do ponto de vista temporal, como propôs à época o filósofo alemão, mas também do ponto de vista espacial. Porém não só o “descobrimento”, mas as guerras de conquista são, para Dussel (1993), essenciais para a constituição do sujeito moderno eurocêntrico.

São a partir desses encontros e que é possível perceber, mesmo pelos relatos de viajantes como Colombo, uma primeira tentativa de interpretação e descrição do que se olhava pela primeira vez, ou seja, uma primeira experiência estética[4] da modernidade. Este primeiro desaparecimento do Outro, a saber, os povos originários do continente americano, deu-se pelo entendimento de Colombo que não se tratavam de outra coisa senão asiáticos. Ou seja, o primeiro olhar ao Outro americano foi permeado por uma invenção, um Outro pré-concebido, o indiano, habitante das índias. Foi apenas a partir das expedições de Américo Vespúcio que a Europa começou a se convencer – e se contentar com – da existência de um quarto pedaço de terra que poderia abalar a weltanschauung[5] proveniente da suposta centralidade geográfica europeia no mundo.

Da mesma forma que a invasão espanhola aos antigos impérios indígenas, a invasão portuguesa à Pindorama presume um “descobrimento”. Para Dussel, o descobrimento é, antes de tudo, uma experiência estética, pressupõe uma contemplação, uma aventura científica, exploratória e comercial de um mundo até então desconhecido. Os europeus consideraram os outros pedaços do mundo e seus habitantes como objetos lançados (-jacere) diante (-ob) de seus olhos. O que antes estaria coberto se tornaria “des-coberto” e muito rapidamente “en-coberto” como Outro constituído a partir de um Si-mesmo europeu (Dussel, 1993). De início, esse “en-cobrimento” feito pelos portugueses se dá a partir de uma comparação entre os “selvagens” com inocentes habitantes de um paraíso terrestre perdido, semelhante ao mito cristão de Adão e Eva. Rapidamente, essa noção é substituída pela convicção lusitana de que o indígena brasileiro tinha uma selvageria irremediável que justificava a guerra da conquista (Boxer, 2002). 

Aprofundando a noção de colonização, o sociólogo peruano Aníbal Quijano concebe o conceito de “colonialidade” no final da década de 1980 e no início da década de 1990, ampliando a discussão sobre o colonialismo e os processos de descolonização de África e Ásia a partir da metade do século XX. Já para Walter Mignolo (2017), a “modernidade” é uma narrativa intricada, cujo locus de partida foi a Europa, e se constituiu numa narrativa que serviu de base para o estabelecimento da chamada “civilização ocidental” ao enaltecer suas conquistas na mesma medida em que tenta disfarçar o seu lado mais escuro, a “colonialidade”, que se deu justamente a partir das investidas europeias de Abya Yala, Tawantinsuyu, Anahuac e Pindorama com a formação das Américas e do Caribe e o intenso tráfico de pessoas trazidas do continente africano.

Não apenas o triunfo dos modelos econômicos e epistêmicos europeus configuram traços marcantes da modernidade, mas a descartabilidade da vida humana, ou seja, a ideia de que os Outros não-europeus são dispensáveis, descartáveis, quando não empecilhos ao projeto modernizador/colonizador. Os genocídios de populações ameríndias e dos povos africanos, no contexto da colonização, ocorreu em função da “(...) emergência de uma estrutura de controle e administração de autoridade, economia, subjetividade e normas e relações de gênero e sexo, que eram conduzidas pelos europeus (atlânticos) ocidentais (...) (Mignolo, 2017, p. 4-5). O fim do colonialismo não findou tais estruturas, mas as reconfigurou de forma a se manter estabelecida já no contexto capitalista.

A colonialidade, portanto, se inicia com o processo de colonização da dita Idade Moderna, num primeiro cenário em que o mundo ainda era, nos dizeres de Mignolo (2017), policêntrico e não capitalista, por volta de 1500. O segundo cenário descrito pelo autor já diz respeito ao nosso mundo contemporâneo, pós movimentos e guerras de independência, onde não existe mais colonialismo, mas o mundo policêntrico foi substituído pelo unicentrismo europeu – e, mais recentemente, estadunidense, ainda que conflitante com nações que resistem à globalização neoliberal – e o mercantilismo foi suprido pela consolidação do capitalismo. A colonialidade, contudo, permanece, e ela é simbolizada, a partir da concepção original de Quijano, com um monstro de quatro cabeças (controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade) e de duas pernas (o fundamento racial e patriarcal do conhecimento).

O conceito opera sobre duas frentes: primeiro, ele aponta a permanência “das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (Grosfoguel, 2008). Segundo, o conceito indica processos históricos que supostamente teriam sido superados pela modernidade, porém segundo o autor:

A expressão “colonialidade do poder” designa um processo fundamental de estruturação do sistema-mundo moderno/colonial, que articula os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais. Os Estados-nação periféricos e os povos não-europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global” imposto pelos Estados Unidos, através do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, do Pentágono e da OTAN. As zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, ainda que já não estejam sujeitas a uma administração colonial (Grosfoguel, 2008, p. 126).

 

Assim, mesmo após a independência das antigas colônias, o que se tem é a permanência das formas de saber, de ser e de poder nos países antes colonizados. O fim do colonialismo não significa o fim da colonialidade. Para os autores do grupo Modernidade/Colonialidade, formado também em fins da década de 1990, a colonialidade é por si só um conceito decolonial pois aponta para a lógica de dominação do Outro não-branco/não-europeu/não-ocidental pela Matriz Colonial de Poder, desde o Renascimento até a atualidade, nas mais diversas esferas: do ser, do poder e do saber (Mignolo, 2017).

 

Regime escópico e diferentes formas de olhar o outro

Diferentes regimes de historicidades pressupõem diferentes regimes escópicos. Previamente à discussão que permite o entendimento do regime escópico – expressão tomada de empréstimo de Martin Jay (1988)[6] e ressignificada aqui a partir de novas leituras e interpretações – é necessário retomar brevemente o conceito de pulsão escópica elaborado por Jacques Lacan, que ampliou a gama das pulsões freudianas[7].

Ver e olhar são, para o psicanalista Jacques Lacan, coisas distintas. Os animais veem, mas só o animal humano olha, pois o olhar é determinado pela incisão do Simbólico no Imaginário[8]. O campo escópico não está limitado à visão, de forma que o olhar não é uma característica meramente física e biológica do sujeito utilizada como uma ferramenta. Na verdade, o que há é o oposto: é o sujeito que é atingido pelo olhar como objeto. O olhar, especialmente do Outro, é essencial para a constituição do Sujeito. Para ter uma imagem completa de si mesmo, o Sujeito no momento de sua travessia que Lacan nomeia estádio do espelho necessita ser olhado pelo olhar simbolicamente qualificado de um Outro, ou seja, precisa da confirmação do que a imagem do espelho é de fato um reflexo, uma imagem virtual de seu próprio corpo. Pela via da linguagem, o ser humano se apercebe graças ao olhar desejante do Outro:

É aí que está a função que se encontra no mais íntimo da instituição do sujeito no visível. O que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora. É pelo olhar que entro na luz, e é do olhar que recebo seu efeito. Donde se tira que o olhar é o instrumento pelo qual a luz se encarna, e pelo qual – se vocês me permitem servir-me de um termo, como faço frequentemente, decompondo-o – sou foto-grafado (Lacan, [1963-1964]/1988, p. 104, grifo do editor).

