Apresentação



Com grande satisfação anunciamos a publicação do dossiê “Colonialidades na América Latina e Caribe: Estado da Arte e Perspectivas sob uma ótica histórica”, que compõe o número 42 da Fronteiras: Revista Catarinense de História, que já possui tradição na elaboração de dossiês temáticos de relevância para a História e demais campos das Humanidades.

O dossiê propôs reunir trabalhos que versassem sobre as colonialidades na América Latina e Caribe, em um amplo espectro temporal e geográfico, apresentando temas que tenham como eixo central os violentos processos de invasão europeia destes territórios, ocupados há milênios por populações indígenas, das mais variadas etnias. Com a inauguração do chamado sistema-mundo capitalista moderno, processaram-se no sul Global (e, portanto, na região tema desse dossiê), processos coloniais, colonialistas e imperialistas que transformaram a paisagem natural e humana, de maneira radical, impondo uma visão de mundo eurocentrada e, como consequência, apagadora das historicidades nativas, africanas, mescladas e subalternas, em geral. Assim, recebemos da comunidade acadêmica artigos inéditos que contribuem para o debate, em uma perspectiva diacrônica, sobre as colonialidades, sejam do poder, do saber e do ser, como têm trabalhado pesquisadores/as que vêm discutindo casos a partir dos pressupostos do grupo Modernidade/Colonialidade.

Assim, o dossiê foi guiado pelos pressupostos teóricos-reflexivos do chamado “giro decolonial”, desenvolvido por um grupo de pesquisadores de diversas origens, como os latino-americanos (ou de origem), cujo tema central está focado na crítica aos modelos eurocêntricos de produção de significação de poderes, seres e saberes, em especial na região foco do dossiê: América Latina e Caribe. O propósito foi, portanto, reunir trabalhos que levassem em consideração a história dos violentos processos coloniais surgidos a partir da chegada dos europeus, primeiro no Caribe e depois na América continental, a partir de 1492. Com a abertura para o “Novo Mundo”, instaurou-se pela primeira vez aquilo que Wallerstein (2004) chamou de “sistema-mundo”, isto é, a inauguração da modernidade eurocêntrica baseada na (des)qualificação das etnias indígenas (e, mais tarde, também africanas), e na fundação da moderna noção de exploração capitalista. Seguindo a lógica definida por Quijano (2019), mesmo após os processos de independências, em especial ocorridas no século XIX, a herança colonial se manteve, pois, as estruturas eurocêntricas e capitalistas persistiram, e as classificações raciais e étnicas se mantiveram, com povos originários, afrodiaspóricos e “mestiços” mantendo suas condições de subordinação, discriminação e exploração. Assim, ao invés de utilizarmos o termo “colonial” ao referir-nos a esse processo, empregamos o termo “colonialidade”, pois atravessa o período colonial e chega, com suas características antes citadas, até os dias atuais. A história da região desenrolou-se influenciada, de maneira direta ou indireta, pela imposição da colonialidade/modernidade/capitalismo por parte da Europa Ocidental, em um primeiro momento, e pelas elites dirigentes dos Estados independentes que continuaram reproduzindo os modos de exploração e repressão econômica, política, intelectual e racial/étnica já existentes, e suas interseccionalidades que atravessam as relações raciais (como de gênero e de classe social, para citar dois grandes exemplos).

Estão presentes no dossiê produções textuais que, de maneira explícita ou implícita, desenvolvem temas diversos, em sua relação com os debates sobre colonialidades, decolonialidade, colonialismo e congêneres. Para além de uma preocupação com o referenciamento direto com os referidos escopos teóricos, contemplamos também artigos que operam, na prática, o debate proposto, que é o de contemplar como objeto de estudo a humanidade afetada pela modernidade eurocentrada, sem, no entanto, ter-se a obrigação de desenvolver no corpo do texto análises dos conceitos, ou mesmo referenciar, de forma direta, autorias ligadas ao grupo Modernidade/Colonialidade.

