Arte escolar e profanação: reflexões sobre branquitude e responsabilidade ética

Schoolar art and profanation: reflections on whiteness and ethical responsibility

Arte escolar y profanación: reflexiones sobre blanquitud y responsabilidad ética

                                                                                               Bruno Antonio Picoli[1]

Renilda Vicenzi[2]

Alexssandro Schappo[3]

 

 


Resumo

O artigo enfrenta a questão: qual pode ser o papel da arte escolar no enfrentamento à branquitude como epistemologia única? Parte da exposição “Histórias Afro-Atlânticas” e de bibliografias que refletem sobre profanação, transgressão, descolonialidade e o escolar. Está organizado em três partes. Na primeira discute os conceitos de branquitude acrítica e crítica e o eurocentrismo. Na segunda discute as potencialidades profanatórias da arte. Na terceira, reflete sobre as possibilidades da arte escolar como convite à profanação e experienciação de formas mais éticas e responsáveis de relação com o outro em um país estruturalmente racista.

Palavras-chave: Arte escolar; Profanação; Descolonização.

 

Abstract

The article faces the question: what can be the role of school art in the facing whiteness as a unique epistemology? Part of the exhibition “Afro-Atlantic Histories” and bibliographies that reflect on profanation, transgression, decoloniality and the schoolar. It is organized in three parts. The first discusses the concepts of uncritical and critical whiteness and Eurocentrism. The second discusses the profaning potential of art. In the third part, it reflects on the possibilities of schoolar art as an invitation to profanate and experience more ethical and responsible ways of relating to the Other in a structurally racist country.

Keywords: Schoolar art; Profanation; Decolonization.


 

Resumen

El artículo se enfrenta a la pregunta: ¿Cuál puede ser el papel del arte escolar en el enfrentamiento a la blancura como epistemología única? Parte de la exposición “Historias Afroatlánticas” y bibliografías que reflexionan sobre la profanación, la transgresión, la decolonialidad y lo escolar. Está organizado en tres partes. El primero discute los conceptos de blanquitud acrítica y crítica y eurocentrismo. El segundo discute el potencial profanador del arte. En la tercera parte, reflexiona sobre las posibilidades del arte escolar como invitación a profanar y experimentar formas más éticas y responsables de relacionarse con el Otro en un país estructuralmente racista.

Palabras clave: Arte escolar; Profanación; Descolonización.

 

 

 

Introdução

Em 2014 Sidney Amaral[4] apresentou ao público uma de suas composições pictóricas mais expressivas, intitulada “Mãe Preta ou a Fúria de Iansã”[5], em que uma mulher negra protege seu filho de um policial que tem as mãos sujas de sangue. Ela empunha uma lâmina contra o pescoço do Estado, do poder representado pela figura do homem branco. Nesse ato protege não apenas o menino, mas seus ideais e convicções em uma postura de contestação. Ao deslocar a imagem do corpo negro para ocupar um espaço de luta e reivindicação, propõe transgredir e profanar uma estética sacralizada da cultura branca:

Figura 01: Sidney Amaral, “Mãe Preta ou A fúria de Iansã”, 2014, Acrílica sobre tela, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil

Fonte e créditos da imagem: MASP, disponível em: https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas Acesso em 10 mar. 2022.

No título da obra, o artista evoca as forças da ancestralidade africana na analogia entre a mãe negra que historicamente protege seu ventre e seus filhos da violência do racismo estrutural da sociedade brasileira, e a figura da Orixá Iansã[6], lembrada por dedicar-se à maternidade e à coragem. Para além das personagens retratadas não há nada acontecendo, apenas o fundo escuro que ressalta os contrastes sociais evocados, deixando que nossos olhos, como espectadores, sejam dirigidos para a violência do ato que se apresenta. Esta é uma imagem transgressora que representa o corpo feminino negro rompendo com estereótipo do colonialismo. Para bell hooks (2019, p. 37) imagens transgressoras representam a descolonização de corpos negros: “Abrir espaço para imagens transgressoras, para a visão rebelde fora da lei, é essencial em qualquer esforço para criar um contexto para a transformação”. Na obra de Amaral há ainda o medo e a raiva expressos nos olhos da figura materna, única personagem cujo olhar é revelado. Arendt (2017b, p. 81-82) afirma que a “raiva aparece apenas quando há razão para supor que as condições poderiam ser mudadas, mas não são. Reagimos com raiva, apenas quando nosso senso de justiça é ofendido”. Para a autora, o ato de (re)agir a partir da violência, sem a argumentação ou sem refletir sobre as consequências, em algumas situações pode parecer a única forma de se restabelecer a justiça, apesar de se colocar em conflito com as instituições, com a lei e seus representantes. A obra não apenas denuncia a violência da polícia brasileira sobre os corpos negros/racializados, principalmente em se tratando de grupos historicamente negligenciados, mas escancara fraturas de distinção de raça, gênero e classe social que urgentemente necessitam ser reconhecidas, debatidas e enfrentadas.