 

No estádio do espelho, a identificação é a transformação que acontece no sujeito toda vez que ele assume uma imagem num ato de (re)conhecimento. Na passagem do conhecimento para o reconhecimento nós temos a constatação, contrária à Comte – para quem o sujeito era uma tábula rasa – que o conhecimento não se dá a dois, mas todo conhecimento é um caso particular de operações de reconhecimento no sentido de conhecer novamente. Os signos são suportes de operações de reconhecimento.

O conceito de pulsão escópica fez com que a psicanálise pudesse retornar um papel para o olho humano que não se limitava mais à fonte da visão, mas também como fonte de libido[9]. A psicanálise então pontua a libido do ato de ver e o objeto olhar como mostra da vida sexual. Lá onde estava a visão, Freud indica a pulsão, mais adiante nomeada por Lacan como pulsão escópica. É também a pulsão escópica que dá a ideia de beleza ao objeto desejado do universo sensível e possibilita que o sujeito o “toque com os olhos” e o dispa com o olhar. O gozo escópico, a curiosidade proporcionada por esta pulsão, “é o gozo dos espetáculos, mas carrega ainda, ao ser desvelado, o objeto, o horror, pois o olhar não pode se ver senão ao preço do desaparecimento do sujeito pois toda pulsão é, também, pulsão de morte”. A psicanálise tira o véu de horror que o gozo escópico gera e constata que o olhar da Medusa é imperioso em nossa civilização, visto seu caráter de petrificação e fascinação (Quinet, 2002, n.p.).

O ensinamento freudiano demonstrou que uma das características do inconsciente é a atemporalidade. Indo além, observamos que em diferentes regimes de historicidade e, portanto, em diferentes regimes escópicos, para todo sujeito, o saber localiza sua força pulsional na pulsão escópica, e o desejo de saber é uma variação, uma decorrência do desejo de ver. O olhar está sempre presente no afeto da angústia, cujo termo freudiano Augenangst pode ser generalizado quando traduzido por “angústia escópica”. No entanto, é na modernidade que o desejo de saber/ver se tornará mais evidente. Afirmo aqui que o regime escópico da modernidade/colonialidade tem seu início quando essa relação torna-se elemento constituinte do dito sujeito moderno.

Não existe aqui a intenção de aplicar pura e simplesmente a teórica psicanalítica para a interpretação de imagens visuais, mas o contrário. O que se espera aqui está mais em consonância do que quis Rancière (2009b) ao buscar compreender os motivos pelos quais os textos psicanalíticos basearam-se tanto em referências culturais, como artes plásticas e literatura. É compreender que há algo de valioso nas manifestações das imagens visuais.

 

Regime escópico da colonialidade

Na Antiguidade, as teorias que diziam respeito ao olhar eram indissociáveis do pensamento filosófico[10], de forma contrária às noções modernas – e em certa medida, atuais – de visão e ótica pautadas nas leis físicas do raio luminoso e da formação de imagens. A luz possui um papel central para o regime escópico da Antiguidade. Alcançar o saber e a verdade, assim como sua junção na contemplação, era um processo fundamentado no olhar, tanto em Platão quanto em Aristóteles. A evidência filosófica dos pensadores antigos está, portanto, associada à visão. Tucídides foi dentre os “historiadores” da antiguidade o que mais defendeu a importância do “ver com os próprios olhos” ou através dos olhos das testemunhas para se tirar as evidências que construiriam a “verdade” histórica (Hartog, 2017b).

            Descartes rompeu, mais adiante no século XVII, com a centralidade da luminosidade, quando o regime escópico da modernidade passou a ser caracterizado pelo pensamento científico matemático, em especial, geométrico. Na Idade Moderna, o olhar é reduzido à mera metáfora do conhecimento. A partir dos estudos de Kepler no início do século XVII, o olho é transformado num dispositivo ótico cujo funcionamento anatômico é semelhante à mecânica do aparelho fotográfico. O olhar é substituído pela visão que depende somente das condições físicas adequadas para a formação da imagem na retina. 

Segundo Martin Jay (1988), são recorrentes as afirmações de que a era moderna é dominada pelo sentido da visão de forma tão considerável que a separa de seus períodos históricos anteriores e posteriores. A modernidade, desde o Renascimento e a revolução científica, acabou se caracterizando pelo oculocentrismo, ou seja, a ideia de que a visão não apenas seria o sentido mais importante, mas também metáfora do conhecimento. Por isso, na cultura ocidental, é quase impossível negar que o visual é imperativo em diversos aspectos da modernidade: desde a vigilância foucaultiana ao espetáculo de Guy Debord.

Além disso, uma maneira muito específica de olhar, tomada com frequência como própria da modernidade, é aquela representada por artistas como Leon Battista Alberti. Não apenas a experiência temporal se transformou com a modernidade, mas o espaço. Alberti inseriu em suas telas a racionalidade do espaço tridimensional externo, isso porque, segundo o próprio artista, as telas eram espelhos planos que irradiavam de volta essa geometria exata para o olho – único – do espectador da imagem. Olho único porque as imagens renascentistas assemelham-se à visão singular, absoluta, desprovida de um corpo, estática, que nunca pisca, ao contrário de uma visão dinâmica e binocular que leva em conta a emoção e o envolvimento daquele que olha e é olhado. Portanto, essas imagens renascentistas representam um “gaze” e não um “glance”.

Essas imagens demasiadamente racionalizadas também deixaram evidente a intenção de exibir o espaço e sua perfeita perspectiva ao invés de trazer consigo aspectos narrativos. A pintura impessoal se encerrava nela mesma e impossibilitava qualquer narração, tida como menos importante que o próprio aspecto puramente visual da obra. Ainda assim, é possível assinalar que uma imagem como La città ideale carrega um discurso que enaltece a racionalidade, o pensamento científico, a exatidão matemática que compunham o pensamento moderno em sua base. Ela denota o perspectivismo cartesiano que não mais lê o mundo como um texto divino, mas como algo cujo tempo e espaço são matematicamente regulares e que pode ser interpretado e domado pelo olhar único e desapaixonado do observador. Ela não é, portanto, desprovida de valores e intencionalidades apenas porque não apresenta uma história a ser narrada.

No entanto, o autor se questiona: haveria um regime escópico único e homogêneo durante a chamada modernidade? O que parece mais coerente para Jay é que:

(...) the scopic regime of modernity may best be understood as a contested terrain, rather than a harmoniously integrated complex o visual theories and practices. It may, in fact, be characterized by a differentiation of visual subcultures, whose separation has allowed us to understand the multiple implications of sight in a way that are now only beginning to be appreciated. That new understanding, I want to suggest, may well be product of a radical reversal in the hierarchy of visual subcultures in the modern scopic regime (Jay, 1988, p. 4)[11]

 

É, portanto, uma constatação semelhante à de Hartog, quando este deixou evidente que um regime de historicidade não significa uma maneira única e total de experiência temporal pela sociedade. Existem rupturas, dissonâncias, diferentes espaços de experiência e horizontes de expectativa. Se existem diferentes experiências de tempo, existem diferentes experiências visuais e diferentes formas de olhar/ser olhado. O predomínio de uma sobre outra não implica no aniquilamento total da última.

