A permanência da colonialidade: violações contra os Kaingang da Terra Indígena de Mangueirinha – PR (1949-1988)

The permanence of coloniality: violations against the Kaingang of the Indigenous Land of Mangueirinha – PR (1949-1988)

                                                                                             

 Eduarda Bertuol[1]

Émerson Neves da Silva[2]

 

 


Resumo

O objetivo deste artigo é discutir a permanência da violência contra os Kaingang da Terra Indígena de Mangueirinha[3] que perpassa a ação do Estado e dos órgãos indigenistas, relacionando-a com a colonialidade do poder. A partir da análise de documentos, concluiu-se que há uma permanência nas violações contra os povos indígenas no Brasil a contar da colonização do território americano até a atualidade, por meio da Colonialidade do Poder. Essa violência deu-se em Mangueirinha, desde a demarcação e redução da terra até a atuação do SPI e a Funai, os órgãos tutelares, que muitas vezes, permitiram e até reproduziram essas violações.

Palavras-chave: Colonialidade do Poder; Kaingang; Terra Indígena Mangueirinha.

 

Abstract

The objective of this article is to discuss the permanence of violence against the Kaingang of the Indigenous Land of Mangueirinha that pervades the action of the State and indigenist bodies, relating it to the coloniality of power. From the analysis of documents, it was concluded that there is a permanence in violations against indigenous peoples in Brazil from the colonization of the American territory to the present day, through the Coloniality of Power. This violence took place in Mangueirinha, since the demarcation and reduction of the land and permeates the actions of the SPI and Funai, that is, the tutelary bodies, which many times allowed and even reproduced these violations.

Keywords: Coloniality of Power; Kaingang; Mangueirinha Indigenous Land.


 

 

 

 

 

 

Introdução

Atualmente na Região Sudoeste do estado do Paraná[4], existem duas áreas indígenas devidamente demarcadas, sendo a Terra Indígena Palmas composta pela etnia Kaingang e com um total de quatro mil hectares, e a Terra Indígena de Mangueirinha, constituída pelas etnias Kaingang e Guarani, que representa um total de dezesseis mil hectares de terra demarcada.

No entanto, na TI Mangueirinha ocorreram problemas em relação aos limites do território, ocasionados por um acordo firmado em 1949 que reduziu terras indígenas no Paraná. Na história do povoamento do Paraná consta que indígenas passaram a se refugiar das investidas dos primeiros colonizadores nos campos de Palmas. Na segunda metade do século XIX, há a instalação da Colônia Militar do Chopim na região, criada por decreto em 1859 e fundada em 1882. Em reconhecimento aos serviços prestados pelos índios Kaingang, chefiados pelo cacique Antonio Joaquim Cretãn, na implantação dessa Colônia, o Governo do Paraná reservou uma área de terra a esses indígenas por meio do decreto nº 64 de 2 de março de 1903, com um total de 17.810 hectares.

Nessa sequência, em 18 de maio de 1949 firmou-se um acordo entre o então governador do Paraná e o Ministro da Agricultura, que ao afirmar que as terras indígenas no Paraná estavam irregulares, estabelecia critérios para sua reestruturação, sendo seu objetivo a regularização dessas terras[5]. Com isso, esse acordo retirou parte do território até então destinado aos Kaingang pelo Decreto de 1903 (Novak; Mota, 2016).

Diante do exposto, ressalta-se que o objetivo deste artigo é discutir a permanência da violência contra os Kaingang de Mangueirinha, agravada após a retirada de terras segundo o acordo de 1949, que perpassam a ação do Estado e dos órgãos indigenistas, relacionando-a com a colonialidade do poder. Para isso, primeiro será apresentada discussão sobre a colonialidade, em seguida o histórico de formação da Terra Indígena Mangueirinha e, por fim, as violências constatadas entre 1949 e 1988[6].

 

 

Colonialismo e Colonialidade na América Latina

Segundo Quijano (2005, p. 117), “A globalização é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial”. Para ele, isso só se tornou possível pela classificação social da população mundial em raças baseada no eurocentrismo. Desse modo, a identidade da Europa se consolidou a partir da classificação homogeneizadora dos outros povos colonizados como negros e índios, ou seja, como não europeus.

Ainda segundo o mesmo autor, a América é o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder mundial, sendo a primeira identidade da modernidade. Isso foi possível por meio da diferenciação entre colonizadores e colonizados, através da implantação e da classificação da população, sobretudo ao considerar a ideia de raça (em que essa estabeleceria biologicamente diferenças entre seres inferiores e superiores, em que uns sempre seriam naturalmente inferiores), além do controle do trabalho e seus recursos e produtos. Essas foram as formas básicas para as relações de dominação, ao passo que a utilização da categoria de raça foi um modo de legitimar a dominação europeia sobre os outros povos (Quijano, 2005).

Dessa forma, a Europa conseguiu impor seu domínio colonial sobre os outros povos, primeiramente expropriando desses o que beneficiava o capitalismo e ela própria. Ademais, contou com uma forte repressão dos conhecimentos dos povos colonizados no que diz respeito ao universo simbólico, padrões de expressão e a subjetividade e, por último, fizeram os colonizados aprenderem parte da cultura dos dominadores. Nesse sentido, para Quijano (2005, p. 121)

Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura.

 

À vista disso, a categorização dos povos colonizados em raças, que reduziu esses povos culturalmente diferentes em uma só identidade, como negros e índios, resultou não só no despojamento das suas identidades históricas como também do seu lugar na história e da sua produção cultural, caracterizando-os como não europeus e a partir das concepções do evolucionismo e dualismo como o passado, inferior e primitivo. Isto posto, desenvolve-se também a colonialidade do ser, por meio da desqualificação do indígena como um ser, como uma cultura e um elemento étnico. Consequentemente, esse processo firmou-se não só pelo espólio da terra, mas também o espólio da cultura, da língua, do modo de vida indígena e do ser indígena (Quijano, 2005).

As diferenças fenotípicas entre os vencedores e os vencidos foram utilizadas para justificar a produção da categoria de raça. A produção dessa categoria foi importante e significou seu estabelecimento e sua reprodução como forma básica de classificação societal do capitalismo mundial. Assim, estabeleceu-se enquanto fundamento para as novas identidades e em suas relações de poder no mundo, além de produzir novas relações de dominação e a imposição de uma perspectiva de conhecimento tida como a única racional (Quijano, 2009).

Seguindo esta linha de pensamento, a racialização das relações do poder foi o que legitimou e sustentou, de forma material e intersubjetiva, o padrão de poder eurocentrado, baseado na ideia da centralidade da Europa no padrão do poder capitalista e colonial/moderno. Segundo o autor:

1) O que começou na América foi mundialmente imposto. A população de todo o mundo foi classificada, antes de mais, em identidades ‘raciais’ e dividida entre os dominantes /superiores ‘europeus’ e os dominados/inferiores ‘não-europeus’.

2) As diferenças fenotípicas foram usadas, definidas, como expressão externa das diferenças ‘raciais’. Num primeiro período, principalmente a ‘cor’ da pele e do cabelo e a forma e cor dos olhos. Mais tarde, nos séculos XIX e XX, também outros traços, como a forma da cara, o tamanho do crânio, a forma e o tamanho do nariz.

3) A ‘cor’ da pele foi definida como marca ‘racial’ diferencial mais significativa, por ser mais visível, entre os dominantes/superiores ou ‘europeus’, de um lado, e o conjunto dos dominados/inferiores ‘não-europeus’, do outro.

4) Desse modo, adjudicou-se aos dominadores/superiores ‘europeus’ o atributo de ‘raça branca’ e a todos os dominados/inferiores ‘não-europeus’ o atributo de ‘raças de cor’. A escala de gradação entre o ’branco’ da ‘raça branca’ e cada uma das outras ‘cores’ da pele, foi assumida como uma gradação entre o superior e o inferior na classificação social ‘racial’ (Quijano, 2009, p. 107-108).

