Integração da América Latina na economia internacional: perspectiva sistêmica a partir da Teoria do Sistema-Mundo

Integration of Latin America into the international economy: a systemic perspective from the World-System Theory

                                                                                               Willian Carboni Viana[1]

Luiz Antonio Pacheco Queiroz[2]

 

 


Resumo

Neste artigo, faz-se uma breve análise da trajetória de exploração que levou os países latino-americanos a se inserirem na economia mundial. A abordagem adotada baseia-se nos postulados da teoria do sistema-mundo, considerando seus pontos fortes na compreensão das especificidades da exploração territorial abrangente nas relações internacionais, resultando na intensificação do domínio de certos povos sobre outros. Argumenta-se que os fundamentos da exploração do território da América Latina foram planejados com o objetivo de privilegiar economicamente as nações europeias, exercendo controle social, cultural e político ao longo de todo o processo de implementação.

Palavras-chave: Teoria sistema-mundo; Integração; América Latina.

 

Abstract

In this article, a brief analysis is made of the trajectory of exploitation that led Latin American countries to integrate into the global economy. The adopted approach is based on the postulates of the World-System Theory, considering its strengths in understanding the specificities of comprehensive territorial exploitation in international relations, resulting in the intensification of domination of certain peoples over others. It is argued that the foundations of the Latin American territory exploitation were designed to economically privilege European nations, exerting social, cultural, and political control throughout the implementation process.

Keywords: World-system theory; Integration; Latin America.


 

 

Introdução

Para compreender a integração dos países da América Latina, na economia internacional, é necessário realizar uma análise abrangente das dinâmicas históricas, políticas e econômicas que moldaram a região ao longo do tempo. Nesse contexto, a teoria do sistema-mundo (TSM), desenvolvida por Immanuel Wallerstein nos anos 1970, oferece uma perspectiva valiosa para o entendimento das relações comerciais hierarquizadas, abrangendo não apenas os aspectos econômicos, mas também os políticos, culturais e sociais.

A América Latina destaca-se como um território com identidade própria, que diferenciou-se das imposições eurocêntricas. Essa região demonstrou uma capacidade humana de resistir e sobrepor-se aos ideais impostos, a fim de manter suas próprias características nas relações sociais. No entanto, as imposições colonizadoras triunfaram ao institucionalizar os territórios, privilegiando-os com controle permanente. Esse enredamento reproduz-se na apropriação do que é favorável ao enriquecimento das oligarquias em diferentes épocas, considerando as atribuições de valor das coisas, conhecimentos e meio ambiente, desde sempre intencionalmente afastados de uma equânime possibilidade de acesso pela totalidade dos seres humanos.

Diante das conexões transatlânticas traçadas, as quais estimulam modos de vida equivalentes à exploração comercial para atender ao mercado de consumo, considera-se, primeiramente, examinar o aparato de dominação das nações europeias, que se apropriaram da vastidão territorial latino-americana. Em seguida, argumenta-se que o aumento das desigualdades quanto ao conhecimento e habilidade produtiva entre os países, impulsionado pela revolução industrial, permitiu que os exploradores mantivessem o controle sobre os meios de produção. Por fim, retoma-se, de forma concisa, os principais problemas discutidos, enfatizando como a TSM fornece meios para compreender os processos de integração territorial baseados em imposições que moldaram modos de vida.

 

Apropriação Territorial da América Latina pelo Sistema Colonial Moderno

Utilizar a TSM, proposta por Wallerstein (1974; 1979), é fundamental para obter uma compreensão adequada da integração dos países latino-americanos na economia internacional. Isso requer considerar o modo de exploração que estabeleceu as amarras geopolíticas em nível planetário desde as grandes navegações. Essa premissa conduz a atenção à escala macro em que o sistema-mundo é concebido, em outras palavras, sua pertença a uma estrutura de relações comerciais hierarquizadas que englobam elementos econômicos, políticos, culturais e sociais (Pereira; Xerri, 2020).