O próprio perspectivismo cartesiano na arte renascentista não é uniforme no interior do regime escópico moderno. Leonardo da Vinci foi, por exemplo, um dos representantes de um perspectivismo cujas imagens eram produzidas não por reflexos de um espelho plano, mas côncavo, onde o espaço esférico era homogêneo com alguns aspectos do que Albert Einstein chamou de infinidade finita.

Da mesma forma que toda a arte produzida durante a modernidade não se reduz à inexistente narrativa das telas como La città ideale, tanto porque a própria perspectiva sugere uma continuidade da imagem para além da moldura, tanto porque a racionalidade cartesiana não se aplica a obras de artistas como Johannes Vermeer e demais holandeses do século XVII que rejeitaram a visão mono-ocular totalizante e a limitação espacial das molduras. A pintura barroca, por sua vez, destronou a “gaze” impessoal do espectador cartesiano, assim como o impressionismo. Assim, na modernidade, não existia uma maneira única de se criar imagens e representações do mundo.

Nenhuma dessas maneiras de se criar imagens na modernidade, como diz Jay (idem), se configura como superior a outra, no sentido de melhor representar uma suposta realidade ou imagem verdadeira. “Gaze” não é melhor que “glance”, apenas servem a propósitos distintos, da mesma forma que um suposto espectador impessoal não necessariamente garante um distanciamento subjetivo da imagem.

Jonathan Crary (2013), por sua vez, não se preocupa tanto em refletir sobre a ideia de uma história da visão para além de uma simples hipótese. Para o autor, é mais interessante se ater às diversas forças e regras que fazem parte do campo da percepção. E o que configuraria a visão em qualquer período da história não é necessariamente uma estrutura profunda, tampouco um contexto econômico ou uma “visão do mundo”, mas, antes, uma montagem conjunta de componentes diversos em um único plano social. Enfatizando o papel do observador, Crary considerou que talvez importante considera-lo como uma distribuição de fenômenos situados em vários lugares díspares. Obviamente, jamais existiu e nunca existirá um observador que veja o mundo de forma única e transparente. Para Crary, seria mais interessante considerar a existência de diversos arranjos de forças, que exercem mais ou menos poder, a partir das quais as competências de um observador se tornam viáveis. Por exemplo, um observador da Europa oitocentista foi atravessado por determinadas condições e forças que permitiram o estabelecimento de uma forma dominante de observar o mundo ao redor.

Jean Baudrillard (2008) elencou algumas condições do contexto do observador europeu do século XIX. Para o autor, uma das grandes consequências das revoluções burguesas no final do século XVIII foi a potência ideológica que propagou os mitos dos direitos homem (europeu, branco, ocidental), o direito à igualdade e a felicidade. Pela primeira vez, no século XIX, foram necessárias provas visíveis para comprovar que a felicidade e igualdade tinham efetivamente sido alcançadas. A partir de então, a felicidade tinha de ser medida por meio de objetos e signos evidentes aos olhos em termos de “critérios visíveis”, como a profusão de mercadorias industrializadas que simbolizavam o triunfo da vida burguesa e da modernidade. A modernidade, para Baudrillard, está intimamente relacionada à capacidade que grupos e classes sociais recém-chegados ao poder, como a burguesia, têm de tomar para si a exclusividade dos signos. Na sociedade moderna pós-industrial, multiplicam-se cópias, falsificações e as técnicas para produzi-las puseram em xeque o monopólio dos signos pela antiga ordem aristocrática.

No entanto, é impossível desassociar as imagens da modernidade dos projetos coloniais colocados em prática durante séculos contra povos originários e a população africana. A modernidade é fruto de um mito construído sobre bases coloniais, violentas e de encobrimento do Outro não europeu. A perspectiva renascentista e a racionalidade cartesiana foram com frequência associadas à “visão de mundo” da modernidade, mas seria falho se nos limitássemos apenas a elas.

Como discutido anteriormente, boa parte dos estudos a respeito da modernidade coloca como ponto chave a ideia de rompimento com o tempo passado, uma ênfase no futuro e uma autocertificação temporal. Nesse sentido, a palavra “modernidade” compreenderia uma única temporalidade sustentada na noção de um projeto político com ideal progressista. A partir daí, tal projeto político passou a ser diretamente relacionado às artes, às ciências e a outros campos, sob o nome geral de “modernidade”.

Assim, “modernidade” poderia fazer referência tanto a uma periodização cronológica arbitrária, partindo da Europa, em que tais manifestações teriam ocorrido, quanto se referir a um termo que qualificaria movimentos vanguardistas. Com essas conotações em que o termo se estendeu ao campo estético para definir aquilo que por muito tempo se considerou como modernidade artística, amparada na ideia de rompimento com o passado medieval.

Na contramão desse pensamento, ou tomando-o de maneira menos genérica e mais coerente, Rancière (2009a) recusa a expressão “modernidade” e suas imbricações que não dão conta da compreensão no que tange as relações entre política e estética, ou seja, o advento de um novo regime de (in)visibilidade das artes, o regime estético; dentro do qual os movimentos vanguardistas ou iconoclastas podem ser compreendidos em sua singularidade sem o equívoco de unificá-los de modo a tentar explanar um longo período histórico ocidental e um projeto político único que lhe serviria de sustentação.

Por isso, Rancière distinguiu três regimes que serviram como recortes de historicidade nos quais a arte teria um estatuto distinto: o regime ético das artes, o regime representativo das artes e o regime estético das artes. Esses três regimes implicaram três maneiras de relacionar os modos de pensar, fazer e ver a arte. Ainda que sejam associados a períodos históricos específicos, esses regimes não estariam limitados a eles, mas sim agiriam de forma a dar a ver uma historicidade competente a certos acontecimentos, ao invés de simplesmente datá-los.

A arte é pensada como parte do sensível, a partir da ideia de experiência estética que nunca é dissociada da política. Esse é o principal ponto de contato entre as reflexões de Rancière e o pensamento do filósofo argentino Enrique Dussel (1993), ainda que este último ainda use o termo modernidade. Dussel compreende que a modernidade, tratando-se de um acontecimento Europeu com relação direta com a história das colonizações, é também uma experiência estética do encobrimento do Outro não europeu.

No entanto, compreendo que o que Rancière descreveu como regime estético e a partilha do sensível diz respeito ao que no campo psicanalítico é chamado de registro do Simbólico[12]. Poderia utilizar da expressão regime estético da colonialidade, mas se o fizesse, estaria me referindo apenas a maneira pelas quais tornam-se visíveis ou invisíveis pessoas, grupos e sociedades, em suma, na Política. Opto pela noção de regime escópico da colonialidade por compreender que a ideia melhor se relaciona com a relação pulsional e discursiva presente no registro do Real[13], da constituição dos sujeitos através da dimensão da alteridade, i.e., nas relações eu-outro. Compreendo que no interior de um regime escópico da colonialidade operam diferentes regimes visuais e disciplinamento iconográficos – ora mais preocupados com a mimesis, ora com a profusão de imagens de objetos industrializados, ora com anúncios publicitários –, mas a forma de olhar e ser olhado manteve-se, desde o início das invasões europeias até hoje, baseada em uma relação dominador/dominado.