“Mãe negra ou A fúria de Iansã” enfrenta essas questões, e, ao ocupar um espaço “nobre” e institucionalizado de arte, como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand convida a um uso outro do museu e oportuniza o museu como tempo-espaço para dessacralizar, ou, em outras palavras, para “profanar”. Conforme Agamben (2007, p. 73)

A impossibilidade de usar tem seu lugar próprio no Museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida os homens (sic) – [...] – retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. [...] De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência.

 

Ainda conforme o autor (Agamben, 2007, p. 68), “A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana”. Mas essa neutralização não tem relação com a ideia positivista de neutralidade. O que se está profanando é o que é sacralizado, o que se está neutralizando são seus dispositivos de poder. “Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. [...] desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado” (Agamben, 2007, p. 68). A escola também pode virar Museu. Masschelein e Simons (2021, p. 27-28) afirmam que a história da escola pode ser contada a partir dos incessantes esforços em sua desescolarização: em sua transformação enquanto espaço de sacralização do poder, de verdades, de visões de mundo, de perspectivas epistemológicas, ou seja, seu confisco pelos dispositivos de poder e sua consequente subversão em Museu. Assim, a escola pode ser um tempo-espaço de reprodução e sacralização de valores e visões de mundo eurocêntricos, supremacistas, colonialistas e universais que caracterizam epistemologias racistas, ou seja, critérios de produção e validação de saberes e visões de mundo que naturalizam o mundo e suas violências. Dentre estas perspectivas epistemológicas destaca-se a “branquitude”, uma espécie de lente pela qual enxergamos e descrevemos o mundo, negando tudo que se inscreve para além dos limites desse campo de visão.

Essa reflexão se propõe a enfrentar a seguinte questão: Qual pode ser o papel da arte escolar no enfrentamento à branquitude como epistemologia única? A proposta parte da exposição “Histórias Afro-Atlânticas” (MASP, 2018) e faz uso de bibliografias que refletem sobre profanação, transgressão, descolonialidade[7] e o escolar. Procura articular essa bibliografia com o objetivo de refletir sobre as possibilidades da arte e da arte escolar na profanação da branquitute epistemologicamente dominante. Nesse sentido, o texto está organizado em três partes. Na primeira parte discute-se os conceitos de branquitude acrítica e crítica, bem como procura demonstrar que o primeiro tem íntima relação com o eurocentrismo como concepção epistemológica. Na segunda parte discute as possibilidades da arte na profanação descolonial e na desmuseificação de espaços institucionalizados. Na terceira parte, por fim, reflete sobre as possibilidades da arte escolar como convite à profanar e experimentar (experienciar) formas mais éticas e responsáveis de relação com o outro que sofre com as desigualdades e com as injustiças em um país estruturalmente racista.   

 

Pensando a branquitude

A representação da criança negra, este corpo território imobilizado com uma arma apontada para sua cabeça, na obra do artista Sidney Amaral, diz sobre o lugar que os negros/as ocupam nas estruturas de poder na sociedade brasileira.  E a mãe-mulher negra evoca a resistência que não se curva frente a prepotência, a agressão e a brutalidade dos homens brancos. O artista criou a cena de modo que o olhar do público se direcionasse para o tensionamento da estrutura de poder, pois o corpo e a corporeidade feminina negra, como protagonista na obra, traz à reflexão os históricos processos de resistência dos sujeitos negros ao combater as abusivas investidas dos brancos e os processos de luta por emancipação racial do corpo dominado para o corpo emancipado. Foram e são estes processos de resistências e lutas que questionam e colocam em xeque a branquitude e sua universalidade epistemológica.

Hooks (2017, p. 266) aponta que “independentemente de classe, raça, gênero ou posição social, sem a capacidade de pensar criticamente sobre nosso ser e nossa vida ninguém seria capaz de progredir, mudar, crescer”, seja em âmbito individual ou coletivo, em um crescimento que diz respeito à capacidade de tornar-se presença no mundo, de engajar-se com as questões que envolvem o social, e não unicamente com nossa própria existência. Nesse contexto, precisamos de um olhar atento para reconhecer a historicidade das estruturas sociais e epistemológicas e os dispositivos de poder que privilegiam as pessoas brancas. Além disso, é importante compreender que a branquitude está alicerçada e opera como uma epistemologia naturalizadora e sacralizadora dessas estruturas. O que significa dizer que pessoas brancas podem não se sentirem responsáveis por esses dispositivos de poder e pelas formas violentas como eles se manifestam. Por incapacidade, indiferença ou desejo de poder, desde a sua perspectiva elas não ocupam lugar de privilégios. Ao invés disso, assumem que as coisas são assim “por natureza” e apoiam-se em argumentos da denominada universalidade do conhecimento científico. Miranda (2017, p. 58-68) nos adverte acerca da subjetividade e a “natureza infraconsciente dos mecanismos de poder” para entendermos a neutralidade ou posicionamentos “mentirosos” que alicerçam o pensamento e as ações da branquitude.

