Independência, atualismo e negacionismo: como enviar histórias para o futuro[1]

Independence, updatism and denialism: How to send histories to the future

                                                                                              

Valdei Lopes de Araujo [2]

 

 


Resumo

Este texto aborda cultura histórica e historicidade nas conjunturas de 1822 e 2022. As comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil tornaram mais visíveis as permanências de algumas estruturas históricas. O argumento está dividido em 4 partes. Na primeira, apresento os contornos do que chamo identitarismo euro-cristão, produto do complexo processo que levou à Independência, em particular em suas estruturas historiográficas, aqui consideradas fato e indicador daquele processo. Na segunda parte demonstramos como as ruínas dessas narrativas identitárias continuam a alimentar o imaginário bolsonarista. Na terceira parte avançamos na descrição da historicidade do populismo bolsonarista ancorada na teoria do Atualismo. Por fim, descrevemos algumas ações promovidas pela Anpuh-Brasil para o enfrentamento desta conjuntura marcada por uma crise aguda de mediação comunicativa.

Palavras-chave: Atualismo; Independência; Bolsonarismo; Anpuh-Brasil.

Abstract

This text addresses historical culture and historicity in the circumstances of 1822 and 2022. The commemorations of the Bicentennial of the Independence of Brazil made the permanence of some historical structures more visible. The argument is divided into four parts. In the first, it presents the contours of what is called Euro-Christian identity, a product of the complex process that led to Independence, particularly in its historiographical structures, considered here as fact and indicator of that process. The second part demonstrates how the ruins of these identity narratives continue to feed the bolsonarist imagination. The third advances in the description of the historicity of bolsonarist populism anchored in the theory of Updatism. Finally, it describes some actions promoted by Anpuh-Brasil to face this situation marked by an acute crisis of communicative mediation.

Keywords: Updatism; Independence; Bolsonarism; Anpuh-Brasil.


 

 

 

Introdução

Amo a história. Se não a amasse não seria historiador. Fazer a vida em duas: consagrar uma à profissão, cumprida sem amor; reservar a outra à satisfação das necessidades profundas - algo de abominável quando a profissão que se escolheu é uma profissão de inteligência. Amo a história - e é por isso que estou feliz por vos falar, hoje, daquilo que amo (FEBVRE, 1941).

 

Deste parágrafo de abertura da conferência de Lucien Febvre proferida em 1941, na Escola Normal Superior, gostaria de atualizar a palavra amor. Amor à história, à profissão, amor à coisa pública; amor à história viva, mesmo quando ela se mostra trágica e revela para nós o trabalho constante e penoso de nos educar educando o outro. Das inquietações ambivalentes das ruas em 2013 renasceu o ódio como clima hegemônico a organizar os modos de sentir e pensar da maioria das pessoas no Brasil. Não quero aqui examinar novamente as causas deste giro para o ódio, nesta noite prefiro falar da alvorada de novos tempos, de novos climas. Afinal, são sobretudo esses sentimentos que possibilitam a existência de uma nação: solidariedade e amor.

Falar em 200 anos de Brasil é comemorar dois séculos dessa vontade de viver juntos com autonomia. Na frase, as palavras “viver” e “autonomia” devem ter o mesmo peso. Não faz sentido ter autonomia para escolher a morte, o aniquilamento e o suicídio coletivo. O famoso grito que foi inventado no processo histórico da emancipação, “independência ou morte”, pode ser ouvido apenas como uma bravata belicista, uma fantasia do patriarcado, ou como a promessa de que só podemos entender uma independência que sirva a vida. Não só dos vivos, mas também, sem paradoxo, a vida dos nossos mortos, e dos que ainda não nasceram. Sem negar o lado tenebroso do grito que termina com a palavra “morte”, ele também poderia significar “independência é vida”. Um dos trabalhos mais relevantes dos historiadores e historiadoras é justamente nos ajudar a explorar o potencial esquecido e pouco usual dos eventos e processos, que podem ter desaparecido ou nunca sido suficientemente compreendidos. Neste e em outros sentidos, o passado também estará sempre à nossa frente. E aqui está um pouco da escolha do final do título, sobre que histórias enviar para o futuro.

Agora, entrando na segunda seção desta conversa, que tem a ver com o livro Independência Narrada, publicado recentemente. De alguma maneira, discutimos no livro que histórias devemos enviar ao futuro e que história devemos deixar no passado. Entre continuidades e rupturas, o que distancia e aproxima os desafios e a relação entre a história escrita, pesquisada e disputada hoje e há duzentos anos? Afinal, ser independente é ter o direito de entretecer histórias comuns; a historiografia, aqui entendida em sentido amplo, é uma das estruturas da Independência. Somos independentes para ter um tempo comum, um passado, um presente e um futuro, que podemos chamar de nosso, um tempo compartilhado, compartilhável. Um tempo no qual diversas histórias podem ser nossas, mesmo aquelas que são distantes do nosso ponto de vista pessoal.

O processo complexo para o qual apontamos quando escolhemos comemorar 1822, foi produzido a partir de experiências com e através de relatos e apresentações de histórias muito diversas. Esses relatos, imagens e conceitos de história estavam disponíveis ou foram produzidos entre o final do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX.

 

A historiografia como fator e indicador da Independência

Quando pensamos que a cultura histórica, as apresentações de história foram uma força da independência – e eu quero aqui explorar certas permanências ou certas analogias entre a conjuntura da independência e a nossa conjuntura atual –, é que nós sabemos que a América Portuguesa teve uma entrada tardia no mundo da impressão e no mundo do livro, mas com a chegada da família real portuguesa em 1808, há uma explosão e uma aceleração muito grande dos impressos, e junto com os impressos há aquilo que interessava muito as pessoas nesse início do século XIX, que é a história. Nós sabemos que desde meados do século XVIII um novo tipo de história começa a interessar profundamente essa cidadania em construção.