É mais interessante se referir em termos de regime escópico pois é impossível ter diante das imagens uma postura semelhante ao dos enunciados da crença, que observam nas imagens e na arte em geral presenças e aparições que remetem o tempo todo a algo diferente, que dizem respeito à outra coisa, que possuem uma “mensagem” por trás do que está impresso no papel fotográfico. Ao contrário disso tudo, as imagens fotográficas que olhamos podem nos olhar de volta, produzindo efeitos muitas vezes imprevisíveis. É importante levar em conta que essas imagens são dialéticas na medida em que, com sua função crítica, demonstram a relação complexa entre o passado, o presente, a memória e a história. Elas não só quebram com a oposição canônica do visível e do invisível, mas produzem elas mesmas uma leitura crítica do próprio presente, nos levando a questionar nossa própria maneira de olhar para elas e para nossos dispositivos de análise (Didi-Huberman, 1998).

Isso contribui inclusive para observarmos, no presente, que é com frequência que a fotografia de imprensa e publicitária em geral fez – e faz até hoje – uso de estereótipos para compor matérias e dotar as situações e personagens de um sentido simplificador aos leitores, sob a justificativa de tornar o texto compreensível. É novamente uma forma de sobreexposição, como já foi mencionado. Para Pepe Baeza (2007), os redatores‐chefes responsáveis por selecionar as imagens trazidas à redação pelos fotógrafos sobre uma determinada pauta não visam compreender algo completamente desconhecido, mas ilustrar uma percepção já consolidada no senso comum da sociedade e que lhes seria constatável de forma imediata a partir das imagens. O estereótipo, como explicou Homi Bhabha (1998), é aquilo que dá acesso a uma “identidade” que se baseia em dualidades: na dominação e no prazer, na ansiedade e na defesa. É feito de dualidades porque é uma forma de crença múltipla e contraditória ao reconhecer e recusar, simultaneamente, a diferença. Esta tensão que envolve prazer/desprazer, dominação/defesa, conhecimento/recusa, ausência/presença, é essencial para a manutenção do discurso da colonialidade.

Mignolo (2010) defende ainda que a estética toma participação nos processos coloniais e decoloniais. Segundo ele, na Grécia Antiga, a aesthesis foi compreendida tal qual um conjunto de percepção de sensações comum a todos os seres. Já na Europa do século XVII, o conceito de estética restringiu-se à percepção de “a sensação de beleza”, dando origem a Estética com um E maiúsculo, da mesma forma que a Arte com um A maiúsculo.  A alteração da estética em Estética é o que o autor considera a colonização da estética através da Estética, ou seja, a colonização dos sentidos e sensações pelos critérios eurocentrados de beleza. A partir daí, começou uma mudança na história da estética, transformando uma teoria que relaciona estímulos sensoriais com noções arbitrárias do belo a partir de uma universalização e naturalização.

A universalização a naturalização mencionadas por Mignolo acabaram por significar o menosprezo das demais experiências estéticas que escapavam do padrão imposto pela Matriz Colonial de Poder, pois não foi avaliada nos critérios estabelecidos pelo “Velho Mundo” europeu a partir de suas próprias experiências sensoriais particulares. A colonialidade da Estética ocasiona a colonização do imaginário dos sujeitos colonizados, prolongando as relações de poder emaranhadas nas relações da colonialidade. Mignolo argumenta que é urgente expor a colonização da estética pela Estética a fim de dar início aos projetos globais e decoloniais de estética, sinalizando os contrassensos e os procedimentos de poder que formam a modernidade/colonialidade. Para o autor, é necessário apontar para as expectativas naturalizadas que operam na colonialidade do ser, do sentir (aesthesis) e do saber (epistemologia). O “como deveria ser” é o horizonte desenhado pela crença do progresso; “como deveria ser” é o horizonte da colonialidade do ser e do sentir.

Ainda fazem parte da lógica da colonialidade, segundo Mignolo, a opressão e a negação. O primeiro opera na ação de um indivíduo sobre outro, em relações de poder desiguais. O segundo age sobre os indivíduos, na maneira em que negam o que no fundo sabem. Esses dois aspectos da colonialidade não se restringem ao sujeito europeu moderno, como o já conhecido trabalhador assalariado de Marx e o sujeito moderno europeu analisado por Freud. Operam também na opressão racial/colonial, e também na negação dos sujeitos imperiais e coloniais, como o negro que quer embranquecer, e o mestre que se recusa a ver que a pressão e exploração de outro ser humano é eticamente condenável e humanamente inaceitável (Mignolo, 2010).

Nesse sentido, a Estética com um E maiúsculo adquire um telos para o qual os povos não-ocidentais supostamente deveriam progredir, de forma a considerar as culturas não europeias como atrasadas em uma perspectiva de tempo linear da história, como já mencionado anteriormente. Mignolo argumenta que existem culturas não europeias e europeias e inter-relacionadas em mundos coetâneos; na medida em que elas se caracterizam reciprocamente a partir de teias de relacionalidade e dependência bilateral. Também Mignolo aponta para as representações como mecanismos para manter as ordenações entre culturas europeias e não europeias. Em um contexto decolonial a representação é compreendida como uma das maneiras de construção do imaginário abarcante do mundo moderno/colonial. Isso não quer dizer, no entanto, apenas a simples criação e profusão de representações estereotipadas de sociedades não-ocidentais, mas o fato de o privilégio representacional estar no cerne da consolidação da Matriz Colonial de Poder.

Para o antropólogo e historiador venezuelano Fernando Coronil (1998), tal privilégio ocasiona a criação de formas de representação particulares que pintam os povos não-ocidentais como “outros” em situações que estabelecem uma relação direta com as exibições ocidentais de poder e seu projeto expansionista. Assim como defendeu Santiago Castro-Gómez (2008), o aspecto da representação é imprescindível para a consolidação do domínio colonial por meio de um discurso a respeito do “outro” que se arraiga no habitus dos dominadores e dominados. Sem esse discurso, todas as formas de dominação exercidas nas colônias não se concretizariam. Por fim, para Mignolo, uma Estética que emana da Matriz Imperial de Poder que toma por base uma representação mimética facilita o aliciamento da estética e sucede na pauperização da experiência sensorial, que agora fica limitada a alguns critérios coloniais e nada além.

No Brasil existem incontáveis exemplos dessas formas de representação do “outro” não civilizado, desde sua descrição por Pero Vaz de Caminha até as pinturas dos artistas das missões francesas e holandesas na colônia. O holandês Albert Eckhout pintou a mulher indígena de modo a acentuar seus supostos atributos selvagens, exibindo-a como uma canibal, comedora de carne humana, que casualmente carrega partes de corpos para seu alimento.

