Retratos em Feldgrau: fotografias de soldados alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

Feldgrau portraits: photographs of German soldiers during the World War II (1939-1945)

                                                                                               Wilson de Oliveira Neto[1]

 

 


Resumo

Os registros fotográficos fazem parte do patrimônio documental da Segunda Guerra Mundial. Este trabalho indagou suas possibilidades como fontes para o estudo deste conflito. Para tanto, efetuou-se uma pesquisa em uma coleção composta por duzentas fotografias pertencentes a alemães que serviram na Wehrmacht durante o período da guerra, organizada pelo autor ao longo de dez anos de colecionismo. Como fontes históricas, os retratos analisados sugerem um meio pelo qual seus retratados expressaram sua vinculação com a cultura militar alemã da época, manifestado pelos uniformes que vestiam e pelas condecorações que ostentavam, sendo importantes formas de autorrepresentação em um contexto de valorização do elemento militar tanto pelo regime nazista quanto pela Segunda Guerra Mundial.

Palavras-chave: Fotografia; Patrimônio documental; Segunda Guerra Mundial.

Abstract

The photographs form part of the documentary heritage of the World War II. This work questioned its possibilities as sources for the study of this conflict. To this end, a collection of two hundred private photographs of Germans who served in the Wehrmacht during the war, gathered by the author over ten years of collecting, was researched. As historical sources, the analyzed portraits suggest a means by which their subjects expressed their connection with the German military culture of the time, manifested by the uniforms they wore and the decorations they displayed, being important forms of self-representation in a context of valuing the military element both by the Nazi regime and by the World War II.

Keywords: Photography; Documentary heritage; World War II.


 

 

Introdução

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito militar internacional ocorrido entre 1939 e 1945. Ele foi travado entre duas coalizões de países – os Aliados, liderados pelos Estados Unidos, França, Reino Unido e União Soviética, e o Eixo, comandado pela Alemanha, Itália e Japão. Estima-se que mais de 100 milhões de pessoas foram mobilizadas pelas forças combatentes desses países e dos seus respectivos aliados, a exemplo do Brasil, que ingressou no conflito ao lado dos Aliados em 31 de agosto de 1942. Ao longo de seis anos de guerra, foram travadas batalhas e promovidas campanhas militares em diversos teatros operacionais situados, principalmente, nos continentes europeu, asiático e africano, bem como nos oceanos Atlântico e Pacífico (Ferraz, 2022).

A história e a memória da Segunda Guerra Mundial possuem grande visibilidade pública decorrente de diversas razões, como, por exemplo, o fato de esse conflito ter sido total em todos os sentidos, conforme constatou Reinhart Koselleck (2014). O terror e a violência da Segunda Guerra Mundial atingiram todos, independentemente de terem sido civis ou militares, homens ou mulheres, crianças ou adultos. Um sofrimento comum que, segundo Koselleck (2014), contribuiu nas transformações dos papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres. De uma forma geral, as guerras mundiais causaram rupturas nas experiências de vida e marcaram as consciências daqueles que as vivenciaram.

A visibilidade da Segunda Guerra Mundial transcende as fronteiras nacionais, que, segundo Susan Suleiman (2019), pode ser relacionada à natureza global do próprio conflito militar e à presença cada vez maior do genocídio dos judeus europeus como um local de memória, também em nível global.

Contudo, a listagem dessas e de outras razões que conferem à Segunda Guerra Mundial uma dimensão pública ampla, mesmo após quase noventa anos do seu começo, também é possível, pois desde o início da invasão da Polônia pela Wehrmacht, durante a madrugada de 1º de setembro de 1939, foram geradas as mais variadas formas de evidências escritas, forenses, sonoras, testemunhais ou visuais sobre a guerra, que, principalmente, após o término do conflito na Europa, em 08 de maio de 1945, serviram de fontes para a produção de narrativas memorialísticas e históricas, bem como de provas materiais e testemunhais nos julgamentos por crimes de guerra e contra a humanidade realizados na Europa e no Japão, dos quais o Tribunal Militar Internacional, em Nuremberg, na Alemanha, é o mais conhecido.

As fotografias são parte do patrimônio documental da Segunda Guerra Mundial. Patrimônio esse compreendido a partir da leitura de Celso Castro (2008, p. 8), que o entende como um “conjunto de documentos selecionado como relevante por alguém, organizado segundo determinada lógica, e disponibilizado de acordo com alguns critérios”. Porém, alerta Castro (2008, p. 18), “que a definição do que é considerado patrimônio é resultado de disputas muitas vezes conflituosas”, que insere essa categoria de bem patrimonial em contextos de disputas políticas e simbólicas, de jogos de poder. Ainda mais, quando se trata de um conflito militar que alterou profundamente as relações internacionais.

Entre 1939 e 1945, foi produzida uma quantidade incomensurável de fotografias acerca das armas, das batalhas e, principalmente, das pessoas – civis ou militares, anônimas ou públicas – envolvidas com a guerra. Fotografias de natureza oficial, fornecidas à imprensa ou ao público através das agências de notícias dos países beligerantes, como, por exemplo, o Serviço de Informações do Hemisfério (SIH), que ofereceu aos jornais brasileiros farto material fotojornalístico do esforço de guerra dos Estados Unidos e seus aliados. Ou, fotografias particulares feitas por câmeras portáteis durante uma licença com a família ou os amigos, ou, em estúdios fotográficos situados longe das linhas de frente (Oliveira Neto, 2020).

Como fontes históricas, segundo Boris Kossoy (2016, p. 133), as imagens fotográficas, quando submetidas a um tratamento metodológico adequado, podem se tornar documentos “insubstituíveis para a reconstituição histórica dos cenários, das memórias de vida (individuais ou coletivas), de fatos do passado centenário como do mais recente”. Apesar de concordar com a potência atribuída pelo autor às fotografias como fontes, é possível substituir a palavra reconstituição, presente na citação anterior, por interpretação, na medida que este trabalho compreende a escrita da história não como uma reconstituição do que se passou em outrora, tal como na reconstituição de uma cena de crime. Mas, como uma operação narrativa que se encontra em um “lugar singular e equívoco entre a ciência e a arte”, tal como situou Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2019), e que vai ao encontro das fotografias, cuja operação que resultam também decorre de um encontro singular entre a ciência/técnica e a arte/sensível.