 

Cabe citar Boaventura de Souza Santos que também discute a modernidade e o colonialismo. Para o autor, o pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal, o qual estaria ligado a distinções visíveis e invisíveis que dividem o universo social em dois: “este lado da linha” (europeu) e “do outro lado da linha” (a não Europa). Isso significa dizer que o “outro lado da linha” não é considerado, ou seja, é inexistente por não ser considerado relevante ou compreendido. Dessa maneira, se a modernidade ocidental é formada pelo paradigma da tensão entre a regulação e emancipação social, esse sistema se funda na distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais. Em outras palavras, entre centro e periferia a dicotomia regulação/emancipação social só se aplicaria às sociedades metropolitanas, pertencentes ao centro, enquanto nos territórios coloniais, a periferia, “do outro lado da linha”, será aplicada a dicotomia apropriação/violência (Santos, 2009).

A respeito da apropriação e violência na linha abissal descrita por Santos, nota-se que:

[...] a apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material, cultural e humana. Na prática, é profunda a interligação entre a apropriação e a violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a violência é exercida através da proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, da adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos e lugares de culto, e de todas as formas de discriminação cultural e racial (Santos, 2009, p. 29-30).

 

Em face desta divisão que Santos faz, é possível perceber como o conhecimento dos grupos pertencentes ao território colonial foram negligenciados, visto que não fazem nem parte do que é falso ou verdadeiro, mas sim do que não existe. O colonialismo, além de tantas outras violências, também despojou os grupos colonizados/dominados, que se encontram “do outro lado da linha”, do seu conhecimento, uma ação cunhada pelo próprio autor como sendo um epistemicídio.

Sendo assim, a ignorância máxima e a negação da existência de outros conhecimentos, sendo chamado de fascismo epistemológico por levar à destruição de outros saberes, existiriam a partir do epistemicídio, que através do colonialismo europeu, tentou de várias formas converter e suprimir os conhecimentos não ocidentais (Santos, 2009).

Com o estabelecimento da repressão em relação às crenças, ideias, imagens, símbolos e conhecimento das raças dominadas e a imposição dos padrões dos dominantes pelo colonialismo, como padrões de expressão e crenças, foi possível a dominação colonial em nível global. Esse processo mesmo de imposição de padrões foi importante na tentativa de impedir a reprodução cultural dos povos e um eficaz meio de controle social e cultural mesmo depois do fim da repressão constante, sistemática e direta. Assim, para Quijano:

En efecto, si se observan las lineas principales de la explotacion y de la dominación social a escala global, las líneas matrices del poder mundial actual, su distribución de recursos y de trabajo entre la población del mundo, es imposible no ver que la vasta mayoría de los explotados, de los dominados, de los discriminados, son exactamente los miembros de las "razas", de 1as "etnias", o de las "naciones" en que fueron categorizadas las poblaciones colonizadas, en el proceso de fonnación de ese poder mundial, desde la conquista de America en adelante (Quijano, 1992, p. 12).

 

Mediante essa construção teórica de Quijano e o seu conceito de colonialidade do poder, visualizam-se as ações e a forma com que o Estado age em relação às populações categorizadas com base no conceito de raça, aqui especificamente os indígenas. Esses conceitos são imprescindíveis nesse trabalho para a análise e compreensão de como se articularam os processos, por meio do Estado, em que foi possível a grilagem de terras indígenas no Paraná.

 

 Formação da Terra Indígena de Mangueirinha

 

A localização atual da Terra Indígena Mangueirinha, situada no Sudoeste do estado do Paraná, pode ser observada no mapa abaixo. Nesse subitem, será analisado como o território foi historicamente demarcado e remarcado a partir da ação do Estado[7].

Figura 1: Mapa Localização da Terra Indígena de Mangueirinha (Paraná)

Diagrama, Mapa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Mapa elaborado por Fábio Araújo (2022), acervo pessoal.

Para Mota (2008), enquanto no final do século XVIII o governo realizava muitas expedições militares ao território paranaense, no início do século XIX o governo imperial estava preocupado com a “desocupação” desses territórios. Evidentemente, quando da conquista dos Campos de Guarapuava, a expansão aos territórios do interior paranaense não era vista como sendo a conquista de terras indígenas, mas sim como uma disputa por terras com os espanhóis, não sobrando espaço, nesse esquema, para considerar a intensa ocupação indígena existente nem o direito de posse ao território (Tommasino, 1995; Almeida, 2013; Weigert, 2020). Na primeira metade do século XIX, o governo leva a cabo a colonização dos Campos de Guarapuava e Palmas, no Paraná.[8] 

A expansão da colonização sobre os Campos de Guarapuava e Palmas, sendo estes territórios dos Kaingang no Paraná destruiu as florestas, alterou profundamente os espaços, física e simbolicamente, à medida que expropriou seus territórios, além de restringir a mínimos espaços. Essa relação com a colonização afetou completamente a vida dos Kaingang. O avanço sobre seus territórios, que diminuiu drasticamente esses, fez com que grupos Kaingang resistissem fortemente por mais de séculos à investida colonizadora. Essa resistência retardou, conseguindo conter por certo tempo, a expropriação de seus territórios e a perca de autonomia dos grupos.

Dos indígenas que habitavam a região dos Campos, pequena parte ficou estabelecido no aldeamento de Guarapuava. Nesse momento, em razão da imposição da catequese, das doenças e das rivalidades entre chefes, os Kaingangs que não fizeram alianças com os não indígenas, nem permaneceram no aldeamento, se interiorizaram para outras regiões. Nas conclusões do seu estudo antropológico, Helm afirma que os Kaingangs que se retiraram de Guarapuava e Palmas “foram ocupar as terras e matas situadas nas proximidades do Covó, do Chopim e do Iguaçu” (Helm, 1996, p. 15).

Por outro lado, em 1959 são criadas, através do Decreto nº 2.502 de 16 de novembro, as Colônias Militares do Chopim e de Chapecó, segundo o qual: “Crea mais duas colonias militares na Provincia do Paraná ao occidente dos rios Chapecó e Chopim, nos pontos que forem designados pelo Presidente da Provincia” (Brasil Império, 1859). O Art. 2º das instruções para a fundação das colônias, contidos nesse decreto, expressa os objetivos dessas instituições: “Art. 2º Estas colonias são destinadas á defesa da fronteira, á protecção dos habitantes dos Campos de Palma, Erê, Xagú e Guarapuava, contra a incursão dos Indios, e a chamar os ditos indios, com auxilio da catechese á civilisação” (Brasil Império, 1859). Neste trecho, percebe-se que uma das intencionalidades do governo ao criar essas instituições na região era controlar os grupos indígenas, agrupando-os.

A comissão nomeada para conhecer o território e fundar a Colônia Militar do Chopim em local mais apropriado, que se movimentou pela localidade por cerca de um ano, utilizou o serviço de indígenas tanto enquanto guias quanto como mão de obra para a abertura das estradas. Nesse viés, “Na abertura de estradas os índios, conhecedores da região, foram exímios no corte do mato. Abertos os caminhos começaram a chegar povoadores não índios que se instalaram nas proximidades do Chopim” (Helm, 1996, p. 6). Segundo a autora, os indígenas da região até a instalação da Colônia, viveram nas matas do Sudoeste do Paraná de acordo com seus hábitos e costumes. Essa situação mudou, pois “Com a instalação da Colônia ficaram rodeados pelas propriedades dos novos povoadores, que se estabeleceram nas imediações do Chopim” (1996, p. 10).

Os grupos indígenas daquela área, que haviam resistido de várias formas até o século XIX às frentes de colonização, agora se viam cercados pela expansão da colonização em seus territórios, sendo solicitados para a abertura de estradas e prestação de serviços para a instalação da Colônia. Nesse sentido, “Segundo a memória histórico-oral dos índios muitos deles foram utilizados como batedores, guias e mão-de-obra para a abertura de estradas e carregamento dos apetrechos militares do Batalhão sediado em ‘Chopim’.” (Lombardi, Nakamura, 1981, p. 52).

