A questão da imagem e o conhecimento histórico

The matter of the image and the historical knowledge

                                                                                               Elisa Pomari[1]

 

 


Resumo

O artigo apresentado é um esforço de síntese, ainda que parcial, de discussões acerca de teorias da imagem e da arte inseridas no contexto da virada visual, com especial atenção para as consequências dessas reflexões e abordagens para a prática de pesquisa em História. A partir de pesquisa bibliográfica e em diálogo com outros artigos que se esforçam no mesmo sentido, buscou-se identificar os princípios gerais, temáticas recorrentes e os pontos de contato entre autores que se dedicaram a refletir sobre as especificidades das imagens, seja nas sociedades nas quais foram produzidas e nas quais circularam. Além disso, foram incorporados autores de áreas próximas, e, que apesar de terem proposições convergentes, permanecem separados por divisões disciplinares. O texto também procurou apontar os movimentos internos dentro das práticas disciplinares da História a fim de compreender quais seriam os limites e similaridades com a virada visual.

Palavras-chave: Virada visual; Historiografia; Teoria da imagem.

Abstract

This paper is an effort, albeit partially, to synthesize the discussions on theories of image and art within the context of the visual turn, with a particular focus on the consequences of these reflections and approaches for historical research. Based on bibliographical research and in dialog with other articles that strive in the same direction, we sought to identify the general principles, recurring themes, and common ground between authors who have dedicated themselves to reflecting on the specificities of images, both in the societies in which they were produced and in which they circulated. In addition, we have incorporated into the discussion authors from similar areas who, despite having convergent propositions, remain separated by disciplinary divisions. The text also seeks to point out the internal movements within the disciplinary practices of History in order to understand the limits and similarities with the visual turn.

Keywords: Visual turn; Historiography; Image theory.


 

 

 

Daí as tentativas para decifrar de outro modo as sociedades, penetrando nas meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada particular (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e grupos dão sentido ao mundo que é o deles.

Roger Chartier (1991, p. 177)

 

A dialética entre o ver e o não-ver interroga o conhecimento como fruto do sensível, defendendo a ponte entre o dado e a abstração que permite ver onde os outros não veem. Trata-se de definir o olhar como pensamento e fazer dele matéria do conhecimento histórico.

Paulo Knauss (2006, p. 115)

 

Por um lado, parece incontestável que nossas vidas estejam determinadas atualmente pela visualidade e seus anteparos em um nível inimaginável até pouco tempo atrás. Por outro lado, o pensamento contemporâneo (filosofia, teoria, crítica) parece não estar ainda perfeitamente armado para confrontar uma realidade que não pode ser interpretada com base em um texto ou (para dizer o mínimo) entendido como uma de suas extensões.

 Emmanuel Alloa (2019, p. 93)

 

Introdução

O que é uma imagem? Apesar das reflexões acerca de sua natureza serem antigas – remontando a Platão na tradição do pensamento Ocidental – elas reemergem em diferentes contextos e mantêm sua relevância nos debates acadêmicos contemporâneos. Ao se debruçarem também sobre as relações entre imagem, pensamento, comunicação, arte, conhecimento e agência, as discussões acerca da ontologia da imagem atravessam diferentes áreas do conhecimento e se tornam mais complexas. Sem, no entanto, esgotar a questão.

A partir movimentos disciplinares próprios e em diálogo com a virada visual, a historiografia incorporou os debates sistemáticos acerca das imagens e da visualidade como meio de produção de saber, forma estruturante do pensar e do estar no mundo, assim como de agir sobre ele. Gradualmente enfatizando a dimensão visual como fonte de conhecimento sobre as culturas, regiões e sociedades que as produziram, no passado e no presente. Dessa forma, a imagem como um problema filosófico histórico converteu-se também no problema da filosofia da imagem para o conhecimento histórico.

Com o objetivo de compreender os impactos da virada à imagem[2] na historiografia, tanto no que tange à imagem como fonte histórica quanto à visibilidade do passado no tempo presente, relacionada aos usos públicos da história, Santiago Jr. apresenta um complexo e completo panorama dos alicerces teóricos da virada visual em dois textos basilares (2019a; 2019b). O historiador define esse processo como a “inversão produzida pela concepção de alteridade das imagens como um campo regulador da compreensão das experiências sociais” (Santiago Jr, 2019a, p. 5). Marcado por três vertentes teóricas distintas que foram constituídas ao longo das décadas de 1980 e 1990: a norte-americana, a partir do trabalho de W. J. T. Mitchell, com o pictorial turn e a nova iconologia; a alemã com Gottfried Boehm e a Bildwissenschaft ou ciência da imagem; e a francesa de Georges Didi-Huberman, com a théorie de l'image e sintomatologia.

