O Sistema Democrático e o Sistema Tradicional: colonialidade e política entre os Kaingáng da TI Xapecó (SC)

The Democratic System and the Traditional System: coloniality and politics among the Kaingáng of the TI Xapecó (SC)

                                                                                               Rafael Benassi dos Santos[1]

 

 


Resumo

No presente artigo analiso através de uma abordagem antropológica a noção de política utilizada pelos Kaingáng da Terra Indígena Xapecó (SC). Sob uma ótica diacrônica orientada pelos estudos da colonialidade, investigo nos processos de territorialização as formas de controle do seu trabalho e as transformações em sua organização social ao longo dos dois últimos séculos de expansão da sociedade ocidental no Brasil meridional, fundamentais para compreensão atual do que os Kaingáng denominam política. Descrevo formas de resistência e criatividade, assim como conflitos recentes que levaram a “mediação” da justiça não indígena na comunidade culminando na criação da democracia em oposição ao sistema tradicional. Ao fim, através do conflito desses modelos de gestão, busco dar visibilidade as assimetrias de poder e agências individuais e coletivas em torno de projetos de futuro.

Palavras-chave: Kaingáng; Democracia; Política.

Abstract

In this article, I analyze through an anthropological approach the notion of politics used by the Kaingáng of the Xapecó Indigenous Land (SC). From a diachronic perspective guided by studies of coloniality, I investigate in the processes of territorialization the forms of control of their work and the transformations in their social organization over the last two centuries of expansion of Western society in southern Brazil, fundamental for the current understanding of what the Kaingáng call it politics. I describe forms of resistance and creativity, as well as recent conflicts that led to the “mediation” of non-indigenous justice in the community, culminating in the creation of democracy in opposition to the traditional system. In the end, through the conflict of these management models, I seek to give visibility to the asymmetries of power and individual and collective agencies around future projects.

Keywords: Kaingáng; Democracy; Politics.


 

 

 

 

 

Introdução

As formas de organização social indígena contemporâneas se conformam em conjunturas socioeconômicas e ecológicas marcadas pelo capitalismo colonial/moderno (Quintero, 2013) que ao longo dos séculos produziu assimetrias de poder no processo de subjugação de diferentes povos. Atualmente, as relações políticas entre os indígenas e o Estado variam da interdependência a oposição e influem diretamente na construção de formas comunitárias de resoluções de conflitos internos e construção de consensos. Neste trabalho, abordo a complexidade do sistema político dos Kaingáng da Terra Indígena Xapecó (oeste de Santa Catarina) explorando sua origem histórica e os desafios enfrentados diante dos processos de subjugação que reestruturaram tanto os seus sistemas políticos quanto a própria comunidade durante a expansão global da sociedade ocidental.

A partir de dados etnográficos[2] trato da noção de política utilizada pelos Kaingáng localmente sob uma ótica diacrônica orientada pela abordagem da Antropologia Histórica. Em especial, analiso através dos processos de territorialização (Pacheco de Oliveira, 2004) as formas de controle do seu trabalho e as transformações em sua organização social ao longo dos dois últimos séculos, fundamentais para compreensão do que os Kaingáng denominam política. Nesse sentido, também aponto para formas de “resistência cotidiana” (Scott, 2002) assim como de “indigenização” (Sahlins, 1997) que se relacionam tanto com a criação da democracia, como também do sistema tradicional, refletindo como através do conflito desses modelos de gestão quadros de assimetria de poder são revelados. 

Meu objetivo não é apresentar uma descrição etnográfica ou histórica minuciosa, porém, por meio da seleção de momentos decisivos, apresentar algumas indicações acerca da história dos Kaingáng e dos povos indígenas na América do Sul em uma visão mais ampla. Para isso, procuro apresentar uma interpretação específica que leve em conta a complexidade das dinâmicas culturais, sociais e políticas envolvidas na trajetória dessa comunidade.

 

Uma democracia Kaingáng

Desde o início dos anos 2000, na TI Xapecó, o cacique é escolhido através de um sistema de eleições denominado localmente de democracia. A cada quatro anos, todos os moradores em maioridade podem votar e escolher o principal cargo de liderança da comunidade em urnas eletrônicas instaladas nas principais escolas da TI pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF), que também supervisionam o pleito. A eleição costuma ser um grande evento, envolvendo de forma direta todas as 16 aldeias e os seus mais de 5.000 moradores.

Devido às proporções de tamanho e população da TI Xapecó em relação aos municípios vizinhos – Ipuaçu e Entre Rios – os impactos do processo eleitoral interno costumam transcender a fronteira do território indígena, movimentando interesses e alianças que perpassam diferentes agentes e agências locais como prefeitos, vereadores, latifundiários, pastores e lideranças indígenas. O cargo de cacique, ao concentrar uma série de poderes e atribuições, alimenta as mais diversas expectativas de ordem econômica e simbólica:  ele indica funcionários das escolas e postos de saúde da TI, escolhe lideranças “menores” como o “capitão” e o “major”, capta recursos governamentais e gerencia a realização de políticas públicas, administra a produção agrícola interna, organiza eventos culturais e o ritual do Kiki[3], policia a comunidade e aplica as punições tradicionais[4], além de mobilizar coletivos frente a defesa e representação na luta e consolidação de seus direitos.

A democracia dos Kaingáng da TI Xapecó, apesar da familiaridade nominal com o sistema político liberal não indígena, carrega mecanismos e consequências complexas, pouco conhecidas e tão pouco controláveis pelos organismos estatais: “expulsões, transferências, fugas, prisões, destituição de cacique e lideranças, brigas, exclusão de benefícios institucionais, afastamento de professores indígenas – repercussões não compreendidas pelo humanitarismo oportunista do cenário eleitoral” (Fernandes, 2006, p. 28). 

No entanto, apesar dessas características próprias do sistema político local, seria equivocado supor que se trata de uma unanimidade. Como demonstrarei ao longo deste trabalho, a condução e a compreensão sobre a política e as ações e moralidades que a orientam costumam dividir opiniões e estão em permanente disputa. “Analisar esta trama eleitoral implica compreender o trânsito entre a política dos brancos e a política dos índios, implica conhecer fronteiras que dividem e conectam modos e mundos” (Idem, 2006, p. 28). Neste sentido, o sistema político local deve ser entendido dentro de um quadro complexo, marcado por imposições, sobreposições e resistências, assimetrias de poder que se transformam, reproduzem e se conformam ao longo do tempo.

Para uma parcela da comunidade, por exemplo, a democracia é vista como um “sistema do branco” onde o cacique se torna vulnerável a intervenção não indígena na condução da governança coletiva. Segundo essas pessoas, a introdução das eleições teria aberto brechas para interferências constantes da justiça em suas formas decisórias. O MPF, agindo por meio de denúncias realizadas por pessoas prejudicadas por decisões das lideranças, estaria minando a autoridade do cacique sob a justificativa de estar “pacificando” os conflitos (Santos, 2019). Além disso, a democracia teria dado início a política, termo – na maior parte das vezes pejorativo – usado para se referir às estratégias que envolvem a gestão de relações, interesses e expectativas sobre a distribuição de recursos materiais e simbólicos envolvidos no ciclo político eleitoral e que estaria vinculado aos “brancos”.

Em geral, aqueles que veem a democracia negativamente, a opõe ao que chamam de sistema tradicional[5], vigente antes da criação do sistema eleitoral no ano 2000, e existente atualmente em outras TIs Kaingáng[6]. Nesse arranjo, o cacique é eleito por aclamação entre os cabeças[7] dos núcleos domésticos, governando até que seja destituído (“derrubado”). Segundo os interlocutores, no sistema tradicional o cacique possui maior autonomia por não ser orientado pelas dinâmicas de alianças e tempos do ciclo eleitoral e não produzir divergências que permitam o acionamento do MPF por grupos derrotados ou opositores. Por isso, alguns afirmam que “no sistema tradicional não tem política”.

Para outras pessoas, no entanto, “a democracia é um sistema que garante os direitos de todos, e onde o cacique não seria mais um ditador”. Essas pessoas contrapõem os argumentos daqueles que afirmam que o cacique está “mais fraco”, afirmando que a autoridade dele não pode ser construída com base na repressão, pois essa seria uma forma de poder herdada das intervenções não indígenas oriundas do período de atuação do sistema tutelar coordenado pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Nesse sentido, ainda que com problemas, a democracia seria um sistema mais adequado a atual situação sociopolítica da comunidade.

No entanto, diferentes interlocutores ao tecerem comentários sobre o sistema político local usam a noção de individualismo, que costuma aparecer no discurso local interseccionada às noções de democracia e política. Como apontei em outro lugar (Santos, 2019) com o território da TI coberto por plantações monocultoras de soja e com os espaços para roça, caça e coleta limitados, os trabalhos assalariados, especialmente em frigoríficos, têm sido muito importantes para o sustento dos núcleos domésticos. As referências ao individualismo nas narrativas costumam fazer referência às mudanças nas moralidades que orientam as relações de reciprocidade entre os núcleos domésticos. Atualmente eles se encontram mais dependentes de relações assalariadas de modo que muitas famílias optam por obter os gêneros fundamentais a sua subsistência em mercados da região, não mais alimentando o ciclo de troca de dádivas entre vizinhos. A relação entre a democracia e o individualismo estaria nas dificuldades encontradas na mobilização política comunitária frente ao enfraquecimento das redes de solidariedade local e o fim de atividades coletivas e laços afetivos que a troca de dádivas produz.

Essas diferentes percepções que opõe o sistema tradicional e a democracia, ou mesmo as referências sobre o individualismo revelam como os Kaingáng concebem a política apontando para as contradições e os debates entre os próprios indígenas sobre as formas decisórias e de criação de consensos, assim como para as moralidades que orientam os assuntos coletivos na atualidade. No entanto, a existência de uma preocupação constante com as formas de subsistência das famílias em relação direta com essas formas de governança, aludem para a inseparabilidade entre política e território. Dessa forma, como demonstro a seguir, a noção de política aponta para os impactos causadas pelo esbulho e a devastação territorial perpetrado pela aliança do Estado e a elite regional, mas também para as características assimétricas e hierarquias da própria organização social Kaingáng e sua transformação ao longo dos séculos.

           

Antropologia, Colonialidade e Territorialização

Ao longo de grande parte do século XX, a etnologia brasileira compreendeu os Kaingáng como um povo em acelerado processo de “aculturação” e inexorável “desaparecimento”. A situação de intenso contato com a sociedade não indígena e seu histórico de “assimilação” pelo sistema econômico local levou ao desaparecimento gradual de sinais diacríticos, corroborando com a percepção de que esses indígenas haviam se “acaboclado”. Naquele contexto, o conhecimento antropológico fundamentava as iniciativas do indigenismo oficial, capitaneado pelo SPI e que tinha como fundamento a “integração” dos indígenas como “trabalhadores nacionais” mediante a sua “assimilação”. Havia a preocupação de que os Kaingáng vinham se transformando em “agricultores pobres”, ou em “processo de transmutação”, vinculados à estrutura agrária brasileira, marginalizados pelo avanço da grande propriedade rural.

Para Ítala Becker (1976, p. 11), por exemplo, o “Kaingáng contemporâneo” estava “grandemente aculturado, mas não assimilado”, e Mellati (1976, p. 154) registrava “um quase abandono dos costumes tradicionais”. Segundo Lévi-Strauss (1955, p. 165), “para minha grande decepção, os índios do Tibaji não eram nem inteiramente índios verdadeiros nem, muito menos, selvagens”, diferente dos “índios puros que iria abordar posteriormente”. Outro exemplo do impacto desta percepção para a etnologia Kaingáng foi a sua exclusão do Projeto Harvard-Central Brazil liderado por David Maybury-Lewis. Segundo o autor: “não incluímos estes grupos no nosso plano original de pesquisa por que pensamos, erroneamente, sou grato em dizer, que eles haviam desaparecido, ou ao menos seu modo de vida estava extinto” (1979, p. 6).

Os órgãos tutelares implantaram em territórios indígenas políticas que visavam acelerar o processo de “integração” à “sociedade nacional” através do desenvolvimento de atividades rurais produtivistas, controle do trabalho e imposição de um sistema educacional ocidental. Em diferentes TIs Kaingáng, os espaços foram divididos e negociados com não indígenas, resultando em um acentuado processo de devastação, esbulho e invasão. No entanto, em fins dos anos 1970, esses mesmos indígenas protagonizaram episódios de luta pelo desintrusamento e retomada de seus territórios, expulsando não indígenas, enfrentando o órgão indigenista oficial, reafirmando sua identidade étnica e reestabelecendo o controle administrativo sobre suas terras. Assembleias Indígenas se espalharam pelo país dando início ao que viria a se tornar o Movimento Indígena Nacional.

Gradualmente, os Kaingáng começaram a buscar alternativas econômicas, sociais e jurídicas para sua autogestão. Desde então, as chamadas “práticas tradicionais” foram retomadas e revitalizadas, como o ritual do Kiki e as atividades dos kujãs (xamãs). Na TI Xapecó foi criado o chamado sistema tradicional, onde os caciques se reapropriavam de prerrogativas das autoridades tutelares – como o “chefe de posto” – sob uma lógica da hierarquia e autoridade Kaingáng. Esse processo, no entanto, tem sido complexo, permeado por disputas entre grupos internos alimentados por constantes intervenções de instituições estatais em suas decisões coletivas, pelo desgaste territorial deixado pelos anos de intervenção do SPI e FUNAI e pelo avanço do agronegócio.

Nesse cenário, o próprio conhecimento antropológico passou por uma transformação, reconhecendo a importância de compreender as estruturas sociais, econômicas e espirituais dos povos indígenas, como manifestações históricas e contextuais, levando em consideração as dinâmicas de poder e interações que permeiam essas instituições. Desde então, antropólogos tem dado mais ênfase às temporalidades que moldam os dados etnográficos, a fim de evitar a transição abrupta de uma escala local e sincrônica – obtida por meio da etnografia – para análises generalizadoras e homogeneizadoras, que têm sido comuns em algumas abordagens (Bensa, 1998).

A perspectiva teórica da colonialidade desenvolvida por diferentes autores (Quijano, 2000; Mignolo, 1995; Escobar, 2007) oferece um quadro fundamental para se compreender a matriz de poder específica onde se produzem, transformam e atualizam as relações de exploração, conflito e resistência. Analisar as continuidades das relações coloniais pode auxiliar a compreender os complexos níveis e escalas de injustiças estruturais, nos campos econômicos e culturais no qual se inserem diferentes comunidades indígenas. Mas também “os meios essencialmente tácitos, imperceptíveis, mas sutilmente efetivos, de reagir às tentativas por parte do colonizador de reinventar o mundo social do colonizado” (Howard, 2002, p. 28) e de onde se transformam suas instituições.

Diferentes autores (Monteiro, 1994; Carneiro da Cunha, 1992; Quintero, 2013), têm apontado a centralidade de dois pontos fundamentais nas análises diacrônicas que atravessam a realidade de diferentes povos indígenas: sua restrição territorial e o controle do seu trabalho. Nessa direção, Pacheco de Oliveira (2018), preocupado com o entendimento histórico das situações contemporâneas dos indígenas, elabora a noção de “territorialização” como um instrumento teórico capaz de apreender os processos de mudanças pelos quais os povos indígenas passam quando se tornam objeto de atuação das políticas de Estado. Assinala, desse modo, para as diversas relações estabelecidas com os agentes colonizadores, tendo como foco o processo de reorganização política e social aos quais as populações indígenas atravessam a partir da imposição de uma base territorial fixa. Nesse sentido, busca compreender precisamente as repercussões que a dominação colonial teve na existência dos povos indígenas, pois a territorialização das populações implica em designar-lhes áreas claramente definidas e estabelecer regras particulares para suas interações com as instituições e os setores sociais dominantes.

No caso dos Kaingáng da T.I. Xapecó, a intervenção colonial estabelecendo limitações aos seus espaços territoriais se fez presente de modo contínuo desde meados do século XIX, acentuando-se no século XX. Nesse sentido, destaco três processos de territorialização que analiso nesse trabalho: 1) o período colonial, entre os séculos XVIII e XIX com a criação dos primeiros aldeamentos; 2) durante o período republicano no século XX com a atuação dos órgãos tutelares SPI e FUNAI; e, por fim, mais recente, 3) as retomadas de territórios e construção da sua autonomia administrativa a partir de fins da década de 1970 até hoje.

           

A política e a política Kaingáng

Os Kaingáng são a maior etnia do Brasil meridional com uma população de mais de 25.000 indivíduos divididos em territórios 32 territórios que atravessam os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo.[8] No entanto, devido às características históricas dos processos de territorialização de cada região, existem uma série de especificidades de cada TI em relação a sua situação social, política e ambiental. Em alguns lugares, são muitos os falantes da língua materna, em outros, há uma predominância de falantes do português. O mesmo pode ser visto em relação à paisagem, sua área de mata nativa e as estratégias de sustento dos núcleos domésticos: em alguns lugares prevalecem regiões preservadas e onde se pode exercer atividades de caça, agricultura e coleta, enquanto em outras, a paisagem é tomada por plantações monocultoras de soja ou milho, onde predominam atividades de empreendedorismo agrícola e trabalhos assalariados fora da TI.

No âmbito sociocultural, os Kaingáng pertencem ao tronco linguístico macro-Jê, de modo que cosmologicamente possuem uma concepção dual sobre o mundo e todos os seus seres, criados pelos irmãos Kamé e Kairú. Essa dualidade pode ser expressa em sua organização social em divisões clânicas exogâmicas e complementares que são herdadas patrilinearmente. Nesse sentido, um indivíduo costuma herdar uma marca[9] de seu pai e, preferencialmente, deve-se casar com alguém de marca contrária; Kamé com Kairú e vice versa. A formação ideal dos núcleos familiares é caracterizada pela presença de um casal de idosos, que congrega os grupos familiares de suas filhas e genros. A estrutura essencial desse arranjo destaca a relação de afinidade entre homens que pertencem a diferentes metades e a relação de consanguinidade entre mulheres que também pertencem a metades opostas. É relevante observar que, não obrigatoriamente, esses indivíduos dividem uma residência comum, porém, de maneira geral, habitam um mesmo espaço territorial (Fernandes, 2006, p. 30). É possível sintetizar da seguinte forma:

Os grupos domésticos diferem quanto a sua capacidade de articular redes de relações sociais. Pertencer a um grupo doméstico significa pertencer a uma unidade social dotada de identidade única. Os traços de identidade dos grupos domésticos não são os mesmos que identificam os grupos familiares. Uso inclusivo das terras, padrões de herança e relação com a liderança indígena – estes são traços que identificam apenas grupos domésticos. Ao contrário do grupo familiar, o grupo doméstico não é dotado de um sítio ou de qualquer terra para seu uso exclusivo. Suas terras são de uso inclusivo. Nelas são realizados os ajutórios (trabalho coletivo nas roças) pelos membros da parentagem (afins e consangüíneos reais ou putativos – filhos, genros, compadres...). O padrão de herança entre os Kaingang segue o ordenamento sócio-cosmológico da patrilinearidade, cabendo aos grupos familiares a transmissão de bens como terras, instrumentos e saberes, dentre outros. O grupo doméstico, por seu turno, não transmite bens, transmite relações. Seu legado não é a terra, mas suas relações políticas. A sanção da liderança indígena legitima a constituição dos grupos familiares. Os casamentos, de fato, devem ser expressamente autorizados pelas lideranças. Diferentemente, tal sanção não se aplica ao grupo doméstico, já que ele próprio é uma unidade política (Idem, p. 30).

 

As formas de organização social Kaingáng costumam ser marcadas por assimetrias, que tornam seus arranjos coletivos profundamente hierárquicos. É no plano doméstico que essas relações se constituem de modo que toda a articulação de coletivos passa por uma embrenhada rede de parentesco que alcança todo o território. Assim, em diferentes TIs, a escolha de lideranças, a sua autoridade e as formas decisórias possuem dinâmicas que envolvem a interação entre estas unidades sociais. Cada núcleo doméstico costuma possuir um representante – um cabeça – em geral, o homem ou mulher de maior idade. Sobre eles estão concentradas as prerrogativas políticas de tomada de decisão e de representação de seus parentes perante as lideranças da comunidade. Estes cabeças são consideradas lideranças menores (po´í mig), que se articulam com aquelas lideranças consideradas “maiores” (po´í bang) – os caciques e seus subordinados – que possuem uma autoridade que se estende sobre todo o território por meio do acionamento e articulação destas redes de parentesco.

Os grupos domésticos são as unidades políticas Kaingáng fundamentais, com papel na articulação das interações sociais e, consequentemente, na definição de um processo identitário em diferentes escalas. “Através destas são operacionalizadas trocas matrimoniais (o casamento, que ratifica alianças entre grupos e metades), trocas simbólicas (fidelidades rituais, religiosas e políticas) e trocas econômicas (cadeias de solidariedade que garantem o cultivo/produção da terra)” (Fernandes, 2006, p. 33). Nesse sentido, o agrupamento de grupos domésticos em torno de outras figuras pode romper circuitos de trocas gerando conflitos que tornam, por vezes, as inimizades mortais. 

Outra figura política central na organização social Kaingáng é o kujã. Este seria melhor definido como xamã, apesar deste termo integrar diferentes categorias como remedieiros, curadores e rezadores. Eles possuem um papel essencial na organização social, possuindo prestígio e relegando importância central para o núcleo doméstico onde circulam esses conhecimentos. Os kujã atualizam e transmitem saberes que influem na realização de rituais e da relação cosmopolítica destes indígenas de forma geral. Segundo Fernandes (2006, p. 40), “enquanto a categoria põ’í articula política e alteridade na série sociológica, a categoria kujã define o domínio xamânico, permitindo uma aproximação entre política e alteridade na série cosmológica”.

Marechal (2019, p. 345) tem apontado para a importância cada vez maior desses personagens em articulações de coletivos políticos que têm promovido resistências e lutado pela garantia de direitos e até subvertido a ordem colonial ao proporem novos parâmetros jurídicos e políticos ao obliterarem a dualidade natureza/cultura que fundamenta a epistemologia ocidental/colonial. Segundo a autora, os kujã, frente as situações adversas resistem

a tais processos fortalecem seu povo, justamente a partir da reelaboração e criação de “novas” narrativas e mitologias que podem chegar a trazer o tom da resistência à colonialidade, fortalecendo assim sua luta por existir, através de uma “nova” memória guerreira, produto dos efeitos de tais processos coloniais.

 

Como demonstra De la Cadena (2019, p. 12), no contexto indígena, a política deve ser entendida como relações de poder e alteridade que atravessam diferentes dimensões indo além dos domínios estritamente “humanos” concebidos pela teoria política liberal. Através da presença dos kujã e o seu papel na organização social Kaingáng, surgem no campo político agências que se estendam para diferentes planos e seres, como espíritos, animais e a própria paisagem.[10] “As coisas que os movimentos indígenas estão hoje “tornando públicas” (...) na política não são simplesmente não humanos; são também entidades sencientes cuja existência material – e aquela do mundo aos quais pertencem – está atualmente ameaçada pelo matrimônio neoliberal entre o capital e o Estado.” Nesse sentido, no contexto Kaingáng, não se pode falar apenas em política e políticos, mas, acima de tudo em políticas.

Mas, nas diferentes TIs Kaingáng, a relação entre essas políticas é complexa: agentes e agências se opõem, sobrepõem e formam alianças de acordo com a conjuntura local. Em alguns lugares a presença dos kujã é inexistente, divisões clânicas e orientações cosmológicas não possuem mais uma utilização prática em sua organização social e muitos não conhecem mais as suas marcas. Mas, em outras TIs, esse sistema é utilizado em casamentos e até mesmo na forma de organização do sistema político.

Na TI Xapecó existe uma grande quantidade de núcleos domésticos “mestiços” formados a partir de casamentos interétnicos (especialmente com não indígenas) e sem a orientação de complementariedade clânica. No entanto, é possível notar que esses núcleos domésticos se organizam a partir de hierarquias e valores comuns. Nesse sentido, se, por um lado houve uma forte intervenção da colonização na busca por “branquear” a comunidade a partir de casamentos interétnicos, há também que se considerar a longa trajetória de incorporação do não indígena ao sistema Kaingáng. Assim, uma das especificidades das relações políticas ali é o estabelecimento de alianças construídas ao longo do tempo entre camponeses e caboclos regionais sem-terra, de modo que o elemento étnico varia de acordo com o momento histórico e os grupos em disputa dentro e fora das aldeias.

Assim, apesar das fronteiras étnicas por vezes parecerem “dissolvidas”, não há o desatamento do que Mura e Silva (2011, p. 113) chamam de “comunidades políticas” locais.  Segundo os autores, “estes são agrupamentos fundados em relações de parentesco e no compartilhamento de experiências, cosmovisão e quadro moral de referência, resultante da interação entre grupos domésticos viventes na mesma região”. Nesse sentido, a dissolução ocasional das fronteiras étnicas não implica necessariamente a dissolução da comunidade política. No contexto em questão, pode-se afirmar que a ausência de limites étnicos em determinados contextos históricos – como guerras de extermínio e conflitos fundiários – promoveu a integração de grupos familiares diversos em suas histórias pregressas, colaborando para a construção de uma identidade regional. É exatamente a partir dessa identidade e das jornadas de determinadas famílias e seus descendentes, dentro de uma rede de parentesco mais abrangente, que a comunidade Kaingáng se estabelece atualmente.

 

O período colonial e imperial: os primeiros aldeamentos

Os primeiros encontros com as frentes de expansão não resultaram em restrições territoriais significativas para os Kaingáng, mas foram responsáveis por criar uma visão estereotipada por parte da sociedade colonial, que passou a rotulá-los como “índios ferozes” ou “hostis”. Essa visão era fundamentada nas resistentes defesas contra a invasão de seus territórios, iniciadas a partir do século XVIII, e servia para legitimar diversas formas de escravização, catequização e expedições de extermínio por parte dos colonizadores em busca de mão de obra para seus empreendimentos incipientes.

No contexto geopolítico do sul do Brasil, a colonização portuguesa teve como base a capitania de São Vicente, onde os primeiros colonos e jesuítas se estabeleceram e interagiram com os indígenas. Ao longo do tempo, essas interações resultaram no desenvolvimento de uma economia escravista voltada para a produção de alimentos, como trigo, mandioca, produtos relacionados à pecuária e escravos indígenas, para suprir a demanda interna do mercado colonial. Segundo Monteiro (1994, p. 36), no início da colonização “os portugueses buscaram impor diversas formas de organização do trabalho aos indígenas e se depararam com atitudes variadas que oscilavam entre colaboração e resistência”. Como resultado, os colonizadores passaram a recorrer cada vez mais ao trabalho forçado na tentativa de construir uma base para a economia e sociedade colonial.

O processo inicial de territorialização enfrentado pelos Kaingáng assume contornos mais acentuados a partir do início do século XIX, quando a família real chegou ao Brasil em 1808, em meio aos conflitos da Era Napoleônica. Dom João VI, líder do Império Português que se estabelecia às pressas no Brasil, declarou uma “guerra aos bugres” das províncias de São Paulo e Espírito Santo. A Carta Régia emitida em 5 de novembro de 1808 autorizou diretamente o massacre dos indígenas “selvagens”, devido à forte resistência imposta pelos Kaingáng às expedições colonizadoras na região. No documento, Dom João ordenava a suspensão de qualquer consideração humanitária, deixando de acreditar na catequese e na conversão como meios de "civilizar" as populações resistentes.

Nesse momento, foi estabelecida a “Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava” em 1º de janeiro de 1809, com o objetivo de avançar as fronteiras e anexar os territórios indígenas ao sistema mercantil nacional. Em 1810, após uma primeira tentativa fracassada, a expedição liderada pelo Tenente Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal obteve os primeiros sucessos sobre os territórios Kaingáng. Com uma força de mais de trezentas pessoas, expulsaram os indígenas de suas terras para estabelecer fazendas de criação na região. Foi por meio dessa empreitada que ocorreu a tomada definitiva dos Campos de Guarapuava [Koran-bang-rê], atual Paraná. Além de assegurar as possessões no sul, a ocupação da região serviu como rota para as frentes pastoris que partiram do Rio Grande do Sul em direção a Sorocaba, no estado de São Paulo.

À medida que avançavam, os colonizadores estabeleciam povoações em locais adequados para atividades pecuárias, reservando um espaço para iniciar o assentamento dos indígenas. A primeira povoação criada na região foi Atalaia, fundada pelo Coronel Diogo Pinto de Azevedo Portugal, e foi a partir desse local que se iniciaram os contatos com as populações Kaingáng da região.

Esse primeiro assentamento seguia a lógica colonial de disponibilizar territórios e explorar a mão de obra indígena para o desenvolvimento da incipiente economia regional. Por esse motivo, a área reservada ficava próxima à povoação, facilitando o recrutamento posterior dos aldeados. O trabalho indígena passou a ser utilizado nas fazendas próximas, na defesa do povoado e no “descimento” de outros grupos, além de envolver confrontos com grupos hostis. Nessas situações, inclusive, prisioneiros indígenas de grupos rivais eram capturados e vendidos como escravos aos portugueses (Tommasino, 1995, p. 90). Os homens eram empregados em plantações e fazendas de criação, enquanto as mulheres atuavam como trabalhadoras domésticas. Souza (2012, p. 234) sintetiza a estratégia Kaingáng desse período da seguinte maneira:

Como se vê, a fuga, para quem vive em constante desvantagem – que é o caso nas populações indígenas cada vez mais apertadas de todos os lados – é uma das estratégias de sobrevivência e manutenção do grupo. Saber lutar pelo que necessitam e saber fugir, utilizando a mata como escudo, esta era uma das estratégias utilizadas dentro das técnicas de patrulhas de incursão indígena.

 

Grupos enfraquecidos pelas guerras de extermínio promovidas pelo governo imperial optavam pela sedentarização, enquanto outros resistiam e mantinham seu modo de vida tradicional nas florestas da região. Nesse processo, as lideranças indígenas que optavam pela sedentarização eram recrutadas pelos colonizadores e recebiam ferramentas, armas e cargos militares. É conhecida a história do cacique Pahy, considerado um dos primeiros a se estabelecer no aldeamento de Atalaia, recebendo o cargo de “Capitão dos Índios” e passando a administrar o trabalho dos indígenas sob a supervisão do Coronel Diogo Pinto.

Ao longo do século XIX, à medida que a colonização avançava em direção ao sul, as terras indígenas foram gradualmente ocupadas por fazendas de criação, vilarejos e estradas de escoamento. Os aldeamentos desempenhavam um papel crucial não apenas como fonte de mão de obra, mas também para garantir o controle do Estado Nacional emergente sobre territórios fronteiriços disputados, a fim de assegurar a soberania nacional. Nesse contexto, a Colônia Militar do Chapecó foi estabelecida em 1881, na área onde atualmente se encontra o município de Xanxerê. A partir desse momento, ela “começou a receber influxos da população que buscava assentamento na Colônia e pretendia sobreviver por meio da atividade agrícola” (Bringmann, 2015, p. 224).

Nos aldeamentos que surgiam ocorria um processo semelhante de dominação dos povos indígenas: estabelecia-se uma aliança assimétrica de sedentarização com os colonizadores, pois as suas investidas causavam profundas mudanças nos modos de vida tradicionais, desestruturação das alianças entre lideranças e significativa redução da população indígena. Em seguida, havia uma sobreposição de funções sobre o líder Kaingáng. Os po´í bang assumiam os papéis de “capitães”, em uma hierarquia inferior ao “inspetor dos índios”, cargo ocupado por não indígenas designados pelo governo, responsáveis pela administração dos aldeamentos em desenvolvimento. As lideranças indígenas passavam então a gerenciar o trabalho coletivo dos subordinados. Nesse momento, o vínculo entre “capitão dos índios” e “inspetor dos índios” garantia benefícios mínimos para os indígenas, como parcelas de território e ferramentas agrícolas.

No entanto, é importante notar que o processo de sedentarização dos Kaingáng foi gradual e não totalmente completo, sendo possível até hoje observar diferentes formas de migração pelo território, seja em sua própria TI ou migrando pelas TIs vizinhas, locais onde já se encontram instalados parentes próximos. No período em questão, são registradas diferentes formas de resistência para manter seu modo de vida. Sobre esse período, Souza (2012, p. 238) registra que:

os índios costumavam fugir no tempo do plantio do milho e do feijão e retornavam na época de sua colheita, no início do inverno, ou de forma simplificada fugiam no verão, tempo de caça, pescaria, e correrias e retornavam no inverno, junto ao povoado onde suas condições de sobrevivência se ampliavam.

 

A interdependência estabelecida entre os indígenas aldeados, funcionários imperiais e fazendeiros resultou na transformação de muitas lideranças Kaingáng em indivíduos bilíngues, fluentes nas interações com não indígenas fora dos aldeamentos, enquanto o restante do grupo permanecia monolíngue e cada vez mais dependente da distribuição de recursos pelos capitães. Esses, lideravam o trabalho dos grupos aldeados, que, de forma coletiva, realizavam tarefas acordadas com não indígenas por meio de relações pessoais entre as lideranças e funcionários imperiais ou fazendeiros.

Nesse contexto, na estrutura social Kaingáng, de acordo com Tommasino (1995, p. 95), as relações de reciprocidade entre os po´í bang (capitão dos índios) e os po´í mig (cabeças / lideranças menores) passaram a se basear em novos fundamentos. Com a restrição territorial, o status de liderança estava ligado à habilidade de articular alianças e intermediar benefícios materiais, como alimentos e ferramentas, para a comunidade junto ao aparato estatal ou a figuras proeminentes na região.

Nesse processo, uma nova relação com o trabalho e o tempo começou a alterar ainda mais a organização social indígena, uma vez que eles eram impedidos de circular pelo território para atividades de caça e coleta, como faziam anteriormente, e passaram a depender da agricultura como meio de subsistência nos aldeamentos. É importante ressaltar que, mesmo no modo de vida anterior, a agricultura sempre foi uma prática utilizada. No entanto, nesse momento, ela adquiria uma nova dimensão em seu modo de vida. Terras, ferramentas, trabalho coletivo e pagamentos tornaram-se fundamentais para legitimar as lideranças que, de acordo com a própria organização social Kaingáng fortemente hierarquizada, concentravam ainda mais poder, por meio das novas atividades de subsistência.

 

A República: o Regime Tutelar na TI Xapecó

A região oeste de Santa Catarina, às margens dos rios Xapecó e Xapecozinho, onde a Colônia Militar do Xapecó havia sido estabelecida ainda no século XIX, se tornou um cenário de disputas entre diferentes grupos, como grandes latifundiários, indígenas e imigrantes. As áreas designadas pelo estado do Paraná para os aldeamentos eram constantemente invadidas gerando grande tensão na região. Os governos que se sucediam mostravam pouco interesse em resolver os problemas recorrentes nas terras indígenas, de forma que os indígenas resistiam por meio de confrontos diretos e viagens de suas lideranças à capital do estado, buscando proteger a posse de suas terras, mas sem obter uma resposta efetiva por parte das autoridades.

O SPI decidiu então intervir na área devido às várias acusações feitas pela mídia local sobre a situação dos Kaingáng e à ineficiência ou falta de interesse do governo em atender às suas demandas. Assim, em 1941, a área da TI Xapecó passou a ser denominada “Posto de Assistência, Educação e Nacionalização Xapecó”. A criação do posto em 1942 como um local de “assistência, nacionalização e educação” refletia a percepção das autoridades do órgão tutelar sobre o processo de “integração” dos Kaingáng naquela época. Acreditava-se que se tratava de uma população “assimilada” de forma significativa à sociedade nacional, uma vez que diversas atividades agrícolas eram realizadas nos aldeamentos desde o período imperial, além das intensas relações com as comunidades vizinhas, resultantes dos acordos e parcerias estabelecidos pelas lideranças agenciando o trabalho indígena na região.

Durante a primeira metade do século XX, ao longo do processo de estruturação do Posto Indígena (PI), os “chefes de posto” assumiram uma posição de destaque na hierarquia política e nas decisões coletivas nas aldeias, muitas vezes recorrendo a diferentes formas de violência como forma de autoafirmação. Devido à centralização política na organização social Kaingáng, que estava concentrada nos po´í bang e po´í mig, estes foram assediados para serem responsáveis pelo recrutamento e controle do trabalho na comunidade, sempre sob a supervisão do superior não indígena.

De acordo com as diretrizes estabelecidas pelo SPI, foram iniciadas no PI Xapecó uma série de atividades agrícolas com o objetivo de integrar a comunidade à sociedade nacional e transformar a área demarcada em um entreposto autossuficiente. Ao longo da atuação da agência tutelar foi implementado um sistema produtivo e educacional baseado em uma estrutura hierárquica militarizada, que se baseava na repressão e na disciplina do tempo e do espaço. Assim, o território do PI foi dividido em lotes, seguindo a lógica mercantil predominante na região, incluindo áreas de uso coletivo onde foram instaladas monoculturas de trigo e milho voltadas à comercialização.

Apesar da atuação do SPI, as invasões em terras indígenas continuaram ocorrendo de diversas maneiras. Além dos processos legais de grilagem que reduziram significativamente o território do PI Xapecó ainda na primeira metade do século XX, o órgão tutelar incentivou o arrendamento da área indígena para camponeses e colonos locais como forma de aumentar a renda do Posto. Os primeiros agricultores começaram a entrar no território demarcado em 1943, por meio de acordos de arrendamento de áreas desmatadas.

Os arrendamentos que ao longo dos anos trouxeram centenas de famílias camponesas para se estabelecerem no PI Xapecó, apresentavam diferentes formas, podendo ser realizados por meio de parcerias, compartilhamento da produção ou venda direta de lotes. Independentemente das modalidades, os procedimentos para estabelecer os arrendamentos dentro do posto eram simples e rápidos, sendo negociados diretamente com os chefes de posto. Isso resultou em todo tipo de negociação e vantagens pessoais em detrimento do patrimônio indígena. Somente em 1961, quando já havia várias famílias vivendo na TI, é que o procedimento foi institucionalizado pelo regulamento interno do SPI. No entanto, apesar de irregulares, essas práticas eram comuns em todos os aldeamentos do sul do país, pois havia uma grande demanda por sítios devido à facilidade de acesso e à fertilidade do solo, que até então não tinha sido explorado comercialmente.

A presença de madeiras valiosas, como cedro, imbuia e, especialmente, araucária, aumentava ainda mais o interesse dos posseiros e madeireiros pelos lotes negociados nas áreas reservadas aos Kaingáng. O chamado “negócio da madeira” teve início com a instalação de uma serraria dentro do PI, de modo que, além da exploração direta pelo SPI, ocorriam licitações públicas para a extração e comercialização de pinheiros “desvitalizados”, ou seja, árvores derrubadas por “causas naturais”. De acordo com Almeida (2015), esse processo abriu espaço para uma série de abusos, com extrações e negociações corruptas envolvendo agentes do SPI – e mais tarde FUNAI – e empresários madeireiros da região, resultando na derrubada de extensas áreas de pinheiros nativos. Essa atividade foi intensa até a década de 1980 e posteriormente proibida pelos próprios indígenas durante o processo de retomada de seus territórios.

Na perspectiva dos chefes de posto, as famílias de arrendatários que viviam no PI eram consideradas benéficas para os objetivos do SPI. A convivência entre indígenas e colonos era vista como uma maneira de transformar os valores morais dos índios, contribuindo para uma visão positiva do trabalho produtivo e das relações capitalistas. Essa lógica era implementada por meio dos exemplos dos arrendatários, que geravam renda para o PI introduzindo aos indígenas as novas tecnologias agrícolas e facilitando sua integração como “trabalhadores nacionais”.

Para manter a “ordem” na comunidade, eram selecionadas lideranças locais para auxiliar no policiamento, fiscalização das atividades e transporte dos trabalhadores pelo território do PI. Sob a justificativa de seguir os “costumes dos nativos”, os chefes de posto indicavam indígenas colaboradores para ocupar cargos de fiscalização e administração. Para isso, aproveitavam as patentes militares já existentes na organização social indígena, como “Coronel”, “Major” e “Cabo”, – que ainda hoje são utilizadas na TI Xapecó – para identificar as lideranças e sua hierarquia.

O objetivo era estabelecer uma estrutura militarizada no PI, visando disciplinar e aprimorar as tarefas produtivas. No dia a dia, as lideranças deveriam exercer o controle sobre os “infratores”, impondo regras rigorosas que regiam a vida cotidiana da comunidade. Casos de fuga, furto, recusa em trabalhar, consumo de álcool e agressões eram punidos com prisões, torturas e transferências forçadas para outros PIs. Essas estratégias intensificavam as disputas faccionais, ao promover certos indivíduos e suas famílias ao status de liderança, alinhados ao poder burocrático e às atribuições de “vigiar e punir”, mas nem sempre contando com a legitimação da comunidade.

Naquela conjuntura, as práticas tradicionais que eram consideradas como obstáculos ao processo produtivo ou ao ideal de “integração” pela promoção da “civilização” foram duramente reprimidas. Isso pode ser observado no caso do ritual Kiki, que era realizado periodicamente com a assistência dos kujãs. No evento o consumo de bebidas alcoólicas – conhecidas como Kiki – era considerado uma prática “incivilizada” e descrito nos documentos oficiais como “beberagens”, que supostamente incentivavam o alcoolismo e, portanto, deveriam ser eliminadas. Dessa forma, iniciou-se uma perseguição sistemática aos líderes espirituais, resultando em um declínio gradual das práticas xamânicas, que passaram a ser preservadas por poucas famílias.

Além das violentas repressões nas frentes de trabalho, foram realizadas atividades com supostos propósitos “educacionais”. Nesses momentos, as repressões e imposições adotaram uma abordagem simbólica, buscando conquistar a adesão dos indígenas ao projeto civilizador por meio de meios não explícitos. Isso pode ser observado nos “Conselhos Indígenas”, que contavam com a participação ativa das lideranças indígenas. Esses conselhos eram organizados regularmente e presididos pelas próprias lideranças, com o objetivo de promover o diálogo entre representantes das diferentes aldeias do PI, a fim de resolver conflitos internos e tomar decisões de caráter administrativo e comunitário. As principais questões discutidas nessas reuniões envolviam

licitações para permitir a fixação de famílias indígenas de outras áreas; julgamentos relacionados ao abuso de álcool ou brigas entre indígenas; encaminhamentos sobre a educação escolar; cuidados com os idosos; estatísticas sobre a produção agrícola no Posto e alocação de recursos, além de outras orientações sobre o trabalho dos indígenas (Bringmann, 2015, p. 115).

 

Conselhos similares já eram realizados pelos Kaingáng mesmo antes da atuação do SPI, mas o poder tutelar, por meio dos chefes de posto, soube adaptar esse “sistema tradicional” às necessidades produtivas do PI. Nas reuniões anteriores, as lideranças desempenhavam o papel de “aconselhadores”, buscando conciliação e resolução de conflitos comunitários por meio do diálogo. Eram fornecidas instruções éticas sobre assuntos familiares, como a autorização de casamentos, o comportamento adequado de um líder familiar e os princípios de educação das crianças.

 

 

Resistências cotidianas

A promoção da agricultura em larga escala pelo SPI e pelos colonos em suas terras, acabou limitando as práticas de produção tradicional, como o uso da coivara e a migração de núcleos familiares pelo território. No entanto, como registra Bringmann (2015), outras práticas conhecidas como puxirão, ajudório ou trocadio passaram a ganhar cada vez mais espaço na comunidade. Essas atividades consistiam em encontros de núcleos domésticos para realizar diversas tarefas produtivas como auxiliar em seus sítios e, em troca, eram recompensados com comida, bebida e até mesmo festas. O objetivo desses encontros era o cultivo de plantações, construção de moradias, reparos em açudes, transporte de madeira e outras melhorias. Neles, crianças, pais, avós, tios e outros parentes e conhecidos trabalhavam juntos, sem horários definidos para o início ou término das atividades. Como forma de pagamento pelas tarefas realizadas, eram organizados bailes pelos “contratantes” dos serviços coletivos, nos quais comida e bebida eram oferecidas aos participantes.

Essas atividades coletivas resultavam em uma produtividade excedente nas roças familiares. Os registros dos chefes de posto relatavam com perplexidade que os produtos obtidos pelos indígenas em suas roças e trocados nos mercados locais eram consumidos rapidamente. “O índio gasta imediatamente tudo o que ganha”, afirmava o relatório do chefe de posto, indicando a ausência de uma mentalidade acumulativa, que era considerada a base do “trabalho civilizado” (Brighenti, 2012, p. 135). A socialização era mais valorizada do que a acumulação.

Os puxirões desempenhavam um papel crucial no atendimento das necessidades básicas das famílias, com os trabalhos realizados envolvendo cantos, conversas na língua nativa e interação entre as famílias (Bringmann, 2015, p. 247). Nesse sentido, articulavam núcleos domésticos criando redes nos quais circulavam informações – muitas vezes na forma de “fofoca” –, memórias, e saberes que eram fundamentais não só no sustento, mas, especialmente, na manutenção de uma forma de vida específica e na criação de comunidades políticas.

Assim, os trabalhos coletivos “civilizados” contrastavam com os trabalhos “tradicionais”, nos quais as atividades não podiam ser simplesmente definidas como “serviços”, mas sim como formas de interação que atendiam a uma série de dinâmicas de socialização entre os núcleos familiares. Por outro lado, o trabalho “civilizado” era caracterizado pela disciplina, com a separação de grupos por idade e gênero, horários definidos para início, término e descanso, e seu único propósito era a produção. Segundo Brighenti (2012, p. 4), “para o indígena, esse conceito de trabalho era concebido como castigo, como punição, como uma forma de abandonar seus costumes”. Enquanto isso, “a resistência indígena em manter seus costumes era vista como vagabundagem, preguiça, indolência e falta de aptidão para o trabalho”.

Ao longo dos anos 1960 e 1970 são registrados diversos atos de insubordinação, incluindo o furto de parte da produção, a compra de bebidas alcoólicas em lojas locais e até mesmo confrontos diretos com as lideranças. A oposição tinha diferentes motivos: a desarticulação evidente das suas formas de produção e manifestações culturais, especialmente devido ao tempo reduzido disponível para o trabalho em suas próprias plantações, e o claro desaparecimento da flora e fauna nativas. Além disso, muitas promessas feitas pelas autoridades tutelares aos indígenas não eram cumpridas, como a divisão dos lucros das colheitas, por exemplo. À época havia muitas famílias vivendo em casebres precários, feitos de madeira lascada e cobertos por palha, apesar das expectativas de melhorias e investimentos no Posto com base na chamada “renda indígena”.

 

A construção do Sistema Tradicional

Ao longo dos anos 1970, as tensões internas nas aldeias Kaingáng cresciam diariamente devido à constante repressão, corrupção na gestão dos recursos do território e ao desmatamento ativo das áreas florestais. Nesse contexto, o CIMI desempenhou um papel ativo nas aldeias Kaingáng, trabalhando com as lideranças e promovendo uma consciência crescente, que resultou na articulação política dos indígenas por meio de assembleias que ocorreram em várias ocasiões (Brighenti, 2012).

No PI Xapecó o ano de 1978 foi decisivo. A comunidade se opôs fortemente à exploração dos últimos pinheiros da área pelas madeireiras locais, que contavam com a aprovação do chefe de posto. Mesmo após denúncias feitas à Inspetoria Regional em Curitiba e a subsequente substituição do mesmo, as práticas continuaram sob a nova gestão. Uma grande parte dos núcleos domésticos organizados se levantou contra o representante do regime tutelar local, João Mader. O ponto de ruptura ocorreu quando – mesmo diante dos ânimos que se afloravam – ele impôs a substituição do cacique da TI de forma autoritária (Almeida, 2015), indicando para o cargo um indígena que não tinha legitimidade perante a comunidade. Os núcleos domésticos que vinham se articulando com o apoio do CIMI, insistiram na indicação de Zé Domingos (José Domingos Paliano), uma liderança reconhecida pelos moradores da TI. No entanto, Mader não acatou a posição dos cabeças que se uniram e se armaram para iniciar uma rebelião (Almeida, 2015). Os Kaingáng, juntamente com os Guarani que habitavam o PI, “declararam guerra, pintaram-se e armaram-se com arcos, flechas, facões e armas de fogo”. Em seguida, “começaram a expulsar os posseiros, mas muitos já estavam fugindo com medo” (Brighenti, 2012, p. 402). Os Xokleng/Laklanõ de Ibirama também se juntaram a eles.

Não ocorreram confrontos diretos. As lideranças negociaram com os ocupantes e conseguiram uma rápida resolução para a situação, pois os mais de 700 camponeses que ali viviam optaram por iniciar o processo de desocupação da área, amedrontados pelos eventos em territórios indígenas vizinhos e pela crescente tensão na região. O mesmo aconteceu em seguida na TI Mangueirinha (PR), onde mais de 500 pessoas fugiram com medo de serem atacadas. O movimento em Rio das Cobras (PR) motivou um processo semelhante na TI Nonoai, no Rio Grande do Sul.

Essa segunda ação foi mais tensa, pois haviam relações de longa data com os ocupantes brancos onde conflitos anteriores resultaram na morte de dois indígenas. Nesse momento, a FUNAI já havia notificado as famílias ocupantes de Nonoai com um documento oficial dando-lhes trinta dias para desocupar os limites do território indígena. No entanto, ao final do prazo, poucas famílias haviam se retirado. Os indígenas, armados com arcos, flechas, porretes, lanças e algumas armas de fogo incendiaram sete escolas rurais construídas pela prefeitura da cidade. Durante uma semana, os Kaingáng mobilizados realizaram um processo de expulsão de mais de 3 mil colonos de suas terras (Fernandes, 2003, p.195).

Esses confrontos marcaram o início do processo de retomada do controle político-administrativo de suas terras, acelerando o movimento de reestruturação da organização social Kaingáng, com o objetivo de afirmar suas tradições étnicas e projetos coletivos de futuro.

Após a deposição de Mader na TI Xapecó, houve uma reunião dos núcleos domésticos envolvidos na rebelião e Zé Domingos foi eleito por aclamação dos cabeças como o novo cacique da comunidade (Almeida, 2015). Esse evento marcou o início do que os indígenas chamam de sistema tradicional, que reorganizou e rearticulou as atribuições das chefias locais. Esse processo de reconfiguração sociopolítica foi centralizado na figura do cacique, cujo prestígio estava diretamente ligado à manutenção da ordem interna e à mediação dos interesses da comunidade frente ao órgão indigenista. Consequentemente, houve uma gradual reapropriação dos meios de controle social tutelares pelas lideranças indígenas, especialmente nas áreas de produção interna e punição. Na década de 1990, as posições políticas na TI Xapecó eram compostas pelos cargos de “Cacique”, “Vice-Cacique”, “Capitão Geral”, “Conselheiros”, “Capitães das Aldeias” e sessenta e oito “soldados” (Fernandes, 2003, p. 163).

Após anos de intervenção tutelar visando a inserção dos indígenas no mercado regional, as práticas de arrendamento na TI Xapecó continuaram existindo, porém assumiram novas formas. As negociações pelos lotes de terra passaram a envolver diretamente as lideranças indígenas, os não indígenas da região e os moradores da TI. Além disso, sem a interferência tutelar, muitos lotes foram negociados entre os próprios indígenas, resultando ao longo do tempo em uma concentração de terras sob a posse de poucas famílias. Essa concentração fundiária dentro da TI, aliada ao enfraquecimento das relações tutelares e a degradação ambiental, levou as pessoas que viviam em lotes reduzidos a buscar novas formas de subsistência através de empregos no mercado regional.

A partir dos anos 2000, muitos indígenas começaram a trabalhar informalmente em fazendas nas proximidades. O cacique Zé Domingos, no entanto, tentou desenvolver projetos como a criação de uma cooperativa de produção e uma olaria, visando gerar renda dentro da TI e absorver parte da mão de obra indígena disponível. Foi criada então a Agroeste, uma cooperativa agrícola que visava gerar renda para a comunidade, captando recursos para a exploração agrícola de suas terras (Oliveira, 2009). Devido à falta de recursos dos moradores para adquirir equipamentos agrícolas necessários à produção nos campos e à necessidade urgente de obter recursos para a subsistência comunitária, agora dependente de trabalhos para terceiros, o cacique optou por manter um sistema semelhante ao anterior. Foram estabelecidos acordos nos quais parte dos lotes eram cedidos para uso de não indígenas interessados na produção de soja e milho, por meio de arrendamentos. No entanto, agora a renda paga pelos arrendatários seria utilizada para melhorar a infraestrutura da TI e empregar a população indígena, que estaria livre de imposições diretas em relação ao seu trabalho.

Os acordos estabelecidos entre o cacique e os agricultores da região para o cultivo das terras causaram descontentamento em parte da comunidade, especialmente devido à criação de novos vínculos entre interesses coletivos e a presença não indígena dentro da TI. Zé Domingos foi acusado de desviar recursos da cooperativa e da olaria, além de se afastar dos caminhos abertos pelas retomadas em relação às oportunidades de desenvolvimento autônomo da comunidade (Almeida, 2015). Esse fato intensificou as tensões na TI Xapecó mais uma vez.

A revolta foi direcionada contra o novo cacique. Uma série de denúncias foram apresentadas por grupos domésticos opositores ao MPF, que acionou a Polícia Federal (PF) para encerrar as atividades da olaria e da Agroeste. Com o fim da cooperativa, no entanto, não houve uma distribuição igualitária dos lotes vinculados ao empreendimento, aumentando as desigualdades na posse de terras dentro da reserva.

Nesse sentido, a intervenção do MPF, com o apoio da PF, mais do que resolver os problemas decorrentes da tutela, especialmente em relação ao uso da terra, parece ter contribuído para desencadear ainda mais conflitos entre os moradores da TI Xapecó. Ao promover uma ação supostamente neutra, mas que – mesmo que não intencionalmente – favorecia os opositores do cacique, fomentou disputas entre grupos domésticos. Valdo Correia da Silva liderou esses grupos e articulou a derrubada de seu oponente. Esse confronto resultou na destituição de Zé Domingos e em uma nova eleição por aclamação que elegeu Valdo formalmente.

O ex-cacique e sua família foram transferidos pela nova liderança para outra TI, porém parte do grupo derrotado, adotou a estratégia do grupo vencedor tentando minar a gestão de Valdo fazendo frequentes denúncias contra ele ao MPF. Novos conflitos armados foram desencadeados entre grupos domésticos rivais levando a uma operação de “pacificação” da PF, MPF e Governo do Estado de Santa Cataria. O resultado, foi um acordo firmado entre as entidades e a comunidade para a criação de um sistema de eleições para o cargo de cacique, a ser realizado a cada quatro anos. 

 

Democracia, individualismo e política

 O sistema de eleições inaugurou uma nova fase na organização sociopolítica dos Kaingáng da TI Xapecó, conhecida como o período da “política”, da “democracia” ou do “sistema do branco”. Como afirmei anteriormente, a atual forma de governança tem sido avaliada de diferentes formas dentro da TI. Em geral, não parece ser possível dissociar sua compreensão da condição territorial – como o desgaste ambiental, as complexas relações fundiárias e as dinâmicas de sustento – assim como das formas próprias de compreensão sobre a política, com base nas relações de parentesco e entre os núcleos domésticos, dos valores de reciprocidade e hierarquia que guiam esses vínculos e que sustentam a criação de coletivos.

Com o avanço do mercado de trabalho precarizado, a monetarização tem reorganizado as relações entre os núcleos domésticos, com repercussões diversas. Mauro, uma liderança da TI, aponta alguns desafios em relação a sua cultura. Como exemplo ele fala sobre a dificuldade em manter uma dieta com base em uma alimentação tradicional: “tem que ver os benefícios e os malefícios. Mas a própria reserva vai perdendo os seus valores (...) a própria cultura, tradição. A alimentação tradicional já foi deixada de lado. As pessoas já estão se alimentando com a mesma coisa como os de fora, comida industrializada”. Adiante, ele reflete sobre outro impacto da dependência excessiva desses postos de trabalho, como as dificuldades em relação a criação das crianças: “as pessoas saem de madrugada e voltam a tarde. Não é porque os pais querem abandonar, mas é uma questão que a própria sociedade, está impondo isso dentro da reserva”.

Como se pode ver, a proletarização de parte da comunidade, na medida em que supre uma demanda de subsistência, tem rompido com laços de solidariedade e cuidado entre parentes e mesmo entre núcleos domésticos vizinhos. Essa situação se assemelha aquela descrita por Fraser (2020) sobre a “crise no cuidado”. No entanto, os diferentes núcleos domésticos buscam soluções que os permitam manter relações de afeto e solidariedade, adotando estratégias que mesclam períodos de trabalho assalariado, venda de artesanato, compra e negociação de pequenos “sítios” dentro da TI – onde podem realizar uma produção de subsistência –, ou mesmo atividades de empreendedorismo rural.

Em outro relato, é possível perceber uma preocupação com o que se denomina “individualismo” nas formas de comportamento e valores dos mais jovens. Conforme relata o professor e liderança Machado Belino: “os mais novo agora (...) eles tem uma visão muito individualista. Não, tem mais aquela visão coletiva. Até uns quinze anos atrás você conseguia trazer as coisas mais coletivas, hoje já não”. Machado continua sua argumentação estabelecendo uma comparação ao opor o individualismo dos jovens do presente ao coletivismo de tempos passados e a transformação nas relações de reciprocidade: “Eu não sou muito velho, mas sou dá época que meu pai e minha mãe diziam que um vizinho se socorre no outro. Por exemplo, quando dá um problema comigo o vizinho me ajuda. Se me falta arroz, meu vizinho mais próximo tem, e se falta para ele eu ajudo ele”.

Essas relações mais individualizadas dos jovens, parecem dificultar a criação de coletivos. Segundo Mauro, “os mais jovens são relaxados com as questões políticas”. Nesse sentido, a política entendida enquanto campo de mobilização por direitos, ou cidadania, parece ser cada vez mais fundamental para as formas de afirmação contemporâneas. Entende-se que a democracia pode dificultar a formação de grupos em torno de lideranças no processo eleitoral, mas percebe-se que, ao fim, são ainda as relações entre os núcleos domésticos e a articulação em torno das lideranças que organizam o sistema político. Isso pode ser visto pois, desde o início do sistema eleitoral nos anos 2000, apenas dois grupos familiares se alternaram no cargo. 

Mauro descreve a relação e o modo como o sistema jurídico não indígena é, por vezes “indigenizado” dando corpo às disputas faccionais: “cada candidato vai ter seu grupo, e acabam se tornando rivais para a vida inteira, sempre vai ter aquelas divisões dentro da reserva. Qualquer coisa que você fazer eu corro para o MPF ou PF para te denunciar. Ai o cacique não consegue trabalhar com autonomia”.

Em outra instância – a política em âmbito municipal – ele mostra como são criadas as relações entre os caciques e os prefeitos no processo eleitoral através de apoios mútuos. A busca por votos envolve diretamente a comunidade. “Se o cacique apoiou o candidato que está na prefeitura ele vai investir em cima daquele cacique, para que ele consiga se reeleger né, ou se aquele candidato apoiou. Ele vai investir em cima para que aquela pessoa também consiga se eleger”.

Mauro demonstra, então, como a relação de vulnerabilidade de muitas famílias se relaciona com a venda de votos:

por causa da necessidade, as pessoas pensam assim eles tem aquela visão fechada, “não, eu dependo só do meu salário eu não dependo do cacique”, aí eles acabam se vendendo. Corre ali o período eleitoral para cacique, aí se eu trabalho numa empresa de agroindústria, eu digo “eu voto para o teu cacique se você me der tanto”, e acabam se vendendo, e esse que é o grande problema. E acaba perdendo essa questão cultural, né. De respeitar o cacique, de ter a liderança como um órgão gestor, para administrar. 

 

Conclusão

As diferentes intervenções coloniais nos territórios Kaingáng desde o século XVIII promoveram o desgaste territorial, o controle de seu trabalho e a repressão de diferentes manifestações culturais fundamentais nas formas de socialização indígena. As hierarquias e assimetrias próprias das formas de organização social foram em diferentes momentos exploradas pelos invasores, concentrando poderes em lideranças e acirrando processos faccionais. Por outro lado, diversas foram as estratégias de resistência e formas de incorporação ou “pacificação” dos “brancos”. Ainda no período colonial, fugas, negociações ou guerras abertas, se mesclavam com períodos de sedentarização em aldeamentos e expedições sazonais de caça e coleta. No período republicano, formas de cooperação e produção coletivas foram fundamentais para criação de laços de reciprocidade que articulavam grupos domésticos. Estes, na década de 1970, vão promover os episódios de retomada e criação de um sistema tradicional, que, mais tarde, será substituído pelo democrático.

Assim, para os Kaingáng da TI Xapecó a política, de um lado, pode ser uma referência ao modo não indígena de estabelecer relações de troca, especialmente por parte das lideranças, em uma conjuntura de precariedade, na qual o princípio do individualismo liberal é o quadro de referência moral e ao qual existem debates, críticas e resistências. De outro, pode fazer parte de uma gramática da cidadania: instância de luta, conquista e garantia de direitos.

Como se pode ver a partir de uma abordagem diacrônica, a democracia que, ao substituir o sistema tradicional produziu a política, surge como uma tentativa de resolução de conflitos por parte da justiça não indígena decorrentes do histórico de colonialidade marcado pelo avanço do capitalismo moderno/colonial. Esse processo não resolveu os problemas e ainda é alvo de reflexão e acomodação pela comunidade.

 

 

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Recebido em 15/05/2023.

Aceito em 30/07/2023.



[1]   Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Brasil. E-mail: benassi.rafael@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-2078-2068

[2] Esse texto apresenta e discute algumas conclusões da minha dissertação de mestrado (Santos, 2019). Os dados etnográficos aqui apresentados estão presentes nesse trabalho, foram coletados durante o trabalho de campo realizado ao longo do ano de 2019.

[3] O ritual do Kiki ou Kikikoi é também conhecido como a “festa dos mortos”. Ele foi proibido durante grande parte do século XX pelo SPI, sendo retomado a partir da década de 1970. Como demonstro a seguir, hoje, esse ritual possui uma grande importância nas formas de afirmação étnica e construção de identidade coletiva.

[4] Nas comunidades Kaingáng, as chamadas punições tradicionais são formas do exercício da violência legítima das lideranças, fazendo parte do sistema jurídico local. Podem ser a prisão em uma cadeia, amarrar em um tronco, trabalhos para a comunidade ou, em casos mais graves, a transferência para outras TIs.

[5] Noto que a categoria “tradição” desencadeia um intricado processo de articulações, apropriações, negociações e metamorfoses semelhantes àquelas observadas na categoria “cultura” (conforme Carneiro da Cunha, 2009). Ambas são categorias polifônicas e ambíguas, atravessando os domínios dos pesquisadores, das modalidades delineadas pelo Estado para definir políticas públicas e dos usos desafiadores e atualizados por indígenas, entre outros atores envolvidos.

[6] Apesar das diferenças, a TI Kondá (SC) e Nonoai (RS) costumam ser apontadas pelos moradores da TI Xapecó como locais onde vigora o sistema tradicional.

[7] “Cabeças” é o termo usado para se referir aos representantes dos núcleos domésticos ou famílias extensas perante as chefias, eles são considerados lideranças “menores”.

[8] Dados disponíveis em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kaingang#Popula.C3.A7.C3.A3o | Acesso em 15/05/2023.

[9] As “marcas” são referência às pinturas faciais correspondentes as metades exogâmicas Kamé e Kairú. A primeira, denominada râ téi é representada por motivos compridos, a segunda, râ ror à motivos redondos.

[10] “Foi a distinção ontológica entre “Humanidade” e “Natureza”, a criação do “homem natural”, sua sentença à inevitável extinção conjunta com seus seres outros que humanos e a obstrução deste antagonismo através da noção de “Humanidade” e “Natureza”, a criação do “homem natural”, sua mente organizada. Somente os completamente humanos, e apenas eles, poderiam transformar suas inimizades em relações adversárias – isto é, engajar-se na política” (De la Cadena, 2019, p. 12).