Em virtude dos serviços prestados, os Kaingang chefiados pelo cacique Antonio -Joaquim Cretãn não aceitaram pagamento em papel moeda, por alegarem que aquele território pertencia ao seu grupo. Por conta disso, foi então reservada pelo Governo, uma área de terras para esse grupo no Aldeamento Lageado Grande, por meio da Lei nº 68, de 20 de dezembro de 1892 (Helm, 1996; Laroque, 2007; Pires, Ramos, 1980).

Para Maria Ligia Moura Pires e Alcida Rita Ramos (1980), a instalação da Colônia Militar sob o pretexto de defesa da população contra possíveis ataques indígenas, na verdade corresponde aos interesses expansionistas do império brasileiro.

Já em 1903, o estado do Paraná, através do decreto nº 64, de 2 de março, reserva para o grupo chefiado pelo cacique Antonio Joaquim Cretãn, uma área de terras perto da cabeceira do ribeirão Lageado Grande. Esse decreto, partindo da lei de 1892, estabelece sob o domínio do grupo de Cretãn, uma área de terra compreendida desde a cabeceira do ribeirão do Lageado Grande à cabeceira do ribeirão Palmeirinha e por estes dois rios, abaixo até ao Iguaçu. Segundo Lombardi e Nakamura (1981), com o decreto de 1903, a Terra Indígena compreendia uma área de 17.780 ha.

Contudo, para Laroque (2007), o estabelecimento de reserva para o grupo de Cretãn, se relacionaria à uma questão de fronteira. Em consonância ao pesquisador, ainda permanecia indecisões sobre a fronteira entre os estados do Paraná e Santa Catarina, o que deveria ser resolvido entre esses dois estados. Com isso, o decreto de 1903 então se enquadraria dentro de medidas realizadas pelo Governador do Paraná, Francisco Xavier da Silva, para concentrar os indígenas da região em áreas definidas a fim de demonstrar ocupação e exploração econômica da área em litígio (Laroque, 2007). À vista disso, o governo do estado reservou terras com o discurso de possibilitar a estabilidade dos grupos indígenas e para que se dedicassem à produção agrícola, tendo a convicção de que, a partir de um pedaço de terra, esses grupos deixariam seu modo, considerado pelo Estado na época, “atrasado” e “evoluiriam” até os modelos da sociedade envolvente[9] (Novak, 2006).

Todavia, Novak enfatiza que “[...] [a] política de reservar terras às populações indígenas não pode ser vista simplesmente como algo imposto e pré-determinado pelo governo”. Desse modo, se foram reservadas terras para esses grupos há indicação de que resistiram contra o extermínio, criando mecanismos para a preservação do grupo, além de se relacionar com o governo e reivindicar a favor dos seus interesses (Novak, 2006, p. 180).

Para Laroque, as ações de aliança realizadas pelos Kaingang, não significam que esse grupo estava cooptado pelo Estado brasileiro, mas que por não poder evitar o rápido aumento de brancos em seu território, agiram de forma a preservar o grupo e o próprio território. De acordo com o autor, o grupo só aceitaria se instalar no Aldeamento Lageado Grande, a partir do decreto, porque foram concedidas moradias e possivelmente ferramentas e sementes (Laroque, 2007).

 

Atuação do SPI e da FUNAI frente à comunidade de Mangueirinha

Conforme discutido no início deste trabalho, a América Latina constitui-se pela expansão do Capitalismo Europeu, baseada na tentativa de subjugação dos grupos étnicos originários. A colonização promoveu uma série de violências e exploração das populações indígenas, como extermínio em massa de grupos étnicos, expropriação de territórios, escravização e utilização de mão-de-obra indígena, epistemicídio e subjugação dos conhecimentos e saberes indígenas. Apesar disso, mesmo com o fim do colonialismo direto e a formação do Brasil enquanto país independente, nota-se a permanência em ações e políticas violentas em relação a esses grupos, mesmo que de forma mais velada. Nessa perspectiva, analisaremos a criação do SPI e da Funai[10] enquanto instrumentos de reprodução dessa experiência histórica de dominação das elites e do Estado sobre essas populações indígenas no Brasil. Esses dois órgãos, como veremos, se fundaram e atuaram com objetivos ligados aos ideais de desenvolvimento e integração do território nacional em detrimento dos povos indígenas, atuando, por vezes, por meio de práticas violentas na sua relação com esses povos, perpetuando a colonialidade do poder.

Em 1910, o Decreto de nº 8.072 cria o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), durante o governo do Presidente Nilo Peçanha. Inicialmente tinha por objetivo tanto prestar assistência aos grupos indígenas quanto aos trabalhadores rurais, mediante subordinação ao Ministério da Agricultura. Já a partir de 1918, o órgão passa a se chamar apenas Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e passa a orientar-se apenas para a questão indígena. Para Ellen Vieira Santos (2016), o SPI foi criado mediante a lógica republicana, orientado no positivismo, em prol da ruptura com o posicionamento clerical, oligárquico e escravocrata. Dessa forma, as teorias evolucionistas europeias tiveram influência no Brasil no século XIX e no pensamento dos militares e intelectuais durante o início do período republicano. Com base nisso, na época da criação do SPI havia o interesse na criação de um órgão que protegesse os indígenas contra o extermínio, não sendo por meio da catequese, pois se acreditava que a “evolução” das sociedades nomeadas como “atrasadas” seria algo inevitável (Santos, 2016).

Em razão do exposto, é possível perceber como, mesmo com o objetivo de criar um órgão de proteção aos grupos indígenas, há permanência na visão evolucionista importada da Europa que concebe o indígena como alguém em “estado de natureza”, “atrasado” em relação à sociedade moderna, sendo preciso a sua “evolução”. O indígena é visto, no meio do processo de expansão agrícola que o Brasil passa no início do século XX, como um obstáculo ao ideal de desenvolvimento e integração do país, o que implica a necessidade da criação de um órgão que “resolva esse problema”. Isso se torna explicito quando o SPI, no momento de sua criação, é subordinado ao Ministério da Agricultura e pretende assistir não só os indígenas, como também os trabalhadores rurais.

Mesmo com algumas reformulações, envolvendo trocas ministeriais e de regulamentos, Lima (1992) frisa que durante todo o período de atuação do Serviço o que permaneceu foi a intenção em transformar os indígenas em pequenos trabalhadores rurais que seriam capazes, futuramente, de se autossustentar, tendo relevância nos encaminhamentos da política indigenista do SPI a ideia de transitoriedade do nativo. Nesse sentido, a partir da pacificação pregada por Rondon e colocada em prática pelo quadro de pessoal do SPI: “Realizar-se-ia o duplo movimento de conhecimento-apossamento dos espaços grafados como desconhecidos nos mapas da época, e a transformação do índio em trabalhador nacional” (LIMA, 1992, p. 161).

A atuação do SPILTN (que após 1918 tornou-se apenas SPI) se fundamentou em uma concepção evolucionista em relação aos povos indígenas brasileiros, compreendendo que, por meio da proteção do Estado aos grupos e seus territórios, eles “evoluiriam” ao receber os benefícios da “civilização”. Apoiado nessa concepção evolucionista e positivista, “[...] o Estado defendia a ideia de que os povos indígenas não eram índios, somente estavam índios; como ser indígena, fosse algo passageiro ou transitório no estágio da evolução” (Barbosa, 2016, p. 33). Essa noção previa que, ao longo de um período, os indígenas evoluiriam e seriam incorporados à sociedade nacional civilizada, visto que se transformariam em trabalhadores rurais e vigilantes da fronteira.

