Memórias da Colônia: diálogos entre História Oral e História Indígena no Ensino de História

Colony memories: dialogues between Oral History and Indigenous History in History Teaching

                                                                                               Malcon Gustavo Tonini[1]

 

 


Resumo

O objetivo deste artigo é discutir história indígena a partir de lembranças. Nesse documento, desenvolvo uma análise construída a partir de texto produzido no ensino de história em projeto escolar, apresentando uma memória relacionada a acontecimentos do início do século XX. A relevância desse trabalho está na utilização da história oral dialogando com outras fontes, para a compreensão de disputas de memória, e de diversas manifestações culturais relevantes para as pessoas, que pouco conhecem, sobre os não brancos que ocuparam terras catarinenses, antes da chegada dos colonizadores europeus.

Palavras-chave: Ensino de História; História oral; História indígena.

 

Abstract

The purpose of this study is to discuss the indigenous history from memories. This document was constructed based on analysis of a text produced in a school project, presenting a memory related to events of the beginning of the 20th century. The relevance of this research is in using oral history dialoguing with other sources for understanding memory disputes and many kinds of cultural manifestations to people who know little about the non-whites, who occupied Santa Catarina lands, before the arrival of the European colonizers.

Keywords: Teaching of History; Oral history; Indigenous history.


 

 

 

Introdução

A discussão nesse texto é um desdobramento relacionado a continuidade de um projeto escolar baseado em entrevistas, cujo está inserido na proposta acadêmica desenvolvida em minha dissertação de Mestrado[2]. Em minhas atividades enquanto docente na Escola de Educação Básica (EEB) Profa. Lídia Leal Gomes[3], localizada em Tigipió[4], interior do município catarinense de São João Batista[5], desenvolvo o projeto escolar Memórias da Colônia. A pesquisa iniciada em 2019, que oportuniza interpretações e (re) construções de perspectivas históricas com origens diversas, constrói no ensino de História, pequenas histórias que são publicadas semanalmente, de março à novembro, no jornal Correio Catarinense[6]:

Figura 1: Episódio: O som do desespero, da III Temporada do projeto escolar Memórias da Colônia

Jornal com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Correio Catarinense. São João Batista, 01 de setembro de 2021. Disponível em formato digital em: https://correiocatarinense.com.br/cultura/memorias-da-colonia-o-som-do-desespero-episodio-xviii/

Nesse projeto, procuro usar da metodologia baseada no uso de história oral, por meio da execução de sequências didáticas[7] junto aos estudantes. Antes das entrevistas, durante as aulas de História elucidamos conteúdos e conceitos, discutimos fontes que temos a disposição sobre a história local, utilizamos exemplos para que alunos e alunas possam relacionar historiografia com a memória coletiva da comunidade da qual fazem parte. Orientamos sobre como proceder na pesquisa e sobre o uso da história oral, sobre os cuidados éticos com relação aos escolhidos para serem entrevistados, e também criamos roteiros e listas de equipamentos. É importante salientar, que antes das entrevistas, os estudantes explicam aos seus entrevistados o objetivo do trabalho e detalhes sobre os procedimentos durante e depois do processo até a criação dos textos que serão publicizados.

A estratégia é importante para a compreensão das disputas de memória e de diversas manifestações culturais (tradições e rituais partilhados) relevantes para as pessoas, em uma comunidade de um distrito rural, que se desenvolveu com certas peculiaridades e com relativa independência com relação a parte central de São João Batista. O projeto e o conhecimento, que é produzido a partir dele, é tributário de observações acerca de experiências transformadas em narrativas e que possuem relação íntima com a história da localidade a qual se integra a Escola e seus alunos e alunas. Nesse contexto foi fundamental o aprofundamento dos estudos sobre os diferentes sujeitos que participaram e participam da história local, de uma micro-história, passando pelo aprofundamento dos estudos de uma história social e cultural e pela gradativa ampliação da escala de observação. Segundo Jacques Revel (2010), por essa perspectiva proporcionamos a reflexão historiográfica a partir de uma “pequena história”, percorrendo caminhos esquecidos, refazendo trilhas a partir da escolha de pontos de vistas particulares. Por esse meio, contrapomos outras narrativas e posicionamentos políticos que comandaram e de certa forma ainda comandam o passado. Ainda de acordo com o autor, a micro-história apresenta a possibilidade de novos questionamentos e a revisitação de certezas:

[...] o que está em jogo na abordagem micro-histórica é a convicção de que a escolha de uma escala peculiar de observação fica associada a efeitos de conhecimentos específicos e que tal escolha pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimento. [...] variar a focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho [...], e sim modificar sua forma e trama. [...] a escolha de uma ou outra escala de representação não equivale a representar em tamanhos diversos uma realidade constante, e sim a transformar o conteúdo da representação mediante a escolha do que é representável (Revel, 2010, p. 438).

 

A partir de Revel (2010), afirmo que a abordagem que busca reduzir a escala de análise do distrito de Tigipió torna possível uma releitura de fenômenos maiores, dimensionados por outras escalas de observação. O estudo do que se passa em um lugar aproxima uma realidade “micro”, de um caminho para a apreensão de questões importantes que, não obstante de sua projeção na realidade localizada, diz respeito à sociedade como um todo.

No projeto escolar Memórias da Colônia, em mais de um episódio, nos deparamos com narrativas que exaltam o heroísmo bugreiro durante a colonização de São João Batista e arredores, e uma dessas pequenas histórias é tema deste artigo, onde analisamos e desconstruímos esse mito, e construímos novos olhares relacionados a história indígena, por meio do texto escolar da aluna Liriane Garcia[8]. Sua escrita é fruto de entrevista com a idosa Astrogilda Zunino Formento, nascida em 1935 em Tigipió, onde sempre residiu. O estudo retoma trajetórias individuais de bugreiros, e principalmente de crianças indígenas que tiveram suas vidas usurpadas durante o contato traumático que firmou a supremacia europeia em regiões do Estado de Santa Catarina, em detrimento da história de povos ancestrais nessas terras.

Serão apresentados conceitos e a proposta pedagógica desenvolvida. Essa contempla a análise de narrativas, aqui entendidas como vestígios do passado. A história oral, nesse caso, incentivou a prática da construção do conhecimento histórico por meio do texto construído pela aluna, mostrando que sujeitos comuns e suas próprias versões históricas podem contribuir para a compreensão histórica.