 Essa postura, além de deslegitimar pautas fundamentais para se debater o racismo estrutural, ainda desresponsabiliza certa parcela da população por acreditarem não ser uma pauta que as afeta diretamente (os brancos), desencadeado no que Bento (2002, p. 26) aponta: “A falta de reflexão sobre o papel do branco nas desigualdades raciais é uma forma de reiterar persistentemente que as desigualdades raciais no Brasil constituem um problema exclusivamente do negro”. Portanto, na luta antirracista, antifascista, antipatriarcal, urge problematizar o papel da branquitude.

A partir da literatura de Cardoso (2020) apontamos para a branquitude crítica e acrítica para situar os lugares que brancos ocupam no debate da desigualdade e da igualdade racial. Para Cardoso (2020, p. 169) a branquitude crítica se caracteriza como “aquela pertencente ao indivíduo ou grupo de brancos que desaprovam ‘publicamente’ o racismo”, sendo esse um comportamento que assume posturas, negando qualquer espaço de neutralidade. É um ato de responsabilidade e consciência, que, porém, não nos exime de qualquer incoerência e necessidade de novas desconstruções, uma vez que nos encaramos como seres em constante transformação. Cardoso cria um paralelo ao analisar a branquitude acrítica, que ainda perpetua comportamentos de legitimação de discursos da supremacia branca. Choca a todos quando essa forma de branquitude se apresenta de forma grosseira ou tosca, como em piadas (racismo recreativo), ou de forma vil e em manada, como nos episódios de ataques racistas ao atleta brasileiro Vinícius Júnior na Espanha (Extra, 2023). Contudo, ela também pode engendrar uma narrativa refinada, envernizada por uma falsa ideia de igualdade que se recusa em reconhecer e legitimar o corpo negro como outro, sob o subterfúgio de que “todos somos humanos”, inviabilizando o reconhecimento da outridade[8] enquanto sujeito e da diversidade de experimentação do mundo, até porque o mundo.

Recentemente tomou espaço na mídia brasileira um artigo do antropólogo Antônio Risério publicado na Folha de São Paulo (Risério, 2022), intitulado "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo", que, errônea ou deliberadamente trata de forma equivalente os conceitos de discriminação/preconceito e racismo, e induz ao que é popularmente chamado de “racismo reverso”, embora o autor o chame de “neorracismo identitário”. Ao longo de seu argumento defende a teoria de que estaria se instaurando um movimento de “supremacia”, tendo como principal objetivo atingir as pessoas não-negras. O texto recusa o debate sobre racismo estrutural (chamando-o de “fraude”) e, em um movimento anti-intelectual, distorce a realidade ao pinçar episódios que atestam as tensões raciais em sociedades desiguais para que brancos se vitimizem e, como corolário, não reconheçam seus privilégios. Ao contrário, são convidados a relativizá-los: afinal, se além do racismo tradicional, há esse outro, de negros contra branco, o que poderia acontecer se os dispositivos de poder se equilibrassem? O autor, em flagrante projeção (Fromm, 1969, p. 30-31) parece já ter a resposta (Risério, 2022):

Resta, então, a pergunta fundamental. O neorracismo identitário é a exceção ou a norma? Infelizmente, penso que é a norma. [...]

Nesse fundamentalismo, se o que conta é a afirmação de um essencialismo racial, reagindo ressentido a estigmatizações passadas, dificilmente os sinais supremacistas não serão invertidos. As implicações disso me parecem óbvias.

 

Para Bento (2002, p. 06):

O silêncio, a omissão, a distorção do lugar do branco na situação das desigualdades raciais no Brasil têm um forte componente narcísico, de autopreservação, porque vem acompanhado de um pesado investimento na colocação desse grupo como grupo de referência da condição humana.

 

É importante lembrar que a branquitude crítica e acrítica representam tipos ideais que ajudam a ler e interpretar as situações, porém entre elas há uma extensa nuance de comportamentos, como aqueles que publicamente se mostram engajados e comprometidos com práticas antirracistas, mas em suas vidas privadas não estão dispostos a reconhecer seus próprios privilégios. Em um primeiro momento se ressalta a necessidade de reconhecermos nosso lugar de fala, que é caracterizado por Ribeiro (2019a, p. 84):

Assim, entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente a constituição dos lugares de grupos subalternizados.

 

Simões (2021, p. 323) contribui nessa discussão apontando que ao “falarmos e pensarmos, fazemos alusão direta ao nosso lugar social, racial, histórico”, e completa afirmando que “Lugar de Fala não é Lugar de Cala e sim lugar de reconhecer que também os brancos, héteros, de classe média, falam desde um lugar”. O autor faz um convite ao diálogo e percepção do corpo branco, de como tem se utilizado de seus espaços de privilégio na construção de uma narrativa descolonial, principalmente no que se trata dos processos de produção e circulação da arte brasileira. Simões (2021) denuncia que “todo cubo branco tem um quê de casa grande”, fazendo referência justamente a forma com que os espaços de arte institucionalizados foram sendo construídos a partir da vivência da branquitude, e reflete sobre como os movimentos contemporâneos têm pensado sobre os deslocamentos na perspectiva de representação estética da cultura afro, acompanhados das transformações epistemológicas no campo intelectual, num movimento social que envolve muitas outras resistências e enfrentamentos, forças contrárias a esse ideal. A branquitude acrítica, em seu projeto universalizador, produz epistemicídios, ou seja, um “apagamento sistemático de produções e saberes produzidos por grupos oprimidos” (Ribeiro, 2019b, p. 61), ao passo em que impõem um embranquecimento cultural.