Na vertente alemã, influenciada pela fenomenologia, pura visualidade austríaca e pelos trabalhos de Warburg, Boehm opõe-se a “uma iconologia e iconografia repressoras das imagens por meio das fórmulas textuais do tipo de Erwin Panofsky” (Santiago Jr., 2019a, p. 6) e propõe o conceito de diferença icônica. Em sua teoria, a imagem configura um sistema autônomo de significação definidor da cognição humana e social. Apesar de ambos serem sistemas de significação, o icônico e o linguístico repudiam-se e operam de forma distinta. Visto que a imagem e olhar – elementos produtores do icônico – relacionam conhecimento e afecções, ou seja, trabalham na dimensão do pathos, e não dos saberes e discursos, dimensão do logos na qual a linguagem funciona. Nesse contexto, a eficácia da imagem estaria na sua potência em gerar sentimentos, inquietação e afeto. Destaca também como fator expressivo nas reflexões de Boehm o vínculo entre as imagens e seu suporte, a forma física necessária de sua materialização. Santiago Jr. resume a virada icônica de Boehm como o reconhecimento da relevância “do imaginal na constituição das relações das pessoas com as coisas e entre si” (2019a, p. 15). Isso possibilita a compreensão da complexidade e presença das coisas-imagem no mundo a partir de investigações e questionamentos referenciados na própria iconicidade e não na busca por significados e sentidos externos à visualidade ou ao imaginal.

Por sua vez, W. T. J. Mitchell, em diálogo com as proposições de Panofsky, influenciado por Wittgsntein, Foucault, Nelson Goodman e a partir de suas pesquisas sobre arte e literatura, apresenta a ideia de ícones verbais no final dos anos 1970. O conceito, definido como “formas icônicas cujo potencial metafórico/imagético é fundamental para entender o funcionamento dos textos” (Mitchell apud Santiago Jr, 2019a, p. 16), sugere o comportamento imagético do jogo de linguagem e preconiza o esmorecimento da divisão entre o visual e textual, característica marcante de sua teoria. Inicialmente, propõe retomar a ligação etimológica entre ideia e imagem, desfazendo a distinção platônica entre mundo sensível e inteligível, como uma forma de poder explorar as maneiras e motivos que produziram a separação entre ideias e imagens, sejam elas mentais, verbais, pictóricas ou perceptivas (Mitchell, 1986, p. 6). Ao longo dos anos seguintes, o argumento se desenvolveu dando cada vez mais atenção à centralidade das imagens, em seu sentido amplo, como objeto de conhecimento e campo de conflagração de tensões. Mitchell utiliza uma diferenciação própria da língua inglesa entre picture, a imagem visual materializada, e images, as ideais, o intangível a partir do qual as imagens (pictures) são feitas, possibilitando argumentar que tanto as imagens (pictures) quanto os textos são a materialização daquilo que é intangível, representações do pensamento ou das ideais (images). O desenrolar desse processo gera uma nova iconologia, que faz referência ao postulado de Panofsky, mas enfatiza uma interação mútua entre textos e imagens para a investigação da construção de sentidos e da representação como práticas de significação social, sem que haja uma preponderância do textual como força repressora daquilo que é específico do pictórico, da imagem materializada. Em suma, a virada pictórica, para Mitchell pode ser entendida como:

uma redescoberta pós-linguística e pós-semiótica da imagem [picture] é como uma interação complexa entre a visualidade, aparelhos, instituições, discurso, corpos e figuração. É a constatação de que os atos de assistir (a visão, o olhar, a mirada, as práticas de observação, vigilância e prazer visual) podem ser um problema tão profundo quanto as várias formas de leitura (decifração, decodificação, interpretação, etc.) e que experiência visual ou ‘alfabetização visual’ pode não ser totalmente explicável no modelo de textualidade. O mais importante, é a constatação de que, embora o problema da representação pictórica [pictorial representation] sempre tenha estado conosco, ele pressiona inescapavelmente agora, e com uma força sem precedentes, em todos os níveis da cultura, desde as especulações filosóficas mais refinadas até as produções mais vulgares dos meios de comunicação de massa (Mitchell apud Santiago Jr, 2019a, p. 20).

 

No trecho, é possível observar alguns pontos fundamentais de suas proposições: o afastamento de uma tradição de submissão das imagens à lógica analítica textual, sem abandonar por completo as ferramentas metodológicas nem o vocabulário advindo das estratégias de investigação linguísticas e literárias, reconhece que as imagens contêm uma especificidade passível de transbordar os modelos teóricos e analíticos dos textos. Ainda, chama atenção para a miríade de relações constitutivas e constituídas na experiência social com e pela dimensão visual, o que também passa pelos corpos, dispositivos e objetos, instituições e discursos. Além disso, pontua a ubiquidade e permanência da questão pictórica e sua emergência no pensamento contemporâneo.