 

História oral e memória no ensino de História

A prática de lecionar História dando ênfase ao que o aluno conhece, priorizando o ensino por meio da troca de dados e/ou informações, abrange um mundo de possibilidades a se descobrir. Memória e história oral são possibilidades didáticas que amplificam o trabalho do professor. Permitem o alcance do conhecimento e compreensão do passado, questionando e modificando as interpretações do presente, ordenando, sistematizando e criticando fontes históricas. Os estudantes, ao se tornarem atores participantes de investigações, nos possibilitam descobertas que de outra maneira seriam difíceis de alcançar, pois em projetos desenvolvidos na escola com história oral, se reconhecem como sujeitos integrantes de um espaço em formação. No projeto escolar Memórias da Colônia, apesar de trilhas previamente definidas, concretizá-las em companhia dos jovens moradores da comunidade, garantiu subsídios para a desconstrução de histórias prontas e engessadas, que no presente podem ser reconstruídas após análises e problematizações de fontes selecionadas ou produzidas ao longo do processo educacional.

No ensino de História, recursos oferecidos pela história oral e explanados por professores tornam o aprendizado mais relevante, pois tratam de experiências concretas, narradas de maneira coloquial. Alunos e alunas passam a conhecer as histórias da comunidade, das próprias famílias e desenvolvem habilidades no planejamento, na prática e aprimoram sua capacidade de comunicação antes e no decorrer dos diálogos. Durante as entrevistas no projeto escolar, muitos estudantes acabaram criando certo fascínio sobre o que estava sendo investigado, e por isso, se tornaram de alguma forma, portadores de dados que muitos pensam ser incontestáveis. Por isso, os estudantes foram orientados pedagogicamente, e recebem orientações a cada novo ciclo, para fazerem o uso de um olhar analítico, avaliando as fontes de maneira crítica sabendo que nenhuma espécie de fonte é História em si, mas que faz parte de um processo de construção de conhecimento. De acordo com Verena Alberti, a combinação entre o “vivido” e “concebido” como formas de elaboração do real é o que causa fascínio na história oral. “[...] sabemos que o passado só retorna por meio de trabalhos de síntese de memória: só é possível recuperar o vivido pelo viés do concebido.” (Alberti, 2004, p. 17). Uma entrevista causa encanto pela possibilidade de experimentar as experiências do outro ao compreender as expressões dessa vivência. “A experiência histórica do entrevistado torna o passado mais concreto, sendo, por isso, atraente na divulgação do conhecimento.” (Alberti, 2004, p. 22).

No projeto escolar, no início foram recortadas apenas as tradições orais, mas ao longo do tempo, memórias pessoais, familiares, até “segredos” que por muito tempo foram guardados vieram à tona. A ênfase empregada nas questões identitárias, fez com que alunos e alunas tivessem curiosidade pelo seu passado e de sujeitos que até então estavam despercebidos. A memória e a identidade, a percepção de si e dos outros, foram intermediadores chave para terem satisfação em investigar. No processo de ensino-aprendizagem o estudo de memórias sobre a história local oferece aos estudantes oportunidades de construção ou aperfeiçoamento da noção de pertencimento, identificando e diferenciando grupos classificados por etnias ou culturas, por exemplo. Os estudantes participantes nas pesquisas perceberam-se como parte de uma história ampla e complexa.

Enfatizo que é uma necessidade social se identificar e, segundo Stuart Hall (2000, p. 106), a identificação passa por um processo de construção nunca completado, sendo esta condicional. O conhecimento histórico produzido durante as trajetórias do projeto evidenciou como a identidade é construída a partir do reconhecimento de determinadas origens, da partilha de características, de ideais invocados pela descoberta de determinados passados aos quais os estudantes se correspondem e se atualizam durante a escrita. Os jovens entenderam que a história oral não impõe limites com relação aos temas de interesse, o que os mostrou o quanto praticá-la validou as aulas de História como oportunidade para se pensar a sociedade em que estão inseridos, no passado e também no presente.

Em sala de aula e nas relações comunitárias busco constituir um novo olhar histórico, onde o objeto de estudo se torna dinâmico e mais próximo. Mediante essa concepção, no ensino de História, as narrativas proporcionadas pelo projeto escolar deixaram de ser fundamentadas em temas distantes para se incorporarem aos fenômenos históricos relacionados à região problema, Tigipió. Ao se abandonar a noção tradicional da narrativa histórica, se objetiva buscar uma história plural e dinâmica. Seguindo essa linha de pensamento, os invisibilizados da História passam a ser percebidos. Nesse contexto, as práticas educacionais proporcionam aos estudantes a percepção de que a História faz parte de suas vidas e, de que tudo que os mesmos produzem é História e deve ser levado em consideração. Ensinar História dialogando com história oral é permitir um novo olhar acerca do saber histórico em sala de aula, incitando uma visão crítica entre os educandos. Com a metodologia da história oral conseguimos escrever sobre acontecimentos relatados sobre aquilo que se ouviu de terceiros ou histórias sobre períodos mais afastados. E assim o fazemos, com alunos apresentando trajetórias de vida e tradições orais. Em ações que envolvem sujeitos são observadas suas experiências culturais e sociais. Não difundimos a ideia de que culturas são estáticas, não engessamos personagens históricos. No projeto Memórias da Colônia percebemos a vivacidade nas relações sociais em dinamismo constante. Nesse cenário, a partir de resultados obtidos por meio da pesquisa, do confronto entre fontes, relacionamos o processo colonizador europeu ao extermínio de indígenas em Santa Catarina, além disso, descaracterizamos a mitologia que envolve a figura de Martinho Bugreiro.