Esse movimento desconsidera (e desperdiça) experiências de vida, especialmente de grupos subalternizados, favorecendo as manifestações culturais e o modo de vida eurocêntrico. Modo que acaba sendo imposto aos demais como universal, sendo introduzido no comportamento e imaginário como norma de forma nem sempre consciente, levando a um processo de despersonalização, que é evidenciado por Kilomba (2019, p. 119), para quem “o sujeito negro é forçado a desenvolver um relacionamento com o eu e performar o eu que tem sido roteirizado pelo colonizador”. Em tal performance, o indivíduo não precisa mais de um algoz externo ao seu corpo porque ele está em si como uma segunda pele.

Esta pele já não nos serve mais. É preciso, então, forjar resistências em relação à lógica dominante imposta pelo capitalismo e pela colonização, como forma de não mais perpetuar uma historicidade única, ideia provocada por Adichie (2019, p. 12), quando nos alerta: “mostre um povo como uma coisa, uma coisa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna”. A história única e o epistemicídio são formas radicais de manifestação de poder. Adichie (2019, p. 12) aponta que: “O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva”. Para Kilomba (2019, p. 76) o poder é uma das partes centrais da problemática, seja ele de origem política, histórica, social ou econômica, afirmando que: “É a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo”, e identifica os comportamentos racistas como a própria manifestação da supremacia branca, apontando que “Outros grupos raciais não podem ser racistas, nem performar o racismo, pois não possuem esse poder”, ressaltando que os conflitos entre eles ou em relação ao grupo branco, se caracterizam pelo conceito de preconceito. Devemos avançar na nossa reflexão (hooks, 2019), pois temos o dever de propor narrativas na contramão da perspectiva da branquitude, quer no cotidiano, quer nas instituições, significando que não basta alterar imagens sem alterar os paradigmas, as perspectivas, os modos de ver e viver em sociedade.

 

Arte e profanação descolonial

A exposição “Histórias Afro-Atlânticas” (MASP, 2018) é composta por centenas de obras que perpassam o tempo histórico do século XVI ao XXI, analisando como a cultura negra adquiriu diferentes formas representativas e de contestação e combate às narrativas racistas que dominaram a história da colonização americana. A partir do conjunto de obras podemos perceber as transformações na forma de representação da figura negra, partindo de um corpo docilizado, cativo, disponível, até nos depararmos com a imagem transgressora exasperada pela injustiça social e rebelada contra o poder opressor em “A mãe preta ou a Fúria de Iansã”, obra analisada no início deste texto.

Os espaços de arte institucionalmente reconhecidos acabaram por edificar suas narrativas a partir de uma estética eurocêntrica, restando às culturas colonizadas um espaço de exclusão, em salas à parte, como se para mostrar a excentricidade dos povos colonizados como forma de sanar a curiosidade europeia (Quijano, 2019). Tudo que fugisse à norma da estética universal passa a ser encarado como “exótico”. A partir daí se edifica uma história da arte que reforça relações hierárquicas de poder, simbolicamente violenta ao propor uma visão normativa sobre a estética dos grupos representados nos objetos de arte, influenciando na construção do imaginário coletivo (e individual) acerca desses grupos. Cocotle (2019, p. 3) observa que: “o museu, enquanto instituição moderna, tem seu fundamento epistêmico e sua razão de ser na lógica colonial”, e segue lembrando a necessidade de se instaurar uma prática que subverta essa ideia. Aos museus e curadores brasileiros, bastou a reprodução de padrões condizentes ao ideário da manutenção das matrizes europeias. Nesse sentido, Simões (2021, p. 10) ressalta:

Atentar para a exposição e para o seu caráter de usina de narrativas ausentes é uma urgência quando se pensa em presenças que, até pouco tempo atrás, ocupavam os anexos, às notas de rodapé, recebendo muito pouca atenção. Curar exposições tem sido, também, a tarefa de definir que horizontes inscrevemos na nossa posição diante do que pensamos ser a arte local.

A exposição “Histórias Afro-Atlânticas” se inscreve nesse horizonte que busca questionar o poder hegemônico da arte, se abrindo também uma narrativa expressiva da branquitude crítica. Esse horizonte se verifica na obra de Carlos Vergara[9], em que o autor apresenta um símbolo estético que subverte a ideia de uma historicidade única, ao colocar no centro da obra o corpo negro com a palavra geradora de tantos conflitos, disputas e segregações. É a reivindicação de um novo espaço afirmativo, “um grafite político na própria pele”, como destaca o memorial que acompanha a obra na exposição:

Figura 02: Carlos Vegara, Sem título, da série 'Carnaval', 1972, fotografia, coleção particular, São Paulo, Brasil.

Foto em preto e branco de homens

Descrição gerada automaticamente

Fonte e créditos da imagem: MASP, disponível em: https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas Acesso em 10 mar. 2022.

É importante observar que o artista ocupa um espaço e lugar de fala a partir da vivência da branquitude, assumindo ela de forma crítica, em uma postura que se abre para a alteridade do outro. Corpos como lugar de poder, corpos que falam, se expressam, rompem silêncios, são simbólicos. É exposto um novo paradigma, o da corporeidade negra viva, real, que não é desviante ou exótica.

A fotografia registrada data dos anos 70, período de radicalização da violência da ditadura civil-militar brasileira e das disputas de hegemonia entre a extinta URSS e os EUA (bipolaridade política-econômica). A captura da imagem foi realizada durante as festividades de um tradicional bloco de carnaval na cidade do Rio de Janeiro. A imagem expõe uma vertente política da festividade que no senso comum é vista como uma manifestação estereotipada de superficialidade e alienação, mas é potencial de subversão, pois reivindica visibilidade, liberdade e poder para a negritude. O carnaval é outra manifestação do avanço da museificação do mundo na contemporaneidade. A festa, em suas origens, é uma manifestação performática e profanação que remete aos festivais de charivari (Davis, 1990). Entretanto, Cotrin (2020) afirma que o carnaval assumiu uma função de amenizador das diferenças sociais, chegando ao extremo de tornar-se produto com os contornos midiáticos nos quais se apresenta atualmente. Embora dificultada, ainda se preserva na festa a possibilidade da profanação, da transgressão, do ato improvável, da exposição dos abusos do poder. Sobre o registro de Vergara em um desses momentos festivos, Albino (2015, grifos do autor), destaca:

Um dos cliques captou o que todo branco deveria ver: o poder da negritude. São três rostos que definem a raça negra até hoje: curiosidade, atitude e desconfiança. O negro quer entender o que se passa à sua volta. O negro se impõe à posição que a sociedade branca lhe coloca. E o negro desconfia do que pode acontecer para com ele. Apesar de tudo isso, o negro quer poder. Poder entender. Poder se impor. Poder confiar.

 

A palavra, a partir da linguagem poética, assume múltiplas significações e não se refere unicamente às relações hierárquicas, mas ao direito de poder reconhecer-se e ser reconhecido como pertence à sociedade de forma legítima, sem que para isso seja necessário submeter-se à relações opressivas de poder que constantemente aniquilam corpos, identidades, vivências, e consequentemente, diferentes possibilidades epistêmicas. A obra de Vergara nos convida para a tomada de postura a partir da criticidade e da descolonização dos corpos negros, fazendo-se uso do poder que a arte lhe confere. hooks (2017, p. 249) nos lembra que “o poder não é negativo em si. Depende do que se faz com ele”, apontando reflexões que vão ao encontro de Simões (2021) quando questiona como refletimos sobre nosso lugar como pessoas brancas, e com que postura ocupamos esse lugar.

Como dessacralização, profanação, a arte pode “conectar-se politicamente com a contemporaneidade, esforço de compreensão sobre necessárias mudanças na sociedade” (Meira, 2003, p. 70). A profanação convida ao novo ao provocar pensar nas formas como nos relacionamos como o mundo e com os outros, como somos responsáveis pelo mundo e pelo outro, como a indiferença e a violência se retroalimentam na naturalização de uma perspectiva epistemológica colonizada, eurocêntrica e universalizante que em países como o Brasil, marcado pelo racismo estrutural, toma a forma da branquitude acrítica. Até aqui pudemos ver que há esforços em desmuseificar o racismo e a violência estrutural na arte. A próxima parte procura refletir sobre as possibilidades de transgressão e profanação na escola, especialmente na arte escolar. Pois, concordamos com Gadioli e Müller (2017, p. 277): “O cotidiano escolar é um ambiente que ainda reproduz discursos de poder, sua estrutura ainda é marcada pelos ideais eurocêntricos e ainda impera certo silenciamento”. Assim, é pertinente e urgente a discussão sobre processos educativos que envolvem branquitude e racismo. 

 

Arte e Escola como tempo-espaço da Profanação

Assim como o museu, a escola enquanto espaço institucionalizado teve sua lógica fundada em preceitos coloniais, sendo instrumentalizada para a manutenção de uma episteme eurocêntrica. A escola no sistema educacional brasileiro, foi

formatada para indivíduos tidos como “universais”, isto é, as suas estruturas materiais e imateriais são pensadas a partir do conhecimento de culturas ocidentais brancas, no padrão iluminista de “ser humano”, com ênfase na imagem do colonizador, que negam ou invisibilizam identidades, diversidades e saberes daqueles que são os outros, como populações indígenas e negras (Vicenzi; Picoli, 2022, p. 07).

 

Masschelein e Simons (2021) nos lembram que as origens do escolar remontam à ideia de democratização do tempo livre, suspendendo uma ordem desigual que até então tornava a escola um privilégio de uma pequena elite, tornando-se um espaço passível de ser reivindicado por qualquer cidadão, independente do lugar social que ocupe. Para os autores, a escola passa a ser um tempo-espaço separado do tempo-espaço da sociedade ou da família, sendo um ambiente que não deve estar subjugado aos interesses familiares, ou atendendo à visão utilitarista para a sociedade, que em grande parcela a percebe como lugar de preparação para o mercado de trabalho. Essa democratização do tempo livre acabou sofreu reação da elite e de pessoas conformadas com a ordem social disposta e que assim mobilizaram esforços para “desescolarizar” a escola, num “impulso contínuo para domar a escola, ou seja, restringir o seu caráter potencialmente inovador e até mesmo revolucionário” (Masschelein; Simons, 2021, p. 27). Nesse sentido, a história, sobretudo a escolar, foi contada pelo olhar do colonizador, criando imaginário e valores sociais condizentes à branquitude, afetando tanto grupos hegemônicos, como oprimidos de formas e com efeitos distintos. Assim, “em vez de ser um lugar de proteção, de hospitalidade, de experienciar o mundo, a escola torna-se um lugar de violência simbólica e física, de opressão e de chancela da opressão” (Vicenzi; Picoli, 2022, p. 09), um tempo-espaço sequestrado de sua dimensão libertadora e que opera na lógica da sacralização e da museificação da ordem (colonialidade, racismo, desigualdade, injustiça etc.) e das perspectivas epistemológicas que lhe oferecem suporte.

Larrosa (2019) observa que a educação é a forma com que o mundo recebe e responde àqueles que nascem, abrindo o espaço para que o novo possa habitar, assumindo a responsabilidade que esse ato carrega. Essa “função” do escolar faz pulsar questionamentos sobre quais são as respostas que nossos alunos têm recebido desse ambiente, especialmente em se tratando de grupos historicamente negligenciados, em outras palavras, sobre como experienciam o tempo-espaço escolar. O autor esclarece a relação entre experiência e formação, ao observar que “experiência é o que acontece conosco e o que, ao acontecer, forma-nos ou nos transforma, constitui-nos, faz-nos como somos, marca nossa maneira de ser, configura nossa pessoa e nossa personalidade” (Larrosa, 2019, p. 332). Experiência, então, só o é se aberta, ou seja, se receptível à desestabilização, à dobra, à possibilidade de transformar-se em outra coisa. Os objetivos da arte no tempo-espaço escolar não são, necessariamente, os mesmos da arte em outros tempos e espaços. A educação em arte é parte do tempo-espaço escolar. Então, não se trata apenas de expressão (ou de autoexpressão), mas de resposta responsável a partir de formas autênticas e livres (no sentido de liberdade compartilhada) de expressão artística. Portanto, embora tenha relação com a técnica ela tem origem na ética, na relação com o outro. Trata-se de uma questão de cuidado em que “ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas de nossos alunos é essencial para criar as condições necessárias para que o aprendizado possa começar do modo mais profundo e mais íntimo” (hooks, 2017, p. 25).

A efetivação da experiência no tempo-espaço escolar necessita da presença do aluno e do professor, da conexão no espaço-tempo do aqui-agora, suspendendo o tempo comum que corre para além daquele espaço com urgência produtiva. Para além do conhecimento e competência, “é a presença, o cuidado, e a dedicação que dão expressão à maestria do professor” (Masschelein; Simons, 2021, p. 78). A experiência então é como um acontecimento educativo que surge a partir da reflexão do indivíduo sobre si mesmo, sobre o lugar que ocupa e sobre sua relação com o outro, tornando-se o sujeito da experiência, receptivo e aberto à ressignificação do que lhe acontece. Nossas experiências adquirem sentido através da linguagem, através da relação entre as palavras e as coisas, e nesse processo Larrosa (2014, p. 358) atenta para a necessidade de

problematizar constantemente o que nosso olhar tem de vertical, de assimétrico, de colonizador. Teríamos de problematizar também o que nosso olhar tem de homogeneizador, de banalizador, de falsamente igualitário; o que nosso olhar tem de estereotipador.

 

Esse olhar é o olhar da profanação, da transgressão. A experiência da arte escolar engajada possibilita a elaboração de sentidos (ou a sua falta) através das linguagens da arte, no empoderamento de histórias de vida marcadas por práticas racistas e preconceituosas, assumindo uma postura afirmativa e de presença no mundo, questionando as formas de experienciar fundadas em estereótipos colonizados, em um processo constante. Masschelein e Simons (2021 p. 39) observam que a criação de um tempo-espaço escolar como lugar para profanar refere-se “a algo que é desligado do uso habitual, não mais sagrado ou ocupado por um significado específico, e, portanto, algo no mundo que é, ao mesmo tempo acessível a todos e sujeito à (re)apropriação de significado”. Os autores observam que os conteúdos e matérias de estudos que resultam na apropriação/criação de conhecimento possuem essa característica democrática, disponibilizados ao uso público de forma igualitária, num momento em que as novas gerações são provocadas a experimentar de forma responsável o mundo, ao passo em que os professores também se transformam em contato com o novo.