Por fim, tem-se a vertente francesa com Georges Didi-Huberman e o postulado da singularidade da imagem a partir da ideia de que ela presentifica múltiplos passados e por isso incita uma postura anacrônica. Para Didi-Huberman, a imagem seria uma presença, forma ou energia, um outro que configura diversas temporalidades e demanda investimento de afeto e significação de quem as vê. Conforme resume Santiago Jr.:

Ela é sintoma dos ritmos temporais dessas forças [que se tensionam na superfície e formam a imagem] e por isso não é fonte ou documento, intervindo diretamente na formulação da questão histórica; ou seja, a dúvida metódica que faz da imagem capaz de acessar os passados trata o encontro do historiador com a fonte como uma maneira de sintomatizar o encontro das demandas já portadas pela imagem como memória/passado e os interesses dos agentes do presente (2019b, p. 413).

 

As proposições de Didi-Huberman, mais do que chamar atenção para a imagem como objeto de conhecimento, a apresentam também como aglutinadora de diferentes realidades sociais, que abrangem toda sua trajetória em diferentes temporalidades e incluem o presente no qual são depositados os questionamentos históricos de quem as observa e analisa. Dessa forma, a finalidade da história da arte seria a de fazer “a história de um paradigma visual” que não se reduz à imagem, ao seu visível, mas deve também considerar a “malha de acontecimentos-sintomas que atingem o visível como tantos rastros ou estilhaços” (Didi-Huberman, 2013, p. 40) e que mobilizam algo em quem as vê, ou seja, que também possuem algo de virtual atuando sobre todos os observadores.[3] 

Tal postura foi apontada por Emmanuel Alloa (2019) como o retorno a um ideal da iconologia formulada no início do século XX. Alloa retoma a citação de Didi-Huberman acerca de uma das definições iniciais de iconologia descrita por Panofsky como “história de sintomas culturais” (Panofsky apud Alloa, 2019, p. 101) e propõe que uma ciência das imagens deveria recuperar o sentido de sintomas ali apresentado. Compreendendo, então, a imagem como sintoma que não poderia ser a “expressão direta de uma causa, mas sim determinado por uma variedade delas ao mesmo tempo” (Alloa, 2019, p. 101). Ou seja, indo ao encontro de Didi-Huberman, vê a imagem como uma condensação, um entrelaçamento ou, nos termos da psicanálise freudiana, como pontos nodais. Dessa forma, desponta um laço entre a teoria da imagem francesa e uma proposta reincidente da iconologia.

Voltando ao princípio sintetizado por Santiago Jr., a virada à imagem, em suas múltiplas vertentes, tem como pedra fundamental o reconhecimento da diferença e particularidades do visual. Isso, por sua vez, enseja ao menos uma desestabilização na hierarquia entre texto e imagem, e pode levar também a uma completa recusa de modelos linguísticos de análise. Num primeiro olhar, seria possível aproximar as teorias Boehm e Didi-Huberman como uma recusa mais radical à lógica textual, da semântica e da semiótica, enquanto Mitchell procuraria desfazer a subalternidade das imagens não a partir da recusa ao texto, mas sim demonstrando a interdependência entre imagens e textos na produção de sentido.[4] Contudo, ao considerar a observação de Alloa associando a sintomatologia de Didi-Huberman e a iconologia em seu sentido histórico, de certa forma, é possível aproximar a abordagem francesa da americana. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que Boehm e Mitchell consideraram a virada icônica e pictórica como sinônimas e como uma resposta acadêmica às demandas e ansiedades sociais que lhes foram contemporâneas. Dessa forma, os três autores alinham-se ao questionar e romper com modelos que privilegiam a estrutura linguística, afirmando a autonomia da imagem na produção de conhecimento e sentido. Apesar de terem diferentes percursos, trata-se, em suma, de transformações epistemológicas desencadeadas pelo reconhecimento da potência da imagem no tempo presente, como discurso e fonte de conhecimento sobre o passado, o que exigiu uma reavaliação das bases teóricas acerca do papel da visualidade no pensamento, na cognição, e nos diversos processos de interação social.[5]  

Para além dos precursores discutidos por Santiago Jr. e Alloa, outros autores dedicaram seus trabalhos a reflexões sobre a dimensão visual, como é o caso do antropólogo inglês Alfred Gell. Em seu provocador e as vezes controverso Arte e Agência (2018), o autor opõe-se veementemente à caracterização da arte como uma linguagem ou forma de comunicação simbólica. Em vez disso, concentra-se nos conceitos de agência, intenção, causalidade, resultado e transformação, posto que compreende a arte “como um sistema de ação cujo propósito é mudar o mundo, e não codificar proposições simbólicas acerca dele” (Gell, 2018, p. 31). Além disso, também recusa a ideia de estética[6] como uma categoria filosófica da arte e como atitude da antropologia diante de objetos de arte, enfatizando o caráter metropolitano desse tipo de abordagem. Ao não definir de maneira rígida sua concepção de objeto artístico, acaba por abrir caminho para análise da dimensão visual de uma miríade de objetos da cultura material e sua dinâmica de atuação nas relações sociais em que estão inseridos. Indo além, postula que a antropologia da arte deveria ser fundamentada em torno da ideia de que os objetos de arte estão inseridos em processos sociais e podem ser considerados como agentes. Em outras palavras, podem ser entendidos como pessoas não biológicas que participam das relações e podem fazer com que eventos aconteçam em torno de si (Gell, 2018, p. 45).[7] 