A estudante Liriane, como outros alunos e alunas participantes do projeto Memórias da Colônia, se tornou ao longo dos três anos de trabalho escolar, mais próxima de acontecimentos históricos em Tigipió. Reelaborou tradições orais percebidas na condição de investigadora de um passado transmitido por gerações, influenciado por diversas culturas que passaram verbalmente noções essenciais de uma geração a outra. A proposta de História apresentada na EEB Profa. Lídia Leal Gomes, se distancia da velha narrativa de um passado morto, sem significado para a maioria dos homens e mulheres. Ao se pensar sobre percepções acerca de uma “Nova História Indígena[9]”, nas histórias de Tigipió, encontros e desencontros entre sujeitos que pensam e agem de maneiras diferentes são constantes, mas em sala de aula se tornam mutáveis. Indígenas na maioria das vezes vistos como vencidos ou como resistentes à espera do desaparecimento, passam a ser percebidos como protagonistas e construtores da história da localidade. Na memória relatada por Liriane, há um enredo sobre o contato entre brancos e indígenas, que precisou por meio de intervenção pedagógica ser recontado reconstruindo conflitos, diálogos, tensões e negociações. As lembranças que oportunizaram a escrita do episódio: O som do desespero, possuem ligação com a entrevista que a aluna conduziu em 2021, mas também com o que assimilou ao longo do ensino médio, desde 2019, sobre a temática. Aprendeu com a problematização e análise de memórias trazidas para escola, por intermédio de outros estudantes. A partir desse arcabouço de informações, Liriane (re)construiu uma lembrança que sua entrevistada haveria recebido de sua mãe, Ana Tomasoni Zunino, que conheceu pessoalmente em sua juventude na comunidade, os personagens dessa história. Escreveu sobre um determinado acontecimento, de acordo com o momento e as circunstâncias, no presente. Brindou-nos com a oportunidade de se pensar sobre o processo de dominação e extermínio que afetou negativamente as sociedades indígenas não só no contexto local, mas também regional.

De maneira geral, pouco se sabe sobre os povos originários. Apesar da região de Tigipió, no passado, ter sido território ocupado pelo povo Carijó[10] e ter uma reserva indígena[11] nas redondezas, a comunidade enxerga apenas estereótipos, quando trata de descrever ou falar sobre esses povos. Há um cenário a se desconstruir por meio da Escola, mas para isso é necessário à produção de história indígena, e o estímulo de debates a respeito da diversidade cultural. Nesse trabalho, temos um enredo que foi debatido, não só na Escola, mas também a nível regional, com a publicação pela imprensa local, da história produzida por Liriane, que poderá ser acompanhada ao longo desse texto. Assunto esse, que aborda encontros traumáticos no passado colonial catarinense, entre populações não indígenas e indígenas, entre sujeitos que pensavam e agiam de maneiras distintas.

Figura 2: Território histórico dos povos indígenas meridionais

Mapa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Mapa Etnohistórico de Curt Nimuendaju – 1944, adaptado e elaborado por Carina Santos de Almeida. Briguenti (2012).

 

Martinho Bugreiro: A desconstrução de mitos na construção de histórias

A sacralização de Martinho Bugreiro em meio à história colonial do Vale do Rio Tijucas, mas também de outras regiões catarinenses, estaria relacionada a um mito ligado diretamente a conservação das marcas de uma cultura senhorial. De acordo com Chauí (2000, p. 89), “a sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos [...]”. O indígena nessa concepção jamais seria reconhecido como sujeito, nem como subjetividade e muito menos como alteridade, pois nessa estrutura estão subalternizados e inferiorizados pelos interesses e julgamento dos conquistadores. Quando a desigualdade é muito marcada, a relação entre os personagens dessa história assume a forma nua da opressão física. Em muitas regiões de Santa Catarina, os bugreiros, tornaram-se figuras respeitadas em sua época pelos habitantes de áreas que viveram o contato com populações indígenas, o que caracterizaria uma determinação histórica calcada pela discriminação e dominação desses povos. Em meio à pesquisa histórica no projeto escolar Memórias da Colônia, muitas vezes esses personagens foram reconhecidos pelo seu heroísmo, pois de sua “atividade” advinha à segurança dos colonos que habitaram a região problematizada. Na prática, os caçadores de indígenas erradicavam os entraves para a continuidade de tarefas ligadas a produção agrícola e ao comércio colonial.

Segundo Silvio Coelho dos Santos (1997, p. 19), áreas ocupadas pela imigração europeia estimulada pelo governo brasileiro na região sul do país, eram territórios indígenas. A instalação de colônias, como a Nova Itália em 1836, iniciou uma disputa não só por território, mas também por recursos naturais. Ainda de acordo com esse autor, muitos indígenas, pela falta de como guarnecer suas necessidades alimentares, passaram a atacar as propriedades ocupadas pela colonização europeia. Além disso, indígenas passaram a atacar a imigração em “locais de trabalho e de trânsito”. Esse contato intercultural propiciado pela apropriação dos territórios indígenas gerou uma onda de violência exacerbada. O Estado, nesse contexto, em seu ideal civilizatório e de branqueamento da população, acabou vitimando muitos colonos e principalmente comunidades ancestrais. “O território tradicionalmente [...] indígena foi, portanto, objeto de um plano de ocupação sistemático e irreversível” (Santos, 1997, p. 20). Em meio às histórias, durante as entrevistas no projeto escolar, e na análise de fontes historiográficas, é verificável a relação conflituosa entre colonos e indígenas: “No entanto, mesmo diante de um processo violento, o índio não foi vítima passiva, tendo sua história reduzida às atrocidades dos brancos. Os índios, mesmo em situações adversas, posicionaram-se diante da nova conjuntura” (Wittmann, 2007, p. 22).

Em Tigipió, certas narrativas, frutos de uma memória coletiva, nos trazem a impressão que indígenas classificados popularmente como bugres[12], considerados seres rijos, rápidos e traiçoeiros, mereciam ser “caçados” por estarem sempre prontos para a qualquer momento varar os colonos com suas lanças e flechas. Na comunidade, as pessoas pouco sabem sobre os “índios[13]”. Compartilham de estereótipos relacionados ao desconhecimento histórico causador de preconceitos às diferenças culturais. Não compreendem sobre o contato entre seus antepassados e as vítimas de extermínios, os vencidos indígenas. Segundo Luisa Tombini Wittmann (2015, p. 9) é importante que no ensino de História se aborde questões relacionadas a essa “herança que relega os indígenas”, que os apresenta “como seres praticamente sem história e sem futuro. [...] é importante ir além da visão de um processo geral de dominação que afeta apenas negativamente as sociedades indígenas”. A respeito dessas afirmações, podemos considerar o poder da oralidade em recriar vidas esquecidas e contribuir para que as pessoas reconheçam os mais variados sujeitos como significantes historicamente.