Então, nessa cultura de história do início do século XIX que vai dar o contexto da independência, temos memórias particulares, que são produzidas de maneira bastante acelerada; temos panfletos políticos, que estão discutindo temas históricos, debatendo polêmicas em torno de divergências históricas entre Brasil e Portugal; temos a tradição das crônicas de histórias coloniais; temos as histórias tradicionais produzidas por autores brasileiros e estrangeiros, Robertson de Pradt, Burke, Adam Smith, Hume; essas histórias dos principais processos políticos que eu gostaria de analisar um pouco; temos compiladores estrangeiros que estão produzindo no e sobre o Brasil, como Beaumelle, Beauchamp, Denis, Monglave; a tradição das histórias universais e da História da América; os jornais periódicos, que explodem, que têm um alcance muito grande entre essa elite política, cito apenas três, mas são inúmeros; e os espaços acadêmicos, com uma presença menor, mas também relevante, especialmente a Academia Real de Ciências de Lisboa. Isso forma um ambiente de apresentações de história que vão acelerar muito o conhecimento da cidadania emergente no contexto da Independência sobre as possibilidades da história do Brasil.

Usando-me de modo bastante livre da palavra de Conceição Evaristo, gostaria de propor que a escrevivência da independência pode ser organizada em três momentos naquela conjuntura criadora. O primeiro, de 1808 a 1821, foi marcado pela experiência aberta com a transferência e presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro. Nesta fase, multiplicam-se narrativas sobre o sentido e destino da América Portuguesa, no conjunto da monarquia e de novos projetos políticos. O segundo momento abarca o período de 1821 a 1825, tempo de efervescência das lutas e disputas por projetos de futuro para a nova nação. O terceiro, de 1826 a 1831, vê a estabilização da primeira grande narrativa da independência enquanto porta de entrada para se interpretar a história do Brasil-nação – narrativa que terá influência duradoura ao longo dos duzentos anos seguintes, mesmo que constantemente desafiada.

Essas narrativas e representações de história deram sentido a certos eventos e configuraram uma forma de realidade enquanto realidade nacional. Na qualidade de evento fundador de um projeto de nacionalidade, a independência nunca estará plenamente domesticada. Diversas camadas da realidade precisam ser continuamente reprimidas para que essa normalização se efetive. Por isso, colocamos sempre a mesma questão: estaria a independência realizada? Essa pergunta foi e é formulada para continuar sem respostas definitivas. O perigo de sua recorrência, no entanto, é que quase todas as formas do futuro, mesmo com conteúdos muito diversos, são entendidas como atualizações desse mesmo projeto: emancipar o Brasil, os brasileiros, e assim confirmar a permanência no tempo de uma identidade. Hoje talvez possamos atualizar essa pergunta de outro modo, e respondê-la: a incompletude da autonomia é de onde retiramos essa energia para seguir em frente, pois é justamente nas diferenças que podemos pensar outros futuros coletivos, e não mais no pesadelo de uma nação homogênea que foi sonhado de maneira original na conjuntura de 1822.

Mas, ao longo desses 200 anos, a dúvida fundadora: somos independentes? Procurou resolver através da narrativização histórica o grande ponto cego desse projeto nacional. Por que a diferença não para de se produzir? Se estudássemos um texto fundador de José Bonifácio quando trata do problema da escravidão e propor de maneira muito importante naquela conjuntura o fim do tráfico e um possível fim da escravidão, que é um texto pensado a partir de 1823 mas publicado em 1826, a imagem que perpassa todo o texto de Bonifácio é uma imagem que nos assombra até hoje, de que não podemos ser livres se não formos homogêneos. Não podemos ser civilizados se não formos homogêneos. Se havia um lado emancipador na proposta de Bonifácio, na medida em que pensava também a homogeneidade como igualdade civil e política, havia um lado muito, digamos, prenho de consequências negativas para nossa nacionalidade que foi atrelar igualdade civil e política à homogeneidade étnica e cultural. Então, só poderemos ser uma nação se formarmos uma espécie de amalgamado homogêneo do ponto de vista étnico-racial, que naturalmente vai se parecer cada vez mais ao longo da nossa história com o processo de branqueamento e europeização. Nessa perspectiva, qual é o nosso mal de origem? A ideia de que a independência, a autonomia, a soberania e o processo de civilização vai passar progressivamente pelo processo de branqueamento disfarçado de miscigenação.

O que acontecia na América Portuguesa não interessava apenas aos estudiosos da história e letrados locais. As revoluções deste lado do Atlântico eram tema de contínua conversação e circulação de conceitos, ideias e experiências na república das letras. É nesse contexto que precisamos entender os dois principais monumentos literários da historiografia dessa primeira fase: History of Brazil, de Robert Southey, os volumes de 1810, 1817 e 1819; e a História do Brasil, de Afonso de Beauchamp, de 1815, publicada em francês, mas quase imediatamente traduzida. Malgrado suas intenções, esses relatos permitiram as elites brasílicas imaginarem no tempo e no espaço uma unidade até então precariamente disponível. A nova experiência da realidade historicizada, lentamente construída a partir de transformações sociais, culturais e econômicas, possibilitou perguntas acerca do futuro dos continentes, aqui em sentido muito material, Portugal e Brasil, Europa e América, que precisavam ser situados nessa experiência histórica que dividia a humanidade entre povos avançados e atrasados, em políticas de tempo que adquiriram cada vez maior centralidade no debate político. Esses livros vão permitir a imaginação do Brasil, de futuros outros, há um lado muito concreto dessa imaginação, que é pela primeira vez a disponibilidade maciça de imagens que reconstroem os episódios que a partir de então vão se tornar canônicos da nossa experiência da história.