 

Figura 1: A Mulher Tapuya, Albert Eckhout, óleo sobre tela, 1641 (Nationalmuseet, Copenhagen, Dinamarca)

Imagem digital fictícia de personagem de desenho animado

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Fonte: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

No caso da missão artística francesa, Jean Baptiste-Debret foi o mais conhecido a retratar rostos indígenas selvagens e em processo de civilização em seu primeiro volume de Voyage pittoresque et historique au Brésil. Essa captura do outro exibiu a adequação desses indígenas ao telos da Matriz Colonial de Poder.

 

Figura 2: Guaranis civilizados do Rio de Janeiro de Jean Baptiste-Debret

Foto em preto e branco de pessoas posando para foto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Domínio Público/Catálogo BBM-USP.

Não apenas esse aspecto chama a atenção, mas o fato de Debret e outros artistas da missão francesa terem se inspirado em imagens criadas por outro artista europeu, o médico e naturalista Georg Heinrich von Langsdorff, que retratou grupos indígenas do norte do continente americano. É notável a semelhança entre as figuras de Langsdorff e Debret, que estiveram em lugares diferentes, separados por pelo menos uma década, e que portanto retrataram grupos indígenas distintos. Ainda assim, Debret retratou os “selvagens” brasileiros com uma semelhança que beira a cópia fiel. Assim, os artistas não pintaram o que de fato viram, mas antes, o que imaginaram. Abaixo, as obras de Langsdorff e Debret, respectivamente.

 

Figura 3: “Dança dos índios na Missão de São José, Nova Califórnia”, gravura publicada em: Bemerkungen auf einer Reise um die Welt in den Jahren, 1803 bis 1807 (Volume 02), de Georg Heinrich von Langsdorff

LANGSDORFF Ein Tanz der Indianer in der Mission von St

Fonte: reprodução.

 

Figura 4: Dança de selvagens da missão de São José, de Jean Baptite-Debret

Foto em preto e branco de pessoas e texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Domínio Público/Catálogo BBM-USP.

Como resultado, pode-se compreender a colonialidade do ver como uma complexa trama heterárquica do poder que encontra expressão no sistema capitalista, mas de maneira escancarada que Quijano chama de heterogeneidade histórico-estrutural. Dito de outra forma, a colonialidade do ver se baseia num conjunto de “superposições, derivações e recombinações heterárquicas, que em sua descontinuidade interconectam o século XV ao século XXI, o XVI ao XIX, etc” (Barriendos, 2019, p. 43).

Em 1992, a revista Veja publicou em uma de suas capas a fotografia da liderança indígena Benkaroty Kayapó, à época acusado de ter cometido um crime sexual contra uma estudante branca. Seu retrato foi colocado na revista como o registro de uma fotografia prisional, onde se captura a imagem do detento de maneira a registrar suas feições. A manchete que acompanha endossa o discurso colonial do periódico, historicamente alinhado aos valores burgueses e do agronegócio.

 

Figura 5: Capa da revista Veja, de 1992, sobre o caso do cacique Benkaroty Paiakã

Capa da revista Veja, de 1992, sobre o caso do cacique Paulinho Paiakã, acusado de estuprar uma jovem branca, utiliza estereótipo do indígena selvagem/ Fonte: Reprodução

Fonte: reprodução.

A violência própria da colonialidade do ver opera a partir de uma dupla estratégia visual/ontológica: a de fazer visível o objeto do outro selvagem a ser estudado/fotografado/analisado/representado e, ao mesmo tempo, a de fazer-se invisível como sujeito de observação, como ordem ou lei das coisas e como norma dogmática da racialização epistêmica radical ocidental. O aspecto racializante das culturas visuais etnocêntricas é indissociável da anedota lumínica do saber ocidental, com a ideia de iluminar (conhecimento) e dessa forma esconder o sujeito que observa o seu lugar de observação e enunciação de saber. Esse “duplo desaparecimento” é somado ainda com a invisibilização tátil e consumível do selvagem, em decorrência de sua presença abominável e abjeta que só pode se fazer visível como uma forma de negação de sua existência enquanto ser humano (Barriendos, 2019).

No entanto, essa estratégia visual é inevitavelmente falha, pois a constituição do sujeito dito “civilizado” só pode acontecer a partir da visão e do olhar do outro “selvagem”. Proponho aqui uma colonialidade do olhar, e não apenas do ver, próprio do regime escópico da colonialidade.

Penso ser próprio do regime escópico da colonialidade uma postura paradoxal com as imagens: o colonizador adquire uma postura tautológica com os outros não-europeus não sendo capaz de ver e compreender nada além do que enxerga diante dos seus olhos. Ao mesmo tempo, creem nas imagens diante de si a partir da sua concepção de mundo. “Se estão nus, logo são incivilizados. Se comem carne humana, logo são selvagens canibais. Se a pintura imita o visível com precisão matemática, então trata-se de obra de arte que indica uma superioridade civilizatória. Se vejo Cristo crucificado no altar, então estou num local sagrado”.

Além disso, o regime escópico da colonialidade é marcado por uma constante ilusão da crença na teoria. O termo “teoria” provém do verbo grego theorein, composto por dois étimos: thea e horáw. Thea (veja-se teatro) diz respeito a fisionomia, o perfil em que alguma coisa é e se mostra, a visão que é e oferece. O segundo étimo em theorein, o horaw, significa ver algo, ter diante dos olhos, percebê-la com a vista. Assim resulta que theorein é thean horan: ver a fisionomia em que aparece o vigente, vê-lo e a partir da visão ficar sabendo e sendo com ele. (Heidegger, 2002). Porém, ver apenas não é conhecer ou compreender coisa alguma. Menos ainda é ser com. A experiência da colonialidade construiu o projeto de ser contra.

Por isso, o regime escópico da colonialidade já estava posto antes de qualquer materialização visual ou iconográfica fruto da diferença colonial. É preferível dizer, inclusive, que as manifestações imagéticas, visuais ou não, são sintomas de uma relação escópica marcada pela diferenciação dominador/dominado. O que deu “errado” no primeiro contato entre europeus e povos originários, foi que o olhar do primeiro já estava impregnado por intenções de aniquilação e de subjugação do outro não branco, e isso se refletiu no seu olhar e a consequente criação de imagens sobre os “selvagens” e a “natureza”, de partida tomadas como diferentes.

A não compreensão das intenções do homem branco, no início do processo colonizador, pelos povos indígenas, pode ser explicada pelo fato de que eles não compartilhavam com seus invasores o mesmo regime escópico e, consequentemente, o mesmo regime estético, visual e imagético. De acordo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, para a cosmologia ameríndia, a consciência, a cultura e a subjetividade não são particulares dos humanos, de forma que as outras espécies também possuem subjetividade por trás de um corpo animal. Assim, o que diferencia os seres é o corpo (natureza), enquanto a alma (cultura) é o elemento unificador. Essa é a ideia central no multinaturalismo proposto pelo antropólogo, onde uma só “cultura” abarcaria diversas “naturezas”, em contraposição ao pensamento colonial que sugere uma dualidade ontológica entre natureza e cultura (Viveiros de Castro, 2000)[14]. Trata-se, portanto, de uma outra relação escópica e uma outra forma de construir sua subjetividade entre muitas outras no mundo em que se vive.