Os chamados bugres pela tradição oral e pela historiografia, no imaginário popular, seriam seres perigosos que viviam nas florestas, não catequisáveis e nem dispostos a viver sob o ideal civilizatório trazido para as suas terras pelos europeus. Esse discurso precisa ser revisto e sua análise socializada, como no caso da mitologia construída sobre aos seus algozes. Os bugreiros, que atuaram de maneira criminosa, em uma época que segundo Enéas Athanázio (1984), homicidas e agressores já eram punidos pelo Estado, não devem ser tratados como heróis. No período em que agiram em Santa Catarina, “Ninguém [...] tomou jamais qualquer providência contra eles, mesmo porque a legítima defesa ou o estado de necessidade, mesmo encaixados a martelo, deveriam funcionar como escudo, em eventuais dúvidas” (Athanázio, 1984, p. 272). O estudo histórico sobre o que prevaleceu ao longo do tempo com relação a essas conflituosas memórias possibilitam rememorações de lembranças que reforçam a imagem dos chamados “índios”, sujeitos que pensam e agem de acordo com suas referências culturais, e dos bugreiros, sujeitos construídos acerca de um suposto heroísmo que estaria acima das leis e a serviço do direito natural de poder, atribuído ao colonizador.

O episódio O som do desespero, publicado na série jornalística Memórias da Colônia em 2021, de autoria da estudante Liriane Garcia, nos permite uma vasta reflexão sobre o contato entre indígenas, colonos e bugreiros. A narrativa aproxima crianças Laklãnõ Xokleng da história de Tigipió. Indígenas que sofreram pelas sucessivas expedições bugreiras, responsáveis, juntamente com outras questões não discutidas nesse texto, pela desintegração do modo de vida tradicional indígena durante parte do século XIX e início do século XX:

O SOM DO DESESPERO: Em um dia comum na Colônia, onde as crianças brincavam na rua e as famílias trabalhavam nas roças, Martinho Marcelino de Jesus chegava a passos largos com seus homens. O bugreiro e seu bando traziam consigo meninas órfãs para serem entregues a casais de colonos para criarem. Tratava-se de crianças indígenas poupadas das matanças proporcionadas pelos bugreiros, que por critério, optavam por deixar jovens meninas viverem. Por motivos eminentes, as meninas estavam muito assustadas com tudo que aparentemente haveria acontecido com seu aldeamento. Ao se aproximar do vilarejo, Martinho sentou-se em uma roda e começou a contar o que havia acontecido na noite anterior para os moradores locais que o receberam. Segundo o bugreiro, uma das jovens poupadas no ataque estava tão desesperada, que não aceitara seguir com o bando. Antes de sua partida do local do acontecido, a indígena insistia em encostar seu ouvido no chão repetidas vezes e gritava. A menina queria fugir a todo custo. A indígena lutava para conquistar sua liberdade. Naquele momento da história narrada por Martinho, os bugreiros tentavam acalmá-la para prosseguirem com a viagem de volta para casa. Dizia ele que tentaram entender o que ela queria dizer, mas não conseguiam se comunicar. De acordo com Martinho, a situação se estendeu por algumas horas, até que em um momento, seu bando desconfiou que ela pudesse estar ouvindo passos de outros indígenas que se aproximavam. A região onde atuavam naquele momento possuía vários aldeamentos. Deduziram que outros nativos conseguiriam ouvir os gritos da garota e pudessem vir em socorro, pois não parava de gritar. Martinho, que desabafava com os colonos sobre aquele acontecido, disse que mesmo depois de ponderar, acabou decidindo que seria melhor “passá-la” a facão e levar somente as outras indígenas que estavam mais calmas para a Colônia. E assim teriam feito. Um dos capangas assassinou a jovem. Nessa hora, um silêncio estranho pairou entre todos os colonos que escutavam Martinho terminar sua história. Pela primeira vez, algo havia saído de seus planos. (Liriane, 18 anos, aluna da 3ª série do Ensino Médio, 03/09/2021).

 

A história apresenta a inserção de indígenas naturais de outras regiões, a vida colonial em Boa Vista[14], hoje Tigipió. Apresenta indícios relacionados aos assassinatos Laklãnõ Xokleng por bugreiros contratados pelo Estado, para uma “limpeza étnica” no início do século XX. Entre as décadas de 1900 e 1920, período provável em que Martinho Marcelino de Jesus teria trazido meninas Laklãnõ Xokleng para Tigipió e as entregue para a criação junto aos colonos locais, foi época onde teria atuado comandando diversas expedições bugreiras no Vale do Itajaí.

Figura 3: Mapa representando território originalmente ocupado pelo povo Laklãnõ Xokleng

Mapa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Armazém Memória (2023).

O objetivo aqui é tirar o maior proveito da memória descrita pela estudante, pois apresenta informações importantes para fim de pesquisa histórica, para desvendar a origem de sujeitos com procedências desconhecidas pela comunidade e para chegarmos a um ponto de vista bem distante do heroísmo atribuído aos bugreiros. É preciso revelar ações históricas daqueles que não deixaram registros escritos. Usar da memória de brancos para falar dos não brancos, porque essas lembranças são de alguém que teve contato com eles. A estudante quando escreveu para o projeto, deu prioridade ao valor do que estava sendo rememorado, mas não pensou no todo das consequências da pesquisa histórica que desencadeou. A aproximação de Liriane com aquilo que pesquisou e contou por meio de textos, provoca indagações positivas com relação ao processo de ensino de história indígena por meio de história oral. Oportunizou horizontes para um olhar mais atento sobre a fonte que produziu. De acordo com Wittmann (2007, p. 24), apesar de a história ser fruto de lembranças e escrita de “[...] brancos não impede a fonte de trazer dados para além de sua cultura.”.

A aluna escreveu com certa familiaridade a história, pois se sentiu atraída, pois reconhece importância na ação, e na divulgação das estruturas temporais que conformavam à narrativa. Reproduziu uma memória, fruto de sua entrevista, com viés ligado ao que já havia sido descoberto no processo de ensino-aprendizagem, sobre a atuação bugreira na comunidade e sobre a presença de culturas indígenas em meio aos relatos sobre o passado de Tigipió. Produziu conhecimento devido a uma ligação significante com o que percebeu durante o ensino de História, baseando-se em descobertas e nas construções históricas do projeto escolar. Concordando com a proposta de uma Nova História Indígena, o texto de Liriane nos oportuniza recuperar sujeitos históricos que agiam de acordo com o que acontecia ao seu redor. Há percepções e interpretações que podem ser feitas sobre história indígena na escrita da aluna. O texto exalta memórias sobre bugreiros, mas igualmente nos mostra o que viveram e as estratégias tomadas pelas meninas capturadas, antes de serem entregues para adoção pelos colonos. É preciso de sensibilidade antropológica para a interpretação das imagens que vem à tona durante a leitura de O som do desespero e de sua ilustração, construída por um ex-aluno e colaborador do projeto escolar, o estudante Igor Eduardo Machado[15].