Este trabalho indagou as possibilidades das fotografias como uma fonte privilegiada para o estudo da Segunda Guerra Mundial e das ideologias e dos regimes políticos relacionados a ela, a exemplo do Nazismo. Seu objetivo é examinar uma coleção de duzentas fotografias de militares das forças armadas da Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. São fotos particulares produzidas por câmeras portáteis em circunstâncias variadas longe das frentes de combate ou por fotógrafos profissionais em seus estúdios. Trata-se de uma coleção que pertence ao autor deste trabalho, que foi reunida ao longo de dez anos de colecionismo e de coleta em encontros de colecionadores, feiras de antiguidades, mercados de pulgas e plataformas de e-commerce, como o Ebay e o Mercado Livre. A maioria, fotografias anônimas, das quais o referente se perdeu há muito tempo. Além disso, imagens avulsas, muitas das quais arrancadas dos seus álbuns originais, como sugerem os fragmentos de papéis escuros típicos dos álbuns de fotografias antigos ou mesmo de cantoneiras com as quais essas fotografias foram fixadas nas folhas. Imagens que, por razões desconhecidas pelo autor, sobreviveram à Segunda Guerra Mundial e à ação implacável do tempo, atravessaram o oceano Atlântico e se tornaram fontes históricas para este artigo.

Desde o seu aparecimento, em meados do século XIX, a fotografia está envolvida em um processo contínuo de desenvolvimento tecnológico, especialmente, quando se tornou um bem de consumo popular, e aos mais variados meios de apropriação e interpretação, como é possível constatar na antologia de textos a seu respeito organizada por Guido Indij e Ana Silva (2017). No campo da História, pelo menos, desde o fim da década de 1970, os potenciais da fotografia como fonte são explorados por autores brasileiros e estrangeiros, a exemplo de Gisèle Freund (1976), Boris Kossoy (1980) e Miriam Moreira Leite (1993).

São pertinentes para este trabalho as considerações de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (2009), segundo as quais, na medida em que a fotografia ingressou no mercado, ela ampliou sua capacidade de atender às mais diferentes demandas sociais, tornando-se um componente novo da vida social. Para as pessoas, o retrato fotográfico se tornou uma forma de autorrepresentação social e de inserção em um determinado contexto que conferiria a elas socialização e prestígio.

A esse respeito também é importante mencionar as considerações feitas por Peter Burke (2017), para o qual um retrato, seja ele fotográfico ou pintado, corresponde a um sistema de signos. De acordo com Burke (2017), um retrato enuncia um código, cujos signos e convenções fazem sentido para o meio ao qual ele está vinculado. Sua leitura, segundo o autor, depende do domínio de diferentes convenções visuais empregadas, desde o renascimento, na produção de retratos e que, apesar de se diferenciarem de século para século, de lugar para lugar ou de grupo social para grupo social, seus princípios fundamentais parecem continuar os mesmos.

Ainda em Peter Burke (2017), destacam-se, nesse conjunto de convenções, as expressões faciais, os gestos, as posturas e os usos de acessórios, como, por exemplo, livros, mobílias, trajes e mesmo cães e criados. Cruzar as pernas ou sorrir em um retrato, por exemplo, são atos que estão diretamente relacionados à cultura visual vigente na época em que ele foi pintado ou produzido através da fotografia.

Para Lima e Carvalho (2009, p. 34), “a fotografia difundiu-se de forma capilar na sociedade contemporânea, sendo presença constante nas diversas esferas públicas e privadas”. Na medida que a fotografia foi amalgamada com a vida cotidiana e com seus códigos e práticas sociais, ela permitiu o surgimento de novas formas de afetividades e sociabilidades, expressas, por exemplo, pelos hábitos de trocar retratos fotográficos entre pessoas estimadas ou de escrever dedicatórias em suas frentes ou seus versos.

Mas, o que dizer sobre fotografias de militares alemães fardados e ostentando seus distintivos e medalhas no contexto da Segunda Guerra Mundial? Se as fotografias permitem “perceber ou sentir outros níveis da realidade”, conforme constatou Miriam Moreira Leite (1993, p. 76), como, por exemplo, os padrões de comportamento necessários à inclusão dos sujeitos em determinados meios, o que a análise dessas fotografias contribui com a compreensão da condição de soldado nos contextos do Nazismo (1933-1945) e da Segunda Guerra Mundial? Para este trabalho, principalmente, os retratos produzidos em estúdios que foram analisados constituíram-se em um meio de autorrepresentação das pessoas fotografadas vinculadas aos valores militares e sociais vigentes na Alemanha durante o nazismo e a Segunda Guerra Mundial, relevantes na manutenção do regime e do próprio esforço de guerra alemão.

 

O elemento militar e a sociedade alemã

Quando as forças armadas da Alemanha iniciaram a invasão da Polônia, na madrugada de 1º de setembro de 1939, somente sua força terrestre reuniu um total de 2,6 milhões de soldados. Ao examinarem esse e outros fatos relacionados ao cotidiano dos militares alemães na Segunda Guerra Mundial, Sönke Neitzel e Harald Welzer (2014, p. 67) interpretaram que não se tratou somente de uma mera mobilização de recursos humanos e materiais, mas algo que foi acompanhado do estabelecimento de um “marco referencial em que o elemento militar recebia uma conotação positiva, ajustando-se muito bem aos ideais da época, sobretudo nacionalistas”. Em outras palavras, a guerra total iniciada pelos alemães em 1939 foi possível, em parte, porque a sociedade alemã da época se encontrava profundamente enraizada em valores castrenses.

Mas, quais valores eram esses? Organizações militares com seus respectivos códigos e símbolos existem desde a Antiguidade, a exemplo da Legião romana ou das ordens religiosas-militares cristãs da época das Cruzadas, das quais os Hospitalários e os Templários são as mais conhecidas. Contudo, os valores castrenses (ou militares) aos quais este trabalho se refere estão relacionados às comunidades nacionais que, segundo Benedict Anderson (2008), surgiram no Ocidente a partir do século XVIII. De acordo com ele, as noções de nação, nacionalidade e nacionalismo foram o resultado de um processo que envolveu diferentes forças históricas e que se estabeleceram de tal maneira que a condição nacional delas resultante se tornou o “valor de maior legitimidade universal na vida política dos nossos tempos” (Anderson, 2008, p. 28).