Uma outra característica do regime escópico da colonialidade é o aniconismo, não no sentido da proibição de imagens ou ícones, mas como um discurso destruidor das imagens de outros grupos humanos. De acordo com Didi-Huberman, na história cristã existiu uma tentativa de aniquilamento dos ícones, ou seja, das imagens próprias das crenças do outro, para que o ícone de Cristo prevalecesse (Horenstein, 2017). Tal reivindicação das imagens próprias para extinguir as imagens dos outros é evidente tanto no cristianismo, quanto em outras religiões, no interior do regime escópico da colonialidade.

As imagens, visíveis e invisíveis, criadas no regime escópico da colonialidade são representações que podem dissimular sintomas das relações de alteridade impostas por uma Matriz Colonial de Poder. Didi-Huberman indica que é preciso considerar o que há de sintomático ao ficarmos diante de uma imagem. Considerar que estamos diante de uma a representação de modo é preciso, como em uma análise, desvelar, construir o sintoma a partir daqueles elementos significantes que, à primeira vista, não se fazem mostrar imediatamente pois ficam dissimulados na composição, enquadramento, perspectiva, cores, jogos de luz e sombra, etc. (Horenstein, 2017).

Georges Didi-Huberman (2014) advertiu também a respeito da visibilidade ameaçada dos povos na atualidade: embora a enorme variedade de meios de comunicação que supostamente deveria fazê-los aparecer, os faz desaparecer. Esse desaparecimento se dá em telas do cinema, na televisão, nas imagens de revistas ou dos jornais, nas compartilhadas pela internet. A partir dos intensos contatos culturais e das migrações globais, a visibilidade dos povos, das vidas infames, mesmo com o auxílio das tecnologias contemporâneas de comunicação, não estão garantidas, mas em risco. Isso ocorre, segundo Didi-Huberman (2014), porque estar visível nos meios de comunicação não significa estar melhor representado, daí a sua invisibilidade paradoxal. Assim, embora se parta, com frequência, de uma ideia de democratização dos meios de comunicação, os povos, ao estarem hoje mais expostos do que nunca, se expõem consequentemente ao desaparecimento. Não significa, contudo, que desaparecerão da face da Terra, que seu apagamento é inevitável e estão todos condenados ao esquecimento, mas o autor chama a atenção para o fato de que representar determinadas formas sujeitos históricos é uma forma simbólica de fazê-los desaparecer, de certa forma, da memória coletiva e da história.

Essas imagens constantes de sujeitos marginalizados, explica Georges Didi-Huberman (2014), acabam por expor os povos ao desaparecimento por sobreexposição, ou seja, pela exposição estereotipada dos povos ao retratá-los de formas “borradas”, ou seja, estereotipadas:

La subexposición nos priva sencillamente de los medios de ver aquello de lo que podría tratarse: basta, por ejemplo, con no enviar a un reportero-fotógrafo o un equipo de televisión al lugar de una injusticia cualquiera – sea en las calles de París o en el otro extremo del mundo – para que esta tenga todas las posibilidades de quedar impune y, así, alcanzar su objetivo. Pero la sobreexposición no es mucho mejor: demasiada luz ciega. Los pueblos expuestos a la reiteración estereotipada de las imágenes son también pueblos expuestos a desaparecer (Didi-Huberman, 2014, p. 14, grifos do autor)[15].

 

Assim, subexposição e sobreexposição operam muitas vezes em conjunto, ora censurando, omitindo e desprezando imagens diversas dos povos, ora criando e replicando de maneira contínua imagens que enfatizam lugares-comuns, pré-conceitos e uma piedade mal-entendida. Os povos estão expostos ao desaparecimento, seja pela subexposição que simplesmente deixa de produzir qualquer tipo de imagem sobre eles, ou por sobreexposição, que ao lançar luz demais, cega. Trata-se da exposição estereotipada dos povos que também os fazem desaparecer ao retratá-los de formas “borradas” na televisão, no cinema e também na fotografia.

Como bem pontuou Jacques Rancière (2008), “no es cierto que quienes dominan el mundo nos engañen o nos cieguen mostrándo-nos imágenes en demasia. Su poder se ejerce antes que nada por el hecho de descartarlas” (p. 71)[16]. Trata-se, portanto, da propagação incessante das mesmas imagens de sempre, em detrimento de outras.

Quando ficamos diante da imagem, nosso presente é capturado na experiência do olhar. Reconfiguramos incessantemente nosso presente diante de uma imagem, por mais remota que ela seja. Isso porque a imagem só pode ser pensada a partir da construção e da mobilização da memória. Para Didi-Huberman (1999), é preciso reconhecer que a imagem nos sobreviverá, pois diante dela estamos apenas de passagem, e ela é, diante de nós, o elemento da duração. Assim, a imagem geralmente possui mais memória e mais futuro que o ser que a olha. Nesse sentido, estar perante uma imagem não nos leva somente a questionar o objeto de nossos olhares, pois também estamos diante do tempo. Questionamos não somente o objeto retratado, mas a própria história da arte e sua historicidade, temporalizando o tempo todo. Além disso, a ideia defendida por muitos historiadores, de que é necessário evitar o anacronismo, acaba por corroborar com a ideia, já bastante criticada, da existência de um “espírito do tempo”, do chamado Zeitgeist, como se todas as coisas contemporâneas compartilhassem com coerência o mesmo sistema de valores. Essa premissa já foi descartada há bastante tempo pela teoria da história por ser considerada essencialista, limitadora e insuficiente para entender as multiplicidades próprias que os tempos históricos possuem, mas às vezes ela aparece como um mandamento a ser seguido à risca por historiadores: não seja anacrônico. No entanto, um sujeito pode ser anacrônico em relação ao seu contemporâneo se for constatado que esse último estaria, supostamente, em maior concordância com o seu tempo. Seriam, portanto, pessoas que não pensam “num mesmo tempo”. Segundo Didi-Hubermann, nessa lógica, o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. A concordância dos tempos – quase – não existe. Não significa dizer, contudo, que determinados tempos históricos não possuam características que os diferenciam de outros, mas essas características não devem ser tomadas como um fator homogeneizante. O anacronismo é, a princípio, uma forma temporal de manifestação da complexidade e da sobredeterminação das imagens, de forma que é possível visualizar, num mesmo tempo, diferentes temporalidades, todas anacrônicas em relação às outras. Susan Sontag (2003) resume bem: fotos ecoam fotos.

Pensando nesse mesmo sentido, Reinhart Koselleck (2014) aponta que é preciso recorrer a metáforas retiradas da noção espacial para tratar sobre o tempo. Para o autor, os estratos do tempo, tais quais os estratos geológicos da terra, dizem respeito a diversos tempos históricos com diferentes durações que se interpenetram. Segundo o autor, a questão da repetibilidade é fundamental para que se compreenda de maneira mais concreta a metáfora dos estratos dos tempos históricos. Diferentemente de um retorno, que se propõe eterno, sempre voltando a acontecer de forma inalterada, a repetição é executada na atualidade, que dará o seu tom. Costumes, regras, leis e toda ação humana – inclusive a criação de imagens – apresentam diferentes estruturas de repetição. Tais estruturas nunca se reproduzem de forma homogênea e assim torna-se necessário apontar para as diferentes velocidades de mudança, atrasos e acelerações, que acarretam nas particularidades das repetições.