No projeto escolar Memórias da Colônia, cada texto é ilustrado por um desenho que o acompanha nas publicações. Os ilustradores, como Igor, narram a sua própria versão histórica do que se passou, por meio de desenhos construídos por particularidades insignificantes para a maioria das pessoas, mas que possuem importância para o aluno. O estudante que desenha, por suas próprias experiências procura organizar suas memórias, para permitir uma melhor compreensão delas. Alunos e alunas recriam universos particulares como cenários para os textos do projeto, e utilizam características conhecidas suas, para representação dos personagens e dos ambientes das histórias. A pesquisa por meio da oralidade ofereceu múltiplas possibilidades de exploração, considerando as diversas formas que as histórias foram narradas e reconstituídas, sendo que os jovens obtiveram a condição de autores, mesmo quando não se sentiram capazes de o fazerem por textos escritos. A diversificação das construções históricas narrativas multiplicou as possibilidades criativas e interpretativas, reforçando a importância do que Araújo (2013) chama de parâmetros analíticos básicos orientados pelo professor.

Uma ilustração, sendo uma imagem, segundo Marcelo da Silva Araújo (2013, p. 82) ressignifica o passado, “[...] dando vida a muitas outras imagens que podem, inclusive, fazer sentido para outras pessoas que não tinham notado este ou aquele detalhe até então”. As ilustrações constituídas ao longo do projeto Memórias da Colônia fazem parte do nosso trabalho, e são muito importantes para que os leitores das pequenas histórias atribuam sentido às narrativas textuais.

A ilustração de O som do desespero representa não só a narrativa de Liriane, mas também a ação bugreira em meio à abordagem de indígenas em suas incursões encomendadas. Nas aulas de História estudamos que projetos estatais com origens a partir do século XIX, obtinham sucesso, em nome da colonização e do progresso, com a contratação de homens para o extermínio de indígenas. Prática motivada e patrocinada, muitas vezes pelo Estado brasileiro, a partir de 1872. Centenas, milhares de indígenas foram mortos sem compaixão pelos “batedores de mato[16]”, que penetravam aldeias e os liquidavam a facão enquanto dormiam. De acordo com Santos (1997, p. 27):

As tropas de bugreiros compunham-se, em regra, com 8 a 15 homens. A maioria era aparentada entre si. Atuavam sob o comando de um líder. A quase totalidade dos integrantes desses grupos eram “caboclos”, que tinham conhecimento sobre a vida no sertão. Atacavam os índios em seus acampamentos, de surpresa. Às vítimas poucas possibilidades havia de fuga.

 

Figura 4: Ilustração de O som do desespero

Desenho de um homem

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Igor Eduardo Machado. Arquivo pessoal (2021).

Liriane e Igor reconhecem que a preservação ou eliminação indígena era de acordo com projetos políticos de incorporação social e econômica. A representação dada aos sujeitos históricos em ambas as narrativas possui relação com experiências sociais e culturais. As entrelinhas dessa produção trazem surpresas, indícios, sinais, vestígios, pistas, interações entre indígenas e colonizadores.

Fontes historiográficas quando falam de investidas indígenas, contribuem com o discurso colonizador, pois enfatizam geralmente as mortes causadas por eles. Em Tigipió é de conhecimento popular que no início da colonização, na primeira metade do século XIX, foram mortos imigrantes italianos em supostos ataques dos Carijó. Mas é preciso se fazer uma leitura sobre as motivações e sobre os embates, sobre o contato. A presença alheia também causou espanto aos indígenas, pois, para os primeiros habitantes de Santa Catarina, os colonos eram pessoas estranhas:

Europeus que chegavam e, prontamente, realizavam derrubadas para construção de casas, criação de animais e cultivos diversos. Ao longo dos anos, mais e mais homens, mulheres e crianças se estabeleceram nas terras próximas aos rios. Enquanto os imigrantes comemoravam a almejada propriedade e o desenvolvimento das colônias, os índios tinham cada vez mais o seu território de caça e coleta reduzido (Wittmann, 2007, p. 31).

 

O interesse das pessoas ligadas à imigração era garantir o desenvolvimento das colônias e o progresso das regiões colonizadas. Para esse objetivo acreditavam ser fundamental resolver a situação problemática causada pelos que chamavam de bugres. As fontes utilizadas durante o projeto escolar apresentam a lacuna de não haver documentos produzidos por indígenas sobre esse passado, o que contribuiria em dar mais protagonismo a esses sujeitos, e, portanto, acabam dando ênfase a personagens como Martinho Bugreiro. E no caso aqui analisado, apesar de serem introduzidas ao modo de vida colonial, não há indícios documentados deixados pelas sobreviventes que passaram a existir em Tigipió, sobre essa trama, e nem memórias que tenham origem em suas falas. Quanto ao bugreiro, segundo tradições comunitárias, Martinho Marcelino de Jesus se tornou o mais célebre exterminador de “bugres” que se tem notícia em Santa Catarina, e seu grupo de caçadores de indígenas, se tornou uma espécie de esquadrão da morte, reconhecido positivamente por muitos, pelos seus feitos durante a colonização europeia.

Martinho era contratado por colonos ou pelo governo e matava os indígenas geralmente à noite. Seu grupo foi um pequeno pelotão que atuou na região serrana e em vales onde se instalavam os colonizadores europeus, incluindo a região do Vale do Rio Tijucas, onde se localiza Tigipió. Segundo Santos (1997, p. 27), nasceu por volta de 1876, em Bom Retiro, serra catarinense. Ainda segundo esse autor, teria trabalhado com gado, atuando na atividade tropeira, o que o fez conhecer a Vila Boa Vista, depois Tigipió. À região incluem-se passagens percorridas por muitos anos pelos tropeiros que desciam a Serra indo em direção as cidades do litoral catarinense, seguindo caminhos às margens dos rios que formam a bacia hidrográfica do Rio Tijucas. Outra autora, Darci de Brito Maurici (2008, p. 19), nos conta que Martinho Bugreiro “começou a matar índios com 18 anos”. De acordo com o Pe. Flávio Feler (2015, p. 82), o bugreiro começou a matar, pois “Martinho tinha ódio dos índios, pois esses haviam matado sua mulher e dois filhos”. É verdade que segundo Enéas Athanázio (1984) raramente falava da eventual chacina de sua família. São muitas as versões sobre o início das atividades que atendiam pedidos de colonos e do Estado para esse personagem se “livrar” dos indígenas. Lembranças que permeiam as memórias de tantas pessoas em Tigipió.