Na segunda parte de nossa periodização, o evento-processo independência coincide com a sua representação e sua apresentação em imagens, formas e narrativas de história. Já no debate pela imprensa e na de panfletos, o tema da história do Brasil e dos brasileiros, seu suposto estágio civilizatório e sua habilidade ou inabilidade para formar um corpo político autônomo, servirão de terreno fértil de singularização de uma experiência nacional que deu novo sentido ao passado colonial, naquele momento visto como tirania e opressão, o famoso topos da noção de trezentos anos de opressão. No entanto, uma vez proclamada a independência, o novo regime vai se deparar com demandas óbvias por legitimidade. O grupo que se reúne em torno de Pedro I – cujo coração chegou hoje ao Brasil, falaremos disso em breve –, passado o momento da crise que culminou com a dissolução da assembleia constituinte de 1823, vai um tanto à exemplo do momento joanino patrocinar letrados que pudessem atuar como historiadores a serviço do governo. É a esse esforço que devemos as narrativas produzidas por Victor Laurent de La Beaumelle, o Império do Brasil, de 1823, ou o já citado Afonso Beauchamp. Ambos vão buscar em teorias históricas que tentavam explicar o movimento e a formação de novos corpos políticos as razões ao longo prazo que justificariam a independência do Brasil. Todo o aspecto revolucionário da independência vai ser domesticado em torno da ideia de que a independência do Brasil era inevitável, e que o imperador nada mais fez do que seguir o fluxo normal da história.

Como podemos ver, não era muito simples separar os projetos promovidos e financiados pelo estado daqueles que surgiam por interesses autorais ou do mercado do livro e de seus leitores. O fato é que se aprofundavam interesses existenciais por um novo tipo de história, mais ampla e menos fundada em fórmulas ou exemplos congelados. Novas metáforas que conectavam formas de visão integrativa com a análise da conjuntura histórica denunciavam o campo de experiência disponível e demandada por entretenimento histórico.

Temos então o livro Resumo da História do Brasil e Scenes de la Nature sous Les Tropiques de Ferdinand Denis, os dois publicados em 1825, depois de já ter publicado um livro sobre história do Brasil junto com Hippolyte Taunay em 1822, de três volumes, um pouco mais disforme do que esses.

 

Imagem 1: Retirado da apresentação de Valdei Araújo no XIX Encontro Estadual de História – ANPUH/SC

Interface gráfica do usuário

Descrição gerada automaticamente

 

A gravura presente na Imagem 1 é uma aquarela do panorama do Rio de Janeiro que estava em exibição em Paris em 1824, na mesma conjuntura em que Beaumelle e Beauchamp estavam publicando seus relatos sobre a independência do Brasil. Em Paris era exibido um panorama da cidade do Rio de Janeiro, em que a Imagem 1 constitui apenas um detalhe da obra de 360 graus. Mostrava aos parisienses, aos europeus, a cidade que agora sediava o primeiro império do continente americano. E esse interesse pelo Brasil, como eu disse anteriormente, tem uma motivação política, tem uma intervenção do Estado, mas tem também um mercado consumidor de história emergente, que vai financiar esse tipo de iniciativa.

É interessante que esse tipo de representação da nova nação vai ser, e nós sabemos disso, embranquecido, e a presença da população africana escravizada vai desaparecendo nas representações domesticadas do império do Brasil. Isso acontece na própria História do Brasil de Ferdinand Denis de 1825, que em 1826 já tem uma tradução por Niemeyer Bellegarde, que depois vai ser sócio do IHGB, e vai ser considerado o primeiro manual oficial, indicado pelo Estado, para as pessoas terem conhecimento sobre a história do Brasil. Das muitas alterações que Bellegarde introduz no livro de Ferdinand Denis, destaco seu esforço para reduzir a importância de episódios como o Quilombo de Palmares e conciliar o conflito entre portugueses e brasileiros acirrado nas disputas pela Independência. Ele produz uma visão mais celebratória desse encontro entre brasileiros e portugueses. No livro anterior de Ferdinand Denis, Cenas da Natureza nos Trópicos, livro considerado fundador do nosso romantismo, temos uma noveleta de 100 páginas sobre Palmares, com ares de romance histórico. Acompanha um suposto romance entre Zumbi e Zara, que seria sua namorada, desde a África até o Brasil, quando foram sequestrados e, naturalmente, escravizados. Denis narra esse processo até a destruição do Quilombo de Palmares. Não surpreende que esse material até pouco tempo não estava traduzido. Embora as cenas fossem consideradas durante todo o século XIX, pelos nossos românticos, Gonçalves de Magalhães, José de Alencar, um livro guia para o romantismo brasileiro. Mas esses mesmos letrados não se preocuparam em traduzir a noveleta sobre Palmares publicada nas cenas. Há outra noveleta que trata das questões indígenas, e essa sim foi traduzida, mas não a que tratava de Palmares.

Ao mesmo tempo em que liam folhetins sentimentais nos rodapés dos jornais – e vemos que o negacionismo, a falsificação, o apagamento, não é invenção do nosso tempo, é a forma como uma parte da elite foi construindo o país –, essas pessoas precisavam educar também seus sentimentos para compreender o mundo em transformação. Era preciso desenvolver novas cognições, como a empatia e a simpatia, e o contrário delas também, de modo a compreender melhor a alteridade crescente dos indivíduos e das nações.

Até Denis estamos tratando do momento revolucionário da Independência. Agora vamos para o momento contrarrevolucionário, que eu chamei no meu livro de independência domesticada. Toda essa atividade letrada acerca da nova nação, motivada por interesses diversos, impulsionada por uma conjuntura de grandes transformações, ampliava a sensação de que os acontecimentos requeriam algum tipo de intervenção normalizadora. Nosso terceiro momento é dominado pelo projeto historiador mais ambicioso e pioneiro na escrita de uma escrita da história geral do Brasil a partir do evento-processo Independência. Não chega a surpreender que tenha sido justamente Pedro I o responsável por encomendar em 1825 ao já citado Visconde de Cairu, a redação de uma história da independência brasileira. Entre 1826 e 1831, o Visconde de Cairu transformaria a encomenda imperial num pretexto para projetar a história do Brasil em dez volumes, dos quais chegou a finalizar apenas quatro, sendo o primeiro dedicado aos descobrimentos e ao processo de colonização, e os outros três ao processo de independência. É datado de 1825 porque publica primeiro a introdução à obra, e no ano seguinte publica o primeiro volume, que é a história dos descobrimentos.

No centro de sua história estava a ideia de que as sociedades modernas se fundam no comércio e na sociabilidade. Assim, a civilização do Brasil, mesmo que sufocada em seu período colonial, herdou da história portuguesa o projeto civilizatório cujo emblema foram as grandes navegações. Portugal havia decaído primeiro com o sistema colonial, depois com o liberalismo radical e maçônico; o Brasil, por sua vez, desde 1808 seguia seu destino enquanto baluarte da liberdade bem-entendida temperada por um governo forte. Essa visão conciliatória, autoritária e conservadora e que celebrava a nova nação como herdeira de um legado europeu respondia à pergunta sobre a identidade do Brasil e dos brasileiros de um modo que se atualizaria nos duzentos anos seguintes. Essa resposta parece hoje cada vez mais violenta e incapaz de nos levar ao futuro. Escapar dos seus efeitos acumulados, enquanto passado-presente, não nos é possível. O que nos cabe é assumir as responsabilidades pelas dores da nossa formação e nos abrirmos para escutar a polifonia de vozes como nosso maior patrimônio.

O que analiso nesta obra do Visconde de Cairu, que vou resumir aqui muito rapidamente, é que ele organiza nossa experiência histórica em três grandes metanarrativas: a primeira metanarrativa é a “providencial”, onde o Brasil herdaria uma certa relação especial com a divindade que vai a Ourique, o milagre de fundação de Portugal, a promessa de um império cristão; as grandes navegações são explicadas na mesma chave, e por isso que o descobrimento do Brasil é tratado como um achado providencial. Outro sinal dessa dimensão providencial é a singularidade de nossa extensão territorial. A nossa história colonial não é mais interpretada como 300 anos de opressão, mas como uma espécie de interlúdio do qual a unidade nacional foi preservada, apesar do desleixo lusitano, pela mão da providência. A mesma coisa em 1808: a invasão napoleônica, que o Visconde de Cairu tratava como o próprio demônio na terra – Cairu caberia muito bem na figura de um ideólogo bolsonarista, gostava de uma retórica exacerbada, poderia ser o Olavo de Carvalho do Dom João ou Dom Pedro – e a migração da corte é entendida então como consequência providencial dessa luta entre bem e mal que foi a Revolução Francesa e a sua expansão napoleônica. Essa é a primeira metanarrativa.

A segunda, mais complexa e ambivalente, mostrando a multidimensionalidade do livro/projeto, é uma narrativa em que a nossa independência pode ser explicada como um movimento histórico da transição de um mundo feudal a um mundo comercial. Eu não vou explicar detalhadamente a narrativa, iria tomar muito tempo, mas ela está dividida em duas partes, uma de elementos negativos e outra de aspectos positivos. Não é mais como na dimensão providencial, onde a ideia de que só há positividade se está na mão de Deus, que estaria garantindo tudo, uma narrativa muito singela; aqui é uma narrativa mais complexa, certamente vai convencer os filósofos da ilustração, vai convencer a elite mais ilustrada, de que na verdade quando você chega em 1822, você tem a independência de um império comercial, que garante liberdades individuais, mas que tem a presença de um imperador. Inclusive, a epígrafe de toda a obra é uma montagem de uma citação de Tácito, uma outra falsificação: o autor usa um trecho grande de Tácito e interpola, monta, como se Tácito estivesse dizendo que no império do Brasil, pela primeira vez, se conciliam liberdade e autoridade; que Dom Pedro encarnaria, digamos, a realização desse grande sonho da política conservadora europeia desde o século XVII, que era ter um governo forte, mas que respeitasse as liberdades.

A terceira narrativa que podemos depreender da obra do Visconde, que é uma narrativa “tarcitista”, é desse conflito entre governo e liberdade. Os portugueses estariam talhados com a liberdade, com as instituições germânicas, que leem na Germânia de Tácito, o estabelecimento de antigas cortes. Novamente é uma narrativa de ambivalências, não é uma narrativa unidimensional. Novamente ela não se realiza em 1822, mas sim em 1824, quando a constituição é outorgada por Pedro I. Com a outorga da constituição, é garantido a liberdade de opinião, que garante o progresso, o estabelecimento de um parlamento, uma monarquia constitucional, e essa realização da harmonia entre liberdade e governo.

 

A cultura histórica bolsonarista como ruínas do identitarismo euro-cristão

 

Imagem 2: Retirado da apresentação de Valdei Araújo no XIX Encontro Estadual de História – ANPUH/SC

Desenho de um cavalo

Descrição gerada automaticamente com confiança média

 

A imagem 2, é naturalmente uma extrapolação, mas se analisarmos boa parte do imaginário bolsonarista, vamos verificar fragmentos, ruínas dessas narrativas conservadoras inauguradas em nosso processo de Independência e que ainda mobilizam o imaginário coletivo.[3]  A dimensão providencial e feudal vai aparecer o tempo todo nesse imaginário, que naturalmente na imagem acima é uma representação irônica, mas ironiza justamente um uso recorrente desses elementos por setores do bolsonarismo. Entendemos melhor então porque é tão importante que hoje chegue ao Brasil o coração de Dom Pedro I, porque a pergunta fundamental das nossas elites políticas no processo de Independência foi formulada pelo Abade DePradt no contexto das reflexões pós-Revolução do Haiti. De Pradt publica um panfleto com o título A quem pertencerá a América, à Europa ou à África? A questão programática que está na mente de boa parte dessa elite é que só há futuro possível, só há civilização possível, que passa atualização contínua de nossos vínculos com a Europa. Não deve nos surpreender que o atual governo tenha feito o esforço de trazer o coração de Dom Pedro: ele é uma relíquia em sentido muito particular, é o totem dessa necessidade obsessiva das nossas elites de reafirmar que o Brasil pertence à Europa. Além, obviamente, com o bônus de reforçar a noção bélica, as fantasias militares de uma masculinidade frágil. Podemos pensar mais providencial do que isso?