As imagens são, portanto, fragmentos do passado que se unem ao presente, num constante processo de revisão, releitura e re-olhar. Sobre essas relações temporais observáveis nas imagens, Gilles Deleuze afirmou em entrevista concedida à revista Cahiers du Cinéma:

L’image même, c’est um ensemble de apports de temps dont le présent ne fait que découler, soit comme commun multiple, soit comme plus petit divisieur. Les rapports de temps ne sont jamais vus dans la perception ordinaire, mais ils le sont dans l’image, dès qu’elle est créatrice. Elle rend sensibles, visibles, les rapports de temps irréductibles au présent (Deleuze, 1986, p. 32)[17].

 

Assim, imagens do passado que já foram memória de quem que as possuía, guardava e colecionava como parte de relíquias, lembranças ou testemunhos, num constante processo de vir a ser readquire o seu elemento de presente, em novos lugares, contextos e funções. Nesse sentido, imagens contribuem para forjar uma memória coletiva sobre determinados acontecimentos, contextos históricos, sociedades e classes sociais. Paul Ricoeur (2007), em sua obra que reconcilia a história e a memória e faz cair por terra a pobre oposição entre memória individual e memória coletiva, pontua que:

A memória de fato parece ser radicalmente singular: minhas lembranças não são as suas. Não se pode transferir as lembranças de um para a memória do outro. Enquanto minha, a memória é um modelo de minhadade, de possessão privada, para todas as experiências vivenciadas pelo sujeito. Em seguida, o vínculo original da consciência com o passado parece residir na memória. Foi dito com Aristóteles, diz-se de novo mais enfaticamente com Santo Agostinho, a memória é passado, e esse passado é o de minhas impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado. É por esse traço que a memória garante a continuidade temporal da pessoa e, por esse viés, essa identidade cujas dificuldades e armadilhas enfrentamos acima (Ricoeur, 2007, p. 107).

 

Mais adiante, o autor é cauteloso em pontuar que a memória “parece” individual, mas não é. Segundo Ricoeur (2007), não é possível dissociarmos memória individual e memória coletiva, colocando-as como antagônicas. Para o autor, lembramos e esquecemos também em função de nossas relações sociais. Não apenas a construção de uma memória coletiva pode ser pensada a partir do estudo das imagens, mas também a própria noção de que a forma como nos relacionamos esteticamente, no universo do sensível, é política, como propõe Rancière (2009a).

 

Conclusão

O mito da modernidade faz nascer consigo a colonialidade do ser, do saber e do poder. A modernidade/colonialidade pode ser compreendida também pelo que nomeei de um regime escópico da colonialidade, regime esse que vai além da criação, fabricação e reprodução de imagens visíveis. Defendi que o regime escópico da colonialidade diz respeito à forma como o sujeito moderno se constitui a partir de uma nova maneira de lidar com o tempo histórico e com suas relações de alteridade cujo locus de partida foi o continente europeu, e se constituiu num discurso que serviu de base para o estabelecimento da chamada “civilização ocidental”.

Foi descrito que as imagens, visíveis e invisíveis, criadas no regime escópico da colonialidade são representações que podem dissimular sintomas das relações de alteridade impostas por uma Matriz Colonial de Poder, e que no interior do regime escópico da colonialidade estão em disputa diferentes regimes visuais e disciplinamento iconográficos, mas a maneira de olhar e ser olhado manteve-se, desde o início das invasões europeias até hoje, baseada em uma relação dominador/dominado. Essa relação se fez perceber em inúmeras páginas dos jornais impressos, como o jornal O Estado, que a partir de encobrimentos, subexposições e sobreexposições criaram representações estereotipadas de pessoas e lugares, pois o jornalismo é produto e produtor da modernidade e da colonialidade. É próprio do regime escópico da colonialidade uma a ilusão da crença na teoria e uma postura paradoxal com as imagens.

O conjunto de imagens visíveis e invisíveis criadas num regime de escópico da colonialidade compõem um gigantesco acervo de imagens pautadas em repetições temáticas em formas de clichês, mas também repetições da forma de olhar para esses grupos, como vimos, são identificáveis em imagens produzidas em outros espaços e tempos. O regime escópico da colonialidade ora subexpõe, ora sobreexpõe grupos marginalizados, num constante processo de constituição do sujeito moderno.

Penso que o presente artigo foi uma tentativa primária de minha parte de corroborar com aquilo que Mignolo (2010) disse ser urgente: apontar para a colonização da estética pela Estética, no interior de um regime escópico da colonialidade, na tentativa e contribuir com reflexões que apontem para a construção de projetos globais e decoloniais de constituição de sujeitos, de estética e de política. Concluo com Didi-Huberman, ao compreender que:

A questão das imagens está no âmago desta grande agitação do tempo, deste nosso “mal-estar na cultura”. Seria preciso saber ver nas imagens aquilo de que elas são as sobreviventes. Para que a história, liberta do puro passado (desse absoluto, dessa abstração), nos ajude a abrir o presente do tempo (Didi-Huberman, 2012, p. 229).

 

Que esse mal-estar, longe de ser totalmente resolvido e apaziguado, seja sempre posto em debate a partir do tensionamento entre os pensadores europeus e a teoria decolonial, em vias de construir pensamentos fronteiriços.

 

 

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Recebido em 10/09/2023.

Aceito em 15/11/2023.



[1] Licenciada e mestra em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Professora colaboradora na Faculdade Municipal de Palhoça (FMP). Brasil. E-mail: isadoramunizvieira@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-2366-5403

[2] A Queda do Muro de Berlim é frequentemente associada com o esfacelamento do socialismo mundial e um triunfo capitalista, porém Bruno Latour (1994) pontua que 1989 foi um ano de muitas realizações de conferências preocupadas com o perigoso estado global do mundo alcançado graças ao capitalismo e suas tentativas de se assenhorar da natureza e explorar os “recursos naturais”. Assim, 1989 representa o marco mais recente do fim das crenças tanto socialistas quanto capitalistas e fim da confiança num suposto mundo moderno, induzindo ao questionamento “fomos, um dia, modernos?”.

[3] Hegel afirmou que o “Novo Mundo” devia assim ser chamado não apenas porque ele tinha sido recém “descoberto” pelos europeus, mas porque ele estava num estágio de um suposto desenvolvimento civilizatório ainda imaturo. As terras recém “descobertas”, para o filósofo alemão, ainda estavam “em formação”, o que podia ser constatado em função da “inferioridade de seus indivíduos. No entanto, essas terras novas, ainda que imaturas, formavam com Europa uma totalidade organizada a partir do Mar Meditarrêneo, que conferia uma centralidade geográfica aos europeus. Mais adiante veremos que tal centralidade também se refere às formas de ser, poder e saber (Hegel, 1974).

[4] Opto por tratar não apenas de uma perspectiva estética, mas uma relação escópica, como explicarei mais à frente.

[5] O termo “visão de mundo” (Weltanschauung) origina-se no interior do pensamento filosófico alemão, com Immanuel Kant (1724-1804), que contribuiu com a consolidação do “idealismo alemão”. Foi Martin Heidegger (1889-1976) quem fez uma apropriação desse termo a partir de uma nova concepção do sentido de “visão de mundo” (Provinciatto, 2019).