O poder tutelar do Estado, fundamentado nas ações do SPI, utilizou de muitas práticas violentas para com os povos indígenas, o que foi extensamente exposto pelo Relatório Figueiredo e denunciado por indigenistas e funcionários. No entanto, além dessa violência física direta, o que se estabeleceu nesse momento foi uma tentativa de subjugação dos grupos indígenas que, mediante a imposição da categorização de raça de acordo com Quijano, foram compreendidos como um grupo homogêneo de pessoas que, considerados inferiores, estavam em transitoriedade. Desse modo, desconsiderou a cultura, os costumes, territorialidades e propriamente a diversidade étnica dos povos indígenas, atuando de forma unilateral.

É possível perceber aqui como se estabeleceram as relações de poder do Estado frente aos povos indígenas na República. A ideia de integração do indígena à sociedade nacional transparece a inferiorização, subjugação e não consideração da cultura desses grupos étnicos enquanto válidos. Diante disso, a cultura “branca” é considerada a única válida e possível, o ponto de chegada que os povos indígenas devem atingir, enquanto o conjunto de saberes, práticas e culturas indígenas eram condenadas à extinção. É pautada nessa relação de colonialidade que permanece, desde o período colonial, a visão da superioridade de uma raça em relação à outra. Com isso, se por um lado deixa de haver um extermínio aberto e sistemático das populações indígenas pela inviabilidade causada pela exposição e pressão de setores da sociedade nacional e internacional, por outro lado, há a pretensão de destruição dos grupos indígenas enquanto comunidades étnicas.

Na década de 1960, em nível nacional, ocorreu uma grande exposição da situação em que viviam os povos indígenas e das violações que enfrentavam nos últimos anos. Por conta disso, formou-se uma comissão de Inquérito pela Portaria nº 239/67 do Ministério do Interior, presidida pelo então Procurador Federal Jader de Figueiredo Correa, que investigava a exploração e a violência sofrida pelos indígenas por agentes públicos e privados. Em 1968, Figueiredo apresentou os resultados da investigação realizada. O chamado Relatório Figueiredo conta com 30 volumes e mais de 7.000 páginas repletas de provas de violência extrema aos povos indígenas tanto por empresas privadas quanto pelo próprio SPI, que teve grande repercussão internacional (Resende, 2015). 

Esse Relatório retrata de modo abrangente a situação do SPI e as atrocidades cometidas por esse órgão. De acordo com o Relatório Figueiredo, “O índio, razão de ser do SPI, tornou-se vítima de verdadeiros celerados, que lhe impuseram um regime de escravidão e lhe negaram um mínimo de condições de vida compatível com a dignidade da pessoa humana” (Relatório, 1968, fl. 4.912).

As violências constatadas pela Comissão não foram apenas de forma direta e física, pois também se apresentaram como consequência da exploração e apropriação do patrimônio indígena, visto que “A crueldade para com o indígena só era suplantada pela ganância. No primeiro caso, nem todos incorreram nos delitos de maus tratos aos índios, mas raros escaparam dos crimes de desvio, e apropriação ou de dilapidação do patrimônio indígena” (Relatório, 1968, FL. 4.914).

Enquanto isso, no ano de 1967 realizou-se a extinção do SPI e a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), novo órgão indigenista. A Funai foi criada menos em razão da exploração realizada pelo SPI e mais para mudar o pensamento negativo popular e da imprensa nacional e internacional sobre o tratamento com os povos indígenas pelo governo brasileiro. Com isso, os militares conseguiram dar uma aparência positiva e de confiança ao “novo” órgão criado, de maneira que reverteram o aspecto negativo que tinha se firmado com a exposição da violência e corrupção do SPI (Barbosa, 2016).

Após a criação da Funai, sob o pretexto de melhoria das condições de vida dos povos indígenas, há uma maior exploração das terras e do patrimônio indígena. Nesse sentido, a Funai vai melhorar o sistema de exploração do patrimônio indígena, por ela vista como não gerenciado com tanto controle e cuidado pelo antigo SPI, firmando-se com um caráter empresarial. O novo órgão chega a criar o Departamento Geral do Patrimônio Indígena (DGPI), que representou tanto o aumento do controle como também a utilização de tecnologia e equipamentos modernos nos Postos Indígenas. Em conjunto com essa visão empresarial, a Funai instituiu o objetivo de tornar os Postos Indígenas autossuficientes economicamente (Brighenti, 2012).

Muitas denúncias foram realizadas pelos indígenas e por órgãos de apoio a esses no que confere à atuação do SPI até o ano de 1967 e da Funai, que atua a partir desta data. Em função disso, será destacado sobre esse tema as acusações ao SPI trazidas pelo Relatório Figueiredo, em específico, em relação à Terra Indígena Mangueirinha (na época com o nome de PI Cacique Capanema), bem como denúncias da atuação da Funai iniciadas em 1967, realizadas pelos Kaingang e Guaranis de Mangueirinha.

O Relatório Figueiredo traz importantes informações acerca da situação de vários Postos Indígenas espalhados pelo Brasil. Em relação ao P.I. Cacique Capanema[11], frisa-se que foram indiciados como infratores, Dival José de Souza, por ter realizado a venda de madeira serrada no P.I. e por ter feito a liberação de tábuas e toros já serrados à Serraria Reunidas Irmãos Fernandes após a paralisação desta, e Durval Antunes Machado, acusado de atrocidades contra os indígenas de Mangueirinha e Guarita. Conforme retrata o termo de inquirição de Samuel Brasil, datado de 04 de novembro de 1967, verifica-se “[...] que Durval Antunes Machado também praticou muitas atrocidades contra índios em Mangueirinha e Guarita [...]” (Relatório, 1968, fl. 1720).

Há relatos ainda, coletados por Maria Cecília Helm em suas pesquisas na TI, de repressão realizada por agentes do SPI quando alguns indígenas contestavam a atuação do órgão. Ademais, durante a atuação da Funai na década de 1970 registraram-se relatos[12] de abuso de poder e repressão dos Chefes de Posto para com os indígenas da área, fazendo com que muitos fossem transferidos ou decidissem fugir para outros Postos Indígenas:

Esses contratos só deixaram de ser renovados em 1970, com a chegada de um Chefe de Posto que pretendia implantar na reserva um projeto agrícola. Durante a implantação desse projeto, os índios foram obrigados, sob ameaça de uso de força, a trabalhar em lavouras coletivas que acabaram fracassando. Seguiu-se um período de fome e penúria que, aliado ao clima de violência e insegurança criado por esse Chefe de Posto, levou quarenta das cinquenta e quatro famílias Kaingang, aí residentes, a abandonar a reserva, fugindo ou sendo transferidas para outros postos, sob o pretexto de ‘perturbação da ordem e rebeldia’. Para quem conhece o apego dos Kaingang à sua terra de origem, o fato de que esse número de famílias saíram de suas terras é realmente impressionante (Ramos; Pires, 1980, p. 198).

 

Além do exposto, segundo Alcida Rita Ramos e Maria Lígia Moura Pires, a atuação desse Chefe ainda está na memória dos Kaingang e Guarani da TI, dado que “Esse Chefe de Posto marcou tanto a sua presença, ainda que negativamente, na área, que, até hoje, os Kaingang, traumatizados pela experiência, divide o tempo em antes, durante e depois da época do tenente” (Ramos; Pires, 1980, p. 231).

Na visão de Ramos e Pires, em relação à atuação da Funai na área indígena, a autoridade exercida realiza-se tanto na esfera econômica quanto política. Isso se expressa, por exemplo, pela proibição dos indígenas de cortarem os pinheiros da área, quando a própria serraria do órgão o faz, além do controle sobre a saída dos nativos do Posto, que deve ser autorizado pelo Chefe do Posto e a escolha do cacique que, muitas vezes, é realizado pelo Chefe e sem consulta à comunidade. No tocante a proibição no corte de madeira:

Não só o pinheiro, mas qualquer outra madeira de lei faz parte do patrimônio do DGPI e, portanto, não pode ser tocada pelo índio. Esse monopólio chega a ponto de proibir os índios de vender pinhão e erva-mate, pois estes produtos são também patrimônio do DGPI, e de se decidir sobre a instalação – planejada pelo DGPI – de uma serraria na reserva, contra a vontade dos índios (Ramos; Pires, 1980, p. 201).