Na teoria do sentido da arte elaborada por ele são definidas quatro categorias de participação nas relações sociais, denominadas termos: o índice[8] – o objeto de arte em sua indefinição amplificadora –, o artista, o destinatário e o protótipo – aquilo ao qual o índice faz referência ou ao qual está ligado de alguma maneira. Grande parte de seu argumento é organizado a partir da análise e compreensão das múltiplas interações e interferências que podem existir entre esses termos, assumindo o papel hora de agentes, hora de pacientes uns dos outros ou de si mesmos. A operação cognitiva que transpassa esse sistema e possibilita a elaboração de sentido é a abdução. O termo é compartilhado pela lógica e pela semiótica, compreendido como uma forma de inferência hipotética, voltada para a elaboração de uma explicação ainda não existente como regra, que poderia ser entendida como mais próxima de conjecturar do que de inferir ou deduzir (Pierce apud Alloa, 2019, p.106). Para Gell, a abdução situa-se entre a inferência semiótica e a inferência hipotética e, mais precisamente no contexto de sua teoria, pode ser entendida como “a maneira que geralmente encontramos para formar uma noção da disposição e das intenções dos ‘outros sociais’” (Gell, 2018, p. 43). Ou seja, a abdução é o processo de elaboração de hipóteses a partir do índice, de conjecturar acerca de suas intenções e possibilidades de atuação.

Ao longo do livro, elabora dois outros conceitos congêneres importantes para seu argumento principal: a ideia de pessoa distribuída e de objeto distribuído. Por pessoa ou personitude distribuída refere-se a situações nas quais um indivíduo tem fragmentos de si distribuídos no meio social que podem ser compreendidos como dotados de agência sobre o protótipo, como no caso de feitiçaria de exúvias, ou sobre o destinatário, como na idolatria. Isso seria possível porque é atribuída ao índice uma existência interna, uma mente que concede a ele intencionalidade ou consciência. Da mesma forma, as intenções de um outro social podem ser materializadas ou corporificadas naquilo que produzem. E a sua forma de atuação é precisamente a dimensão visual, a eficácia de sua presença diante dos olhos do observador. Assim, a agência pode ser externalizada em diferentes objetos, como, por exemplo, a obra de um artista ou um conjunto de artefatos produzidos por uma sociedade. Esses objetos distribuídos são vetores da agência de seus produtores, os artistas coletivos ou individuais, e, assim, podem ser considerados como testemunhos de sua mente, suas relações e intencionalidades. Por meio de um conjunto disperso de objetos, afirma Gell, “a pessoa e sua mente não se limitam a coordenadas espaço temporais” e, na medida em que “dão testemunho à agência, constituem, é claro, categorias de objetos de arte” (Gell, 2018, p. 323-324).

Faz-se oportuno recuar a um texto anterior, A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia, datado de 1992, para observar alguns dos fundamentos do que foi desenvolvido por Gell posteriormente. Nesse texto já é possível observar a crítica que aponta a relação entre concepções etnocêntricas de arte e a preterição do tema nos trabalhos antropológicos que se ocupam de sociedades não Ocidentais[9], o que motiva sua recusa da estética como categoria de reflexão sobre arte na antropologia, batizada de filistinismo metodológico. Para além, – e talvez este seja o ponto mais importante para entender a maneira pela qual a agência da arte é compreendida em sua teoria – o antropólogo estabelece a arte como algo que foi produzido, que age por meio do encanto causado pela maestria da técnica e cujo objetivo é a persuasão. Em resumo, a arte seria uma tecnologia do encanto, um sistema de convencimento e produção de consentimento que funciona por meio do encanto da tecnologia, do fascínio que um objeto produzido pode causar a partir de sua capacidade de arrebatamento ou significância moral sobre o espectador.[10]   

Assim, Alfred Gell, de forma bastante original, enfatiza e articula alguns pontos caros para aqueles que se dedicam a refletir sobre a visualidade e a relevância da dimensão visual nas dinâmicas das sociedades ao longo do tempo. Em primeiro lugar, identifica a arte como uma maneira de atuação para persuadir e convencer, depois compreendida em sentido mais amplo como uma forma de transformar ou agir sobre a realidade a partir da dimensão visual. Operando como uma tecnologia que encanta por meio da dissonância existente entre a destreza de seu produtor e de seu observador, capaz de gerar sentimentos e inquietações que podem ser aproximadas ao pathos. Ainda, ressalta que esses objetos ultrapassam geográfica e temporalmente seus produtores, como objetos ou pessoas distribuídas, capazes de evocar as redes de intencionalidade de onde se originaram e das quais participaram ao longo de sua existência, bem como de perpetuar agências para além dos limites biológicos de indivíduos coletivos ou individuais. Também salienta o quadro complexo das possibilidades relacionais entre os termos – índice, o artista, o destinatário e o protótipo – em sua teoria do sentido da arte, demonstrando a profusão de interações entre os envolvidos no processo de elaboração e circulação desses objetos e enfatizando o caráter relacional da agência e da própria definição de arte. Por fim, é importante pontuar que suas análises partem de objetos de arte não Ocidentais e que o autor pontua repetidas vezes o etnocentrismo e colonialismo nos estudos relacionados ao mundo da arte.