Martinho falava pouco, era fechado. Honesto no seu viver nas comunidades, considerado pela historiografia, um homem de extrema seriedade. Mas era um matador mercenário, um degolador sanguinário de indígenas e, de acordo com Maurici (2008, p. 19), “Tinha astúcias de caçador, sabia como chegar quieto e na hora certa passar a bugrada na espada”, o que o configura como um verdadeiro genocida. Segundo Santos (1997, p. 27), “Volta e meia estava em Florianópolis, prestando conta ao governo”, o que segundo as tradições orais em Tigipió, aconteceria com a apresentação e contagem das orelhas rasgadas dos cadáveres durante as investidas bugreiras junto às comunidades indígenas. Dizem que eram cortadas, perfuradas e penduradas em um cordão que os matadores levavam no pescoço. As fontes, utilizadas em pesquisa, indicam que em meio a essas circunstâncias viveu e agiu o protagonista da história de Liriane. Martinho Marcelino de Jesus, de Taquaras e da Serra da Boa Vista, hoje Rancho Queimado, de Tigipió, hoje distrito de São João Batista, de Vidal Ramos e também do Vale do Itajaí. Dizem que a história do sujeito teria encerrado em 1937, em decorrência do tifo.

As crianças femininas e indígenas, do texto de Liriane, fazem parte de um grupo que foram poupadas em ataques comandados por Martinho, que de acordo com Athanazio (1984), inclusive, eram protegidas pelo líder bugreiro de possíveis estupros por parte de seus companheiros de bando. Santos (1997) nos conta sobre crianças Laklãnõ Xokleng poupadas e entregues para a adoção por colonos, humanistas, religiosos e autoridades estaduais. Crianças indígenas trazidas e incorporadas à região de Tigipió e fazendas do planalto catarinense pelos bugreiros eram como troféus. O número de vítimas sobreviventes (geralmente crianças femininas) não é pequeno. A garota “passada a facão”, na história da estudante, representa muitas das vidas ceifadas pelo temor bugreiro de represálias indígenas. A imagem a seguir é de uma fonte garimpada durante as pesquisas do projeto, um “facão” de posse de um dos entrevistados por estudantes em 2019, Ari Celso de Souza, morador de Tigipió:

Figura 5: Espada bugreira localizada em Tigipió

Arma em cima de uma superfície de madeira

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

Fonte: Ari Celso de Souza. Arquivo pessoal (2018).

Outra informação reforçada em O som do desespero é a de que as localidades de Tigipió estavam no mapa bugreiro, como destino, pois Martinho, apesar de nascido na serra catarinense, morou parte de sua vida em terras que hoje fazem parte da localidade de Arataca[17]. Além disso, alguns de seus homens são naturais dali e da região que hoje faz parte do município de Major Gercino, cidade fronteiriça. As crianças, na história de Liriane, entregues a colonos em Tigipió, segundo alguns moradores, teriam servido como mão-de-obra e chegaram à fase adulta, inclusive deixando descendentes. A historiografia também nos conta sobre crianças Laklãnõ Xokleng capturadas no Vale do Itajaí, reforçando as lembranças sobre o episódio, pois “ficaram registros e, às vezes, fotos” (Santos, 1997, p. 29) de alguns dos sobreviventes. Em serviço, Martinho e seu bando teriam sido fotografados ao lado de vítimas que suportaram fisicamente as suas incursões, retratados para a posteridade, como quem promovera assassinatos em nome da segurança de colonos europeus que estavam se fixando em Santa Catarina.

Figura 6: Martinho Bugreiro e crianças indígenas poupadas em uma de suas ações no Vale do Itajaí

Fonte: Acervo Silvio Coelho dos Santos (2012). Disponível em: https://www.flickr.com/photos/avisc/7993832390. Acesso em 16 set. 2021.

Muitos memorialistas e entrevistados na comunidade de Tigipió enquanto narram acontecimentos, se atém a figura histórica do “herói” bugreiro. Poucos marginalizam o personagem em seus discursos, o colocam como alguém que segue regras, que apesar de matador é alguém eticamente correto. É uma visão compartilhada por muitas pessoas, onde há admiração sobre os feitos de Martinho Bugreiro. Mas apesar de alguns o considerarem herói, outros o apontam como um criminoso profissional, uma forma de contestação de dilemas políticos enraizados na sociedade catarinense. Histórias como a de Liriane, possuem o papel de esclarecer sobre seus personagens. A trajetória indígena, rememorada pela aluna, apresenta influência de outras memórias muito presentes nas tradições orais, e, sobretudo, de informações levantadas ao longo do projeto escolar. Nos seus escritos reuniu fragmentos de imagens, vestígios e lembranças. Teceu um emaranhado de memória. A exemplo de Igor em sua ilustração, lembrou, refez, reconstruiu, repensou, com imagens e ideias de hoje, experiências do passado.

Quando indagamos sobre as relações entre colonos e indígenas, não devemos nos abster de mencionar a herança de uma cultura que define as tradições orais relacionadas à atuação bugreira em Tigipió, e em outros locais de Santa Catarina. O tratamento dado ao se falar sob influências de uma conexão com o passado, por pessoas comuns e até por autoridades, carrega traços marcantes da atuação de uma sociedade autoritária e estruturada desde a implantação de colônias em território catarinense. Diferenças étnicas estão naturalizadas, o que colocaria os indígenas em condição de inferioridade. O tratamento de bugreiros como heróis e a maneira como são festejados como tal é uma prática alicerçada em ideias de longa data. O ideal civilizatório durante a implantação e expansão do modo de vida europeu, acrescido das representações construídas pelos colonos sobre os indígenas e as sucessivas expedições de bugreiros, foram responsáveis, juntamente com outras questões não discutidas, pela desintegração do modo de vida tradicional indígena. Além disso, houve uma forte diminuição de suas populações em território catarinense, principalmente a partir da segunda metade do século XIX. O que não podemos deixar de citar nesse trabalho é o silêncio a que esses grupos foram condenados, onde só aparecem como sujeitos nos momentos em que seu comportamento é apontado como indesejável. Os Carijó Guarani e os Laklãnõ Xokleng são, nesse contexto, apenas grupos humanos que lutaram para defender seu modo de vida frente à expansão do capitalismo em Santa Catarina e no mundo.