[6] Em seu ensaio intitulado Scopic Regimes Of Modernity, Jay defende que não há um regime escópico da modernidade homogêneo, mas diferentes maneiras de criar imagens num mesmo período que a história ocidental chamou de Idade Moderna. Para ele, é próprio de um regime escópico moderno as tensões e as disputas visuais. Aqui, acrescento a essa discussão as reflexões de Rancière (2009a) a respeito da partilha do sensível, antes de qualquer experiência visível e invisível única e seu próprio questionamento do termo “modernidade”. Acrescento ainda que, se há algo próprio de um regime escópico moderno é seu lado indissociável da colonialidade, ocasionando fatalmente numa partilha do sensível que inclui uns e exclui os Outros à margem da política – e, por sua vez, da estética – imposta pela Matriz Colonial de Poder. 

[7] Freud fez a separação entre instinto (instinkt) e pulsão (trieb). O primeiro diz respeito à herança filogenética da espécie humana que possibilitou sua adaptação ao meio através de reações, para além da transmissão genética nos descendentes. A segunda é uma característica propriamente humana, pois só é possível através da linguagem. Além das mais básicas pulsões de autoconservação (as que efetivamente satisfazem necessidades vitais como comer, beber, dormir, urinar, defecar, etc.), Freud identificou pulsões sexuais cujas fontes, objetos e objetivos, ao contrário das pulsões de autoconservação, não são fixas, mas são modificáveis na medida em que são atravessadas pelo desejo (jamais satisfeito) inscrito na linguagem. Aqui, diferente da necessidade e da demanda, o desejo é deslizante e metonímico. Cf. FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos–Edição bilíngue. São Paulo: Autêntica, 2016.

[8] Real, Imaginário e Simbólico são três registros do inconsciente propostos por Lacan. O Real diz respeito ao caótico, do não-sentido, que é impensável, inimaginável, inominável. O Imaginário é o campo apaziguador das identificações, é o imaginar da linguagem, domínio que possibilita a ilusão de que haveria algum princípio de realidade na experiência humana. O Imaginário é subordinado e determinado pelo Simbólico. O Simbólico, portanto, corta e atravessa o plano do Imaginário, é a instância da Lei que instaura um limite ao incesto, importante para a emergência do Eu enquanto instância do Imaginário, mas fundamentalmente do Sujeito do inconsciente, dividido, castrado. Cf. PLON, Michel; ROUDINESCO, Elisabeth. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro, Lucy Magalhães. — Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

[9] A libido para psicanálise é a energia psíquica das pulsões sexuais, que deparam seu regime em termos de desejo, de anseios amorosos, e que, para Freud, justifica a presença e a expressão do sexual na vida psíquica (Chemama, 1995).

[10] A noção da antiguidade estava baseada em torno da ideia de raio visual, como se olhar fosse projetar um fogo da alma para o exterior do corpo. Raio visual que não é igual ao raio luminoso explicado pela física moderna. O raio visual já possui em si mesmo a luminosidade em função de um suposto fogo do olhar que tornaria tudo visível. Na concepção da antiguidade, luz e visão estavam ligadas pela noção do raio visual: da mesma maneira que o olhar ilumina as coisas de sua visibilidade, os corpos celestes possuem vista. A vista humana irradia, e toda fonte luminosa tem a capacidade de ver. Graças a todas essas características do ver, o conhecimento sobre as coisas do mundo só seria alcançado a partir do vislumbre proporcionado pelo raio visual. Sócrates é quem faz a diferenciação entre um olho que vê o mundo iluminado pelo Sol e um olho da alma dotado de inteligência. Diferentemente do olho corpóreo cujo olhar incorpóreo encontraria o fogo exterior, o olhar do olho da alma seria contemplativo, seria capaz de ver a “verdade”. Do “ponto de vista” de Sócrates, o olhar do olho do corpo veria o mundo sensível, e o olhar do olho da alma “veria” o mundo inteligível. Cf. PLATÃO. A República. Trad. Carlos Alberto Nunes – 3. Ed. – Belém: EDUFPA, 2000. PLATÃO. Timeu-Crítias. Trad. Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011.

[11] “(...) o regime escópico da modernidade pode ser melhor entendido como um terreno contestado, em vez de um complexo harmoniosamente integrado de teorias e práticas visuais. Pode, de facto, caracterizar-se por uma diferenciação de subculturas visuais, cuja separação nos permitiu compreender as múltiplas implicações da visão de uma forma que agora apenas começa a ser apreciada. Essa nova compreensão, quero sugerir, pode muito bem ser produto de uma inversão radical na hierarquia das subculturas visuais no regime escópico moderno” (tradução da autora).

[12] Termo oriundo da antropologia e utilizado por Jacques Lacan como substantivo masculino, a partir da década 1930, para se referir ao sistema de representação cuja base é linguagem, ou seja, em signos e significações que definem o sujeito ao exercer sua faculdade de simbolização, consciente e inconscientemente. O conceito de Simbólico é indissociável dos de Imaginário e Real, formando os três o nó borromeano. Ele designa tanto a função simbólica a que o sujeito está conectado quanto a própria psicanálise, visto que ela se baseia num tratamento ancorado na fala (Plon; Roudinesco, 1998).

[13] Se na categoria do Simbólico Jacques Lacan contemplou a dimensão da experiência humana condicionada pela linguagem; e na categoria do Imaginário situou todos os fenômenos relacionados à construção do Eu; no Real, por fim, inseriu a realidade psíquica, ou seja, o desejo inconsciente e as fantasias que lhe estão relacionadas, tal qual um “resto”, uma realidade desejante, inacessível e inapreensível e que não cessa de escapar a qualquer pensamento subjetivo e pela via da linguagem.

[14] Nesse sentido, o que está em jogo não é a forma como os seres veem o mundo, mas o mundo que veem. Dessa maneira, o sangue é tal qual cauim para a onça, os vermes na carne apodrecida são como caça temperada com pimenta para os urubus, etc. Por esse mesmo raciocínio, os predadores compreendem os humanos como os humanos veem o que caça, enquanto a caça dos humanos os vê como animais predadores.

[15] “A subexposição simplesmente nos priva dos meios de ver o que ela pode ser: basta, por exemplo, não enviar um repórter-fotógrafo ou uma equipe de televisão ao local de qualquer injustiça – seja nas ruas de Paris ou em outro extremo do mundo – para que tenha todas as chances de ficar impune e assim atingir seu objetivo. Mas a sobreexposição não é muito melhor: muita luz cega. Povos expostos à reiteração estereotipada de imagens são também povos expostos ao desaparecimento” (tradução da autora).

[16] “Não é verdade que aqueles que dominam o mundo nos enganam ou nos cegam, mostrando-nos muitas imagens. Seu poder é exercido antes de qualquer outra coisa pelo fato de descartá-las”. Livre tradução da autora.

[17] “A própria imagem é um conjunto de entradas de tempo das quais o presente flui apenas, como um múltiplo comum ou como o menor divisor. As relações de tempo nunca são vistas na percepção comum, mas são vistas na imagem, logo que sejam criativas. Torna as relações do tempo irredutíveis ao presente, sensíveis e visíveis.” Livre tradução da autora.