 

Imagem 3: Retirado da apresentação de Valdei Araújo no XIX Encontro Estadual de História – ANPUH/SC

Foto editada de homem de terno e gravata

Descrição gerada automaticamente

 

A imagem acima não é um exemplo aleatório do imaginário bolsonarista. Há inúmeras variações dessa mesma imagem, da mão de Deus guiando a caneta bic de Bolsonaro. São narrativas históricas que se atualizam; não se atualizam mais de maneira ideologicamente coerente, até porque a base bolsonarista é fragmentada, a coerência não interessa ao bolsonarismo. Ela tem coerência com as suas origens, então nós podemos recuperar essas coerências mesmo que no nosso tecido social hoje não seja necessário a exibição dessa coerência. É um exemplo bastante ilustrativo do que temos chamado de atualização atualista, uma visada que extrai de um passado arruinado fragmentos que sirvam às fantasias do presente.

 

Imagem 4: Retirado da apresentação de Valdei Araújo no XIX Encontro Estadual de História – ANPUH/SC

Fundo preto com letras brancas

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa

 

O tema da unidade territorial, que apontamos no texto de Cairu, como uma indicação do nosso destino providencial, e uma das chaves do que tenho chamado de identitarismo euro-cristão. As pessoas às vezes criticam, “nós vivemos em uma época identitária”, na verdade, nascemos enquanto nação no interior de um projeto identitário. O nosso projeto de independência é um projeto branco/europeu/cristão que se torna identitário quando naturaliza enquanto único destino a formação dessa identidade particular. As elites têm uma consciência muito sofisticada da necessidade de não abrir mão desse projeto identitário. É claro que ele está embutido de uma necessidade de se vender como universal, como acolhedor.

O tema da liberdade também é um tema fundador, como nós vimos acima, está condensando nessa experiência histórica conservadora da independência. A liberdade é um valor, e Cairu está o tempo todo falando em nome da liberdade. Não há contradições nesse projeto em ser conservador, em ser autoritário, e ao mesmo tempo defender uma certa ideia de liberdade. Dependendo da forma que você lê o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, ele se mostra como uma atualização histórica do livro de Cairu. Todos os valores fundamentais de Cairu estão repetidos no livro de Narloch; o empreendedorismo está ligado com o projeto e a noção de que o comércio capitalista é a fonte de civilização. Se fossemos interpretar na chave de Pierre Nora, em seu texto clássico do final dos anos 70, onde ele está teorizando sobre a noção de lugares de memória: ele dizia naquele texto, era o argumento central dele de que na França, naquele momento de expansão, de fragmentação, de novas identidades, a experiência da nação só poderia se dar pelos seus fragmentos. É a partir das ruínas dessa grande ideia de uma nação integrativa que era possível pensar a nação francesa. Lugares de memória são ruínas do grande projeto nacional através do qual você pode atualizar ainda esse projeto sem necessariamente dar a ele sua antiga coerência e unidade.

O bolsonarismo hoje realiza isso de uma maneira que certamente Pierre Nora não imaginara: ele atualiza o projeto da ditadura que ainda era o projeto de uma grande história-memória, com o civismo, com o catecismo cívico, com uma ideologia muito cerrada na produção desse civismo, dessa história oficial. O bolsonarismo nem de longe faz isso, porque ele não precisa fazer, ele atualiza essa experiência autoritária da nossa formação nacional através desse culto às ruínas.

Em seu livro Necrorromantismo: viajando para encontrar os mortos, Paul Stuart descreve como entre 1750 e 1830 surgia nos Estados Unidos e na Europa um florescente ramo do turismo focado no interesse por visitar os túmulos de escritores e personalidades públicas. Essa emergente cultura da personalidade ajuda a entender o gesto de d. Pedro I de deixar seu coração como herança eterna para a cidade do Porto, em agradecimento ao protagonismo de seus habitantes na luta contra o Miguelismo. Naquela altura, o gesto parecia fazer sentido por estabelecer um lugar de peregrinação simbólica onde os vivos poderiam encontrar seus mortos, personalidades que inspirariam o futuro e reforçariam valores do presente. Neste caso, reforçariam os valores do Liberalismo. Sabemos que a filha de dom Pedro foi quem decidiu que o coração fosse depositado no interior de uma igreja. Dom Pedro nunca disse que seu coração deveria ir para uma igreja. Claro que, colocando o coração ali, conciliava-se uma tradição medieval, realmente das relíquias, com essa nova experiência moderna, dentro da qual dom Pedro estava mais inserido, do culto à personalidade romântica. Todas as representações de Dom Pedro mais velho são representações absolutamente guiadas pelo imaginário do Romantismo.

Não deve ter surpreendido ninguém saber do esforço dos setores do governo Bolsonaro de fazer vir ao Brasil o coração do primeiro imperador. Ainda que reticentes, as autoridades do Porto acabaram por ceder à necrofilia presidencial. Em mais um sintoma, a essa altura redundante, do compromisso do atual governo com a morte, presenciaremos a partir de hoje, até 8 de setembro, aparentemente, a peregrinação do órgão imperial em terras brasileiras. Poucos episódios são tão eloquentes em sua capacidade de encapsular o clima mórbido e o compromisso com a morte no atual governo. Mas, junto a esse aspecto necropolítico, digamos assim, precisamos entender o coração de dom Pedro como um totem identitário. A nossa elite que se imagina europeia se encontra com o seu fundador europeu.