 

Considerações finais

As histórias que construímos na escola, propiciadas pela história oral, são dinâmicas e mobilizam a investigação sobre a maneira como a comunidade de Tigipió relaciona-se com o passado. Com a colaboração dos estudantes, ao acionarmos esse passado sob luzes do presente, recuperamos acontecimentos, sentimentos e valores. O projeto escolar Memórias da Colônia tem enorme potencial para a escrita e o ensino de História, pois impacta no aprendizado sobre eventos, e também sobre como esses influenciam a vida comunitária. Na EEB Profa. Lídia Leal Gomes, depoimentos de pessoas comuns, estudados, transformam-se em conhecimento, demonstrando que nos constituímos agentes que possibilitam a abertura de horizontes mais plurais, contemplando os ideais de diversidade. Somos autores e sujeitos dessas histórias e a forma como significamos nossas narrativas e as ideias que lhe são adjacentes, nos embasa para pensar sobre o ensino de História como campo de ação e intervenção na contribuição no desenvolvimento do pensar historicamente.

Em trajetória de, até o momento, cinco anos de pesquisa histórica, Liriane Garcia e outros estudantes significaram processos históricos e entenderam como são construídas as narrativas que formam os produtos resultantes de nosso trabalho. Segundo Wittmann (2015, p. 19) a observação meticulosa sobre as fontes históricas, produzidas ou garimpadas, permite enxergar detalhes que “podem dar a chave para a análise de um contexto cultural”. E é a partir dos sinais deixados por essas fontes que agimos em sala de aula e perante a comunidade. Os vestígios que constatamos entre as entrevistas, com moradores de Tigipió, nos permitem seguir caminhos traçados que nos levam a reconstruir muitas histórias esquecidas, incluindo as que envolvem povos originários. As vozes dos estudantes, de seus familiares, de seus conhecidos, abrem espaço para contribuições e conclusões, desenvolvendo uma perspectiva crítica sobre o que é abordado na escola, inclusive, sobre os indígenas e suas experiências ao longo da História.

 

 

Referências bibliográficas

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ARAÚJO, Marcelo da Silva. Era uma vez uma imagem: além de divertidas, estudar charges de época exercita a leitura visual e permite aos jovens interpretar outros contextos históricos. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, nº 92, p.78-82, 2013.

 

ARMAZÉM MEMÓRIA. 2023. Disponível em: https://armazemmemoria.com.br/especial-xokleng/. Acesso em 26 jul. 2023.

 

ATHANÁZIO, Enéas. Martinho Bugreiro, criminoso ou herói? Biblioteca Digital Curt Nimuendajú: línguas e culturas indígenas sul-americanas, 1984. Disponível em: http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Aathanazio-1984-martinho/Athanazio_1984_MartinhoBugreiro.pdf. Acesso em: 21 mar. 2021.

 

BOITEUX, Lucas Alexandre. In: BOITEUX, Nylson Reis. 2º ed. Primeira página da colonização italiana em Santa Catarina. Caxias do Sul: EDUCS, 1998.

 

BRIGHENTI, Antônio Clóvis. Povos indígenas em Santa Catarina. In: NÖTZOLD, A. L. V.; ROSA, H. A.; BRINGMANN, S. F. (Org.). Etnohistória, história indígena e educação: contribuições ao debate. v. 1. Porto Alegre: Palotti, 2012. p. 37-65.

 

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, vol.6.

 

FELER, Flávio. O centenário de São Sebastião do bairro da Índia, 1915 – 2015. Florianópolis: Sagrada Família, 2015.

 

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.103-133.

 

MAURICI, Darci de Brito. São João Baptista do Alto Tijucas Grande: 1834 – Do Arraial do Capitão Amorim à capital catarinense do calçado. Blumenau: Odorizzi, 2008.

 

PIAZZA, Walter F. Nova Trento. Florianópolis: Editora Ex-libris, 1950.

 

REVEL, Jacques. Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista Brasileira de Educação, v.15, nº45, p. 434-590, 2010.

SANTOS, Sílvio Coelho dos. Os índios Xokleng: memória visual. Florianópolis: Ed. da UFSC: 1997 [Itajaí]: Ed. da UNIVALI, 1997.

 

TONINI, Malcon Gustavo. Memórias da Colônia Nova Itália/SC: Diálogos entre história oral, memória e ensino de História. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de História) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Mestrado Profissional em Ensino de História. Florianópolis, 2021.

 

WITTMANN, Luisa Tombini. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2007.

 

WITTMANN, Luisa Tombini. Ensino (d) e História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

 

Recebido em 14/02/2023.

Aceito em 25/07/2023.



[1] Mestre em Ensino de História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Professor da Educação Básica da rede pública do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: malcongustavo@hotmail.com | https://orcid.org/0009-0009-9387-9723

[2] Esse artigo possui recortes da minha dissertação de mestrado intitulada Memórias da Colônia Nova Itália/SC: Diálogos entre história oral, memória e ensino de História, defendida no ProfHistória - Programa de Pós-Graduação em Rede Nacional, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), em 2021, sob a orientação da Profa. Dra. Cristiani Bereta da Silva. O projeto acadêmico foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da UDESC sob o parecer 3.670.930 em 30 de outubro de 2019, e foi contemplado pelo Programa de bolsas de pós-graduação UNIEDU/FUMDES, vinculado a Diretoria de Planejamento e Políticas Educacionais da Secretaria de Estado de Educação (SED) de Santa Catarina.

[3] A EEB Profa. Lídia Leal Gomes está localizada a 14 km da região central do município de São João Batista, as margens da rodovia SC-108, no trajeto que liga a cidade ao município de Major Gercino. A Escola foi construída em terras que um dia fizeram parte da Colônia Nova Itália, mas também onde, no passado, estava instalada a sede administrativa dessa Colônia, a fazenda Boa Vista. A Escola fica em área rural, atendendo aos bairros mais afastados da região central do município e possui laços enraizados por tradições antepassadas, sendo que a maioria dos estudantes possui familiares que descendem dos primeiros imigrantes europeus que chegaram à região.

[4] O distrito de Tigipió, na cidade de São João Batista, é a região que integra os limites territoriais que na primeira metade do século XIX fizeram parte da Colônia Nova Itália, documentada em agosto de 1835 durante a Regência Una do Padre Feijó.