As forças armadas nacionais, tais como se conhecem, são produtos dessas circunstâncias, em especial, entre os séculos XVIII e XIX. Embora Maquiavel (2021), em A arte da guerra, já mencionasse, no início do século XVI, as qualidades dos exércitos formados por cidadãos, as guerras de sua época foram travadas por mercenários que lutaram e morreram pelos seus generais, bem como pelo soldo ou pela promessa de participação no butim. Na medida em que a nação se afirmou sobre as antigas comunidades religiosas ou dinásticas pré-nacionais, os valores militares que se conhecem surgiram e foram afirmados, com destaque para o sacrifício pela pátria, o ideal da morte heroica do soldado-cidadão em defesa da nação ou por sua glória. No contexto oitocentista, esses valores foram expressos materialmente por meio de memoriais, monumentos e outros espaços de memórias, além da criação e da outorga de distintivos, medalhas e demais galardões oferecidos aos heróis da nação vivos ou mortos.

Também conhecidas como moedas de honra, as condecorações são prêmios oferecidos por entidades privadas ou públicas, civis ou militares, às pessoas reconhecidas por seus feitos notáveis realizados em circunstâncias variadas. Elas são recompensas ao mérito, que podem variar entre atividades científicas, culturais, educacionais políticas e militares. No senso comum, costuma-se associar a concessão de condecorações às atividades castrenses. Porém, as instituições civis costumam oferecê-las a pessoas físicas ou jurídicas notáveis.

No presente, as formas mais conhecidas de condecorações são as medalhas, os distintivos (ou placas), os colares e as faixas. Suas origens estão situadas na Antiguidade, entre os egípcios, gregos e romanos. Em Roma, conforme sua expansão territorial ocorreu e a Legião foi organizada, as condecorações iam variando em distintivos, coroas e mesmo cerimônias públicas conhecidas como Ovação e Triunfo (Exército Brasileiro, 2020).

No Ocidente, até o surgimento das comunidades nacionais, entre os séculos XVIII e XIX, as principais condecorações europeias foram das comunidades religiosas ou dinásticas, a exemplo das Ordens de Cavalaria e suas cobiçadas insígnias. Mesmo com a hegemonia das comunidades nacionais, durante muito tempo coexistiram condecorações nacionais, dinásticas e religiosas, como, por exemplo, na Alemanha. Durante a Primeira Guerra Mundial, foram oferecidas aos efetivos do Exército Imperial condecorações nacionais, tais como o Distintivo de Ferido em Combate (ou Verwundeten Abzeichen), e, outras, próprias das antigas dinastias que governaram os velhos estados alemães, a exemplo da Cruz de Mérito Militar do Reino da Baviera (Exército Brasileiro, 2020; Pia, 1976).

Ainda sobre a Alemanha, as Cruzes de Ferro são emblemáticas. De acordo com Jack Pia (1976), as origens da Eisernes Kreuz (EK) estão situadas no Reino da Prússia, quando em 10 de março de 1813 as EK foram criadas pelo rei Frederico-Guilherme II (1744-1797) no contexto da Guerra de Libertação contra as forças militares francesas de Napoleão Bonaparte (1769-1821). Elas foram reinstituídas em outras duas ocasiões: em 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana; em 1914, no começo da Primeira Guerra Mundial. Prussianas por excelência, as EK se tornaram, informalmente, uma condecoração imperial, sendo oferecida aos militares alemães independentes da sua vinculação dinástica.

Entre 1871 e 1945, o nome oficial da Alemanha foi Deutsches Reich. Embora não exista uma tradução adequada desta denominação em língua portuguesa, o Reich presente nesse nome pode ser entendido como “nação” ou “nacional”. De 1806, quando da dissolução do Sacro Império Romano-Germânico, a 1871, quando da proclamação do Império Alemão no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, após a vitória da Prússia na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), o atual território alemão era composto por pequenas comunidades dinásticas, conhecidas historicamente como Altdeutschland ou “Antiga Alemanha”.

Sob a liderança militar e política da Prússia, entre 1864 e 1871, foram travadas três grandes guerras de unificação do território alemão, conhecidas como Campanhas de Ferro e Sangue. Neitzel e Welzer (2014) constataram que a extensão e, principalmente, a assimilação de valores tipicamente militares pela sociedade alemã oitocentista foi um dos efeitos visíveis desse processo.

Anos mais tarde, no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918):

Estimulou-se a expansão de modelos sociais com base na violência e na desigualdade; audácia, coragem, obediência e disciplina eram cada vez mais valorizadas. O ideal da morte heroica, o soldado que defende sua posição até acabar a munição, ao menos no círculo dos oficiais, revivia seus tempos de glória (Neitzel; Welzer, 2014, p. 68).

 

Os efeitos políticos e sociais da derrota na Grande Guerra estimularam ainda mais esses modelos sociais, especialmente, entre a extrema direita alemã da época, da qual surgiram os Freikorps que lutaram contra os movimentos separatistas no nordeste da Alemanha ou contra a esquerda durante a Revolução Alemã (1918-1923). Nos contextos da assinatura do Tratado de Versalhes (1919) e da debilidade da República de Weimar (1918-1933), era claro que o Estado e a sociedade alemãs “deveriam se preparar, já no período de paz, para uma guerra agora sem qualquer tipo de reserva, uma guerra total” (Neitzel; Welzer, 2014, p. 69).

Almejou-se uma preparação psicológica para a guerra, em que valores como coragem, entusiasmo e sacrifício foram estimulados, especialmente, entre a juventude. Em contraponto ao pacifismo de autores, como Remarque (2019), ou das vanguardas artísticas do pós-guerra, foi promovida por meio da literatura uma espécie de nacionalismo soldadesco, reforçado pela atuação política dos partidos de extrema direita e de entidades de ex-combatentes das quais os Capacetes de Aço foi a mais proeminente. O Stahlhelm, Bund der Frontsoldaten, foi fundado em 1918, sendo extinto em 1935. Embora sua natureza jurídica fosse a de uma entidade de ex-combatentes da Grande Guerra, os Capacetes de Aço foram, de fato, uma organização paramilitar ligada ao Partido Popular Nacional Alemão (DNVP), situado na extrema direta da época da República de Weimar. Apesar de concorrentes, durante muito tempo, os Capacetes de Aço colaboraram com o movimento nacional-socialista. De uma forma geral, constataram Neitzel e Welzer (2014, p. 69), que “a conotação positiva do elemento militar e do combate podia ser notado em quase todos os grupos sociais ainda que sempre com algum acento peculiar”.