Coadunando com alguns pontos observados até aqui, em O destino das imagens (2012) que reúne artigos e conferências de Jacques Rancière, são sublinhadas duas potências atribuídas às imagens: uma presença sensível bruta, puro bloco de visibilidade que não encontra tradução, e um discurso cifrado que contém histórias legíveis inscritas nos objetos. O filósofo, prossegue afirmando que as duas potências são concepções da imagem como palavra que fala ou se cala. Entretanto, baseia seu entendimento sobre imagens e os regimes de imagéité em uma lógica mais ampla: como práticas e formas de visibilidade e inteligibilidade que partem de diferentes articulações entre imagem e significado. Sugere, ainda, a existência de espaços distintos de performance das imagens: imagens nuas, que funcionam como testemunhos e são predominantemente dizíveis; imagens ostensivas, aquelas de presença sensível bruta e dominante, quase completamente visíveis; e imagens metafóricas. Nesse último espaço se encaixam as obras de arte, posto que elas criam, articulam e rearticulam semelhanças e dessemelhanças, jogam com as funções visíveis e dizíveis das imagens. Trata-se, não de uma disputa entre visível ou invisível, mas das diferentes combinações entre as cargas de visível e dizível presentes nas imagens, passíveis de variação conforme o local, tempo, sua forma de circulação e exibição, assim como das interações com os que a observam. As imagens metafóricas de Rancière – pensadas a partir de artes visuais e do teatro – parecem encontrar seu espelho nos ícones verbais de Mitchell – que não elabora sua teoria a partir da literatura. Partindo de direções distintas, os dois autores apontam o entrelaçamento entre imagens e textos nas formas de expressão da arte.

Ranicière observa, ainda, em A Partilha do Sensível (2009), que as práticas, objetos e performance artística interferem nas maneiras de fazer, de ser e na relação com as formas de visibilidade das sociedades. Estruturam, assim, a maneira pela qual cria-se sentido nessas comunidades ou grupos sociais, a forma por meio da qual arte faz política. O que constitui uma politicidade do sensível pelos regimes da arte. Também sinaliza que dentre as transformações nas sociedades europeias entre o fim do século XIX e o início do XX teria ocorrido uma mudança no regime da arte que trouxe o questionamento de tradições clássicas – regime no qual haveria uma equivalência entre imagem e palavra e sobre o qual a iconologia de Panofsky se debruça – pelos movimentos de vanguarda. De forma simultânea, ocorreu o entrelaçamento da cultura tipográfica e iconográfica, geradoras de outras práticas e relações que foram determinantes para o estabelecimento de uma nova política do sensível, representativa de novos paradigmas do pensamento político e social. O que, na teoria da arte elaborada pelo filósofo, corresponderia ao regime estético da arte.[11]  Nesse sentido, a ideia de que a transformação das relações entre imagem, palavra, técnica, arte e significado se apresentam como um imperativo das sociedades ao longo do tempo, assim como na contemporaneidade, também pode ser observada como ponto central das reflexões de Rancière.

Ao retomar as proposições apresentadas é possível esboçar princípios gerais, preocupações convergentes e alguns pontos de contato. O tensionamento entre palavra e imagem atravessa grande parte do debate. A insubordinação da dimensão visual ao exame desenvolvido a partir de modelos advindos do campo da linguagem é enfatizada, assim como os são os limites metodológicos que se norteiam em estruturas textuais para buscar os significados nas e das imagens. No entanto, persistem nas argumentações termos advindos da análise semiótica e linguística (tais como ícone, abdução, significação, significante, representação, leitura e alfabetização). Indicando uma provável filiação acadêmica do debate, assim com uma lacuna discursiva para a abordagem do visual e da iconicidade a partir de termos analíticos próprios ou especializados[12]. Também seria possível entender essa permanência dos termos como uma apropriação, que busca sua atualização ou ressignificação com o objetivo de compreender e expressar o indizível das imagens. Em paralelo, multiplicam-se as palavras cujas definições são variáveis, nem sempre definidas e frequentemente sobrepostas (como imaginal, visual, visível, figurabilidade). Termos que parecem ser apresentados como portadores de sentido auto evidente e consensual em alguns dos textos, mas, contudo, são utilizados de forma diferente por autores distintos, sem que haja uma sistematização sobre o assunto. De forma geral, isso permite, por um lado, observar a fertilidade analítica proveniente da virada à imagem, ao mesmo passo em que enseja questionamentos sobre os limites de uma recusa radical aos modelos analíticos textuais e indica a carência da sistematização de um arcabouço conceitual que possa ser compartilhado, debatido e questionado. 