[5] O município catarinense de São João Batista está localizado a 79 km de Florianópolis, capital, fazendo parte da microrregião dos Vales dos rios Tijucas e Itajaí-Mirim, integrando a Grande Florianópolis e tendo em seus limites as cidades de Antônio Carlos, Biguaçu, Canelinha, Major Gercino, Nova Trento e Tijucas.

[6] O jornal comunitário Correio Catarinense, apresenta publicamente as histórias escritas pelos estudantes para o projeto escolar desde 2019. O periódico atende a demanda pela curiosidade dos locais sobre os resultados das atividades escolares. O Correio Catarinense circula em cinco municípios do Vale do Rio Tijucas (Nova Trento, Canelinha, Major Gercino, São João Batista e Tijucas) e traz reportagens produzidas na região por uma rede de colaboradores.

[7]As sequências didáticas utilizadas durante as aulas de História, que fazem parte de meu planejamento anual, desde 2019, e todo processo de execução, com detalhes, relacionado ao projeto escolar, pode ser encontrado na minha dissertação, que está disponível em: https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/705661. Todas as histórias já publicadas podem ser encontradas em um repositório criado em parceria com estudantes, em uma rede social, e está disponível em: https://www.facebook.com/memoriasdacolonia/.

[8] Liriane Garcia possui quatro textos produzidos para o projeto, desde 2019 vem contribuindo com a (re) construção da história local por meio do garimpo de informações históricas em entrevistas. A estudante não apresenta apenas trabalhos escolares resultado de sequências didáticas, vai além, pois despertou em si o interesse em desvendar o passado de sua comunidade. A entrevistada pela aluna, Dona Gida, como é conhecida pela comunidade, é umas de suas principais fontes orais. Liriane concluiu o Ensino Médio na Escola onde sempre estudou desde o início do Ensino Fundamental, ao final de 2021.

[9] O termo “Nova História Indígena” está ligado diretamente à obra do Prof. Dr. John Manuel Monteiro, que alinha de forma significada, aspectos antropológicos à ressignificação de conceitos marcados pelo conservadorismo na sociedade. O autor propõe uma nova compreensão dos povos indígenas, como protagonistas, e a exaltação de suas lutas e conquistas, valorizando aspectos étnicos e culturais que se contrapõe à forma como a historiografia descrevia os “índios” até então. Segundo Maria Celestino de Almeida (2013), desde a década de 1990, a Nova História Indígena proposta por Monteiro, vem permitindo novas compreensões sobre o lugar dos indígenas na História.

[10] No século XIX, quando da chegada de imigrantes e instalação da Colônia Nova Itália nas terras que hoje formam São João Batista, segundo Boiteux (1998) e Piazza (1950), indígenas Carijó, povo Guarani, ocupavam terras do hoje distrito de Tigipió, e, portanto, fazem parte da história da comunidade. Muitos moradores guardam vestígios da presença desse povo, como pontas de flechas e partes de utensílios, e também, em algumas localidades do Distrito há grandes pedras com pilões esculpidos em terrenos, cujos são temas, em relatos orais, sobre a presença de aldeamentos indígenas durante a ocupação branca. Mais informações sobre vestígios indígenas na região, disponíveis em: https://correiocatarinense.com.br/artigo/artigo-na-pista-dos-piloes-de-pedra/

[11] No presente, indígenas Mbyá-Guarani residentes na aldeia Tekoa V’ya, na localidade de Águas Claras, em Major Gercino, cidade vizinha, representam o passado indígena de Tigipió. As terras demarcadas em favor dos Guarani, na atualidade, foram adquiridas em 2007 com recursos advindos do convênio entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) devido à duplicação da BR-101, trecho Palhoça-Osório. Os Mbyá-Guarani estão aldeados na região desde 2009, sendo que anteriormente moravam na aldeia Itaty, no Morro dos Cavalos, em Palhoça, também em Santa Catarina.

[12] Denominação de origem francesa dada aos indígenas considerados não cristãos pelos europeus.

[13] O uso do termo “índio” nesse texto tem o objetivo de chamar atenção sobre como a população local o concebe, como os entrevistados, memorialistas e até alguns autores intitulam o indígena. Índio é um rótulo colonial, resistente ao tempo e que representa um processo de não reconhecimento dos povos que habitam o Brasil, mesmo antes de assim ser chamado. A reflexão sobre a terminologia, que reduz a diversidade cultural a algo genérico reduz o impacto do senso comum. A utilização do termo “indígena”, que significa “natural do lugar que se habita”, é um indicativo como definição mais correta para se referir aos povos originários, como os Carijó Guarani e os Laklãnõ Xokleng, duas das mais de trezentas etnias de populações indígenas que habitam o país.

[14] A justificativa levantada por Maurici (2008) para a troca do nome da localidade de Boa Vista para Tigipió seria causada pela confusão postal causada pelo nome com relação a outro vilarejo de mesmo nome em Mafra. Tigipió é um nome tupi-guarani que, de acordo com a professora Darci, se refere a uma frutinha redonda, cor de ouro com uma polpa translúcida, como um bago de uva, com cheiro e gosto de mel. Quando ingeridas em grande quantidade é tóxica e mortal, segundo a crença popular. Essa fruta teria sido abundante à beira dos riachos da região e enganado muitos viajantes.

[15] Igor Eduardo Machado, 18 anos, é aluno da EEB São João Batista, localizada na parte central do município. Durante o ano de 2017, o inscrevi em um concurso nacional de ilustração sobre a participação da princesa Leopoldina no processo de Independência do Brasil, cujo se saiu vitorioso. O estudante foi premiado na Câmara dos Deputados em Brasília e recebemos uma Moção na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina. Disponível em: http://www.tudosobrefloripa.com.br/index.php/desc_noticias/garoto_de_saeo_joaeo_batista_vence_concurso_nacional_de_desenho

[16] Segundo Santos (1997, p. 43), “O termo era um eufemismo oficial para referir-se a uma tropa de bugreiros”.

[17] Segundo Maurici (2008) a localidade de Arataca teria sido iniciada com a chegada da família de Luiz Melo entre as décadas de 1880 e 1890, durante a integração da freguesia de São João Batista, criada na Província de Santa Catarina em 19 de abril de 1838, ao município de Tijucas. A comunidade teria se desenvolvido nas terras mais ao fundo de Boa Vista (Tigipió), e teria recebido este nome justamente por ser considerada sem saída, a exemplo da armadilha indígena de mesmo nome.