Embora esse não seja o único fator, a observação desses autores ajuda a compreender a velocidade com que o paramilitarismo nazista se estendeu para a sociedade e as instituições alemãs a partir de 1933, quando da chegada do Nacional-Socialismo ao poder.

 

Da Reichswehr a Wehrmacht

O desarmamento da Alemanha, durante o pós-guerra, foi um dos encaminhamentos do Tratado de Versalhes, documento que estabeleceu a paz entre os Aliados e a Alemanha, em 1919. A força terrestre alemã foi reduzida a uma defesa nacional com um efetivo máximo de cem mil homens. Como é possível constatar nas bibliografias geral e especializada sobre a Alemanha da época do “entreguerras”, isto é, de 1919 a 1939, o comando militar alemão remanescente do antigo Exército Imperial nunca teve a intenção de respeitar esse encaminhamento (Wilson, 2022).

A nomeação de Adolf Hitler (1889-1945) para Chanceler, em 1933, estimulou o rearmamento alemão, especialmente por meio do Ministro da Defesa/Guerra Werner von Blomberg (1878-1946), que em 25 de maio de 1934, emitiu um Código de Condutas novo para os soldados alemães. Conforme Neitzel e Welzer (2014), por meio desse documento, a Wehrmacht que substituiu a Reichswehr reafirmou as tradições militares alemãs instituídas durante o Império (1871-1918), ao mesmo tempo que procurou estabelecer e enfatizar novos valores militares, como a entrega incondicional do soldado ao dever, a firmeza e o sacrifício da própria vida. De acordo com o novo Código de Condutas, a resistência na frente de combate custe o que custar deveria ser o mais alto valor almejado pelo soldado, algo que foi ao encontro do paramilitarismo nazista e do imaginário acerca da criação de um novo soldado nacional-socialista.

 

O mérito militar e a concessão prêmios

O Código de Condutas de 1934 não sofreu alterações significativas durante a Segunda Guerra Mundial e sua aplicação ao longo do conflito pode ser checada por meio da concessão de distintivos, medalhas e demais prêmios pelo mérito militar. Ao analisarem esse documento, Neitzel e Welzer (2014) notaram que o alinhamento da Wehrmacht aos valores militares clássicos do antigo Império Alemão ocorreu paralelamente à introdução de inovações na cultura castrense, a exemplo da noção de que praças, graduados e oficiais deveriam compor uma única unidade de combate, sem as antigas distinções aristocráticas da época do Kaiserreich. Todos estavam, portanto, em condições iguais para receber os mesmos prêmios pelo mérito militar, sem distinções de função ou patente.

Contudo:

Os condecorados não eram os que sacrificavam a vida por fanatismo ou que se atiravam diante de blindados inimigos como verdadeiros suicidas. Pelo contrário, recebiam medalhas os combatentes e comandantes de tropas que tinham como comprovar seu serviço por meio de resultados bem definidos. Sacrificar-se a todo custo valia mais como um atributo de uma ação do que propriamente uma exigência do nazismo (Neitzel; Welzer, 2014, p. 77).

 

Durante a Segunda Guerra Mundial, a política alemã de concessão de distintivos e medalhas priorizou os soldados engajados nas frentes de combate, especialmente, aqueles em contato direto com o inimigo. Enquanto permanecessem vivos, eles tinham à sua frente uma variedade de prêmios que poderia ter existido somente na cultura militar alemã (Neitzel; Welzer, 2014).

Junto com isso:

Os condecorados gozavam de altíssimo prestígio – havia certa pressão social, por sinal bastante generalizada segundo a qual somente no front alguém podia comprovar o verdadeiro valor de seu comportamento. Por isso, muitas vezes, especialmente nos períodos de férias na própria cidade, os soldados ostentavam suas medalhas, a despeito dos regulamentos, para causar boa impressão junto à família e aos amigos ou ao menos não parecer fracassados. Essas honrarias tinham um efeito prático importante, não era à toa que as maiores recompensas estavam previstas justamente para as ações mais perigosas (Neitzel; Welzer, 2014, p. 79).

 

Tal como no U.S. Army, a força terrestre dos Estados Unidos, a Wehrmacht procurou condecorar seus militares logo após a ação, o mais rápido possível. E, dependendo do sujeito, certamente, ele se tornaria uma celebridade por meio da propaganda de guerra veiculada pelo regime.

Ao encerrarem seu exame dos valores militares da Alemanha entre 1871 e 1945, em especial, a prática da concessão de prêmios durante a Segunda Guerra Mundial, Neitzel e Welzer (2014) concluíram que essa última cumpriu uma determinada função de reconhecimento social dos sujeitos premiados, que deu origem a um modelo normativo que orientou a vida da maioria dos militares alemães engajados na Wehrmacht, do qual as fotografias analisadas no tópico a seguir são alguns dos seus vestígios históricos.

 

Retratos em feldgrau[2]

As fotografias reunidas e analisadas neste trabalho são anônimas. Mesmo aquelas feitas em estúdios fotográficos, pouca coisa foi registrada acerca de quem as tirou ou mesmo do seu referente. Contudo, entre retratos formais de estúdios e fotografias prosaicas tiradas com câmeras portáteis longe das frentes de combate existe um esforço comum em expressar um eu social vinculado aos valores militares do regime nacional-socialista e da instituição militar às quais essas pessoas, nos momentos em que foram fotografadas, estavam servindo.