A virada à imagem também ancora a dimensão visual nos seus suportes físicos bem como nas práticas e agentes sociais que as originam. A ênfase acerca do suporte lança luz sobre a cultura material, pavimentando o caminho para a ampliação dos objetos de estudo em várias disciplinas, indo além daqueles que se enquadram em parâmetros tradicionais de arte. Assim como incentiva reflexões acerca das formas de circulação e exibição das imagens, permitindo novos olhares sobre as dinâmicas entre diversas mídias, visualidades e as políticas de sensibilidade. Igualmente relevante é a atenção dada às relações e práticas sociais para compreensão da dimensão visual. Os corpos ou objetos-imagem são fruto de seu tempo e local de produção, assim como estabelecem relações com diversas outras temporalidades e sociedades ao longo de sua biografia. Ainda, podem ser eles próprios agentes de transformação da experiência social. Isso os torna fonte de conhecimento sobre todos os processos nos quais estão envolvidos. 

A compreensão da agência, eficácia ou formas de fazer política das imagens são pontos centrais dessa retomada teórica. Depreender a maneira pela qual funcionam, suas relações sociais, seja como agentes, mediadoras de agências, elemento produtor de consenso ou constitutivo de sensibilidades e afecções, parece ser o grande desafio e ao mesmo tempo a potência da virada à imagem. O que, para a historiografia, significa a compreensão acerca de como dimensão visual, em suas mais diversas formas, materializada em objetos variados e ao longo do tempo, interagindo com instituições e discursos a partir de dispositivos e aparelhos e atravessando corpos e sujeitos, moldou as experiências passadas, assim como ainda molda a maneira como hoje nós as vemos e concebemos.

Pensando especificamente nos debates próprios da história como disciplina, vale retomar texto clássico de Chartier (1991) acerca da representação. Diante das discussões  acarretadas pelo que chama de crise dos grandes modelos explicativos tanto no contexto acadêmico quanto no campo político-social (marxismo e estruturalismo) e seus reflexos nas ciências sociais, o historiador francês argumenta que a historiografia, nas décadas anteriores às crises, já demonstrava abertura para novas abordagens, objetos e práticas, até então secundarizados, como reguladores da experiência social. Ao se afastar de tais matrizes teóricas, foi possível tomar as representações, bem como as dinâmicas intelectuais e sociais envolvidas na sua elaboração, como objeto de estudo, ou seja, como plataforma de compreensão da sociedade. Em outras palavras, entender o mundo como e a partir da representação.

Suas reflexões possibilitam observar que, num momento muito próximo daquele no qual afloraram debates acerca da relevância da dimensão visual e da iconicidade, um movimento até certo ponto semelhante desenvolvia-se na historiografia. Cabe também pontuar que o autor retoma o sentido do termo representação do século XVIII, definido como aquilo que faz ver uma ausência, que apresenta uma presença ou faz uma presença pública. Essas definições parecem confluir com aquelas assumidas para imagens e objetos de arte em muitos contextos e pesquisas posteriores à virada visual. Além disso, Chartier também enfatiza a cultura material, conferindo atenção aos suportes que contêm os textos ou aos objetos que participam da teatralização – ambos partícipes e construtores da representação –, assim como reforça a importância das práticas sociais de produção e recepção que envolvem a construção de sentido. O que também parece encontrar paralelo nas abordagens metodológicas de trabalhos que se dedicaram às imagens posteriormente.

Não se trata aqui de projetar uma virada visual na análise de Chartier ou sugerir que o sentido do termo representação seria equivalente ao da alteridade da imagem, mas sim de notar uma convergência nas mudanças de abordagens e perspectivas da historiografia que parecem estabelecer diálogo com alguns pontos enfatizados pelos questionamentos e proposições teóricas das viradas à imagem desenvolvidas em um período próximo. Deslocamentos e desestabilização de paradigmas disciplinares motivadas por questões contemporâneas. Esses percursos são paralelos e, no entanto, compartilham a atenção aos suportes materiais e a observação da relevância de práticas sociais e culturais como construtoras dos sentidos das representações. Contudo, as renovações observadas por Chartier inseriram-se num processo de regionalização, criação de modalidades de história ou de histórias axiológicas.[13] 

Isto posto, não parece ser por acaso que Ulpiano Bezerra de Meneses, ao percorrer as discussões acadêmicas acerca da cultura visual no texto fundador das discussões para historiografia brasileira: Fontes visuais, cultura visual, História visual (2003), relembre a preferência de Chartier pela expressão “História Cultural do Social” (Meneses, 2003, p. 26),  como um mote para enfatizar que a “História Visual”, nova expressão por ele apresentada nesse texto, não pretendia ser mais uma forma de compartimentalização disciplinar, mas sim denotava o reconhecimento da importância de analisar a visualidade como um experiência historicamente circunscrita e fenômeno constitutivo da vida social. O autor, então, sugere como estratégias para incorporação da cultura visual na historiografia três eixos de pesquisa: o visual, os objetos práticas e instituições que criam a iconosfera; o visível, a estruturação do poder e controle em torno do ver e não-ver; e a visão, as técnicas e modalidade da observação e dos observadores.