 

O Atualismo como a historicidade do populismo bolsonarista

Infelizmente, o bolsonarismo tem sido mais bem-sucedido em se acoplar ao ambiente comunicativo contemporâneo, sendo capaz de ativar sua base respondendo a demanda existencial por presença e sentido do e no tempo. Navegando em um ambiente comunicacional marcado pela dispersão e agitação, o bolsonarismo se converte em um tipo de realidade compartilhada que prescinde de aspectos fundamentais das soluções modernas. Perguntas como “quem somos?” e “para onde estamos indo?” são respondidas a partir de uma gramática que, embora simule certas estruturas da modernidade, são profundamente distintas dela. Não dá para confundir o engajamento da história do bolsonarismo, por exemplo, com o engajamento da ditadura militar. Como vimos acima, eles têm natureza bastante diversa. Qualquer tentativa de buscar uma versão coerente e organizada da história que faça sentido para a base do bolsonarismo estaria fadada ao fracasso. Assim como a sua base é heterogênea, dispersa e fragmentada, também o é sua relação com os conteúdos históricos, embora nela também esteja presente um subgrupo para qual certos episódios são centrais: o Brasil Imperial para a monarquistas e católicos conservadores; a Ditadura Militar para os militares e seus satélites nas corporações militares Brasil afora. Já para o importante segmento evangélico essas histórias são menos relevantes, podendo de algum modo reinventarem o providencialismo, bem como para parte do empresariado que o apoia em nome de uma pauta liberal na economia.

O segredo da atualização bolsonarista tem sido a capacidade de formar uma pequena maioria a partir da união de grupos heterogêneos. Nosso argumento é que a agitação, dispersão e imersão propiciadas pela historicidade que nós chamamos de atualista é chave para compreendermos a ativa ação populista mais segmentada das bases do bolsonarismo. Essa semana soubemos que a campanha de Lula está criando redes sociais específicas para os evangélicos, replicando uma solução que o bolsonarismo já encontrou desde 2018. Segmenta-se a comunicação com a base e isso impede, por exemplo, que católicos e conservadores briguem com evangélicos, pois nunca vão estar efetivamente nas mesmas bolhas.

A imersibilidade dos novos sistemas de comunicação tem no caso brasileiro seu maior exemplo na conjunção entre aparelhos de celular e grupos de WhatsApp e Telegram. Independentemente do grau de escolaridade dos usuários, as mensagens de voz do aplicativo sintonizam a cada atualização os modos de sentir e pensar com a agenda bolsonarista em tempo real. No meu hotel tinha uma revista aqui de Santa Catarina, uma edição da última semana, que comparava o tamanho das redes sociais do bolsonarismo, do Bolsonaro, com as redes sociais do Lula. Ainda depois de a esquerda ter corrido um pouco atrás do prejuízo, há uma assimetria gigante. Bolsonaro tem ainda três ou quatro vezes mais seguidores nas suas redes sociais do que o Lula, que está na frente da disputa eleitoral segundo as pesquisas. Isso significa, entre outras coisas, que a forma de comunicação com essa base é instantânea. Eu sigo Bolsonaro no Telegram, “ossos do ofício”, e eu recebo o dia inteiro mensagens do seu perfil oficial. Se você seguir alguns perfis das redes bolsonaristas, você irá passar o dia inteiro recebendo um fluxo continuado de informação em tempo real.

O ambiente atualista enfraquece as compreensões históricas, e aí há o que nos interessa: essa comunicação em fluxo enfraquece a compreensão histórica da forma como nós a construímos na modernidade, e permite que usos tão inconsistentes de episódios bem conhecidos da história sejam distorcidos e representados como verdade. O populismo e o atualismo se retroalimentam ao tornar, por exemplo, o especialista em um inimigo e construir universos simulados que substituem certas formas modernas de mediação, como a escola. Se pararmos para pensar, essa crise começa onde? Por onde a direita começou a construir a sua base? Com o movimento Escola Sem Partido. Não sabíamos ainda, mas era a primeira frente de ataque. Havia também as histórias "politicamente incorretas" que vieram antes, que foram formando em setores da classe média uma perspectiva revisionista e, eventualmente, negacionista da história. Era fundamental desqualificar o nosso maior mediador do conhecimento histórico, que é o professor e a professora do ensino básico. Depois vieram os ataques ao professor universitário, até chegarmos, na pandemia, em que nem a ciência estabelecida, nem a ciência médica, resistiu aos ataques à autoridade do especialista.

Um dos processos mais interessantes para vermos a historicidade atualista do populismo bolsonarista em ação foi a sucessão de secretários de cultura, começando com Alvim, depois por episódios grotescos envolvendo Regina Duarte, mas não vou repetir as análises aqui, vocês estão bem familiarizados. Esses casos demonstram que a ideia de que essas pessoas estão usando a história, usando o passado, precisa ser temperada pela ideia também de que a dissolução das condições de compreensão histórica nos torna vítimas da nossa história. O episódio Regina Duarte mostra que mais do que usar a história, ela foi usada pela história. Ela não conseguia separar seu corpo da experiência da ditadura. Quando cantarolava naquela entrevista, onde estava visivelmente estressada após sair de uma reunião com Bolsonaro, uma das músicas-símbolo da propaganda cívico-ufanista da ditadura, Regina Duarte performa a música de tal maneira que é difícil separar no seu discurso o que era a desinformação da Covid e o que era a propaganda do governo militar. A agitação, a dispersão que a cultura histórica fragmentada do bolsonarismo produz torna também essas pessoas cada vez mais vítimas das suas próprias histórias. Falamos muito de racismo estrutural, mas há várias estruturas na história mal conhecidas que vão impedindo que possamos nos abrir para novos futuros, que possamos ampliar o nosso espaço de liberdade. Vamos nos tornando, então, uma vítima de algumas de nossas histórias que passam a funcionar mais como mitos.

 

E a Anpuh, heim?

Chegamos no momento mais importante dessa nossa conversa, que com muita liberdade dá para chamar de conferência, em que descrevo toda essa conjuntura muito animada em que vivemos. Tenho evitado usar a palavra crise porque ela acaba perdendo um pouco a sua força, mas certamente é uma conjuntura que lembra a conjuntura da Independência, que era marcada por uma guerra de panfletos, uma ausência de instituições mediadoras, de universidades, escolas básicas, imprensa regulada, mas em que há uma explosão de comunicação. Nós temos de novo uma explosão de informações, novas mídias, uma aceleração dessa comunicação; temos instituições, felizmente, universidades, escolas, projetos, muita esperança. Mas precisamos atualizar essas instituições e essa forma de mediação para poder atuar nesse novo ambiente comunicacional em expansão.