 

No que diz respeito ao controle da entrada e saída dos indígenas nos Postos, salienta-se que:

A FUNAI controla a saída dos índios do Posto, através de um mecanismo conhecido como ‘portaria’, que é a autorização concedida pelo Chefe do Posto que permite aos índios se ausentar da reserva. Teoricamente a ‘portaria’ destina-se a proteger o índio quando em viagem. Se algo acontecer, o Chefe do Posto ou mesmo a sede da delegacia regional da FUNAI poderão ser avisados. Na prática, porém, ela se transforma em instrumento de virtual controle das idas e vindas dos índios (Ramos; Pires, 1980, p. 201-202).

 

Cabe mencionar ainda que o Jornal Diário do Paraná publicou matéria em 6 de junho de 1982, intitulada “Índios fazem denúncias da Funai”, com o intuito de relatar sobre o encontro para a criação e formação da União das Nações Indígenas, realizado em Brasília, do qual participou cacique Kaingang de Mangueirinha, Francisco dos Santos. Esse cacique denunciou a atuação da Funai na reserva, ao enfatizar que “[...] a Funai atua como tutor dos índios. Mas, é como o pai que explora o filho, fazendo com este filho trabalhe. Todo o dinheiro arrecadado, o pai leva para a cidade, onde é gasto, sem que o filho tenha participação” (Diário do Paraná, 1982). Além deste feito, Francisco denunciou também a destruição do patrimônio indígena, proibição do corte de madeira pelos indígenas da área e o controle da saída do Posto.

É possível perceber que o poder tutelar sobre os povos indígenas se pautou nos interesses do Estado, especialmente ao envolver questões relacionadas à integração e desenvolvimento da sociedade nacional. A ação do Estado, por meio do SPI e da Funai, legitimadas pela própria sociedade nacional, transpareceu um caráter empresarial que, por vezes, continuou e aumentou a exploração das populações indígenas, permanecendo na subjugação desses povos e no objetivo de integrá-los à sociedade nacional e despojá-los de sua identidade cultural. Assim, o que permanece aqui desde a atuação do SPI até a Funai, é a tentativa de subjugação dos povos indígenas, vendo-os enquanto uma raça inferior, e a desconsideração da cultura, dos costumes, territorialidade e saberes dessas comunidades étnicas.

Nessa perspectiva, a atuação do SPI e da Funai, muitas vezes, a partir das denúncias realizadas, se baseou em ações que não beneficiaram, e em vários casos, violaram a comunidade indígena de Mangueirinha. Com base nisso, destacam-se pontos como a conivência ao acordo de 1949 e a redução do território indígena; venda de madeira e arrendamento dentro da área;  repressão realizadas por agentes do órgão; transferência e repressão à indígenas que se contrapunham às decisões do Chefe do Posto; instalação da serraria sem retorno benéfico à comunidade; proibição do corte de madeira pelos indígenas; imposição de projetos agrícolas; controle da saída de indígenas do Posto e escolha de caciques sem consulta à comunidade. Como resultado, toda esta situação levou à ação dos Kaingang.

Logo, compreendemos que as relações de violência frente às comunidades indígenas permaneceram após o início e durante a República no Brasil[13], que se pautaram em práticas diversas, em relação à subjugação da cultura, exploração e esbulho do território. Outrossim, na própria forma de compreender as etnias indígenas enquanto inferiores e passíveis de evolução e integração à sociedade nacional, etc. 

 

Acordo de 1949 e a retirada de parte do território Kaingang

No dia 12 de maio de 1949, publicado no Diário Oficial da União em 18 de maio, realiza-se um acordo entre a União, representada pelo Ministro da Agricultura Daniel Serapião de Carvalho, e o governo do estado do Paraná, representado pelo então governador Moisés Lupion. Neste acordo, afirmava-se que diante da averiguação de terras indígenas irregulares no Paraná seria necessária sua reestruturação, sendo assim versava sobre “[...] a regularização das terras destinadas aos índios no território daquele Estado e a prestação de maior assistência aos mesmos selvícolas”.

Este acordo foi realizado com o discurso de regularizar e conceder aos grupos indígenas a propriedade definitiva dos territórios por eles ocupados, estando em conformidade com o art. 216[14] da Constituição Federal de 1946, em vigor naquele momento. Na sua formulação, muito descreve a fim de indicar um caráter positivo do acordo para os povos indígenas. Nesse sentido, a Cláusula primeira apresenta que:

Cláusula primeira - O Serviço de Proteção aos Índios determinará e localizará as áreas, compreendidas nas terras reservadas aos índios pelo Governo do Estado do Paraná, a partir de 1900, que deverão formar as glebas a serem cedidas pelos Estado do Paraná, na forma da lei, para constituírem propriedade plena das tribos ou agrupamentos indígenas que ali se encontram localizadas em caráter permanente.

 

Além do mais, insere-se o disposto na Cláusula quinta:

Cláusula quinta - O Governo do Estado do Paraná obriga-se a providenciar a imediata retirada das áreas medidas e demarcadas nos termos da cláusula anterior, dos ocupantes não indígenas porventura existentes nas mesmas, entregando-as aos índios completamente livres e desembaraçadas de elementos intrusos e ficando a seu cargo a localização dos que forem desalojados das terras dos índios.

 

Entretanto, se inicialmente o acordo aparentava estar em conformidade com os interesses indígenas, uma vez que resolvia problemas de limites territoriais e dava seguridade territorial a esses grupos, logo é possível perceber qual o verdadeiro interesse com a formulação deste acordo: a redução de terras indígenas no Paraná. Segundo o Acordo, o critério utilizado para reformulação das terras seria de 100 hectares por família indígena mais 500 hectares para o Posto Indígena.

Nesse viés, as áreas que deveriam ser reestruturadas correspondiam às áreas dos Postos Indígenas de Apucarana, Queimadas, Ivai, Faxinal, Rio das Cobras e Mangueirinha. O quadro abaixo demonstra a extensão dos territórios indígenas, especialmente ao se basear em seus decretos de formação e o território proposto pelo acordo de 1949.

 

Tabela 1: Redução dos territórios indígenas conforme Acordo de 1949

Territórios Indígenas

Tamanho da área original (ha)

Tamanho da área proposta pelo Acordo 1949 (ha)

Percentagem de redução da área (%)

Apucarana                                 68.536                               6.300                          90,8

Queimadas                                22.632                                1.700                         92,4

Ivaí                                           30.708                                7.200                          70,0

Faxinal                                      -----[15]                                 2.000                          70,0[16]

Rio das Cobras                         13.339                                3.870                          70,9

Mangueirinha                           17.810                                2.560                           85,6

Total                                       183.025                              23.630                          87,0        

Fonte: Organizado pela pesquisadora baseado em Novak (2014) e no Acordo de 1949.

Com base na tabela, é possível observar a drástica redução de terras indígenas que o acordo então firmado propunha. Em concordância ao acordo, estas áreas expropriadas seriam utilizadas pelo estado para fins de colonização e localização de imigrantes.

Importante ressaltar que em nenhum documento consta qual o critério utilizado para estabelecer a medida de 100 hectares por família indígena, nem foi realizada uma consulta às comunidades ou aos órgãos responsáveis, considerando que, a partir dessa medida, será realizada a diminuição da área já ocupada pelos indígenas. No ano seguinte ao Acordo, efetiva-se um acordo entre o estado do Paraná e o Serviço de Proteção aos Índios, para estes acertarem a demarcação e localização das terras indígenas sendo aceito o critério de 100 hectares por família indígena.