 

Jovens sorridentes e uniformes reluzentes

A reintrodução do serviço militar obrigatório na Alemanha, em 1935, ocorreu paralelamente à criação da Wehrmacht, que substituiu a Reichswehr estabelecida pelo Tratado de Versalhes, em 1919. Não há tradução para a língua portuguesa do nome Wehrmacht. Contudo, ela pode ser definida como o conjunto das forças armadas da Alemanha, que, em 1935, foi composto por três ramos principais – Exército ou Força Terrestre (Heer), Aeronáutica ou Força Aérea (Luftwaffe) e Marinha-de-Guerra (Kriegsmarine) – além das SS-em-Armas (Waffen-SS) e das organizações paramilitares civis que prestaram auxílio logístico às forças armadas, especialmente, durante a Segunda Guerra Mundial, a exemplo da Organização Todt e do Serviço Nacional do Trabalho. Até 1938, o Comandante-Chefe das Forças Armadas era o Ministro da Guerra, na ocasião, o General Werner von Blomberg (1871-1946). Contudo, a partir daquele ano, o cargo de Ministro da Guerra e sua função de Comandante-Chefe da Wehrmacht foram extintos. Nos seus lugares, foi criado o cargo de Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas ou Oberkommando der Wehrmacht (OKW), também subordinado ao comando supremo de Hitler. O cargo foi ocupado até o final da Segunda Guerra Mundial na Europa, em 08 de maio de 1945, pelo Marechal Wilhelm Keitel (1882-1946) (Jurado, 2009).

Entre 1935 e 1939, a Wehrmacht recebeu de 1,3 a 2,4 milhões de conscritos. Rolf-Dieter Müller (2016) estima que, até o final da Segunda Guerra Mundial no continente europeu, em maio de 1945, a Wehrmacht reuniu um efetivo de 18,2 milhões, a maioria engajada na força terrestre. Ainda em Müller (2016), durante os seus anos iniciais, a Wehrmacht foi caracterizada pela excelência dos seus recursos humanos e materiais, os primeiros selecionados e adestrados de forma rigorosa, enquanto as armas, os uniformes e demais equipamentos sendo produzidos a partir de matérias-primas de alta qualidade e de projetos inovadores para a época. No caso específico do Exército, originalmente, a liderança militar alemã pretendeu reunir uma força terrestre homogênea, baseada nos antigos valores prussianos e na assimilação do Nacional-Socialismo.

Há muito tempo, a literatura especializada discute o nível de nazificação das forças armadas da Alemanha. As primeiras gerações de historiadores da Segunda Guerra Mundial, entre os quais se encontra Basil Liddell Hart (1980), por meio de entrevistas concedidas por generais do exército alemão capturados pelos aliados ocidentais em 1945, produziram uma narrativa, hoje datada, que separou a Wehrmacht da ideologia nazista, sendo esta presente exclusivamente nas SS-em-Armas, considera a única responsável pelos crimes de guerra e contra a humanidade cometidos, principalmente, na Frente Oriental, entre 1941 e 1945. Segundo essa historiografia, poucos generais foram explicitamente nazistas, sendo o mais exaltado Walther von Reichenau (1884-1942).

Contudo, pelo menos desde o fim da Guerra Fria, em 1991, que representou a desclassificação de farta documentação militar até então inacessível aos historiadores, entende-se que, como a própria sociedade alemã, as forças armadas sofreram um intenso processo de nazificação, potencializada pela valorização do elemento militar já existente e de um imaginário antissemita que ganhou força na Europa, durante o século XIX, conforme estudou Hannah Arendt (2013).

Na Frente Oriental, a partir de 1941, tanto as SS quanto a Wehrmacht, em especial, a força terrestre, participaram ativamente do massacre de milhares de judeus de forma pública e notória, com evidências epistolares e fotográficas produzidas pelos próprios militares envolvidos, como por exemplo, no massacre de adultos e crianças em Bjelaja Zerkow, entre 19 e 22 de agosto de 1941, na Ucrânia (Friedländer, 2005).

No retrato a seguir (fig. 1), é possível constatar a exibição de símbolos que rementem ao que foi discutido até o momento. Trata-se do retrato do Terceiro-Sargento do exército Konrad Hest. De acordo com anotação manuscrita no seu verso, ele nasceu em 15 de maio de 1919. Portanto, no início da Segunda Guerra Mundial, Hest era um jovem de vinte anos de idade. Ele veste um uniforme de serviço M36 e ostenta a fita da Cruz do Mérito de Guerra de 2ª Classe. Conforme Jack Pia (1976), a Kriegsverdienstkreuz foi instituída pelo governo alemão em outubro de 1939 para feitos relevantes, porém insuficientes para a Cruz de Ferro. A Cruz do Mérito de Guerra foi concedida em cinco graus, sendo a Cruz de Cavaleiro presa ao pescoço na forma de comenda. É possível, portanto, que o retrato tenha sido tirado entre o fim de 1939 e o início de 1940, em um contexto de grande prestígio da Wehrmacht decorrente da sua vitória na Polônia.

Ainda sobre o retrato do Sargento Hest, a posição em que ele foi fotografado destacou uma fina tira de couro fixada sobre a dragona esquerda da túnica que veste, o que indica que ele estava a frequentar um curso preparatório para o ingresso no oficialato da força terrestre alemã. Na contramão da cultura visual de seu tempo (Burke, 2017), o Terceiro-Sargento Konrad Hest sorri. Um sorriso aberto que expôs sua dentadura completa e simétrica, que junto com sua medalha e o horizonte de expectativa aberto pela possibilidade de ingresso no oficialato.

 

Figura 1: Retrato do Terceiro-Sargento Konrad Hest. Sine loco; sine die

Foto em preto e branco de homem com farda e chapéu

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Juventude, uniformes bem cortados e insígnias reluzentes são recorrentes nos retratos de estúdio examinados e que foram produzidos entre meados da década de 1930 e os anos iniciais da Segunda Guerra Mundial. Em seu estudo sobre a função sociológica da juventude nas sociedades, Karl Mannheim (1967) situou a juventude em um conjunto de recursos latentes que as sociedades dispõem para sua vitalidade. Segundo esse autor, a juventude (ou mocidade) age como um agente revitalizante, uma reserva humana que é colocada em ação quando se torna necessário um processo de revitalização do corpo social decorrente da necessidade de se adaptar a um contexto de mudanças rápidas ou completamente novas.

Independente das dinâmicas políticas e sociais pretendidas, seus condutores buscarão a cooperação da juventude. Contudo, adverte Mannheim (1967) que, embora a mocidade seja um agente revitalizador da vida social, ela não é progressista por natureza, já que são ricos os exemplos históricos de movimentos conservadores ou reacionários que também criaram movimentos de juventude. Para ele, a juventude é uma potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade, na medida em que ela se encontra na efervescência da puberdade, na qual ela, pela primeira vez em sua vida, se vê confrontada com o caos decorrente do choque entre valores antagônicos.