O fundamento da entrada da América Latina nas relações que nivelaram as posições das nações está nas atribuições de valor que estabeleceram estruturas semelhantes à europeia, baseadas em posses monetárias, capacidade bélica, direito à propriedade privada, um único idioma nacional e normas de conduta ditas civilizadas. Essa base foi introduzida pelas instituições portuguesas e espanholas, que diferenciaram fundamentalmente os papéis de colonizadores e colonizados, ao estabelecerem uma distinção biológica que colocou os conquistados em uma posição de inferioridade em relação à civilidade europeia. Essa premissa moldou os domínios da expansão comercial (Quijano, 2005). Para se apropriarem da mão de obra dos conquistados e daqueles que se estabeleciam nas colônias, as elites representantes da Coroa utilizavam a estrutura histórica de controle do trabalho, abrangendo meios e modos de produção, recursos, produtos e o próprio mercado em diferentes escalas (Little, 2005; Quijano, 2005).

Nessa geopolítica desigual, as metrópoles mantiveram as colônias em um relativo atraso no desenvolvimento científico e tecnológico, subjugando-as por meio do controle das relações comerciais regidas pelo chamado "Pacto Colonial" (Pereyra, 2017). Enquanto as colônias forneciam matérias-primas, as metrópoles forneciam orientações técnicas, suporte financeiro, tecnologia de produção, controle político e difusão de elementos culturais e sociais. Esses fatores, que conectaram as relações impostas pelos colonizadores nas terras da América Latina, fazem parte de um sistema-mundo em permanente funcionamento. Conforme argumentou Wallerstein, esse sistema teve início com a expansão do capitalismo comercial no século XVI, mas com a revolução industrial observou uma intensificação na diferenciação entre os países (Wallerstein, 1979).

Nas premissas de Wallerstein, os países centrais são aqueles que detêm a produção de alto valor agregado e tecnológico, fabricando e exportando tecnologias e contando com mão de obra especializada, além de servirem como referência cultural e política. A periferia, por sua vez, consiste nos países que se dedicam ao fornecimento de matérias-primas, possuindo mão de obra não qualificada e identidades culturais fragmentadas. A semiperiferia engloba os países em transição entre o centro e a periferia, com níveis de industrialização variados conforme sua capacidade de absorver tecnologias externas (Wallerstein, 1979; Martins, 2015). Ainda que haja mudanças nas posições dos países do sistema-mundo, podendo subirem ou descerem nos degraus da complexidade econômica[3], a estrutura mantém a estratificação. Os países consolidados no centro são os responsáveis por criar as instituições internacionais, que asseguram a manutenção da hierarquia existente, por exemplo, o papel da Igreja Católica na admissão da escravização e/ou catequização dos povos autóctones em tantos séculos, e hoje a Organização Mundial do Comércio (OMC), que exerce pressão econômica sobre as periferias, fazendo com que esses países periféricos precisem:

(...) abrir seus mercados domésticos para a importação - sem entraves - de bens manufaturados de alto valor agregado dos países do centro, além de serviços, como o setor bancário, de seguros, telecomunicações, licitações governamentais, entre outros, sem a contrapartida da liberação das importações de produtos agrícolas por parte dos países do centro, especialmente sem o fim dos subsídios à agricultura por esses países (Martins, 2015, p. 106).

 

A divisão internacional do trabalho (DIT) desempenhou um papel determinante no princípio das trocas desiguais e na integração centro-periferia (Pereira; Xerri, 2020, p. 43). Desse modo, ainda no final do século XVIII, a revolução industrial possibilitou a entrada efetiva de produtos do setor primário em todo o mundo por meio do avanço tecnológico. Na metade do século XIX, grande parte das máquinas necessárias para o estabelecimento de indústrias manufatureiras eram de origem inglesa (Furtado, 2007).

A exemplo disso, os comerciantes ingleses estabelecidos na região de São Luís, no Maranhão, que mantinham boas relações comerciais na Inglaterra, facilitavam as trocas. Em 1856, foram recrutados 887 ingleses, grande parte deles por intermédio do comerciante Guilherme Weltstood, que também mediou a compra de equipamentos agrícolas, sendo que o governo do estado ficou com a responsabilidade da concessão de terras aos imigrantes e o transporte dos maquinários. Outro exemplo, em 1870, no âmbito dos interesses dos engenhos centrais, o comerciante residente em São Luís – e de nacionalidade inglesa, Martinus Hoyer, apresentou aos administradores do Estado planos e orçamentos para instalação de três casas de engenho, sendo aceite o acordo de importação de maquinários da empresa inglesa conhecida como Fawcett Preston (Preston Engineering Company Ltd.) (Canedo, 2008).