Segundo o Boletim interno do SPI, após o acordo esse órgão interpôs interdito proibitório na Justiça do Estado do Paraná, ao afirmar que a FPCI estaria vendendo parte do território habitado pelos índios Kaingang e onde estava localizado o Posto Indígena. É importante destacar que, por mais que o SPI esteja, nesse momento, impondo obstáculos ao repasse da terra à terceiros, ele não é contrário ao acordo realizado em 1949, somente requer mudança em relação à parte que será expropriada da reserva. Isso é demonstrado no Boletim Interno de 1960, visto que “Foi celebrado, em 12 de maio de 1949, e com ata posterior datada em 14 de março de 1959[17], um acordo entre o SPI e o Estado do Paraná, assegurando posse definitiva daquelas terras, aos índios ali residentes” (Brasil, 1960, p. 9). Sendo assim, o SPI nesse período se baseia no acordo de 1949 e na Constituição para contrariar a posição da FPCI, pois requer que os indígenas fiquem na parte do território em que se encontram (Brasil, 1960).

Dessa forma, entende-se que o SPI é conivente com o acordo de 1949, bem como com o processo de repasse de parte das terras para posse de terceiros. À face disso, após ser retificado o nome da gleba que seria retirada da reserva, requereu a desistência do pedido de interdito, possibilitando a venda da terra para o grupo liderado por Oswaldo Forte e, posteriormente, para a madeireira Slaviero. O SPI só se mostra contra o acordo de 1949 depois do repasse das terras para a Firma Slaviero S/A. No Boletim Interno do SPI de 1965, o Relatório feito pelo advogado do IR-7[18] afirma que é através da deliberação da reunião dos chefes funcionários e advogados das Inspetorias Regionais e Ajudâncias, acordado como uma medida indispensável para a defesa do território indígena a anulação do acordo de 1949 (Brasil, 1965).

Em 1961, o Estado do Paraná, por meio da escritura pública, faz doação de terras à FPCI e aos índios Kaingang e Guarani. Essa escritura designa aos Guarani a Gleba “A” com 3.300 hectares e aos Kaingang a Gleba “C” com 4.100 hectares, e a FPCI ficou então com os remanescentes 3.707 alqueires da gleba “B”. Destarte, com a conivência do SPI, o estado do Paraná retira da posse dos Kaingang e Guarani de Mangueirinha a gleba “B” de 8.976 hectares e doa-as para a Fundação Paranaense de Colonização e Imigração (FPCI). No mesmo ano, a FPCI vende as madeiras de lei para Ercílio Slaviero e, em seguida, as terras (de 8.976 hectares) para a firma Slaviero e Filhos S.A. Indústria e comércio de madeiras (Serviço Nacional de Informação, 1968).

A realização do Acordo e o processo subsequente, ocorreu durante o governo de Moysés Lupion. Esse governador do Paraná foi muito criticado e denunciado pelos abusos e pela corrupção, além de ser acusado de favorecer a exploração de áreas por madeireiras e colonizadoras em detrimento de colonos e indígenas. No encaminhamento nº 208/SNI/ACT/68, encaminhado pelo Gen. Div. Emílio Garrastazu Médici (chefe do Serviço Nacional de Informação) ao General de Brigada Jayme Portela de Mello (DD Secretário Geral de Conselho de Segurança nacional) em 1968, há duras críticas à corrupção envolvendo o processo de alienação e venda da porção de terras da Terra Indígena de Mangueirinha. Segundo o relator, todas as partes desse processo, desde o acordo inconstitucional de 1949, a transferência das terras para uma entidade jurídica de direito privado (FPCI), venda do território para 30 pessoas sem a ligação com a agropecuária, parecer favorável da FPCI para a venda a essas pessoas, sendo que segundo o acordo de 1949, as áreas tidas como terras devolutas seriam destinadas a fins de colonização, escritura definitiva mesmo com o desaparecimento de 12 requerentes da área e o aparecimento de outros 20 novos requerentes, até a lavratura de nova escritura de compra e venda retificando a denominação e os limites da área que fez não se aplicar o interdito proibitório do SPI, foram possíveis através da participação de políticos influentes que, por meio de ações corruptas, teriam alienado dos indígenas metade da área que lhe era de direito a partir do Decreto nº 64 de 1903 (Serviço Nacional de Informação, 1968).

No que confere a gleba “B”, retirada da Terra Indígena de Mangueirinha, esta foi vendida ao grupo Slaviero, de modo que se iniciou a expulsão dos indígenas que viviam no centro da área indígena. Consoante a antropóloga Maria Cecília Helm, através dos depoimentos prestados a ela pelos Kaingang Algemiro Ferreira, Francisco Luiz dos Santos, Maria Honória, Antônio Luiz, Maria Doralice e pelo Guarani Aristides Gabriel:

Os índios não participaram das decisões oficiais e negociações, sendo retiradas do centro da Área de suas antigas aldeias e destruídas suas habitações, roças e paióis, e afastados do centro da Área, onde praticavam a caça e a coleta. Foram obrigados a abandonar seu antigo cemitério no Butiá, local sagrado para o Guarani, onde estão enterrados os seus mortos (Helm, 1997, p. 11).

 

A pesquisa realizada por Helm[19] juntamente com a narrativa indígena, demonstram que havia indígenas residentes na gleba “B”, compondo inclusive uma aldeia, chamada de “Butiá”, que foram evidentemente expulsos da área na década de 1960. Tal fato demonstra que toda a reserva de Mangueirinha estava habitada pelos Kaingang e Guarani quando se efetivou o processo de retirada de terras, o que não foi respeitado pelo acordo de 1949 e o processo subsequente.

A parte de terra removida pelo estado a partir do acordo de 1949 só retornou oficialmente para a posse dos Kaingang e Guarani da Terra Indígena de Mangueirinha em 2005, tendo em vista a decisão judicial favorável, em que o juiz federal substituto da 7ª Vara Federal, Mauro Spalding, julgou procedente o pedido da Funai reconhecendo a posse indígena sobre a parte B da colônia K de Mangueirinha (Gazeta do Povo, 2006).

 

Instalação de Serraria dentro da reserva

A retirada das terras e a atuação dos órgãos indigenistas não foram as únicas violações sofridas pelos Kaingang de Mangueirinha. Em agosto de 1976, uma serraria instalada pelo Departamento Geral do Patrimônio Indígena (DGPI), na Terra Indígena Mangueirinha, começou seus trabalhos. Desde a sua instalação, as atividades da serraria foram denunciadas pelos indígenas da reserva e órgãos de apoio à causa indígena que, através dessas denúncias, já em fevereiro de 1977, foi realizada a paralisação da serraria em razão de estar funcionando sem a liberação de seu registro pelo IBDF[20]. Segundo as denúncias, “[...] a serraria vinha trabalhando dentro das suas possibilidades, sendo a maior parte dos seus funcionários, elementos não-índios, e a renda proveniente da venda das madeiras sumia sem que os índios vissem para onde e sem que se beneficiassem com isso” (Luta Indígena, 1977, p. 2).

No entanto, a serraria instalada pela Funai, no Posto Indígena Mangueirinha, na década de 1970, não é explicitamente, uma violação à comunidade indígena, pois é legalizada e instaurada pelo próprio órgão indigenista oficial. No ano de 1977, a Funai desenvolvia projetos econômicos em 6 dos 24 Postos Indígenas no sul do país que compreendem os Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Dos 6 projetos econômicos realizados, 5 eram serrarias (Xapecó, Mangueirinha, Palmas, Guarapuava, Guarita) e dois compreendiam projeto de soja (Guarita e Nonoai). Dessa forma, no sul do país, outras áreas indígenas também detinham serrarias administradas pelo DGPI e legalizadas pela Funai. Porém, destacamos aqui a serraria da Funai como uma das violências sofridas pela comunidade indígena de Mangueirinha advinda da atuação da Funai em razão das denúncias que tanto os Kaingang e Guarani quanto os órgãos de apoio fizeram sobre a sua conduta no PI. Por conseguinte, evidenciamos que o desempenho da serraria, mesmo legalizada, dentro da área afetou a comunidade, o que causou delações e ações de reivindicação desta.