Como movimento e, mais tarde, regime político, o Nazismo teve um forte apelo entre a juventude alemã, especialmente, por meio das suas organizações juvenis, a Juventude Hitlerista, a Liga das Moças Alemãs e o Serviço Nacional do Trabalho. O paramilitarismo foi uma das características fundamentais do fascismo histórico, conforme constatou Michael Mann (2008). De acordo com ele, tratou-se de uma característica oriunda da experiência da vida nas trincheiras, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que foi assimilada durante as décadas de 1920 e 1930, na Alemanha, como um valor político e social que dignificava e evidenciava seus portadores entre o tecido social.

Os jovens retratados em estúdio buscaram expressar e fixar essa vinculação por meio dos próprios retratos em que foram fotografados, como uma espécie de símbolo de ingresso nesses valores. Imagens compostas por uniformes novos e insígnias brilhantes, além de semblantes que expressam a dignidade e a superioridade de sua nova condição social, a de combatente, como sugere a imagem a seguir (figura 2):

 

Figura 2: Retrato de um Primeiro-Sargento do 13º Regimento de Infantaria do exército alemão. Luneburgo, 01/02/1940

Foto em preto e branco de homem pousando para foto

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Coleção do autor.

Sobre a túnica M36 que veste e o gorro sobre sua cabeça aparecem, nítidos, as insígnias que o situam dentro da cultura militar alemã: o emblema da força terrestre (águia sobre uma coroa de folhas de carvalho com uma suástica no centro), o cocar nacional costurado na frente do gorro, formado por três círculos concêntricos, de fora para dentro, preto, branco e vermelho, as cores nacionais alemãs que remontam ao Império e que foram reapropriadas e ressignificadas pelo regime nacional-socialista, além dos símbolos da patente de Terceiro-Sargento costuradas sobre a gola e os ombros da túnica que veste.

Ainda a seu respeito, o retratado fez questão de se fazer fotografar aparecendo algumas cicatrizes sobre o lado direito do seu rosto, cujo retoque, regra em fotografias de estúdios, não conseguiu obliterar. É certo que não são cicatrizes decorrentes de ferimento em combate, pois caso fossem, ele exibiria o Distintivo de Ferido em Combate, pelo menos, no grau preto. Seria ele egresso de algum clube de duelos com sabres, comuns nas universidades alemães e austríacas da época? Teria ele recebido suas Schmisse, as cicatrizes de honra?

Os uniformes e, principalmente, as condecorações ostentadas pelos praças, graduados e oficiais das forças armadas alemãs retratados compõem, no seu conjunto, um código visual, que, além de expressar o compartilhamento de valores castrenses comuns, uma vez decodificados, informam o percurso seguido por aquele que as ostenta ao longo da guerra, como na figura 3, em que foi fotografado em um ambiente externo, longe da frente de combate. Trata-se de um oficial do exército, provavelmente, um Segundo ou Primeiro-Tenente.

 

Figura 3: Oficial do exército. Sine loco, 1944

Foto em preto e branco de criança em pé na grama

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Coleção do autor.

O oficial retratado “viu” ação. Pelo menos é o que indicam os quatro distintivos que ostenta acima e sobre o bolso superior esquerdo da túnica M36 que veste, além do emblema costurado sobre a manga esquerda. Acima do bolso, o Distintivo de Combate Aproximado em bronze, o que indica que ele esteve em serviço na frente de combate por oito meses ou em luta por cinco dias completos. Já sobre o mesmo bolso, em sentido horário: Cruz de Ferro de 1a Classe, Distintivo de Ferido em Combate, provavelmente, em grau prata, de dois a quatro ferimentos, e Distintivo de Assalto de Infantaria, concedido para infantes que participaram de, pelo menos, três assaltos contra inimigos em ocasiões diferentes. Por último, o emblema costurado sobre a manga esquerda indica que ele serviu (ou estava servindo na Frente Oriental), podendo ser o Escudo da Campanha da Criméia (setembro de 1941 / julho de 1942) ou o Escudo da Cabeça de Ponte de Kuban (fevereiro – outubro de 1943) (Pia, 1976).

 

Condecorações militares e nazistas

Ao contextualizar o surgimento dos movimentos fascistas na Europa, durante as décadas de 1920 e 30, Michael Mann (2008) constatou um processo de crise daquilo que o autor denominou como as quatro fontes do poder social: militar, político, ideológico e econômico. Interessa para este estudo, no entanto, a primeira fonte listada, o poder militar, pois ele se relaciona com a valorização do elemento castrense na sociedade alemã, conforme foi discutido no primeiro tópico deste artigo.

Mann (2008) compreende o poder militar como a capacidade de organizar socialmente a violência física. Para ele, trata-se de um fenômeno universal nos agrupamentos e grupos humanos, devido à necessidade de defesa organizada contra possíveis agressões externas, iniciadas por outros grupos por razões variadas. Nessas circunstâncias, o fortalecimento do poder militar poderá garantir certa segurança ao grupo, bem como poderá motivá-lo para sua expansão, obtendo, assim, um poder social mais amplo e generalizado. Por outro lado, contrapõe Mann (2008), o declínio dos recursos militares de um determinado grupo o deixa vulnerável diante de outros grupos, que podem enxergar a oportunidade para uma tomada de poder. De acordo com ele, essas duas situações pressupõem uma certa valorização positiva do militarismo, em particular, das organizações militares entre as sociedades, especialmente, a partir do aparecimento do Estado moderno.

Como movimento político, o fascismo histórico foi profundamente influenciado pelas experiências militares sofridas pelos seus quadros históricos durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como uma espécie de legado da guerra de trincheiras, ocorreu uma assimilação de valores militares que foram, após o término da Grande Guerra, transpostos para as vidas civil e política, sendo a guerra o único meio capaz de mobilizar toda a nação. “Exaltando as virtudes militares e dando prosseguimento a certas práticas militares em tempo de paz, eles constituíram um movimento social próprio: o das organizações paramilitares de cidadãos” (Mann, 2008, p. 100).