A segunda fase da revolução industrial, que teve início na segunda metade do século XIX, se estendeu a países como Estados Unidos, Alemanha, Japão, França e Rússia, marcando a expansão do modo industrial para diversos territórios (Furtado, 2007).

As periferias se articularam por meio das sociedades locais em relação aos centros de poder, tornando os territórios periféricos dependentes dos preceitos estabelecidos pelo centro. A Inglaterra desempenhou um papel importante no reconhecimento da independência dos Estados latino-americanos, intermediando os processos com o objetivo de manter seus privilégios políticos e comerciais (Galeano, 2012). De modo geral, esses Estados latino-americanos foram organizados em torno de instabilidades políticas e com pouca coordenação, substituindo o poder da Metrópole e favorecendo a propagação de filosofias políticas que priorizavam o âmbito local (Furtado, 2007).

O avanço do domínio técnico abriu caminho para a reconfiguração das estruturas econômicas e modificou as formas de ocupação do espaço. As mudanças territoriais foram influenciadas pelas tendências internacionais do mercado e pelas reestruturações dos meios produtivos.

No município de Arari, interior do Maranhão, há um engenho de cana-de-açúcar que funciona desde o século XVIII, exemplar para entender a apropriação territorial do local que levou à sua integração junto à economia internacional. Em uma visita ao engenho, foi possível compreender todas as mudanças em suas fases produtivas, desde a tração animal que foi a primeira força a mover a moenda para manufatura da cana, revertendo-a em açúcar e cujos vastos territórios com plantações corresponderam a catalizadores de pessoas para mão-de-obra; à fase do funcionamento a vapor e em meados do século XX a incorporação de um motor japonês Yanmar NT 110cc, o que agregou velocidade nos processos de produção do melaço e outros derivados:

Em 1969, Oswaldo acompanhou o seu pai até a cidade de São Luís, onde compraram um motor da marca japonesa Yanmar, modelo NT110cc, sendo esse o atual propulsor que movimenta a mesa de moagem. (...)

A cargo de informação, a Yanmar, fundada em 1912, iniciou suas atividades no Brasil em 1957, se territorializando por todo o território brasileiro através da venda de motores e, mais recentemente, potencializando a produção de equipamentos agrícolas. Voltando os olhos ao engenho São João, a mecanização da tração do maquinário modificou parte do processo de produção. Fez diminuir a mão de obra para 12 pessoas, sendo pelo menos dois metedores de cana, dois caneiros e dois carregadores (nas palavras do Sr. Oswaldo). O trabalho continuava empreendido em parte pela família, Oswaldo, pai, irmão e tio, e demais agregados/assalariados (Viana; Santos, 2019, p. 150).

 

Portanto, em concordância com a cultura material observada no engenho São João em Arari, foram constatadas as três fases de operação: 1) tração animal; 2) vapor; e, 3) motor. Demonstrando-se mudanças em consonância com as tendências internacionais, além de atestar as transformações nas reestruturações dos meios produtivos.

Não remetem unicamente ao resultado de um panorama histórico circunscrito, mas às complexas integrações instituídas ao longo do tempo:

Essa economia mundial forma, assim, uma divisão internacional do trabalho na qual os setores mais dinâmicos da acumulação de capital se encontram no centro do sistema, enquanto que os setores dependentes da demanda e do avanço tecnológico dos setores mais avançados se submetem aos seus mercados, aos seus capitais, alimentando a formação do seu excedente econômico e da sua capacidade de organizar e determinar a economia mundial. Esta concepção afirma, também, o papel da economia monopólica na formação das relações econômicas em escala mundial, bem como a presença dos Estados nacionais no processo de integração dessa economia mundial, enfatizando a evolução do sistema empresarial, desde as companhias comerciais do século XVI ao XVIII até a formação dos trusts e cartéis do século XIX e começo do XX (Pinto, 2019, p. 8).

 

O favorecimento ao avanço dos bancos e das grandes empresas globais sobre diversos territórios, incluindo-se os mais poderosos, como China, Japão, Alemanha e Estados Unidos (Salazar, 2006), e com isso, auspiciando ascensão, os países, sobretudo, aqueles da periferia, normatizaram-se ao “desenvolvimento”:

O interesse do Estado periférico pelo desenvolvimento econômico cria o espaço necessário para a parceria com o capital multinacional. A associação de interesses atribui ao Estado periférico o papel de financiador do capital social básico e da infraestrutura econômica. Além disso, compete-lhe, pelo menos no início, implantar e administrar um departamento de indústria de base e bens de produção para externalizar custos e permitir a estruturação do departamento de bens de consumo duráveis ou não, objeto da ação expansionista das grandes empresas multinacionais (Salazar, 2006, p. 100).

 

Com esse pano de fundo, e baseada nas relações entre centro e as periferias, a Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe (CEPAL) tentou evidenciar que o atraso dos países periféricos tinha relação direta com a concentração tecnológica dos Estados centrais[4] (CEPAL, 1998).

As ideias do CEPAL, após 1950, estiveram centradas em planos de atuação para o desenvolvimento. Para o economista argentino Raúl Prebisch, a industrialização era necessária para suprimir a chamada deterioração das relações de troca, em sua análise histórico-estruturalista – derivada da teoria da dependência[5]. Na centralidade das ideias de Prebisch, se tem a oposição centro-periferia, o que sustentou desde a premissa da “industrialização espontânea” à “transformação produtiva com equidade” (CEPAL, 1998) (Tabela 1).

Tabela 1: Síntese feita pela CEPAL na estruturação de Raúl Prebisch

Período

Análise

 

1948 - 1960 Industrialização

 

Desgaste nas relações de troca, desequilíbrios estruturais e integração regional.

Industrialização substitutiva, perversidade por meio da especialização, desigualdade estrutural, inflação e desemprego.

Estado-Nação conduz deliberadamente a industrialização.

 

1960 - Reformas

 

Dependência, integração regional, política internacional de redução da vulnerabilidade na periferia, inclinação anti-exportação industrial, reforma agrária e distribuição de renda como requisito para (re) dinamizar a economia.

Heterogeneidade estrutural e dependência.

Estado-Nação como promotor das reformas que viabilizaram o desenvolvimento (exemplo: reforma agrária?!).

 

1970 –

Modelos de crescimento

 

 

Dependência, endividamento e insuficiência exportadora.

Modelos de crescimento

Estrutura produtivo-distributiva e de poder

Industrialização combinada (mercado interno + exportação).

O Estado passa a viabilizar um modelo para a homogeneização social e o fortalecimento das exportações industriais.

 

1980 –

Dívidas

 

 

Opressão financeira, ajuste crescimento, oposição aos choques do ajuste, necessidade de políticas de renda, eventual conveniência de choques estabilizadores e transferência do custo social dos ajustes.

Estado parte para a renegociação da dívida (com vistas ao crescimento?!).

 

1990 - 1998 Transformações produtivas

 

 

Especialização exportadora ineficaz, fragilidades aos movimentos de capitais, dificuldades na transformação produtiva e para redução da brecha da equidade.

Estado passa a intensifica a promoção de políticas públicas de fortalecimento à transformação produtiva com equidade.

Fonte: CEPAL, 1998.

No Brasil, de modo geral, ao se reproduzir a lógica capitalista aos moldes internacionais, a modernização manteve a concentração de terras (herança da colonização), responsável pela ascensão do patronato, assim como, pela redistribuição da população (saída do campo).

No contexto rural, em particular, a emergência das monoculturas como parte do processo de modernização foi impulsionada não apenas por atores locais e regionais, mas também por um sistema global abrangente mediado pelo Estado. Como resultado, a acumulação capitalista, caracterizada pela concentração de terras, centralização de renda nas mãos de uma pequena fração social em ilhas urbanas privilegiadas (Santos, 1997), e pela persistência de mecanismos institucionais, perpetua a conformidade da sociedade no status quo. Portanto, embora as realidades locais considerem fatores cotidianos, costumes, tradições e valores religiosos, é essencial compreender suas territorialidades de forma integrada, tendo como referência a complexidade de um sistema mundial.

Embora o sistema colonial moderno tenha se encerrado formalmente após a Segunda Guerra, pode-se argumentar que algumas das relações de poder e desigualdades criadas no período colonial ainda existem e afetam as relações globais hodiernas.

No contexto da globalização, a discussão sobre as relações de poder e desigualdades entre os países torna-se ainda mais relevante. A globalização trouxe consigo uma maior interconexão e interdependência entre as nações, mas também expôs e aprofundou as disparidades existentes. Nesse cenário, as instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), desempenham papéis significativos nas definições de políticas que muitas vezes refletem interesses e agendas das nações dominantes, reforçando assim dinâmicas neocoloniais. Portanto, compreender e questionar essas estruturas de poder é fundamental para promover uma ordem global mais justa e equitativa, onde a autonomia e o desenvolvimento sustentável de todos os países sejam valorizados e respeitados.

 

A Acumulação Flexível lança luz à Globalização econômica

O sistema capitalista fundamenta seu crescimento sobre os valores reais da exploração da força do trabalho, materializando no lucro a característica central (Harvey, 2008). Durante o século XIX, as primeiras teorias econômicas foram desenvolvidas sobre maneiras de controle e administração das forças de trabalho, dentre as quais, a institucionalizada pelo engenheiro estadunidense Frederick W. Taylor (1856-1915), ao idealizar um direcionamento na organização do trabalho, obtido por meio da eficiência operacional. Para Taylor, o mecanicismo aplicado nas indústrias resultaria na redução dos custos e aumentaria os lucros (capital gerando capital), o que seria o modelo teórico na administração científica.

No modelo supracitado, a eficiência operacional era possibilitada com técnicas permissivas de redução dos custos de produção e do consequente aumento dos ganhos, o que influenciou o meio empresarial do início do século XX, quando se destacou o empresário automobilístico Henry Ford, com a implantação da produção em série, padronizando, sistematizando e simplificando o processo de montagem. Deste modo, Ford guarneceu o controle dos meios de fabricação ao institucionalizar a produção em massa, possível através da racionalização da produção capitalista. Modelo de produção em larga escala e em série, no qual o assalariado se individualiza em determinadas funções e participa sequencialmente apenas de parte do processo de produção, intermediado pelas máquinas (Woods, 1992). 

Na produção fordista, a especialização era funcional e os funcionários não conheciam por completo todo o processo produtivo. O modelo fordista perdeu espaço na década de 1970, devido a rigidez dos seus métodos, sendo paulatinamente substituído pelo toyotismo, configurado na acumulação flexível, e nesse modelo de produção não ocorre a estocagem pura e simples de produtos, mas a fabricação sob demanda, gerando economia na compra de matérias-primas e ganho em armazenamento.

A acumulação flexível, portanto, marca uma nova fase de organização dos modos de produção capitalistas (Harvey, 1992; 2005). A bem dizer, autores recentes ligados a perspectiva da descolonização enfatizam que, mais do que uma alteração e desregulamentação do modo econômico como um todo, o novo modelo de acumulação estabelece um imaginário social global e uma etapa avançada no sistema societário capitalista/moderno, culminando em modificações relevantes no mais profundo das relações e processos sociais.

Outros autores, mesmo sem o direcionamento descolonizador, já denunciavam tais transformações, tanto na esfera da intimidade (Giddens, 2000), quanto na liquidez das transações humanas (Bauman, 2003). O capitalismo vem se estabelecendo como matriz civilizatória (Grosfoguel, 2009), não sendo mais um mero espírito (Weber, 2009) ou um artifício empreendendorista que rumava às conquistas econômicas (Schumpeter, 1961).

A transição de um modelo de acumulação para outro, esbate em um artifício avançado de internacionalização do capital, chamado de globalização (Chesnais, 2004). E aqui é importante diferenciar as noções de globalização econômica e mundialização dos mercados. A mundialização encontra sua gênese no século XVI e acentua-se com a especialização produtiva decorrida na segunda metade do século XIX, sobretudo, com a revolução dos transportes e o avanço do capital financeiro (claro, essa definição se dá a partir da perspectiva Ocidental). A globalização, por sua vez, converge à processo mais recente, relacionado a conglomerados financeiros, neoliberalismo e poder de regulação.

O termo globalização aparece em 1983, utilizado por Theodore Levitt ao se referir a uniformidade dos mercados, o que seria resultado das estratégias empregadas por grandes empresas globais, que vendem produtos similares, fabricados e promovidos de maneira padronizada (Fernandes, et al., 2016). A expressão foi bem difundida ainda na década de 1980, nas grandes escolas norte-americanas de administração de empresas (em Harvard, Stanford, Columbia), vulgarizada em artigos de marketing, na imprensa econômica e financeira em inglês, sendo incorporada rapidamente ao discurso político neoliberal (Chesnais, 2004).

Ainda que o conceito – e não o termo – remonte a pensadores muito anteriores, como, por exemplo, Karl Marx (Fernandes, et al., 2016, p. 236). Por conseguinte, tanto o final do século XX quanto no início do século XXI, se assiste a uma intensificação das medidas e ajustes neoliberais e tecnocráticas, visando aumentar os ganhos empresariais e a eficiência do setor público. Uma conjunção entre o público e o privado que reorganiza as finanças e relações em todas as esferas, da economia industrial ao setor cultural.

Para David Harvey (2008), os contextos diversos se inserem em um modo de regulamentação que condicionou a economia hodierna. A singularidade entre os poderes políticos e econômicos fez com que convergisse ao mercado financeiro e aos centros do poder “os benefícios das ações” (Casara, 2018, p. 50).

O avanço desenfreado do capitalismo no meio rural-agrário, atua através da mecanização e modernização do campo, elevação da potência de produção, no cultivo agrícola orientado à produção em commodities, a conter monopólios mundiais e bolsas de mercado e de futuro (futures Market), ainda que se deva reconhecer a proteção de produtos únicos, como, aqueles produzidos com selo de identificação geográfica. Por muito tempo a forma estadunidense imperou como agente ativo, singular em termos militares e econômicos, o que impôs o modelo capitalista, resultando no estabelecimento de multinacionais que reorganizaram as estruturas internas e as relações de trabalho (Oliveira, 2012).

As ações no espaço, que configuram o território usado, são empreendidas de acordo com a funcionalização da globalização (Santos, 1994; Santos, 2008). A globalização econômica tem assumido os atributos do capitalismo neoliberal do final do século XX e XXI, agregando capital e originando empresas globais, em um processo crescente de transformações iniciado por Reagan e Thatcher, e com apoio da Escola de Chicago, quando associada ao neoliberalismo, se leva à diminuição do poder de regulação do Estado:

O enfraquecimento do Estado provedor, de perfil keynesiano, nos países desenvolvidos, o aprofundamento do processo de globalização, a crescente descentralização político-administrativa e o fortalecimento das perspectivas econômicas neoliberais levaram ao repasse da responsabilidade pela promoção do desenvolvimento das mãos dos governos centrais para a escala local (Hespanhol, 2008, p. 389).

 

A globalização, deste modo, beneficiou alguns territórios e marginalizou outros, incapazes, por diferentes razões, de se integrarem no novo enquadramento de produção, capital e mobilidade.

Em consequência, muitos territórios (rurais e urbanos) tornaram-se vulneráveis e excluídos diante da acumulação do capital.

Neste sentido, a escala passa ao cerne da questão para o entendimento de fenômenos sociais. Ao promover a difusão de bens, imagens e valores a escala planetária, sobretudo, a partir de algumas cidades, a globalização fomenta a diferenciação e a resistência por autonomia em determinados territórios, contribuindo para a emergência e/ou reforço das manifestações que valorizam as identidades nos âmbitos local e regional (Haesbaert, 2010).

O avanço do capitalismo monopolista propiciou a implantação de grandes empreendimentos agropecuários e de monocultura, valorizando a produtividade agrícola e não o meio rural em amplitude e diversidade (Souza; Brandenburg, 2010).

Para o caso do Brasil, retrata-se a morfologia espacial de um país atravessado por desequilíbrios territoriais (Santos, 1997) e por uma escusa relação metabólica entre sociedade e natureza (Moreira, 2003) que tem colocado em xeque a biodiversidade.

O desenvolvimento desequilibrado, inerente ao capitalismo, reforça a concentração de riquezas em determinados territórios, resultando em espacialidades criadas/reguladas por valores de uso e de troca. O que possibilita a compreensão das metamorfoses territoriais ocorridas no seio da América Latina, e Brasil, cuja constituição teve início na colonização antiga, se metamorfoseou durante os processos de modernização/industrialização, sendo cerceados por uma política econômica internacionalizada.

 

Considerações Finais

De fato, as relações comerciais entre as nações detentoras do controle dos meios de produção e a América Latina favoreceram um longo período de predominância das primeiras nas decisões sobre o uso do território latino-americano. Essa trajetória marcou a entrada da América Latina na economia internacional, com o surgimento de instituições de controle que alteraram a cultura e impuseram relações sociais hierárquicas entre os povos.

Durante o referido processo, os colonizados foram considerados inferiores, enquanto os invasores eram vistos como civilizados, resultando em um sistema de hierarquização entre os povos. Essa ideologia teve um forte impacto na socialização, influenciando um modo de vida inicialmente espelhado na Europa e, posteriormente, no estilo de vida americano conhecido como “American Way of Life”. Esse modelo foi estrategicamente imposto para aprisionar a todos, mesmo diante de contestações, e nunca foi efetivamente superado devido à resiliência dos povos autóctones e seus descendentes.

Com a revolução industrial, as desigualdades se intensificaram, especialmente com a participação dos Estados Unidos na divisão das terras exploráveis sob uma perspectiva capitalista. Em resumo, a análise da trajetória de integração da América Latina revela que sua realização ocorreu por meio da intensificação das relações comerciais baseadas na acumulação capitalista. Tais relações foram sustentadas pela manipulação contínua da força de trabalho e pela atribuição de valores, permitindo que os países posicionados no topo da cadeia exploratória continuassem a se beneficiar das riquezas e da mão de obra das nações periféricas. O que exigiu uma adaptação constante das instituições latino-americanas, aos princípios externos de acumulação de capital.

Desse modo, ao analisar esse caso com uma abordagem abrangente das relações hierarquizadas, característica fundamental da TSM, é possível considerar de forma positiva as possibilidades de compreender os processos de integração territorial baseados em imposições que moldaram modos de vida. Contudo, na opinião dos autores, as mudanças significativas nas relações e nos processos sociais resultantes dessa longa trajetória de exploração na América Latina têm causado um impacto devastador nas vidas das pessoas, especialmente aquelas relacionadas às peculiaridades dos povos nativos. Essas alterações foram imperativas, tanto como mecanismo inicial de dominação territorial quanto para manter o controle sobre o sistema-mundo.

 

 

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

CANEDO, E. V. S. Organização do espaço agrário maranhense até os anos 80: a distribuição das terras e atividades agrícolas. 2ª ed. São Luís: Gráfica e Editora Interativa, 2008, 154 p.

CASARA, R. R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, 240 p.

CEPAL. Cincuenta años de pensamento em la CEPAL: textos seleccionados. 2ª ed. Santiago: Fondo de Cultura Económica, 1998, 953 p.

CEPAL. Informações históricas. Disponível em: https://www.cepal.org/. Acesso em: 30 set. 2021.

CHESNAIS, F. A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2004.

FERNANDES, J. A.; TRIGAL, L. L.; SPOSITO, E. S. Dicionário de geografia aplicada: terminologia da análise, do planejamento e da gestão do território. Porto: Porto Editora, 2016, 562 p.

FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2012, 265 p.

GIDDENS, A. O mundo na era da globalização. Lisboa: Presença, 2000.

GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Periferia, v. 1, n. 2, 2009, p. 41-91.

GROWTH LAB AT HARVARD UNIVERSITY. Growth Projections and Complexity Rankings. Recuperado de: https://doi.org/10.7910/DVN/XTAQMC/ESPKFS. Acesso em: 15 out. 2021.

HAESBAERT, R. Regional-global: dilemas da região e da regionalização na Geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 2010, 208 p.

HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1992.

HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 17ª ed. São Paulo: Editora Loyola, 2008.

HESPANHOL, A. N. Modernização da agricultura e desenvolvimento territorial. In: 4º Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa. São Paulo: Anais 4º Encontro Nacional de Grupos de Pesquisa, 2008, p. 370-392.

MARTINS, J. R. Immanuel Wallerstein e o sistema-mundo: uma teoria atual? Iberoamérica Social: revista-Red de Estudios Sociales, 2015, p. 95-108.

MOREIRA, R. Modelo industrial e meio ambiente no espaço brasileiro. Revista GEOgraphia, ano 5, n. 9, 2003, p. 7-28.

OLIVEIRA, A. U. A mundialização da agricultura brasileira. In: XII Colóquio Internacional de Geocrítica. Bogotá: Anais do XII Colóquio Internacional de Geocrítica, 2012.

PEREIRA, A. D.; XERRI, S. G. O sistema mundial contemporâneo: uma contribuição para o debate sobre desenvolvimento na Teoria do Sistema-Mundo. Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais, v. 9, n. 18, 2020, p. 41-65.

PEREYRA, J. P. N. Quinua, comunidad y relaciones no altiplano sur boliviano. Revista de Estudios Bolivianos, n. 27, 2017, p. 147-167.

PINTO, A. M. Da dependência ao sistema-mundo: as contribuições de Theotônio dos Santos para a história da América Latina e global. In: 2º Encontro Internacional História e Parcerias. Rio de Janeiro: Anais do Encontro Internacional História e Parcerias, 2019, p. 8.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales - CLACSO, 2005, p. 130.

SALAZAR, A. Amazônia: globalização e sustentabilidade. 2ª ed. Manaus: Editora Valer, 2006, 398 p.

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 15ª ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

SANTOS, M. Território globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994.

SCHUMPETER, A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

SOUZA, O. T.; BRANDENBURG, A. A quem pertence o espaço rural? As mudanças na relação sociedade-natureza e o surgimento da dimensão pública do espaço rural. Revista Ambiente & Sociedade, n. 18, 2010, p. 51-64.

VIANA, W. C. O território usado entre manifestações culturais e firmas transnacionais: o caso da territorialidade da monocultura do arroz na região dos Eixos Rodoferroviário - Maranhão (Brasil). Tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2021.

VIANA, W. C.; SANTOS, J. L. A moenda e o rio: estudo da paisagem cultural do engenho São João em Arari - Maranhão (Brasil). Revista O Ideário Patrimonial, n. 15, 2019, p. 135-152.

WALLERSTEIN, I. El moderno sistema mundial. Cidade do México: Siglo Veintuno, 1979.

WALLERSTEIN, I. Modern World System. v. 1. Nova York: Academic, 1974.

WEBER, M. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva (vol. 1). 4ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009.

WOODS, T. Fordismo, Toyotismo e Volvismo: os caminhos da indústria em busca do tempo perdido. Revista de Administração de Empresas, v. 32, n. 4, 1992, p. 6-18.

 

Recebido em 15/06/2023.

Aceito em 25/07/2023.



[1] Doutor em Geografia (Geografia Humana). Professor Substituto no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Acre - IFAC. Brasil. E-mail: willian.geografiahumana@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-4214-2579

[2] Doutor em Arqueologia. Pós-Doutorando em Geoarqueologia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB. Brasil. E-mail: luizpachecoq@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-3701-1489

[3] Ver o Ranking de Complexidade Econômica (ICE) do Growth Lab at Harvard University, sintetizado anualmente desde 1995. Os países ganham ou perdem posições no ranking ICE de acordo com a proteção exercida sobre setores específicos da economia. Nas últimas décadas, os países que optaram pela blindagem do setor tecnológico apresentaram ganhos posicionais, como, por exemplo, no caso da China.

[4] A China era considerada potência econômica no século XVIII, assim como em grande parte da Ásia. Por sua vez, o Oriente dispõe de muita complexidade organizacional, regimes políticos bem centralizados com Estados de maior coesão social. Atualmente a China pode ser considerada o centro do Oriente, a conter inúmeros outros centros de Norte à Sul e que em muito se assemelham as metrópoles Ocidentais, o que faz da China integrante do centro do mundo (Viana, 2021).

[5] Perspectiva teórica crítica para entender o desenvolvimento econômico e social entre as nações, que enfatiza a relação de interdependência entre os países do centro e da periferia global.