O discurso da Funai defendia o benefício das serrarias para a comunidade, destacando a utilização de mão-de-obra indígena e aplicação dos recursos auferidos em benefício das comunidades. Todavia, na própria narrativa dos indígenas de Mangueirinha assegura-se que eles não foram consultados sobre a instalação da serraria ou de projetos agrícolas, de modo que não era de seus interesses que esses fossem executados pela Funai.

As denúncias realizadas sobre a atuação da madeireira em 1977 envolveram desvio de madeira, corte de madeira “boa”, e não apenas as desvitalizadas, não emprego de indígenas e o não retorno dos lucros auferidos para benefício da comunidade. A Funai e o diretor do DGPI, quando da sua ida à Mangueirinha para avisar da instalação da serraria, prometeu que seriam derrubadas apenas madeira desvitalizada, porém, segundo denúncia dos indígenas “‘[...] ele não cumpriu a promessa’, acusa Kretã, revelando que, ‘de agosto do ano passado até o fim de fevereiro, quando a serraria foi paralisada pelo IBDF, eles contaram no máximo 20 árvores desvitalizadas, e cerca de 1.000 outras árvores boas’” (O Estado de S. Paulo, 1977).

Assim, a serraria chegou a ser fechada pelos indígenas da TI em 1977, mas volta a atuar com forte fiscalização indígena até ser fechada definitivamente em 1983, após construção de casas para os indígenas (Castro, 2011). 

           

Construção de rodovias e alagamento de parte da área

Quando os Guarani foram expulsos da aldeia Butiá, localizada na parte central da área vendida na década de 1960 para a Firma Slaviero, estes foram realocados nas proximidades do rio Iguaçu. Contudo, com a construção da Usina Hidrelétrica Salto Santiago, no rio Iguaçu, precisou-se retirá-los desta localidade, em razão do alagamento de parte das terras e roças Guarani. Segundo Helm, construiu-se uma “vila” na Palmeira para reassentar as famílias de índios Guarani atingidos pela construção da hidrelétrica. O antigo cemitério Guarani estava localizado na parte da área ocupada pela Firma Slaviero, perto do rio Butiá, e consequentemente, ficou abandonado e então os Guarani fizeram novo cemitério na aldeia Palmeirinha (Helm, 1997). De acordo com Aspelim e Santos (1980, p. 16):

A empresa hidrelétrica (ELETROSUL) deslocou-os [os guarani] para novas casas, abriu novos pedaços de terra para o plantio, reconstruiu suas escolas e engenharia, e abriu uma estrada de acesso para a nova área (que eles selecionaram para residência). O Departamento de Patrimônio Indígena (DGPI), da FUNAI, já está derrubando a floresta virgem na área a ser inundada, utilizando as facilidades das serrarias muito modernas instaladas há poucos anos atrás para fornecer vigamentos aos projetos de construção de Itaipu.

 

Com base no livreto escrito pela Anaí-PR sobre a situação dos grupos indígenas no Paraná, verifica-se a inundação de cerca de 150 hectares de terra situadas na parte “A” da área indígena e habitada pelos Guarani (Anaí, 1983). Por mais que a construção da Usina tenha sido no ano de 1979, a comunidade só recebeu indenização em 1985 mediante reivindicações. A indenização da Eletrosul recebida pela Funai foi de 880 milhões por ter realizado obras (alagamento de parte do território e construção de uma linha de transmissão de energia elétrica) na área indígena.

Além da hidrelétrica, a construção da rodovia BR-373 e da PR-281 que passam por dentro da área indígena também afetou a comunidade de Mangueirinha. No ano de 1985, os Kaingang e Guarani ainda reivindicavam a indenização pela construção das duas rodovias, que ainda não tinha sido paga à comunidade. Ademais, há denúncia de que havia intrusos na área em razão da construção da rodovia, como mostra o documento escrito pelos indígenas da TI Mangueirinha em 8 de dezembro de 1975 e publicado pelo CIMI:

Seria necessário fazer um levantamento com um agrimensor, pois temo uma pequena área na Palmeirinha invadida pelo civilizado de uns 50 alqueires, eles fizeram divisa e invadiram nossas terras. Isso deu com o asfalto. Eles querem que a divisa seja o asfalto, mas a divisa é mais adiante. Lá vivem 5 famílias na área dos índios (Luta Indígena, 1976, p. 17).

 

As violações sofridas pelos indígenas de Mangueirinha repercutiram não somente em nível nacional, uma vez que foram denunciados em nível internacional através do Quarto Tribunal Russell acontecido em Roterdam, entre os dias 24 a 30 de novembro de 1980, para julgar denúncias de violações contra os direitos dos índios da América. Assim, levou-se ao tribunal Russell o caso da Terra Indígena Mangueirinha, tendo como acusador Wilmar da Rocha D’Angelis, coordenador do CIMI-sul e como acusados a Funai, Firma Slaviero e Filhos S/A, Eletrosul e o Governo do Estado do Paraná. As acusações levadas ao Tribunal eram: o acordo firmado em 1949, com o repasse de parte do território para empresa privada, estabelecimento de uma serraria que não reverte benefícios aos indígenas e a inundação de parte do território pela represa que estava sendo construída. Conforme a acusação, existem condições jurídicas para que as terras sejam devolvidas aos indígenas, no entanto, a demanda encaminhada recebeu a primeira sentença contrária e estava, neste momento, no Tribunal Federal de Recursos. (Boletim do CIMI, 1980, p. 27). Em linhas gerais, a acusação enviada ao Tribunal Russell acompanhava 63 documentos e 20 fotografias.

A Terra Indígena de Mangueirinha sofre, a partir de 1949, drástica e constante redução, visto que ao longo das décadas se seguem inúmeras violências: venda da metade do território (Gleba “B”), construção da rodovia BR-373 e PR-281 e inundação em razão da construção de parte da barragem Salto Santiago. Baseados neste cenário que, os Kaigang irão realizar reivindicações e ações concretas contra as violências e expropriações sofridas. A imagem abaixo traz um mapa do Boletim Luta indígena, nº 18 de dezembro de 1982, o qual procura demonstrar a situação da TI Mangueirinha nesse momento.

Figura 2: Mapa área indígena Mangueirinha 1982

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Luta Indígena (1982).

 

Conclusão

A partir do exposto concluímos que há uma permanência nas violações contra os povos indígenas no Brasil a contar da colonização do território americano até a atualidade, por meio da Colonialidade do Poder. Essa violência se concretiza, também, desde a demarcação da terra em Mangueirinha, realizada mediante interesses do Estado e manobradas segundo esses interesses. Os limites que hoje compreendem a Terra Indígena de Mangueirinha foram, em toda a sua história, desde a criação da Colônia Militar do Chopim e a reserva no início do século passado, definidos e redefinidos a partir dos interesses empresariais do Estado. Exemplo disso, destacamos o Acordo de 1949, que retirou metade (8.976 ha) da terra até então destinada aos Kaingang e Guarani de Mangueirinha, bem como o fez em outras 4 terras indígenas no Paraná.

Diante do conceito de Colonialidade do Poder, pode-se compreender o conflito agrário na Terra Indígena de Mangueirinha como parte de um sistema de dominação global que atinge toda a América Latina. Dessa forma, entendemos que há uma permanência nas relações coloniais dentro do Estado, já que desse sistema advém as ações desse em relação aos povos indígenas, as quais são pautadas na arbitrariedade, subjugação e repressão. Nesse processo de despojamento das suas identidades históricas, do seu lugar na história e da sua produção cultural, as políticas estatais se voltaram para ideais desenvolvimentistas e integracionistas que, vendo o indígena como inferior ou primitivo culturalmente e que deveria se integrar à comunidade nacional, atacou diretamente os territórios tradicionais.