Na Alemanha, o regime nacional-socialista expandiu o paramilitarismo para as instituições sociais e o aparelho de Estado, sendo os uniformes, as insígnias e as condecorações nazistas ou nazificadas alguns dos seus aspectos tangíveis. Embora os regulamentos acerca dos uniformes militares não permitissem, foram recorrentes praças, graduados e oficiais da Wehrmacht ostentarem condecorações e insígnias nacional-socialistas em seus uniformes, conforme é possível visualizar na figura a seguir, em que foi retratado o soldado Adolf Wendland.

 

Figura 4: Retrato do soldado Adolf Wendland. s.l.; s.d.

Foto em preto e branco de homem pousando para foto

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Coleção do autor.

O soldado Wendland foi fotografado no estúdio de Gerhard Pladek, conforme informa um carimbo aplicado sobre o seu verso, em que também foi anotada sua data de nascimento: “1.1.24”. Portanto, trata-se de um jovem que, no máximo, tinha 21 anos de idade quando foi retratado – isso se o fato tenha ocorrido em 1945, o que, pelo uniforme que veste, definitivamente, não ocorreu.

Sua juventude e, principalmente, ausência de experiência em combate (o retrato pode ter sido feito quando ele foi incorporado ao exército, no começo do seu serviço militar) foram compensadas por um distintivo pequeno preso sobre o bolso superior esquerdo da túnica M36 que veste: o Distintivo de Conquista da Juventude Hitlerista (Hitlerjungend-Leistungsabzeichen).

Criado em 1934, trata-se de uma condecoração destinada aos integrantes da Juventude Hitlerista como recompensa ao mérito nos esportes e no treinamento paramilitar. De acordo com Jack Pia (1976), o distintivo foi concedido em três graus, situados de acordo com as seguintes faixas etárias: ferro (de 10 a 15 anos); bronze (16 anos); prata (a partir de 17 anos). O soldado Wendland ostenda o distintivo de prata. A Juventude Hitlerista foi criada em 1926, como uma das organizações do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. Durante o regime nazista, sua participação se tornou compulsória para crianças e adolescentes do sexo masculino. Na prática, a Juventude Hitlerista foi o primeiro contato formal do jovem alemão com os valores do Nazismo, em particular, o seu paramilitarismo, por meio de uma vida castrense, cuja materialidade era composta por uniformes, braçadeiras, insígnias, adagas e condecorações que conferiam ao jovem prestígio social, uma vez que ele poderia frequentar espaços, como a escola, vestindo uniformes e ostentando suas insígnias e condecorações (Lewis, 2019).

 

Imagens para a eternidade

Ao refletirem sobre os usos historiográficos e sociais das fotografias, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (2009) abordaram os impactos decorrentes da disseminação dos retratos fotográficos feitos em estúdios ou por fotógrafos ambulantes nas práticas e representações sociais. De acordo com elas, a produção de retratos é anterior ao surgimento da fotografia, sendo inicialmente um gênero da pintura. Contudo, prosseguem as autoras, a partir do momento em que o seu suporte passou a ser fotográfico, ocorreu seu barateamento e popularização.

Em nível familiar, os retratos se tornaram registros e símbolos de rituais de passagem, meios de apresentação dos novos integrantes, bem como de recordação dos antigos integrantes já falecidos. Organizados em álbuns, os retratos se tornaram suportes de narrativas visuais familiares e pessoais que, ao serem abertos e observados, evocam lembranças e despertam sentimentos (Lima; Carvalho, 2009).

No caso dos retratos de militares alemães, em especial aqueles produzidos em estúdios, sofreram diversos usos sociais, com destaque para a composição de recordatórios. Conhecidos em língua alemã como Sterbebilber (“figuras da morte”, em uma tradução literal para o português), os recordatórios são pequenos cartões impressos acerca de uma pessoa recentemente falecida, uma recordação que é oferecida pelas famílias enlutadas durante os rituais relacionados à morte, como, por exemplo, as missas de sétimo dia ou em resposta a uma carta de condolências (Lederer, 2023).

Trata-se de uma prática social de origens europeia e católica que foi introduzida no Brasil pela colonização portuguesa. Para Alois Lederer (2023), os recordatórios são um testemunho contra o esquecimento de uma pessoa morta há muitos anos. De acordo com ele, os primeiros recordatórios surgiram na Holanda, durante o século XVIII. A partir dos oitocentos, o costume de imprimir e distribuir recordatórios se espalhou pela Europa católica. No atual território alemão, os recordatórios foram introduzidos por volta de 1840, na Baviera. Com o desenvolvimento das artes gráficas e da fotografia, os cartões passaram a ser ricamente ilustrados com imagens devocionais e retratos dos mortos a cujas memórias eles evocaram.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os recordatórios foram um meio de conforto para as famílias enlutadas, especialmente, no cumprimento de importantes rituais fúnebres, inviáveis na morte em combate, principalmente, nas frentes de combate mais violentas. Eles também são um indício de um esforço familiar de vincular o combatente morto aos valores militares na Alemanha da época, conforme evidenciam o retrato fardado impresso sobre o cartão e os registros do histórico militar do morto e das condecorações recebidas, como é possível observar na imagem a seguir:

 

Figura 5: Frente do recordatório do Cabo Hans Neumaier

Texto

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Coleção do autor.

O Cabo Hans Neumaier nasceu em 1915, em Vilsbiburg, uma pequena cidade bávara com pouco mais de onze mil habitantes, localizada no Distrito de Landshut. De acordo com o seu recordatório, ele era filho de um alfaiate. Durante a guerra, ele serviu em um Regimento de Caçadores de Montanha, com participações nas anexações da Áustria e da Tchecoslováquia, além das campanhas militares da Polônia, Bélgica, França, Grécia, Creta e União Soviética. Morreu em ação, no dia 17 de setembro de 1942, na Frente Oriental, na região do lago Lagoda, Rússia. Quando da sua morte, o Cabo Neumaier tinha 27 anos de idade, sendo condecorado com a Cruz de Ferro de 2ª Classe e o Distintivo de Assalto de Infantaria.