Então eu entro na seção da minha conversa chamada “e a Anpuh, heim?”. Eu gostaria de fazer um meme sobre isso. O que a Anpuh-Brasil tem feito para enfrentar essa conjuntura? Pelo menos mais recentemente, não abordando toda a história da Anpuh diante desses anos, mas falar dos últimos um ou dois. A crise e a transformação nas estruturas da comunicação é um aspecto que aproxima a atual conjuntura da época da Independência. Embora as diferenças sejam profundas, as disputas pela história continuam a ter enorme centralidade na configuração dos eventos. A Anpuh-Brasil tem sido motivada pela comunidade a estar à altura dessas grandes transformações e ser uma das forças estruturantes no combate por uma nação mais solidária, democrática e justa. Sabemos que a história não é um movimento automático e inevitável, que o passado nos condiciona e limita de muitas formas, mas que a história é maior que as narrativas sobre ela, e que nosso passado é um campo aberto de outras e melhores histórias que podem nos projetar para outros e melhores futuros.

Enfrentando as forças de nosso tempo que pretendem esvaziar e monopolizar o discurso público com suas projeções necrófilas, os profissionais da história estão mais do que nunca engajados em ativar histórias que possam contribuir para boas decisões no presente, e contribuir para um futuro melhor para a maioria dos brasileiros e brasileiras. Na escola básica, nas universidades, nos arquivos e museus, em empresas, nos coletivos e movimentos sociais, nas mais diversas plataformas e formatos, vivemos uma explosão de novas e outras histórias. O momento de hegemonia do novo negacionismo no ambiente de desinformação encontra hoje barreira historiadora em todas as trincheiras. A Anpuh-Brasil está se transformando para ser cada vez mais o espaço de acolhimento e encontro desses mais diversos saberes históricos. Entendemos que esse novo modelo passa pela defesa firme da disciplina e de seus profissionais, o que envolve não apenas o reforço da diferença e autoridade do saber profissional e acadêmico, mas também pelo acolhimento dos demais saberes. Trata-se de somar esforços para um espaço aberto de conversação e diálogo contra as forças e estruturas de segregação e isolamento do capitalismo contemporâneo. Os profissionais da história precisam, mais do que nunca, apostar nas tecnologias de solidariedade, na amplificação da conversação em busca de outras histórias que nos inspirem para boas decisões coletivas.

A luta pelo direito à história na contemporaneidade passa pelo entendimento das novas plataformas e formatos de produção e circulação do saber. A Anpuh-Brasil está na vanguarda da exploração reflexiva dessas novas fronteiras, seja reconhecendo seus protagonistas, seja por ações de história pública, divulgação científica e curadoria de histórias. Queremos não apenas usar, mas também compreender e transformar os novos ambientes e plataformas digitais. Nossas redes sociais tornaram-se um fórum aberto e continuado de conversação da comunidade historiadora entre si e com a sociedade. Seja em debates, mesas redondas, programas gravados regulares, reuniões abertas, ou ações de diversas campanhas, a Anpuh-Brasil oferece hoje um ambiente de conversação sempre atento aos grandes debates e demandas do nosso tempo. Tudo isso ao lado, é claro, da manutenção e fortalecimento dos canais tradicionais de produção e circulação do conhecimento histórico, a exemplo das revistas História Hoje e Revista Brasileira de História.

A pandemia de Covid-19 acelerou a disponibilidade de um ambiente e ferramentas digitais que antes pareciam inacessíveis. A Anpuh-Brasil tem explorado essas oportunidades como forma de tornar mais frequente e regular os encontros de trabalho, as reuniões, os debates internos, seja de sua diretoria ou de inúmeras outras estruturas como os fóruns de pós-graduação, graduação, ensino, de editores, etc. Por outro lado, estamos atentos à necessidade de revalorização da dimensão presencial e analógica de nossas vidas. Sabemos dos riscos de empobrecimento experiencial que a digitalização e virtualização irrestritas podem trazer. Reocupar com nossos corpos os espaços públicos deve ser uma meta urgente. Com seus tutoriais, debates, manifestações em notas, a nossa associação tem atingido um volume de público inédito em sua história. Antes, nossas maiores cifras envolviam os encontros bienais dos importantíssimos Simpósios Nacionais de História, cujas conferências principais atingiam milhares de pessoas. Comunicadores públicos da história possuem hoje iniciativas que chegam a milhões de brasileiros, sejam em canais de vídeo, em plataformas de Podcast, aplicativos de mídia e portais.

Reconhecer e incentivar, estudar e compreender esse novo ambiente é uma tarefa urgente da disciplina, para qual a Anpuh tem colaborado com suas múltiplas iniciativas. Em 19 de agosto de 2022, em parceria com outras associações, foi lançado o Fórum Saberes Históricos. A iniciativa reúne dezenas de associações no campo da história e sua primeira ação foi a construção do selo Saberes Históricos, acompanhado de uma carta compromisso de valores éticos na divulgação histórica para grandes públicos. A professora Angela de Castro Gomes tem representado a Anpuh-Brasil desde os primeiros momentos dessa ampla articulação. A ideia do fórum e do selo é construir um conselho de consultores que vão conceder, ou não, às múltiplas iniciativas de divulgação histórica em meio digital o reconhecimento dessas associações. Em algum momento, quando você entrar no site, vai poder ver algumas iniciativas cadastradas. Haverá uma lista dessas iniciativas com comunidades de associações, que envolve uma dimensão acadêmica, mas também coletivos, outros sujeitos da produção de saberes históricos. Por isso escolhemos o nome “Saberes Históricos”. Entendemos que o reforço da autoridade do historiador passa por um acolhimento franco num espaço de debate com as múltiplas formas de produção de saberes históricos na sociedade contemporânea. Não vamos fazer as pessoas voltarem para suas caixinhas. As pessoas querem produzir histórias, querem falar das suas histórias de múltiplas formas. A comunidade historiadora nunca teve o monopólio do conhecimento histórico e nem queremos ser monopolizadores agora. Mas temos um papel imprescindível, insubstituível na construção desse espaço de diálogo aberto e regulado sobre a história, sobre os saberes históricos que circulam em nossa sociedade.

O lançamento do site e da iniciativa foi talvez a coisa mais importante que surgiu, não apenas na Anpuh, mas nesse universo cada vez mais complexo que é a comunidade historiadora. A dura conjuntura dos últimos anos exigiu que cada vez mais os historiadores e historiadoras estivessem (re)engajados nos debates públicos. Como em outros momentos históricos, precisamos temperar o ethos do pesquisador com o de publicista em defesa da democracia e em combate contra os usos e abusos da história. A Anpuh-Brasil tem acolhido e incentivado esse engajamento público, mas entendemos os limites estruturais representados por uma grande imprensa no Brasil muito pouco comprometida com as pautas democráticas, controladas como são por interesses familiares e corporativos. Entendemos que a associação deve também criar plataformas próprias, em que noticie e vincule a comunidade historiadora. Nesse sentido, lançamos, também no segundo semestre de 2022, o portal História Aberta, que visa aproximar o conhecimento histórico profissional de auditórios mais amplos. Nossa meta é também integrar a comunidade historiadora em torno do debate dos grandes problemas e desafios das sociedades contemporâneas. Assim, queremos estimular e reconhecer a intervenção dos profissionais de história no espaço público e em especial na imprensa escrita, mas também em outras mídias.

Além de reunir algumas ações de comunicação pública da Anpuh-Brasil, o portal pretende acolher outras iniciativas de historiadores e historiadoras em seus diferentes espaços profissionais e que estejam engajados no debate dos grandes problemas de nosso tempo. Mandamos às vezes um artigo para um grande jornal; às vezes publicam e às vezes não. Quando partimos para o enfrentamento político essa grande imprensa fecha as portas. Por isso precisamos usar as novas ferramentas de comunicação para chegar diretamente à sociedade brasileira. Precisamos criar também os nossos grandes veículos de comunicação em tempo real com a comunidade historiadora e com uma base ainda mais ampla.

Brasil Paralelo, Escola Sem Partido, Homeschooling, negacionismos da ditadura e do racismo, a reforma do Ensino Médio, as pautas da diversidade de gênero, do feminismo, são alguns temas que temos continuamente produzido debates e intervenções. Desde o ano passado identificamos a importância da associação se posicionar na luta por comemorações críticas e reflexivas do bicentenário, já sabendo da centralidade que o tema teria na pauta obscurantista. Desde então, desenvolvemos debates, mesas redondas, seminários e ações de história pública como o Blog da Independência que está dentro da aba de história aberta do site, em parceria com a sociedade de estudos dos oitocentos. Também estamos afinados com o portal do bicentenário, iniciativa da Anped e outras associações do campo da educação, voltada para o tema da independência e dos duzentos anos nas salas de aula do ensino básico. No encontro da SBPC que aconteceu a duas semanas atrás, dedicada ao tema do bicentenário, a Anpuh teve uma participação significativa e vigorosa. Coordenamos o grupo de trabalho criado para esse fim naquela federação de associações. Ainda este ano, promovido pela SBPC e coordenado pela Anpuh, lançaremos o calendário colaborativo das independências que vai reunir e agrupar em formato online as mais diversas iniciativas de comemorações democráticas dos duzentos anos, que irão continuar até dia 23 e 24.

Em um debate recente no qual participei ao lado de alguns colegas de disciplinas irmãs, um deles comentou como eu havia dado um salto do século XIX ao XXI em uma mesma fala, de maneira tão abrupta. Não me surpreendeu o uso, de resto, muito disseminado, das metáforas geométricas para se referir ao tempo histórico. Mas para historiadores formados por Braudel e Koselleck, esses supostos saltos não nos causam vertigem. Temos hoje metáforas mais complexas para nos ajudar a pensar as distâncias. Para os meus estudantes, em minhas aulas, gosto de nos imaginar como seres mais ou menos à deriva, uma metáfora muito antiga, clássica. Quando olhamos para cima e vemos as estrelas, nelas buscamos referências e localização. É o passado que nos chega e envolve. A jangada que nos sustenta em sua instabilidade é o presente. O futuro são as profundezas do mar, para qual lançamos âncoras, sondas, mas no qual precisamos seguir, à luz sempre instável das estrelas. Assim, encapsulados entre água, terra e céu, futuro presente e passado, existimos. Não deixemos nunca de olhar para cima, para o passado. Não deixemos nunca de olhar para esse espaço instável e vivo que é o passado, ele é parte insubstituível da história, mas não toda ela.

Por fim, que história enviar ao futuro? A de uma independência que precise ser essa decisão de viver juntos, em um tempo coletivo. A decisão de entretecer histórias que possam ser nossas, não como a formação de uma identidade única, mas como cultivo permanente do desejo de partilhar e acolher nossas diferenças.

 

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Recebido em 10/12/2022.

Aceito em 10/01/2023.



[1] Conferência proferida no encontro estadual de história da Anpuh-SC em 22 de agosto de 2022.

[2] Professor associado do departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Brasil. Atualmente é presidente da Anpuh-Brasil. E-mail: valdei354@gmail.com | https://orcid.org/0000-0001-8913-2509

[3] Muito do que vou falar aqui está reunido em quatro livros, que foram publicados desde 2018: Atualismo 2.0., do Fake ao Fato (que é uma coletânea), Almanaque da Covid-19, sendo este filho da pandemia, um relato a partir de uma perspectiva muito própria de uma história do tempo presente; e Bolsotrump: realidades paralelas, um pouco mais recente, publicado inclusive em coautoria com o professor Walderez Ramalho, sobre a derrota de Trump na eleição norte-americana e no que a experiência da eleição norte-americana poderia nos ajudar para sobreviver à realidade que estamos vivenciando agora.