Na sociedade brasileira, marcada por injustiças e exploração, a violência estrutural do racismo e a desigualdade assumiram a feição de “ordem natural das coisas”, modelando as formas de comportamento e limitando o que pode ser visto, dito e pensado, tal é a colonização do imaginário. O lugar social que cada pessoa ocupa determinaria quais seriam os “saberes úteis” aos quais deveria ter acesso, os mais adequados a sua posição. Nesse tempo histórico vivenciamos a oportunidade de subverter essa predeterminação no plural e na pluralidade, possibilitando que possamos vislumbrar “a igualdade de qualquer um com qualquer outro” (Larrosa, 2019, p. 372). Igualdade que não pode ser confundida com homogeneidade.

É nesse cenário de questionamento e possibilidade que a arte na escola se apresenta como uma oportunidade de se edificar saberes e práticas antirracistas no tempo-espaço escolar, proporcionando experiências a partir de obras, artistas e histórias de vida que sensibilizem e provoquem para pensar as relações étnico-raciais, na criação de uma resposta responsável ao chamado que emana do rosto daqueles que sofrem a injustiça, o racismo e a desigualdade, responsável por não ser indiferente e naturalizadora (sacralizadora) da injustiça (Levinas, 2009; Biesta, 2017). Embora não se trate apenas disso, a educação envolve a apresentação do mundo (Arendt, 2016; Larrosa, 2021; Masschelein, 2021). Mas apresentação não significa passividade ou neutralidade, ao contrário, implica sensibilizar (Arendt, 2017b), superar a indiferença e apresentar um mundo com problemas mas pelo qual ainda vale a pena lutar, porque afinal é o único que temos, já existia antes de nós e pode ser transformado pelas nossas ações. “Experiência” implica qualidade da relação do aluno com o mundo, como ele se percebe como sujeito (no duplo sentido do termo), fazendo-o pensar sobre a resposta ao outro, tornando-se responsável pelo mundo. Responsabilidade que é anterior a tomada de consciência da responsabilidade, é, antes, um questionamento da consciência do que uma consciência de ser questionado (Levinas, 2009). Experiência implica habitar e ser habitado pelo mundo.

É evidente que a experiência da profanação não é agradável, fácil, antes o contrário. A profanação como questionamento epistemológico implica criticar-se sempiternamente, sobretudo nas crenças mais profundas, aprendidas como “a Verdade”. Também, o conceito de transgredir (hooks, 2019) significa liberdade e estar disposto a romper os limites e barreiras da tradição (cultura universal), apresentando outras experiências, outras perspectivas que procuram desviar os olhares das aparências e configurações convencionais de ver e representar as pessoas negras. Retomar o sentido escolar da escola, ou seja, superar as formas de desescolarização e museificação do escolar, implica retomar o sentido da educação para além das relações mercadológicas pautadas na “aprendizagem” como aquisição de saberes, de habilidades, de competências etc. A educação, em sentido propriamente escolar, implica riscos profundos, dentre os quais destacamos o “risco de que você aprenda algo que preferiria não ter aprendido – algo sobre si mesmo, por exemplo” (Biesta, 2017, p. 45). Em “Mãe preta ou A fúria de Iansã” o risco é dirimido, e assim a dimensão educativa da escola e da educação em arte, é esvaziada, se algumas perguntas não forem feitas, dentre as quais, destacam-se: onde estou nessa cena? Essa mão ensanguentada não é também minha? Como podemos permitir que essa mãe se veja sozinha nessa situação? O que significa ser “espectador” nessa cena? Importa criar as oportunidades para que essas questões, e tantas outras, sejam feitas. Segundo hooks (2019, p. 37): “E, se houve pouco progresso, é porque nós transformamos as imagens sem alterar os paradigmas, sem mudar perspectivas e modos de ver”. Cabe ao professor o processo de (re)construir a identidade negra combatendo e rompendo práticas pedagógicas eurocêntricas e propiciar o questionar, o pensar e o olhar transgressor. É um dever ético (ABEH, 2022).

E, logo, para que possamos aprender a responder de forma responsável, ou seja, experimentar outras formas de nos relacionarmos entre nós e com aqueles que são outros. É esse o conteúdo ético fundante da escola. Mais do que dar respostas, profanar é colocar “algo” sobre a mesa, retirar de seu uso comum, do pedestal da sacralidade (do inquestionável) ou da invisibilidade do naturalizado (do que é escondido), tornar objeto do olhar, desnaturalizar, dessacralizar. 

 

Considerações finais

Qual pode ser o papel da arte escolar no enfrentamento à branquitude como epistemologia única? A escola, como tempo-espaço liberto para experimentar e experienciar de forma igualitária, democrática e responsável, a escola em sua forma escolar, enquanto lugar de profanação fundado na ética, pode convidar aqueles que estão envolvidos em suas atividades, especialmente professores e estudantes, ao difícil, porém necessário, exercício (escolar) de discutir o que outras instituições não se mostram muito dispostas a colocar em questão.  

Na arte contemporânea percebe-se um movimento de repensar os espaços e as relações étnico-raciais no que diz respeito à produção e circulação das mais variadas linguagens, problematizando o espaço museológico como instituição sacralizadora da cultura eurocêntrica, propondo a descolonização desses espaços, e, por consequência do próprio imaginário social. Manifestações artísticas, como as reunidas pela exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, empreendem o esforço de mobilizar perspectivas epistemológicas para além das hegemônicas, das que compreendem o “cânone”. Essas manifestações artísticas recusam a indiferença naturalizadora do próprio conceito de beleza eurocêntrico e assumem o compromisso com as questões políticas e sociais do tempo-espaço em que se encontram. Buscam sensibilizar para questões que nos atravessam, para as quais somos responsáveis indiferentemente da consciência dessa responsabilidade, mas pelas quais não nos responsabilizamos por não nos atingir diretamente, ou, por vezes, porque nos beneficiam através da perpetuação de privilégios de branquitude.

A escola não é um museu, nem mesmo um Museu desmuseificado. A arte escolar é sobretudo escolar. Isso quer dizer que não tem a ver apenas com expressão, com atendimento aos desejos, com motivação. Tem relação, outrossim, com o interesse [inter esseri], ou seja, com produzir um “acontecimento”, com colocar sobre a mesa “algo” entre seres a ser discutido. A mesa (mesmo que as coisas não se deem sobre uma mesa rigorosamente) opera como o que separa e une concomitantemente (Arendt, 2017a), que possibilita o que caracteriza a “voz escolar”:

ela abre, des-cobre, expõe um mundo, ela comunica um mundo ao despertar a atenção e o interesse para algo, descartado ou libertado a sua utilidade imediata, pelo que a escola nos leva para fora de nós mesmos, expõe-nos e arrasta-nos para dentro e para perto do mundo (Masschelein, 2021, p. 40). 

 

Democratizar as produções artísticas que partem de perspectivas epistemológicas antirracistas pode ajudar na afirmação da identidade e da autoestima de crianças que são vítimas do racismo. Pode ajudá-las, inclusive, a perceberem que suas vidas são atingidas pelas estruturas racistas que afetam todo o seu cotidiano e que possuem várias camadas, algumas tão profundas e naturalizadas que são de difícil identificação. Pode também ajudar crianças brancas a perceberem como suas vidas são danificadas por assumirem, em muitos casos sem perceber, perspectivas racistas desumanizantes. São desumanizantes porque ao proferirem discursos e práticas que recusam a plenitude da humanidade do outro também fazem do “Eu” dos membros do grupo pretensamente superior um Eu não digno para oferecer-se ao outro. Profanar significa convidar a pensar, a se pensar, a pensar o outro e os modos como respondemos ao outro. Transgredir é uma escolha política para aqueles que desejam não seguir o convencional, de propor alternativas, de transformar e subverter imagens afastando-se da dualidade acerca do belo e do feio, do bom e do mau.

A arte na escola compreende esse convite a partir da sensibilização dos sentidos. Esse convite é profanação, é abertura para as oportunidades, para o novo, para experimentar (experienciar) formas outras de expressão que constituem oportunidades de criação de um mundo outro.

 

 

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Recebido em 02/06/2023.

Aceito em 19/07/2023.



[1] Doutor em Educação, mestre em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Brasil. E-mail: bruno.picoli@uffs.edu.br | https://orcid.org/0000-0001-6831-2199

[2] Doutora em História. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Brasil. E-mail: renilda.vicenzi@uffs.edu.br | https://orcid.org/0000-0002-1304-573X

[3] Professor de arte. Mestrando em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Brasil. E-mail: aleschappo@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-9452-1792

[4] Sidney Amaral foi professor e artista, além disso, teve uma extensa produção poética problematizando questões identitárias e repensando a estética sob a qual a figura negra é representada.

[5] Realizada em tinta acrílica sobre tela, a composição faz referência direta a uma cena do filme “Cristo Rey” (2014), rodado na República Dominicana e dirigido por Leticia Tonos. A obra faz parte do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

[6] “Uma orixá popular no panteão iorubá, associada ao vento, à tempestade, à alegria, ao pensamento rápido. Em suas histórias percebemos os elementos que perpassam o arquétipo, tais como: vingança, coragem, ousadia de assumir uma paixão, capacidade de se dedicar em esmero em quaisquer atividades, facilidade para se comunicar, tendência a se lançar em relacionamentos diversos ao longo da vida. Enfim, em Iansã predomina a articulação dos elementos fogo e ar” (Nogueira, 2021, p. 96).

[7] O uso de descolonial (em português) e não de decolonial (inglês) é também uma forma de resistir a outro tipo de colonização, intimamente articulada à colonialidade típica: o imperialismo da língua inglesa (Canagarajah; Said, 2011).

[8] Grada Kilomba em ‘Dizendo o indizível: definindo o racismo’, afirma: “O racismo cotidiano refere-se a todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam o sujeito negro e as Pessoas de Cor não só como “Outra/o” – a diferença contra a qual o sujeito branco é medido – mas também como Outridade, isto é, como a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade branca” (2019, p. 78).

[9] Tendo iniciado sua trajetória artística nos anos 60, a resistência à ditadura miliar brasileira foi incorporada em sua estética, assim como outros artistas de sua época, propagando uma manifestação expressiva de caráter político e social. Em seu processo, sempre esteve aberto à experimentação de diferentes linguagens, como a fotografia, instalação, pintura e monotipia.