Os retratos examinados neste trabalho, assim como inúmeros outros que foram produzidos nos recortes temático e temporal em estudo, tiveram uma circulação e um uso, basicamente, íntimo e familiar. Ao serem utilizados na composição de recordatórios, eles ganharam um novo uso social mais amplo e público. Seus responsáveis procuraram garantir prestígio social póstumo, por meio de uma composição entre escrita e imagem cuja narrativa decorrente atualizou e reforçou postumamente os vínculos entre o morto e os valores militares de seu tempo.

 

Considerações finais

A Segunda Guerra Mundial foi encerrada na Europa no dia 8 de maio de 1945. Porém, o conflito prosseguiu no extremo oriente com o avanço das forças militares dos Estados Unidos pelo arquipélago japonês. Após os ataques atômicos contra Hiroshima e Nagasaki, o governo do Japão se rendeu em 02 de setembro de 1945. Finalmente, a guerra acabou.

Foram seis anos de lutas na terra, nos mares e nos céus da Europa, Ásia e África, que mobilizaram o número impressionante de 100 milhões de pessoas e que mataram mais de 55 milhões, a maioria civis, segundo informa Francisco Ferraz (2022).

O patrimônio documental pertencente à Segunda Guerra Mundial é quantitativamente amplo, transnacional e variado, pois reúne diversos tipos de documentos históricos civis e militares, oficiais e particulares, escritos, forenses, orais e visuais. As fotografias são parte desse patrimônio.

Não é possível mensurar a quantidade de imagens fotográficas produzida ao longo desse conflito. Certamente, muito se perdeu. São fotografias pertencentes a gêneros diferentes, sendo feitas por meio de tecnologias distintas, reveladas em suportes variados, com usos públicos e privados, a exemplo do material fotojornalístico alemão produzido pelos efetivos da Propagandakompanie e que foi distribuído fartamente às imprensas alemã e estrangeiras, como no Brasil, onde a sucursal das “Estradas de Ferro Allemãs” forneceu até 1942 fotografias e legendas em português para jornais e revistas (Oliveira Neto, 2020).

Contudo, muitas fotografias sobreviveram ao conflito e à ação do tempo, sendo preservadas em álbuns de famílias, coleções particulares ou instituições de guarda, como, por exemplo, os arquivos históricos. Tornaram-se suportes de memórias coletivas e individuais, além de fontes para estudos com temas e problemas de pesquisa diversos.

Motivado pelo trabalho de Neitzel e Welzer (2014), este artigo questionou se, por meio de retratos de militares alemães da época da Segunda Guerra Mundial, é possível aprofundar a compreensão de um meio social em que ocorreu uma intensa valorização daquilo que esses autores denominaram elemento militar. Um marco referencial caracterizado pela expansão para além dos quartéis de práticas e representações próprias das instituições militares, que foi assimilada pela sociedade alemã, principalmente, entre o fim dos oitocentos e a primeira metade do século XX. Instalado a partir de 1933, o regime nacional-socialista radicalizou esse processo, cuja compreensão para Neitzel e Welzer (2014) é fundamental para entender os comportamentos dos soldados alemães e os valores que os motivaram para o combate durante a Segunda Guerra Mundial.

Como fontes históricas, as fotografias analisadas, algumas das quais apresentadas neste artigo, expressaram a adesão ao elemento militar, expressa pelas fardas aprumadas e, a partir do início da guerra na Europa, pelas condecorações reluzentes. Diferentes de outros tipos de fotografias, o retrato, principalmente feito em estúdios, é o resultado de um trabalho profissional complexo e nem sempre de baixo custo. Embora ele corra o risco de parar no fundo de uma caixa de papelão, como outras fotografias esquecidas, ele pode ser oferecido aos amigos e parentes, ou ocupar um espaço de destaque no mobiliário das casas, acondicionados em porta-retratos. Compartilhado no espaço doméstico, ele marca a passagem do tempo e pode indicar a ausência e o luto daqueles que já morreram, como nos recordatórios.

Os retratos são, portanto, expressões potentes dos “eu” sociais das pessoas. Ou, como afirmou Peter Burke (2017), um poderoso meio de autorrepresentação dos sujeitos que se renova ao longo do tempo, conforme o avanço das tecnologias de produção e circulação de imagens visuais. No caso deste artigo, um meio potente para os contextos da Alemanha nazista e da Segunda Guerra Mundial.

Neitzel e Welzer (2014) mencionaram o prestígio social daqueles que se destacaram naquelas circunstâncias por meio das suas condecorações recebidas. Os retratos estudados exibem distintivos e medalhas que, combinados, foram códigos cujos significados, quando lidos pela sociedade alemã da época, dizem muito sobre os méritos militares dos seus portadores, pré-requisitos para o reconhecimento familiar ou públicos, indispensável em uma guerra total em todos os sentidos, tal como foi a Segunda Guerra Mundial.

Por outro lado, as imagens estudadas neste artigo também chamam a atenção pelas suas “ausências”. Tratam-se de aspectos da própria guerra que ficaram invisíveis: a destruição, as perdas humanas e os horrores inerentes a um conflito que consumiu a vida de mais de 55 milhões de pessoas, em seis anos de duração.

 

 

Agradecimentos

O autor agradece o Programa de Mentoria da Univille Universidade pela bolsa de pesquisa que permitiu os trabalhos, dos quais este artigo é parte dos resultados obtidos. Ele também é grato ao colega professor e amigo Nicácio T. Machado (Joinville – SC) pela revisão gramatical/ortográfica dos originais deste artigo.

 

 

Referências bibliográficas

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COLEÇÃO de recordatórios de militares alemães mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Coleção do autor.

COLEÇÃO de retratos fotográficos de militares alemães da Segunda Guerra Mundial. Coleção do autor.

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Recebido em 08/09/2023.

Aceito em 15/11/2023.



[1] Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Professor adjunto na Univille Universidade. Brasil. E-mail: wilson.o@univille.br | https://orcid.org/0000-0002-6439-661X

[2] Feldgrau é o nome dado a um tom da cor cinza, que em uma tradução livre para o português significa cinza-esverdeado. Foi a cor básica dos uniformes das forças terrestres da Alemanha a partir da Primeira Guerra Mundial (Keegan, 2004). Na indumentária militar, Feldgrau é mais que um tom de cinza e, tal como o cáqui dos antigos uniformes do exército do Reino Unido, ele foi um símbolo de identidade e tradição entre os militares alemães.