Em artigo fundamental sobre as relações entre história e imagens, O Desafio de Fazer História com Imagens (2006), Paulo Knauss não apenas traça um panorama de textos e debates dos estudos visuais, como também historiciza a relação entre a história como disciplina acadêmica e as imagens como fonte. Primeiro, o historiador chama atenção para a relação íntima e duradoura entre escrita e imagem nas sociedades ao longo do tempo, salientando a maior abrangência da última diante do saber especializado e restrito que a escrita demanda. Retomando uma memória disciplinar, enfatiza que o método erudito tornou equivalentes as noções de documento escrito, prova e fonte na prática historiográfica. Apesar de nunca terem se ausentado por completo, apenas a partir da crítica contemporânea ao cientificismo foi possível uma revalorização sistemática das imagens como fonte essencial do conhecimento sobre o passado. Assim, os historiadores se viram diante do desafio não apenas de fazer história com imagens, como o de mergulhar nas reflexões teóricas e metodológicas de como fazê-lo. Momento no qual se voltam para a cultura visual, conceito interdisciplinar que possibilita a intersecção com estudos culturais e história da arte, dente outros. Para Knauss, a cultura visual alcança os objetivos que a história social da arte não conseguiu justamente por não ter questionado a categoria de arte. Assim, a cultura visual abre espaço para a heterogeneidade das imagens dentro dos estudos da História e da História da arte e torna possível compreender o olhar como forma de pensamento historicamente construído.

Estabelecendo diálogo com a proposta de Meneses, Knauss e a partir da observação da produção acadêmica nacional e internacional, Santiago Jr. (2019a) organiza as influências da virada visual na historiografia em alguns núcleos epistemológicos. Identifica, assim, trabalhos que se ocupam: com a vida das imagens, seus estados de ação ou sujeição em relação aos indivíduos e grupos com os quais interagem ao longo de sua existência; seu corpo, a materialidade que a torna presente em diferentes contextos; os usos, as práticas sociais nas quais estão inseridas; a cognição, a maneira pela qual geram conhecimento e saber; e a intersubjetividade, a relevância do pathos provocado pela imagem na construção de identidades e subjetividades de indivíduos e comunidades.

 

Considerações finais

Dessa forma, os questionamentos da filosofia da imagem pós-virada apresentam-se para o conhecimento histórico como uma atitude renovadora, apontando caminhos teóricos e metodológicos que reconhecem suas características e necessidades analíticas próprias. Esse movimento de reflexão sobre especificidade dos objetos visuais, permitiu a elaboração de outras abordagens acerca da visualidade e notadamente abriram caminho também para cultura material, multiplicaram os objetos de arte, que passaram cada vez mais a incluir artefatos oriundos de sociedades e culturas não Ocidentais, ao mesmo passo em que permitiu desnaturalizar o conceito de arte e dessacralizar o objeto artístico numa perspectiva Ocidental. O reordenamento do papel das imagens ampliou as considerações sobre a relevância da presença visual como elemento de construção de sentido nos mais diversos cenários sociais, o que implica abordar as imagens em seu contexto de produção, as dinâmicas nas quais as imagens estão inseridas, as formas de ação do visual, estratégias de recepção, circulação e arquivamento de imagens, assim como pensar a visão como processo histórico e culturalmente construído.

Incorporar a alteridade das imagens como campo de conflagração de tensões que são fontes para o conhecimento histórico, demanda colocá-la diante de uma série de outras relações, que passam por instituições, desenvolvimento técnico e científico, práticas culturais, regimes políticos, movimentos de organização social, sensibilidades, corpos, dentre outros. O que demanda sua conjugação com diversas outras fontes históricas de diferentes naturezas. As formas de incorporar a dimensão visual como parte dos problemas e questionamentos da historiografia e o refinamento na forma de lidar com imagens como fonte de pesquisa tecem novas relações com a antropologia, a museologia e a história da arte, assim como se articulam com as proposições das grandes linhas teóricas apresentadas.

Apesar da consolidação da virada à imagem e da efetivação da cultura visual como campo de estudo, ainda persiste a necessidade de sistematização de referenciais teóricos. Não com o objetivo de pacificar dissonâncias, elaborar cânones ou gerar uma estabilização institucional ou teórica redutora e paralisante, mas sim de historicizar os debates, perceber a trajetória dos termos e conceitos, observar as semelhanças que criam um espaço de diálogo e vocabulário comum e permitam a ampliação do debate e da atenção à dimensão visual como forma de conhecimento sobre o passado.

Assim, esse artigo, buscou mapear alguns percursos teóricos e historiográficos, identificando pontos de contato, assim como temáticas e questionamentos que reemergem nas discussões em diferentes disciplinas. Com o objetivo de contribuir com a compreensão de como o movimento teórico, a filosofia da imagem, foi incorporado pela historiografia e de como esse novo olhar lançado pela cultura visual, objeto de estudo interdisciplinar consolidado pela virada visual, interage com os problemas históricos, assim como os caminhos metodológicos construídos para lidar com as fontes visuais ou com a dimensão visual entendida como problema histórico e analisada a partir de fontes diversas.

 

Agradecimento

Este trabalho foi desenvolvido com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e do Programa Institucional de Internacionalização – CAPES-PrInt.

 

Referências bibliográficas

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Recebido em 10/09/2023.

Aceito em 30/11/2023.



[1] Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Brasil. E-mail: pomari.elisa@gmail.com | https://orcid.org/0000-0001-5297-3419

[2] Virada visual é o termo mais conhecido e amplamente utilizado, contempla mudanças em áreas do conhecimento distintas e, também, estabelece uma relação desse processo com o campo interdisciplinar dos estudos visuais estabelecido principalmente no contexto acadêmico norte-americano. Existem variações como virada pictórica ou icônica, utilizadas por autores específicos, conforme será apontado ao longo do texto.  Santiago Jr. cunha o termo virada à imagem para se referir aos diversos deslocamentos provocados pelos debates acerca da relevância e do estatuto da imagem nos debates acadêmicos e contemporâneos (Santiago Jr, 2019a; 2019b).

[3] Ao longo do capítulo um de Diante da Imagem (2013), Didi-Huberman diferencia o visível, o visual e o virtual. Sugere o visível como aquilo que é nomeável na obra, um saber mais próximo à tradição da história da arte; o visual como a presença que rompe com essa estrutura de conhecimento preestabelecida, que não é signo e se apresenta como sintoma; e o virtual como uma potência da imagem, aquilo que pode ser provocado ou invocado pelo visível no observador. Nesse sentido, a potência da imagem, dos objetos visuais ou dos objetos que possuem uma dimensão de figurabilidade está na sua potencialidade de conectar múltiplas e heterogêneas ordens de realidades passadas e presentes.

[4] Um paralelo semelhante foi pontuado por Moxey ao estabelecer duas tradições: uma anglo americana que considera as imagens como produtos culturais cujos significados precisam ser decifrados; e outra europeia que entende sua presença como uma forma de agência, capaz de provocar respostas, em quem as vê (Santiago Jr, 2019a, p. 26).

[5] Paulo Knauss faz uma observação semelhante ao retomar de forma crítica a trajetória disciplinas da História e o uso de imagens como formas de conhecimento sobre o passado em O Desafio de fazer História com Imagens (2006), que será abordado adiante.

[6] Gell não define em Arte e Agência sua compreensão do termo estética, o que serviu de argumento para críticos de seu trabalho.

[7] Gell entende que objetos podem ser portadores de vontades, intenções e agência, mas essa agência é secundária, ou seja, foi originada de uma pessoa. Nesse sentido, eles podem ser considerados fractais das pessoas de fato. Contudo, chama atenção para o fato de que a circulação e ação do objeto ultrapassa a da pessoa biológica que o imbuiu de agência, tornando-se autônomas.

[8] Termo compartilhado com a semiótica de Pierce (signo natural), mas que é entendido por Gell como a coisa material, visível, física que permite a abdução da agência. De certa forma, é possível compreender que a condição de índice numa relação entre termos é o que caracteriza, para o autor, um objeto como arte.

[9] Gell advoga pelo uso da palavra primitivo, retirando do termo possíveis conotações negativas. Ver a primeira nota de seu texto (Gell, 2005).

[10] Em suas palavras: “A significância moral da obra de arte origina-se a partir do desencontro entre a consciência interior do espectador, acerca de seus próprios poderes como agente, e a concepção que ele forma dos poderes possuídos pelo artista” (Gell, 2005, p. 52). Para Gell, o valor da obra reside na capacidade dos artistas de transformarem o material original, ou seja, em sua destreza técnica. Habilidade que não é compreendida pelo observador e, por isso, o mesmeriza.

[11] O sentido do termo estético em Rancière parece ser bastante distinto do que poderia ser pressuposto na obra de Gell. Enquanto o antropólogo parece compreender estética como a tradição eurocêntrica em moldes clássicos e renascentistas, o filósofo a apresenta precisamente como uma ruptura com esse regime de sensibilidade (Rancière, 2009, p. 13).

[12] A especialização do vocabulário para as imagens é pontuada por Boehm, como indica Santiago Jr (2019b, p. 420).

[13] Santiago, a partir das observações de Weber, utiliza o termo “histórias axiológicas” para se referir às “outras tradições historicamente mais sensíveis às imagens” (2019b, p. 414); Ulpiano usa o termo modalidades de história vigentes ao argumentar que a visualidade deve ser incluída como plataforma de observação e não subdivisão da história (2003, p. 31). Alloa questiona se a imagem, a partir da virada visual não deveria deixar, então, de ser “objeto de alguma disciplina regional” (2019, p. 94).