Sobre os povos originários, temos cinco contribuições: a) artigo de Rafael Benassi dos Santos, que discute como a colonialidade resulta em novas formas de atuação política dentro dos territórios indígenas, tomando como estudo de caso da Terra Indígena Xapecó, no Estado de Santa Catarina; b) historicizando as resistências indígenas na Bahia frente aos aldeamentos religiosos, Edilmar Cardoso Ribeiro nos brinda com uma história de luta contra o poder colonial por parte dos povos indígenas, com o fracasso de criação de missões religiosas (e depois, colônias militares) em São José de Porto Alegre; c) Eduarda Bertuol e Émerson Neves da Silva apresentam como a colonialidade do poder exerceu forte pressão sob o povo Kaingang de Mangueirinha, Paraná, com especial ênfase na atuação do SPI em meados do século XX, atuando em causas privadas e públicas objetivando retirar os territórios, demarcados já desde o início daquele século; d) a relação entre mudanças climáticas e patrimônio cultural dos povos indígenas é o tema de análise de artigo de Luana Campos e Jaisson Teixeira Lino, debatendo as implicações do aceleramento do aquecimento global (e suas várias consequências ambientais), com a importância de valorização e de ações afirmativas mais eficazes para com os patrimônios indígenas, que, de acordo com os autores, são peças-chave para criarmos políticas de “bem viver”, a partir dos exemplos nativos de relação com o mundo em sua inter-relação cultura e natureza; e e) Malcon Gustavo Tonini apresenta os resultados de projeto que envolvem educação, memória e história oral, focada na atuação dos “bugreiros” e seus ataques contra o povo Xokleng-Laklanõ, em São João Batista-SC, com importantes contribuições para se pensar as memórias do extermínio indígena na região de Mata Atlântica catarinense, a partir da perspectiva de práticas pedagógicas no ensino básico.

Além dos artigos com temáticas indígenas, temos no dossiê a presença de quatro outros estudos: a) Bruno Antonio Picoli, Renilda Vicenzi e Alexssandro Schappo compõem o dossiê com um artigo que desenvolve um conceito central nas relações entre colonialidades e educação: a branquitude crítica e acrítica, e sua presença em práticas pedagógicas na Arte Afro-Atlântica; b) a partir de uma abordagem do feminismo decolonial, Carolina de Castro Burgos e Katiucya Perigo apresentam representações sobre as mulheres no Museu de Inhotim, Minas Gerais, demonstrando a importância que espaços de memória e patrimônio possuem para a discussão decolonial, de modo geral, e de decolonialidade e gênero, em particular; c) Moacir da Costa, Roberta Barros Meira, Mariluci Neis Carelli e José Bento Rosa da Silva descrevem a festa de Nossa Senhora do Rosário, de Itajaí-SC, e a construção da identidade da mesma como um elemento cultural/patrimonial de resistência do movimento negro no litoral catarinense; d) Willian Carboni Viana e Luiz Antonio Pacheco Queiroz, contribuem com um artigo de base teórica, com viés geográfico, discutindo um conceito chave nos estudos sobre decolonialidade: a estrutura epistemológica do “Sistema-mundo” de Emmanuel Wallerstein, e suas implicações na criação da dependência latino-americana, desde o início da invasão europeia do “Mundus Novus”.

Esperamos que o dossiê possa se somar aos diversos produtos acadêmicos que vem sendo produzidos, mesmo que de maneira tardia (quae sera tamen, como no lema virgiliano e mineiro), no Brasil, a respeito da centralidade dos conceitos de decolonialidade e colonialidades para a História e Ciências Humanas em geral, no Brasil, e a conexão de nosso país com os debates sobre o assunto que já vem sendo desenvolvidos por décadas em outros países latino-americanos e caribenhos.

Além dos textos que compõe o dossiê, este número traz um texto de autoria de Moisés Wagner Franciscon. O artigo, intitulado O novo modelo de repressão do stalinismo tardio, pseudociência e Cinema, mostra como o cinema fez parte da guerra cultural do regime para disseminar tais práticas e tentar unificar o país diante de inimigos internos e externos – através da análise dos filmes Sud chesti, e Velikaya sila, pela temática comum do Tribunal de Honra.

 

Boa leitura!

 

 

Prof. Dr. Jaisson Teixeira Lino

Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS.

Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari

Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.

Organizadores do Dossiê Colonialidades na América Latina e Caribe: Estado da Arte e Perspectivas sob uma ótica histórica

 

Samira Peruchi Moretto

Editora da Fronteiras: Revista Catarinense de História

 

 

Referências bibliográficas

QUIJANO, Aníbal. Ensayos en torno a la colonialidad del poder. Buenos Aires: Ediciones del Siglo, 2019.

WALLERSTEIN, Immanuel. World-System Analysis. Durham: Duke University Press, 2004.