Além da desapropriação de parte do território pelo Acordo de 1949, pela construção das rodovias e instalação de Usina Hidrelétrica, o SPI e a Funai, ou seja, os órgãos tutelares, muitas vezes, permitiram e até reproduziram essas violações. Constatamos que, o SPI consentiu com o Acordo de 1949, e participou da remedição das terras que foram repassadas primeiro à FPCI e, em seguida, à Firma Slaviero. Esses dois órgãos, como vimos, se fundaram e atuaram com objetivos ligados aos ideais de desenvolvimento e integração do território nacional em detrimento dos povos indígenas, atuando, por vezes, a partir de práticas violentas na sua relação com esses povos, perpetuando a Colonialidade do poder. A respeito dessas violações cometidas contra os Kaingang de Mangueirinha, baseados nas fontes consultadas, destacamos: conivência ao acordo de 1949 e redução do território indígena; venda de madeira e arrendamento dentro da área;  repressão realizada por agentes do órgão; transferência e repressão à indígenas que se contrapunham às decisões do Chefe do Posto; instalação da serraria sem retorno benéfico à comunidade; proibição do corte de madeira pelos indígenas; imposição de projetos agrícolas; controle da saída de indígenas do Posto e escolha de caciques sem consulta à comunidade. Por consequência, todo esse processo de violências ocorridas entre as décadas de 1960 e 1970 fez com que muitas famílias indígenas mudassem para outras áreas.

Em segundo lugar, se em todo esse processo histórico a Terra Indígena Mangueirinha é marcada pela Colonialidade do Poder, por meio da manifestação violenta e dominadora do Estado e dos órgãos tutelares e legitimada pela comunidade nacional ela é, na mesma medida, permeada pela resistência indígena em todas as suas formas. Neste estudo, ao mostrar as violações proferidas aos povos indígenas não procuramos inferir a ideia de passividade indígena, mas afirmamos que a partir desse processo, ocorre a formação de uma nova forma de resistência, diferente das anteriormente desenvolvidas.

Em virtude do exposto, compreendemos que a comunidade Kaingang resistiu da maneira possível para assegurar a reprodução do seu grupo. Em cada momento passado pela comunidade, a datar do contato com os colonizadores e a sociedade envolvente, foram realizadas ações com objetivo de benefício comum. Nesse sentido, desde a reserva das terras em 1903 até as reivindicações nas décadas de 1970 e 1980, encontram-se registros da resistência e luta dos Kaingang de Mangueirinha, em defesa do território e da comunidade. Assim, a resistência foi uma constante na história do grupo Kaingang de Mangueirinha. 

 

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Fontes

 

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Recebido em 08/12/2022.

Aceito em 16/06/2023.



[1] Mestre em História pela Universidade Federal da Fronteira Sul (2022). Brasil. E-mail: dudabertuol@hotmail.com | https://orcid.org/0009-0008-9356-9840

[2] Doutor em História. Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Brasil. E-mail: emerson.silva@uffs.edu.br | https://orcid.org/0000-0002-0013-969X

[3] A Terra Indígena de Mangueirinha é ocupada em sua maioria por Kaingang, tendo a presença minoritária do grupo Guarani. A pesquisa optou metodologicamente por estudar as violações de direitos e o conflito relacionado aos Kaingang em virtude do acesso as fontes disponíveis e das especificidades dessa experiência histórica.

[4] A Região Sudoeste do Paraná atualmente é composta por 42 municípios. A Terra Indígena de Mangueirinha se localiza em três munícipios dessa região, sendo: Mangueirinha, Chopinzinho e Coronel Vivida.

[5] Esse Acordo publicado no Diário Oficial da União em 18 de maio de 1949, contendo 10 Cláusulas, é caracterizado pela exclusão dos grupos indígenas afetados por ele em sua realização. Dessa forma o acordo é assinado por dois representantes do Estado e os critérios não se baseiam na cultura, costumes ou territorialidade dos povos indígenas. O texto desse acordo será melhor tratado na última parte do artigo.

[6] O presente texto apresenta parte da análise das fontes produzidas no processo de pesquisa vinculada ao PPGH/UFFS.

[7] Importante ressaltar que, mesmo não sendo o foco do artigo, a resistência Kaingang também foi fator importante para a formação e a permanência dos limites da Terra Indígena de Mangueirinha.

[8] Sobre a colonização dos Campos de Guarapuava e Palmas no Paraná vide: ALMEIDA, Antonio Cavalcante. Da Aldeia para o Estado: os caminhos do empoderamento e o papel das lideranças Kaingang na conjuntura do movimento indígena. 2013. 251 p. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2013.; SOUZA, Almir Antônio. A invasão das terras Kaingang nos Campos de Palmas: O processo contra a liderança indígena Vitorino Condá (1839-44). Mediações, Londrina, V. 19 N. 2, P. 43-61, JUL./DEZ. 2014.; WEIGERT, Daniele. Nas sombras das Araucárias: colonizadores e indígenas nas fronteiras do Paraná (1808-1900). 2020. Tese (Doutorado em História Econômica). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. SOUZA, Almir Antonio de; LINO, Jaisson Teixeira. Índios, milicianos e colonos no sul do Brasil: lideranças indígenas e o aldeamento de atalaia na ocupação dos territórios Kaingang nos campos de Guarapuava (1810-1825). História (São Paulo), v.40, e2021016, 2021.

[9] Importante ressaltar que termos como “atrasado”, “civilizado”, “evolução” são expressões reconhecidas e utilizadas pelo Estado na época tratada nesse trabalho e se baseiam em uma concepção evolucionista e integracionista em relação às populações indígenas a partir do processo do colonialismo e da colonialidade do poder. Esses termos não se relacionam, em nenhuma medida, com os ideais que fundamentam esta pesquisa, razão pela qual se encontram entre aspas.

[10] O SPI corresponde ao Serviço de Proteção ao Índio criado em 1910 e extinto em 1967. A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi criada em 1967 em substituição ao SPI.

[11] Nome dado ao Posto Indígena do SPI localizado na Terra Indígena de Mangueirinha.

[12] O relato abaixo é retirado da pesquisa de Alcida Ramos e Maria Lígia Moura Pires. As autoras realizaram entrevistas e pesquisa na Terra Indígena Mangueirinha na década de 1970.

[13] E que essa violência se explica a partir da Colonialidade do Poder pois, nas relações do poder, o Estado compreende os povos indígenas ainda como uma “raça” ou um grupo inferior em relação à “raça” branca o que legitimaria ações para evolução e integração desses grupos.

[14] “Art 216 - Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem” (BRASIL, 1946).

[15] As terras indígenas de Ivaí e Faxinal tem sua história interligada passando, no início do século XX por uma série de conflitos e reformulações. Por essa razão consideramos, para a formulação da tabela, a área estipulada pelo decreto nº 128 de 1927. Segundo Novak: “Embora o Decreto considere 36.000 (ha), os limites descritos permitiram a elaboração de uma área com 30.708 (ha).” (NOVAK, 2014, p. 1754). Consideramos, para os dois territórios, o total de 30.708 ha. Sobre a história da criação dos territórios de Ivaí e Faxinal ver: NOVAK, Éder da Silva. Tekoha e Emã: a luta das populações indígenas por seus territórios e a política indigenista no Paraná na Primeira República – 1889 a 1930. 2006. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2006.; NOVAK, Éder da Silva. Territórios e grupos indígenas no Paraná: a expropriação de terras através do acordo de 1949. In: XIV ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA, 2014, Campo Mourão. Anais [...]. Campo Mourão: Universidade Estadual de Maringá, 2014.

[16] A área de Faxinal e Ivaí foram consideradas juntas em relação à percentagem pois estão ligadas ao mesmo decreto que estabeleceu 30.708 hectares.

[17] Provavelmente erro de digitação referente à data, pois o acordo entre SPI e Estado foi realizado em 1950, como diz em outro momento do documento.

[18] Inspetoria Regional do SPI.

[19] Pesquisa realizada pela antropóloga para a constituição do Laudo Antropológico que contribui no processo judicial para a devolução do território indígena em Mangueirinha.

[20] Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal.