Ações afirmativas, negacionismo e doutrinação ideológica: as decorrências políticas e éticas da historiografia escrita e ensinada

Affirmative Actions, denialism, and ideological indoctrination: the political and ethical consequences of written and taught historiography

                                                                                              

Juliana Teixeira Souza[1]

 

 


Resumo

Este artigo analisa os argumentos e estratégias discursivas mobilizadas por historiadores que se posicionaram contra ações afirmativas de forma pública, evidenciando que se estruturam nas seguintes bases: uso recorrente de negacionismos (negando, minimizando e falseando conhecimentos consensuados pela historiografia acadêmica), empenho em identificar esses negacionismos como conhecimentos científicos destituídos de comprometimento ideológico, e desqualificação de posicionamentos contrários por meio de acusações de doutrinação ideológica. Ao defender a hipótese que negacionismos e acusações de doutrinação ideológica também são práticas correntes entre historiadores acadêmicos, se discute, nesse texto, as decorrências políticas e o lugar da ética no ensino e na pesquisa histórica.

Palavras-chave: Negacionismo; Ações afirmativas; Historiografia; Ensino de História.

Abstract

This article analyzes the arguments and discursive strategies mobilized by historians who have positioned themselves against affirmative actions in a public way, showing that they are structured on the following bases: recurrent use of denialism (denying, minimizing and falsifying knowledge consensual by academic historiography), effort to identify these denialisms as scientific knowledge devoid of ideological commitment, and disqualification of opposing positions through accusations of ideological indoctrination. By defending the hypothesis that denialism and accusations of ideological indoctrination are also current practices among academic historians, this text also discusses the political consequences and the place of ethics in historical teaching and research.

Keywords: Denialism; Affirmative actions; Historiography; History Teaching.


 

 

 

A história desse texto, à título de introdução

Na abertura do 30º Simpósio Nacional da ANPUH, em 2019, fiquei muito impactada com a conferência de Profa. Joana Maria Pedro, que identificou como principal desafio da História, naquele momento, o enfrentamento às forças que haviam assumido a direção do Estado brasileiro e colocado em xeque as políticas públicas de inclusão. Na sua fala, o desafio imposto por aquele novo cenário foi dimensionado a partir do relato das experiências traumáticas de professores que nos anos anteriores foram processados, demitidos e presos sob acusação de propaganda político-partidária, doutrinação religiosa e corrupção de menores. Foram citados os casos do Prof. Paulo Fontes, acusado de não ter expertise para participar do projeto do Museu do Trabalhador em São Bernardo-SP; da prisão do Prof. Rafael Saddi sob acusação de crime organizado e corrupção de menores ao acompanhar manifestações contra as Organizações Sociais na rede estadual de ensino em Goiás; da demissão do Prof. Anderson Michel de Sousa Miura de uma escola privada, após realizar um trabalho com os alunos sobre direitos humanos e o assassinato de Marielle Franco; e do processo movido por Ana Caroline Campagnolo contra sua ex-orientadora, a Profa. Marlene de Fáveri, acusada de perseguição ideológica e discriminação religiosa.

Mas o pesar que se abateu sobre os mais de 2 mil profissionais e estudantes de História presentes no Teatro Guararapes, em Olinda, foi superado pelo tom otimista que a conferencista imprimiu ao epílogo de sua fala, assegurando que alguns dos acusados judicialmente já haviam sido inocentados, outros ganharam fama nacional, havendo ainda os que conseguiram melhor colocação em outros postos de trabalho. Parecia que o tempo, conceito tão caro para nós, havia se encarregado de fazer prevalecer a justiça, compensando em boa medida os colegas que haviam sofrido ataques e perseguições. Pessoalmente, me perguntava se os colegas vitimados concordavam com o tom abonador atribuído ao fim daquelas experiências, se a repercussão daqueles casos havia lhes proporcionado alguma vantagem efetiva em seus campos de atuação, e se emocionalmente haviam superado a violência sofrida. Me parecia haver subestimação do custo profissional e pessoal de ser acusado de doutrinação ideológica. De todo modo, por último, a Profa. Joana Maria Pedro afirmou que não seria fácil destruir o projeto de ensino público, gratuito, de qualidade e inclusivo, pois continuaríamos empenhados em tornar nosso ofício mais público e próximo das pessoas comuns, sendo aplaudida de pé pelos presentes.

Oxalá, de fato, não fosse fácil e que todos os profissionais de História que atuam na pesquisa e ensino se sentissem capazes de enfrentar com segurança e tranquilidade os ataques mobilizados pela frente de direita, liberal e moralista cristã que fez os professores de Ciências Humanas submergirem numa onda de suspeição generalizada. Contudo, todos estavam alarmados, e ainda estão, com a frente de direita elitista, racista, misógina e homofóbica que tomou as ruas antes do Golpe de 2016, quando ocorreu o impeachment de Dilma Rousseff, e se viu representada pelo candidato vencedor das eleições de 2018. Desde então, a radicalização dos grupos de direita vem sendo estimulada pela forte campanha promovida por agentes do governo contra a suposta difusão do comunismo, da ideologia marxista e ideologia de gênero nos estabelecimentos de ensino em todos os níveis, incluindo o uso intenso das redes sociais, nas quais os professores são acusados de pautar suas práticas de ensino em crenças e convicções pessoais subversivas e transgressoras. Os profissionais de Histórias estão atentos e refletindo sobre essa movimentação da direita, mas me parecia que a suspeição estava posta desde muito antes, e havia começado dentro da própria área de conhecimento.

Há anos venho trabalhando com professores da Educação Básica em programas de formação continuada, projetos de ensino, iniciação à docência PROFHISTÓRIA, e há alguns consensos entre eles. O que prevalece na estrutura curricular da História ensinada nas universidades e escolas lhes parece reproduzir e naturalizar desigualdades, exclusões, preconceitos e discriminações, pois as causas do devir histórico recaem sobre as ações e ideias da classe dominante e outros grupos privilegiados. E, em suas experiências, basta colocar no centro da narrativa histórica a população negra, os povos indígenas, os trabalhadores pobres, as mulheres, a população LGBTQIA+ ou outros grupos excluídos e marginalizados, considerando as demandas dos movimentos sociais, para em algum momento verem seus trabalhos desqualificados pelos pares, que de forma aberta ou velada lhe incutem a pecha de doutrinadores ideológicos, sob o argumento de que a militância política é incompatível com estudos científicos, que exigem distanciamento e imparcialidade, lição certamente aprendida nos cursos de graduação.

Por isso, me parecia ineficaz prosseguir nesse debate sobre doutrinação e negacionismo sem romper alguns silêncios, fingindo ignorar ou desconhecer como algumas disputas se operam dentro da área. Comecei a escrever sobre essas questões ao perceber que esses professores e alguns colegas do grupo de pesquisa[2], compartilhavam comigo a impressão de que somente quem foge à narrativa histórica hegemônica se vê instado a refletir sobre o peso dos seus compromissos no processo de produção do conhecimento, ou são questionados sobre as implicações éticas e políticas daquilo que escrevem e ensinam. Mas, por motivos vários, deixei essas reflexões de lado.

Eis então que fui convidada a participar do XIX Encontro Estadual de História de Santa Catarina, em agosto de 2022, compondo a mesa “Ensino de História, ética e usos do passado” junto ao Prof. Marcus Leonardo Bomfim Martins, e mediada pela Profa. Carolina Jaques Cubas. Logo retornei aos velhos rascunhos porque, para nortear o debate, previamente nos encaminharam perguntas sobre as experiências de professores(as) de História com os negacionismos e ataques que culminam na judicialização do trabalho docente. Diante desse contexto, nos perguntaram acerca do compromisso social e responsabilidade de nosso ofício, e sobre o que singulariza e caracteriza o conhecimento histórico escolar em termos epistemológicos e político-sociais. Por fim, perguntaram quais as relações entre Ensino de História e experiência democrática, e se é possível afirmar que nosso trabalho como formadores de professores e pesquisadores tem, ou se propõe a ter, impacto social coletivo e subjetivos, e qual seria o lugar da ética no ensino e na pesquisa histórica.

Então, o texto ora apresentado traz os fundamentos da fala realizada n XIX Simpósio da ANPUH-SC em que procurei mostrar como o combate aos negacionistas tem orientado as respostas correntes sobre o compromisso e responsabilidade dos profissionais da área. Ao problematizar essa discussão, se pretende enfatizar que os consensos entre os historiadores são estabelecidos ao custo do silenciamento de questões controversas. Me refiro aqui aos negacionismos promovidos por historiadores com o fim de se contrapor à agenda que mobiliza conhecimentos sobre o passado com o fim de validar políticas de reconhecimento e reparação, provocando negação interpretativa e implicatória (VALIM, AVELAR, BEVERNAGE, 2021). Daí a opção de analisar a polêmica oposição de historiadores às ações afirmativas, que permitirá adensar essa proposição, em que se defende a hipótese de que os negacionismos e as acusações de doutrinação ideológica são práticas correntes entre historiadores acadêmicos[3].

Para comprovar a hipótese de que há historiadores negacionistas serão apresentadas evidências de: negação e minimização do racismo; negação da existência de grupos sociais reivindicando identidades étnico-raciais diversas; reabilitação da tese da democracia racial para defesa e celebração do Brasil mestiço; negação do critério étnico-racial como estruturante na organização, funcionamento e legitimação do escravismo no Brasil; negação ou minimização das consequências do passado escravista na configuração de práticas de preconceito e discriminação racial no Brasil contemporâneo; utilização de eufemismos com o fim de negar ou minimizar a violência física, emocional, sexual etc. das relações escravistas e do preconceito e discriminação racial na atualidade; e negação ou minimização do racismo como elemento estruturante das desigualdades no Brasil atual. O foco recaiu sobre essas evidências pois são essas são características do negacionismo referente à escravidão e ao racismo já consensuadas entre os estudiosos do tema (JESUS, GENDRA, 2020; ÁVILA, 2021; VALIM, AVELAR, BEVERNAGE, 2021).

Convém ainda esclarecer que na oposição de historiadores às ações afirmativas vemos um tipo de negacionismo que em alguns pontos se aproxima, e em outros não se difere daquele difundido no Brasil, nos últimos anos, pela direita, por vezes chamada de extrema-direita ou “Nova Direita”. O que há em comum é a negação, minimização e falseando de conhecimentos consensuados no campo das Ciências Humanas, resultando num negacionismo que não se limita à “uma recusa, descrença ou renúncia em relação ao acontecido distante”, nesse caso referente ao passado escravista, sendo também caracterizado pela “recusa à realidade” (OLIVEIRA, OLIVEIRA, no prelo), tais como o racismo e as demandas da população negra no Brasil atual. O que há de incomum nos casos aqui investigados é a identidade dos sujeitos que promovem o negacionismo, pois se trata de historiadores profissionais que renegam os “princípios básicos de ciência moderna, como historicizar o problema e as resoluções do problema de pesquisa e dialogar com os pares que entendam da matéria” (OLIVEIRA, OLIVEIRA, no prelo), o que induz à reflexão sobre as decorrências políticas e o lugar da ética no ensino e na pesquisa histórica, apresentada no final do texto.

Por fim, agradeço à ANPUH-SC a oportunidade de retornar um texto que há tempos vinha rascunhando, mas hesitava em tirar da gaveta.

 

Dos silêncios no enfrentamento ao negacionismo e às acusações de doutrinação ideológica

Em nossa área, a suspeição de que todos somos comunistas e/ou esquerdistas é um dos principais combustíveis dos negacionistas, que acusam os profissionais de História de orientarem o conhecimento sobre o passado por um viés ideológico, e fazem contraponto defendendo que o conhecimento científico qualificado e verdadeiro seja neutro. No movimento negacionista referente à Ditadura Militar no Brasil, a exigência desse posicionamento ficou evidente quando ocorreu a instauração da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, reconhecendo o direito do povo brasileiro à memória e à verdade histórica sobre as violações aos Direitos Humanos praticadas pelo governo autoritário, iniciativa contestada pelos militares (DIAS, 2013). Como forma de protesto, o Tenente-Brigadeiro do Ar da reserva, Ivan Moacyr da Frota, da Academia Brasileira da Defesa, encaminhou à comissão documentos, livros e revistas que deveriam servir de “subsídios para a apreciação isenta dos fatos” e impedir que continuassem trabalhando com uma versão única da História, condição indispensável para “conseguir preservar a verdade” dos fatos ocorridos durante e após o Golpe de 1964 (BOGHOSSIAN, MONTEIRO, 2013).

Outro exemplo de associação entre ciência, verdade e neutralidade foi promovido pela Escola sem Partido, que até 2020 foi o principal movimento organizado contra a doutrinação ideológica nas escolas e universidades, criticando o uso do discurso científico para refutar a crença religiosa cristã sobre a origem da humanidade e a apresentação de versões únicas de temas controversos, como o Holocausto judeu e as ditaduras no Brasil e América Latina. O movimento defendia que as escolas refletissem “com neutralidade” o pluralismo de ideias, contra as perspectivas unilaterais e tendenciosas dos chamados conteúdos doutrinadores, que seriam mais explicitamente impostos nos cursos universitários de Educação e Ciências Humanas. Para os organizadores do movimento, muito embora a “perfeita neutralidade” seja um “ideal inatingível”, isso não exime os professores do dever de respeitar o pluralismo de ideias e a impessoalidade, já que a “inexistência da neutralidade não legitima a doutrinação”[4].

Poderia se considerar que na discussão sobre esse assunto nos cabe apenas evidenciar que esses sujeitos só consideram verdadeiros e neutros os conhecimentos que coincidem com suas crenças e opiniões, ou provar que difundem conhecimentos baseados em omissões e evidências falsas, frágeis e descontextualizadas, gerando narrativas deturpadas e mentirosas, sem legitimidade intelectual (AVILA, 2021). Entretanto, a associação entre ciência, verdade e neutralidade também repercute no debate sobre como os compromissos e responsabilidades assumidos (ou não) pelos profissionais de História incidem no conhecimento que produzimos e ensinamos, tanto em termos epistemológicos quanto político-sociais. A dificuldade de avançar nessa direção é que não temos um consenso sobre os princípios e valores que fundamentam tais compromissos e responsabilidades, e não temos consenso sobre como nossos posicionamentos políticos definem os fundamentos epistemológicos do conhecimento que produzimos.

Há muito não se nega o peso do lugar de fala na operação histórica (CERTEAU, 1979), mas há expectativa de distanciamento e imparcialidade para que as paixões não prejudiquem a lucidez que a produção regrada pelo método exige (PROST, 2014), e para assegurar que o historiador atue independente de qualquer pressão exercida por grupo político, comunitário ou identitário que busque legitimar suas demandas por meio do conhecimento histórico (FERREIRA, 2018). Essa exigência não passa de uma ficção, que pode ser muitas coisas, menos politicamente desinteressada. O silêncio que se impõe sobre essas pautas tem vinculação estreita com as disputas políticas que se travam no âmbito acadêmico, sem dúvida alguma favorecendo os profissionais da História que não se veem como politicamente engajados e se empenham por evitar que seus posicionamentos políticos, princípios e valores sejam perceptíveis em suas obras.

Esse distanciamento e imparcialidade, com significado semântico para muitos praticamente indistinguível de neutralidade, é atributo valorizado no exercício da profissão, e requisito indispensável para atestar a qualidade dos trabalhos acadêmicos. Em contrapartida, explicitar o engajamento político, assumir os valores e princípios que fundamentam os compromissos políticos e responsabilidades sociais na constituição do objeto de investigação ou nos procedimentos de investigação, tem sido uma postura francamente desestimulada, senão mesmo combatida. Ousar contrariar as expectativas, sobretudo quando esses posicionamentos, valores e princípios não coincidem com as perspectivas defendidas pelos grupos hegemônicos dentro do campo, é assumir deliberadamente o risco de ver seus próprios pares lhe acusando promover doutrinação ideológica por meio de uma produção militante.

Os historiadores esperam que o sujeito produtor do conhecimento histórico, no exercício do seu ofício, se abstenha de assumir posicionamento explicitamente favorável a sujeitos, grupos de sujeitos ou causa, a fim de impedir que suas ideias sejam obliteradas por paixões, que comprometeriam total ou parcialmente o uso da razão. Essa ideia se baseia numa tradição filosófica que vincula a distinção entre o sujeito produtor do conhecimento e o objeto de conhecimento à contraposição entre paixão e razão (CARVALHO, 2012). Contrariada essa recomendação, as paixões contaminariam o processo de produção do conhecimento e o resultado, nesse caso, já não poderia ser qualificado como conhecimento científico, sendo antes mero panfleto de divulgação das paixões políticas do sujeito, que deixa de ser um produtor de conhecimento para se tornar apenas um militante.

O que se sugere aqui é que a dificuldade de confrontar as acusações de doutrinação ideológica pautadas na defesa de uma ciência neutra reside no fato de que essa aspiração está longe de ser estranha aos profissionais com formação acadêmica em História e suas exigências de distanciamento e imparcialidade. Além disso, ao evitar confrontar as acusações fundamentadas na defesa da neutralidade científica é possível contornar outra questão incômoda: temos a larga experiência em acusar os colegas profissionais de História de doutrinação ideológica usando estratégias discursivas muito próximas das hoje utilizadas pelos negacionistas. Então, penso que para a discussão sobre doutrinação e negacionismo fomentar reflexões críticas sobre nosso trabalho como formadores de professores e pesquisadores é importante assumirmos que as acusações e suspeição generalizada existia dentro da área muito antes da frente de direita, liberal e moralista cristã assumir o poder, como ficou evidente na oposição dos historiadores às ações afirmativas.

 

A polêmica proposta de cotas nas universidades públicas

Entre os profissionais de História, o negacionismo referente à escravidão e suas consequências no Brasil contemporâneo teve seu momento de inflexão no início dos anos 2000, quando intelectuais do Movimento Negro propuseram as cotas para negros nas universidades (SILVA, 2019). A proposta respondia as demandas por reparações, exigindo do Estado e da sociedade o ressarcimento dos danos provocados pelo sistema escravista, pelas políticas públicas que de forma direta ou indireta promoveram o embranquecimento da população, e pela profusão de estereótipos negativos depreciando a população negra, reconhecendo que esses danos criam osbstáculos para o acesso da população negra aos direitos civis, sociais, econômicos e culturais. O que se propunha era que essas políticas de reparação e reconhecimento resultassem em ações afirmativas, isto é: “conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória” (BRASIL, 2013, p. 499).

Ao induzir o debate sobre a questão racial em toda sociedade provocando a tomada de posicionamento sobre o ingresso de pessoas negras em espaços majoritariamente ocupados pelos setores privilegiados da sociedade, majoritariamente compostos por pessoas brancas e embranquecidas, o que se buscava era derrubar alguns dos caracteres mais fortes do racismo à brasileira, que são: “negar ao negro a possibilidade de autodefinição, subtraindo-lhe os meios de identificação racial”, apesar de o negro ser “discriminado exatamente por causa de sua raça e cor” (NASCIMENTO, 1978, p. 79); e assegurar a “apropriação desigual das oportunidades econômicas e educacionais” de maneira a impor e definir os “lugares apropriados” para as pessoas negras (GONZALEZ, HANSELBALG, 1982, p. 91).

Mas a proposta era controversa entre os próprios militantes, que defendiam maior acesso da população negra ao Ensino Superior, mas divergiam sobre as cotas por considerarem que a permanência e o sucesso de jovens negros e pobres na universidade poderiam ser comprometidos pelas deficiências acumuladas na Educação Básica, em instituições públicas de ensino, e pelas discriminações sofridas nas escolas, arriscando não resolver o problema da qualificação profissional e piorar a baixa autoestima desses jovens, sem contar a possibilidade de êxitos individuais não repercutirem nas lutas coletivas. A resistência só foi revertida dentro do movimento quando se verificou a grande repercussão do debate sobre as cotas, impedindo que a sociedade e os gestores públicos continuassem ignorando a questão racial. Em pouco tempo, não apenas a adesão aumentou, como a proposta de cotas se tornou a estratégia política a partir da qual o Movimento Negro se reorganizou (ALBERTI, PEREIRA, 2006).

Como a construção da identidade nacional, a História da escravidão e do pós-abolição são temas caros à historiografia e ocuparam um lugar central na defesa das cotas pelo Movimento Negro e seus apoiadores, os historiadores contrários às ações afirmativas e políticas de reparação, de reconhecimento e valorização entraram com toda carga nessa discussão, empenhando o prestígio e autoridade acumulados no campo acadêmico e fora dele para deslegitimar essas propostas e desqualificar seus proponentes.

As cotas no Ensino Superior começaram a ser implementadas em 2001, nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Célia Maria Marinho de Azevedo se posicionou contrária à proposta desde o início do debate, afirmando que não se sabe quem é negro no Brasil, já que as definições de cor variam “segundo a posição social, e mesmo segundo a amizade ou inimizade de alguém em relação a outro, ou humores de ocasião” (2001, p. 355), argumento tradicionalmente explorado nas Ciências Humanas com o fim de negar ou minimizar o preconceito racial, que já se verificou não ser incompatível com o preconceito de classe (GONZALEZ, HANSELBALG, 1982; GUIMARÃES, 2005). Na sua avaliação, ao racializar um grupo de brasileiros, identificado como negro, os defensores das cotas deslizam “num plano totalitário com pretensões humanistas” (2004, p. 218), mostrando desconhecerem os interesses e valores do povo brasileiro. Segundo sua denúncia, as cotas interessavam apenas algumas correntes do Movimento Negro, políticos oportunistas e fundações de fomento estadunidenses.

Quando a UnB adotou as cotas em 2003 e criou uma comissão para impedir que brancos oportunistas se declarassem como negros e ocupassem as vagas dos cotistas, Azevedo classificou a instauração daquele “tribunal racial” como emblemático, “porque em nenhum outro caso a lógica de se atribuir raça aos seres humanos foi desenvolvida até as suas últimas consequências e com tanta clareza” (2005, p. 222).  Na sua opinião, incapazes de escapar “aos apelos político-militantes”, os historiadores estavam reescrevendo a História numa perspectiva identitária reducionista, colocando em “cena a visão autoritária de quem pretende que as suas próprias fronteiras militantes se imponham na pesquisa histórica, cegando o pesquisador”.

José Roberto Pinto de Góes, no Estadão, afirmou que o uso da categoria raça se pautava em “equívocos, preconceitos e trapaças metodológicas”, e que o “primeiro tribunal de pureza racial no Brasil”, na UnB, se assemelhava à Alemanha nazista (2004). Na sua opinião, “nem importa o quanto critérios raciais influem na vida das pessoas”, lhe parecia um erro açular o “orgulho racial”, pois “somos misturados demais” e “não temos o defeito da intolerância racial” (2004). Góes escreveu que apesar de o racismo existir, importava apenas que a cultura brasileira tinha aversão ao racismo, o que lhe induzia a concluir que “o governo está convencido de que somos um povo racista (nisso, ele não inova; historicamente, os governos sempre tiveram uma péssima impressão do povo). Mas não somos” (2004), contrariando o resultado de estudos sobre o racismo no país (GONZALEZ, HANSELBALG, 1982; GUIMARÃES, 2005). Para explicar a prática do racismo entre um povo que não é racista, Góes evocou esse sujeito abstrato, o “povo” brasileiro, mestiço e tolerante, único representante legítimo da nacionalidade, excluindo dessa categoria todos que não possuem esses atributos, caso dos racistas. Por fim, Góes clamou em oração: “Que Deus e os orixás nos conservem assim”! (2004), sacralizando seu discurso.

Aproveitando-se da autoridade conferida aos intelectuais pelo senso comum, como formadores de opinião com espaço privilegiado na imprensa, a estratégia foi silenciar sobre todo pensamento crítico acumulado sobre o tema nas últimas décadas, fazer o negacionismo subsumir sob a capa da cientificidade e polarizar o debate, que supostamente opunha cientistas e doutrinadores ideológicos.

 

O negacionismo dos historiadores no combate às políticas de reconhecimento e reparação

O debate sobre as ações afirmativas se acirrou em 2006, com a tramitação dos projetos da Lei de Cotas para negros e indígenas e do Estatuto da Igualdade Racial no Congresso. O que se seguiu foi a emblemática a mobilização de professores, intelectuais e artistas na elaboração do manifesto contra as cotas, que ameaçariam o princípio de que “todos têm direitos iguais na república democrática” e semeariam um “perigoso tipo de racismo”[5]. O manifesto foi subscrito por vários historiadores, que concordaram em convencer as pessoas com previsões de violentos conflitos sociais caso os projetos fossem aprovados (GOSS, 2014).

Rastreamos as manifestações dos historiadores contrários às cotas a partir da coletânea Divisões perigosas (2007), que também contou com participação de cientistas de outras áreas. Essa opção tem limitações, já que o livro contou com historiadores que atuavam, em sua maioria, no Rio de Janeiro. Faz parte da estratégia de grupos hegemônicos induzir que seus espaços de atuação sejam identificados como representativas do geral, perspectiva que não compartilho. Mas a coletânea foi organizada por Yvonne Maggie, Peter Fry e outros que estiveram à frente da coleta de assinaturas para manifesto contra as cotas e encaminhamento do documento para o então senador Renan Calheiros, o que confere relevância à publicação e justifica a decisão de privilegiar os textos ali reunidos.

Na apresentação da coletânea se afirmou que todos ali reunidos concordavam que o Brasil era “extremamente misturado, mestiço”, um dado da realidade contrariado pela “criação” da dicotomia que opunha negros e brancos, evidência de como o racismo heterofóbico, marcado pela negação da diferença (GUIMARÃES, 2005) está arraigado no pensamento social brasileiro. Ao negar a existência de uma produção científica que legitima a reivindicação de identidades raciais distintas, a pretensão é impor o Brasil mestiço, que nega a diversidade, como único paradigma válido, já que seria o único produzido por cientistas com interesses estritamente acadêmicos, sem pretensão de mobilização política e sem a “influência de orientações internacionais, agências multilaterais, redes transnacionais de movimentos sociais” (MAGGIE et alii, 2007, p. 20), perspectiva pautada na defesa de uma produção científica distanciada e imparcial. Se a pretensão dos organizadores era reunir as opiniões convergentes sobre o tema, para os historiadores, ações afirmativas demandadas pelo Movimento Negro resultavam de “operação ideológica arbitrária” que tenta “macaquear” a experiência estadunidense (MAESTRI, 2007, p. 257, 260), promovida por “grupos racistas” e revanchistas que estariam controlando o Estado (GÓES, 2007, p. 199).

Reiterando a estratégia de prever o trágico fim do Brasil pacífico e tolerante, afirmavam preocupar “que a restauração do conceito anacrônico de ‘raça’ para a produção e identidades raciais oficiais possa irrigar a árvore da qual venham talvez a pender os venenosos frutos do ódio racial” (MAGGIE et alii, 2007, p. 20). Para insuflar o medo dos intelectuais negros que integravam o governo de esquerda, citaram uma declaração de Matilde Ribeiro, então ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, afirmando preferir brancos ressentidos com os negros nas universidades, do que preservar os brancos felizes às custas do negro fora da universidade. Apesar de a produção teórica especializada há muito consensuar que os termos negro e raça não possuem significados fixos, sendo legitima sua ressignificação pelo Movimento Negro e pelas Ciências Humanas (GONZALEZ, HANSELBALG, 1982), os autores do manifesto ignoraram o conhecimento científico acumulado nas últimas décadas afirmando que o conceito de “raça” mobilizado pela militância e pelo Estado reproduzia o anacrônico “racismo científico” do século XIX. O objetivo era induzir ao erro e convencer que o conceito teria uma acepção unívoca e atrelada à experiência histórica da expansão imperial europeia, o que justificaria o medo de que as identidades étnico-raciais estivessem servindo de pretexto para “legitimar lideranças políticas, segregar e espoliar populações, sustentar privilégios e cristalizar discriminações” (MAGGIE et alii, 2007, p. 21), desta vez em favor dos negros, instigando o terror branco do revanchismo negro.

Em texto originalmente publicado na revista de divulgação Ciência Hoje, Monica Grin admite haver discriminação racial, mas compara o Brasil com os Estados Unidos das Leis Jim Crow, a África do Sul do apartheid, e a Alemanha nazista (2007, p. 296), estratégia que induz à minimização de suas consequências. Francisco Carlos Palomares Martinho, segue estratégia parecida, recorrendo a Joaquim Nabuco para afirmar que, como houve pretos e pardos proprietários de escravizados “as relações entre homens livres e cativos não ‘se azedou’ como, por exemplo, nos Estados Unidos” (2007, p. 180). Mas enquanto Grin contestou que haja “duas ‘raças’: uma ‘branca’, historicamente dominada e privilegiada, e outra ‘negra’, historicamente excluída e oprimida” (2007, p. 298), negando os vínculos entre desigualdade de raça e classe, Martinho investiu na alarmante previsão de que a implementação das cotas tornaria “difícil conter o racismo. Principalmente entra a população ‘branca’ e pobre”, que deixaria de dissimular o preconceito por ressentirem-se das possíveis vantagens alcançadas pelos negros pobres. Frente à essa perspectiva declarou: “prefiro o racismo acanhado” (2007, p. 181-182).

Ao comparar o Brasil com outros países e positivar a ideia de que o povo brasileiro tem vergonha de manifestar o racismo, mas não de ser racista, Grin e Martinho minimizam a importância e os impactos da diversidade de formas pelas quais esse suposto “racismo acanhado” se manifesta, ignorando o resultado de estudos sobre o tema. Estes mostram que os “silêncios, implícitos, denegações, discursos oblíquos, figuras de linguagem, trocadilhos, chistes, frases feitas, provérbios, piadas e injúria racial, microtécnicas de poder” (SALLES JÚNIOR, 2006, p. 235), difundem estereótipos que são naturalizados e socialmente aceitos, objetivando fazer os negros não perderem de vista o lugar inferior que os privilegiados lhe atribuem na hierarquia social (GONZALES, 1984; GUIMARÃES, 2000; SALLES JÚNIOR, 2006).

Outra preocupação dos historiadores era negar que a cor negra e a origem africana fossem fatores determinantes na ordenação do sistema escravista no Brasil. José Roberto Pinto de Góes chamou atenção para essa “desinformação” em texto originalmente publicado no jornal O Globo, em que afirmou: “Mas o que sabem os brasileiros do passado, senão o que a escola ensina, sendo o que a escola ensina uma caricatura malfeita do passado”? (2007, p. 60-61). Não será problematizado que esteja vinculado a um Centro de Educação e Humanidades, seja responsável pela formação inicial de professores da Educação Básica, e critique a História ensinada na escola como se não lhe dissesse respeito. Para objetivo desse artigo, interessa ter defendido que, no Brasil dos séculos XVIII e XIX, a população de cor “vivia, trabalhava, casava, se amancebava, envelhecia e morria do mesmo jeito que os sem cor” (2007, p. 60). Não existe estudo acadêmico, com rigorosa análise crítica de fontes, que possa subsidiar a afirmativa de que as experiências históricas de brancos e negros fossem indistintas no Brasil escravista, mas há estudos sobre o Brasil oitocentista que comprovam o antagonismo e o temor da violência entre a população livre e escravizada (REIS, SILVA, 1989; MATTOS, 2004), conhecimento que Góes nega para desvincular o racismo das injustiças e desigualdades no país.

Se valendo da autoridade de especialista, Góes afiançou que “a escravidão moderna não era coisa apenas de ‘branco’” (2007, p. 59), também evocando Nabuco para afirmar que “a escravidão não chegara a ‘azedar’ a alma do preto contra o branco porque estava aberta a todos” (2007, p. 60). Aqui, o negacionismo contraria o resultado de estudos acadêmicos sobre revoltas escravas no Brasil, que explicitam a violência de escravizados negros e contra proprietários brancos (REIS, SILVA, 1989; MACHADO, 1994; ANDRADE, 1998-1999). Além disso, se utiliza um dado correto e verificável – o acesso generalizado ao direito de propriedade – para subsidiar uma informação incorreta, que é a negação de que a cor negra e a origem africana fossem critérios estruturantes da organização do sistema escravista no Brasil. A omissão oportunista tenta fazer esquecer que a liberdade, salvaguarda dos demais direitos na sociedade escravista, foi negada exclusivamente aos indígenas, africanos e seus descendentes, o que permite afirmar que, se a propriedade de escravizados não era coisa apenas de branco, apenas os brancos foram poupados da escravização moderna.

No jornal O Globo, Góes chamou de “inverdade histórica” o trecho das Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que propõe, no dia 13 de maio, denunciar as repercussões da eliminação física e simbólica da população negra, contestando: “Mas que provas existem de uma política de eliminação física de ‘afro-brasileiros’ depois de 1988?” (2007, p. 198). De forma desdenhosa, a pergunta nega o resultado das pesquisas empreendidas desde o seminal O genocídio do negro brasileiro, de Abdias Nascimento (1978), sobre a imposição do etnocentrismo europeu nos currículos escolares, a perseguição das manifestações culturais e religiosas de origem africana e a violência policial que mata os jovens negros. Por fim, Góes pergunta: “Que responsabilidades têm os vivos pelas infâmias do passado?” (2007, p. 199), recusando a associação entre o passado e o presente com fins de reparação.

Ronaldo Vainfas, em texto originalmente publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, também escreveu que no Brasil havia negros traficantes e proprietários de escravizados, e que por aqui prevaleceria “o preconceito mais velado, em contraste com a violência da discriminação nos Estados Unidos” (2007, p. 86), positivando ter havido entre nós “uma abolição lenta, negociada, tecida na esfera das elites políticas”, no lugar da “abolição traumática” estadunidense, provocando o surgimento da Ku Klux Klan. Vainfas concluiu seu texto com a terrível previsão: “em tempos de ações ‘racialistas’, vale a pena lembrar os feitos trágicos dessa milícia, KKK” (2007, p. 86-87), reforçando a estratégia de promover o pânico de conflitos raciais violentos no caso de vitória do lado adversário. A aposta era que havia um público receptivo à ideia do Brasil como uma nação cordial e tolerante, avessa aos conflitos, cuja paz só poderia ser ameaçada por elementos subversivos e antidemocráticos – nesse caso, os “racialistas” do Movimento Negro – que por meio das cotas pretendiam se apropriar daquilo que não lhes pertencia de forma autoritária, uma construção discursiva semelhante à utilizada pela imprensa e políticos de direita contra os comunistas e a esquerda (MARIANI, 2019).

Passados dez anos, Vainfas voltou a minimizar os efeitos do preconceito racial no Brasil em entrevista ao jornal lisboeta Diário de Notícias, afirmando: “No Brasil nunca houve um Ku Klux Klan. Então existe uma discriminação? Existe. [...] Existem discriminações um pouco mais rígidas, de ingresso aqui e acolá, mas não é isso que prevalece na história do Brasil” (FERREIRA, 2017). Ao declarar que a “exclusão da maior parte da população hoje chamada de afrodescendente decorre de uma exclusão social”, nega que o preconceito racial imponha obstáculos à vida social e profissional da população negra, como intelectuais têm mostrado em seus estudos acadêmicos há mais de meio século (NASCIMENTO, 1978; GONZALES, HASENBALG, 1982). Na sua opinião, o racismo não passava de “discriminação quotidiana, que passa muito por uma cultura de deboche, de piadas” (FERREIRA, 2017), perspectiva que minimiza os efeitos do racismo recreativo como parte de “um esquema no qual membros do grupo racial dominante atuam com o objetivo de legitimar as formas de manutenção do status privilegiado que sempre possuíram” (MOREIRA, 2018, p. 100).

Nos habituamos a pensar no sujeito negacionista como “um iletrado ingênuo ou um letrado mal-intencionado da extrema direita ou da extrema-esquerda”, mas há evidências de negacionismo em que “o agente da recusa à realidade, ao passado imediato, é o professor formador de profissionais de História que planta as sementes que vicejam como contexto e ambiente para a proliferação de negacionismos de fatos vários” (OLIVEIRA, OLIVEIRA, no prelo). Enquanto seguem defendendo com vontade férrea seus negacionismos, descartando como ideológica toda produção científica qualificada e especializada que, desde os anos 1970, vem analisando as relações entre brancos e negros no Brasil escravista e no pós-Abolição, estes professores deslegitimam as demandas dos movimentos sociais, criam barreiras para a difusão de uma cultura democrática comprometida com o reconhecimento, respeito e valorização da diversidade, transformam as desigualdades e discriminação racial em um não-problema, e assim diminuem o impacto social coletivo da História ensinada nas universidades e nas escolas.

 

Princípios, valores e ética

Como temos visto, a valorização da mestiçagem é um elemento comum nos textos de historiadores contrários às cotas, reabilitando Gilberto Freyre. Na avaliação de Manolo Florentino, em texto originalmente publicado no Jornal do Brasil, Freyre foi “um dos melhores intérpretes do Brasil”, cuja complexidade “o coloca na contramão de inteligências pedestres e de ideologias vulgares”, desqualificando qualquer objeção a sua obra como produto da “ignorância” e “censura ideológica” (2007, p. 92). Em sua opinião, a mais valiosa contribuição de Freyre para o pensamento social brasileiro foi a seguinte: “de abastardante a miscigenação virou elemento civilizacional positivo e válido” (2007, p. 93), resultado de uma mistura “vitoriosa e quase livre”, com destaque para a contribuição das mulheres forras.

Majoritárias entre os libertos, logo uniam-se a homens livres pobres, não raro portugueses famintos de mulher. Eis aqui um dos logros mais esquecidos da evolução do pensamento de Gilberto de Casa-grande e senzala a Novo mundo nos trópicos: a alforriada contribuía mais e melhor à mestiçagem do que o intercurso entre a escrava e seu senhor. Resultamos do encontro de pobres amantes (2007, p. 93).

 

Referências nos estudos da escravidão, Florentino se vale de sua autoridade intelectual para, sem qualquer constrangimento, reduzir o papel social das mulheres negras à sexualização de seus corpos, disponibilizados para satisfação do desejo sexual masculino branco. O problema não é a referência aos laços estabelecidos entre mulheres negras e homens brancos, mas tratar essas mulheres como pedaços de carne prontos para serem comidos. Essa perspectiva mostra a força do “mito da mulata” e toda violência dele decorrente (GONZALES, 1984) entre historiadores que não se veem como racistas, machistas ou sexistas. É revelador o uso do eufemístico “intercurso” para se referir ao estupro sistemático de mulheres negras durante os mais de 350 anos em que vigorou a escravização de africanos e afrodescendentes no Brasil, com o fim de romantizar e escamotear a violência que está na origem da população miscigenada no país. Florentino legitima e positiva a violência sexual contra mulheres negras escravizadas com um vocabulário que reveste de verniz acadêmico a ideologia patriarcal, que reduz as mulheres negras à objeto de desejo e propriedade dos homens, fomentando a violência de gênero num país em que a cultura do estupro vitimiza as mulheres negras mais que qualquer outro grupo racial, em razão da desumanização e ultrassexualização histórica de seus corpos (RIBEIRO, 2018).

Por fim, como análises de DNA afirmavam que dois terços da população brasileira identificada como branca tinha ascendência indígena ou africana, Florentino aconselhou os brancos reprovados em concursos públicos com reservas de cotas: “reivindiquem as vagas dos negros” (2007, p. 94), o que nos diz muito sobre o lugar que atribui à ética em seu ofício.

José Murilo de Carvalho, em texto originalmente publicado no jornal O Globo, escreveu que a classificação étnico-racial proposta pelo IBGE era uma “falácia” inspirada pelos estadunidenses e apropriada por “ativistas do movimento negro, sociólogos, economistas, demógrafos, organizações não-governamentais, órgãos federais de pesquisa”, em conluio imposto “não para acabar com a polarização, mas para implementá-la num país em que ela não existia” (2007, p. 113-115). Contestando a identificação de pretos e pardos como negros, Carvalho mencionou pesquisa realizada pelo IBGE, em que as pessoas se auto classificaram como “morenas e morenas claras em 60% dos casos”, e pesquisa no Rio de Janeiro revelando que 50% dos pardos se diziam “morenos ou brancos” (2007, p. 114), dados que lhe permitem promover a imagem de um Brasil miscigenado embranquecido, e escamotear a emergência de manifestações culturais reivindicando uma identificação étnica e racial distinta do ideário de brasilidade mestiça (COSTA, 2001).

Chama atenção que Carvalho negue uma polarização pautada em identidades e preconceitos raciais pois, em best-seller dirigido ao público médio, afirmou que em nosso país “a desigualdade é sobretudo de natureza regional e racial” (2008, p. 208). Sobre a garantia dos direitos civis, afirmou que os cidadãos brasileiros estavam divididos em três classes: na primeira, acima da lei, estavam os “invariavelmente brancos, ricos, bem vestidos, com formação universitária”; na segunda, sujeita aos rigores e benefícios da lei, havia brancos, pardos ou negros; e na terceira estariam “os elementos” marginais das grandes cidades, “quase invariavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com educação fundamental incompleta” (2008, p. 215-216). Portanto, Carvalho não nega as diferenças raciais. O que nega é a existência de conflitos motivados por preconceitos raciais. E tem mais, a ausência de conflitos não ocorreria apesar do passado escravista, mas em razão do passado escravista.

Em texto publicado no jornal Folha de São Paulo, apropriadamente intitulado Saudade do escravo, o expediente de comparar a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos é utilizado por Carvalho para comprovar a tese de que “o caráter democrático (termo meu)[6] de nossa escravidão consistia em não ser ela monopólio de uma raça, [...] em não se basear na separação – e no ódio – das raças. Ela não desenvolveu entre nós a prevenção da cor” (2000), sendo “prevenção da cor” o eufemismo que utiliza para suavizar a referência ao preconceito racial. Sua tese central é inexistir qualquer aversão, antipatia ou desprezo do branco pelo negro, assim como o contrário. Na última parte do artigo, ainda recorrendo ao eufemismo como estratégia discursiva, Carvalho se refere às memórias de Joaquim Nabuco sobre suas experiências nos engenhos das antigas províncias do Norte do Império para declarar:

Os escravos dos engenhos nordestinos não só não se revoltavam contra sua condição como revelavam gratidão ao senhor a quem tudo davam. Eles perdoavam a dívida do senhor, anistiando assim os países que se construíram com base na escravidão. Sua doçura emprestava até mesmo um reflexo de bondade à opressão de que eram vítimas. (CARVALHO, 2000).

           

Sob o olhar do professor titular de História e professor emérito da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, a negação interpretativa da escravidão parece tomar sua forma mais radical, projetando no Brasil escravista um passado do qual todos deveriam recordar com saudosismo, dado seu empenho em convencer o público leigo, com acesso aos artigos que publica na imprensa, que as relações entre senhores e escravizados teriam como marcas distintivas a gratidão, a doçura e a bondade. Dessa forma, Carvalho reelabora e revalida o mito do senhor benevolente, cujo caráter teria sido moldado por meio das relações estabelecidas com os escravizados, que teriam perdoado todas as dívidas desse senhor e aceitado passivamente e de bom grado a condição de escravizados. Eis então uma versão ideologicamente comprometida do passado escravista, que obviamente desautoriza e deslegitima qualquer ação afirmativa ou política de reparação, reconhecimento e valorização.

 

Políticas de reconhecimento e valorização acusadas de doutrinação ideológica

Podemos nos congratular mutuamente como defensores de uma “cultura histórica democratizada” (ARAÚJO, 2017, p. 204), mas os grupos que detém poder em nosso campo atuam vigorosamente com o fim de manter, nos currículos das universidades e escolas, a hegemonia de uma narrativa com contribuições limitadas para a experiência democrática.  Por isso, há décadas os profissionais da História vêm sendo instados a produzir um conhecimento mais próximo das pessoas comuns, que revise os papeis atribuídos aos sujeitos e grupos sociais historicamente excluídos, o que implica numa abordagem do conhecimento histórico assumidamente conectada às discussões sobre agências e projetos políticos desses grupos de sujeitos. A primeira versão da Base Nacional Comum Curricular, publicizada em 2015, visava atender essas demandas, aproximando os estudos históricos e a realidade vivida pelos estudantes, ao mesmo tempo em que propunha uma alternativa para a narrativa histórica etnocêntrica europeia, enfatizando o reconhecimento e a valorização da diversidade da sociedade brasileira (OLIVEIRA, OLIVEIRA, 2018). Como as leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008 eram as únicas a instituir conteúdos obrigatórios no currículo escolar, se tornaram importantes balizas do documento, fazendo retornar com força o debate sobre ações afirmativas.

De acordo com as Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é preciso reconhecer que as pessoas negras têm direito de reivindicar uma história e cultura próprias, com significados indissociáveis da ascendência africana, para que se valorize a “diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira”. Desse modo, “reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas” (BRASIL, 2013, p. 499). Como currículo é disputa, o que se colocava em jogo era a hegemonia da narrativa historiográfica etnocêntrica europeia, que desde o Império e início da República reflete um projeto de construção de identidade nacional que estabelece a Europa como origem e modelo de civilização, discriminando os povos indígenas e de origem africana, e embranquecendo nossa história e formação cultural (GUIMARÃES, 1988; ABUD, 1998; SILVA, 2010).

Para que esse projeto fosse superado, a inclusão da História e Cultura Indígena Africana e Afro-Brasileira se tornou obrigatória nos currículos escolares, uma decisão que se esperava repercutir na escola e na formação dos professores. O objetivo não era “mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira” (BRASIL, 2013, p. 503). No entanto, na maioria dos departamentos de história, o interesse pela legislação se restringiu à possibilidade de utilizá-la com pretexto para introduzir um novo componente curricular obrigatório nos currículos e, assim, justificar o pedido de novos concursos para professores de História em instituições públicas de Ensino Superior, um passo promissor para a criação de um campo de estudos. O interesse na ampliação dos postos de trabalho em detrimento ao ensino escolar é flagrante, já que a maioria dos concursos sequer incluiu o ensino entre os temas dos pontos de prova (SOUZA, 2021).

Quando a primeira versão da BNCC foi publicizada, foi um sobressalto. Contra a proposta se colocaram o Ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, e parte considerável dos historiadores que atuam nas universidades[7]. O empenho desses historiadores em defenestrar a primeira versão da BNCC foi esquadrinhado por Luis Fernando Cerri e Maria Paula Costa (2021), que destacaram a frequência da acusação de “doutrinação”, em alguns casos reelaborada como crítica ao viés “nacionalista”, como principal expediente utilizado para desqualificar o documento e os profissionais que atuaram em sua elaboração. Mesmo Gilberto Calil, visto como um crítico diferenciado por se posicionar à esquerda, afirmou que a BNCC tinha claro “viés patriótico, nacionalista e brasilcentrista” (2015, p. 42), evidenciando compartilhar com os demais o menosprezo pela chamada produção militante. Quanto aos demais historiadores que se posicionaram publicamente contra o documento, Cerri e Costa avaliaram que se alinharam “aos setores mais radicalmente conservadores da sociedade” (CERRI, COSTA, 2021, p. 3).

Na carta de repúdio apresentada pelo Fórum dos Profissionais de História Antiga e Medieval (2015), a proposta foi classificada como uma tentativa de “enquadramento nacionalista” do ensino de História. Seguindo a mesma linha, a Associação Brasileira de Estudos Medievais expressou “forte preocupação com a formação das crianças e adolescentes que sonham com o Egito Antigo; que se reúnem para jogos ambientados na Idade Média”, e afirmou que o documento havia feito escolhas “dificilmente sustentáveis do ponto de vista científico” (2015). A ANPUH-RJ afirmou que “o que a BNCC propõe é uma história nacionalista” por meio da “inversão dos parâmetros eurocêntricos” e de “visões distorcidas do passado”, resultando em uma “uma visão prescritiva e moralizante (e não política) de cidadania” (2015). A historiadora Elaine Barbosa, junto a Demétrio Magnoli no jornal O Globo, disse que a BNCC equivalia a “um decreto ideológico de refundação do Brasil” (2015). Também no jornal O Globo, Marco Antonio Villa classificou o documento como um “panfletarismo barato” (2016). Já a ANPUH-PR criticou o “viés nacionalista e acrítico” (2016) daquela proposta de BNCC.

Ronaldo Vainfas, que havia participado ativamente do debate sobre as cotas, foi quem expôs de forma mais precisa o incômodo com a abordagem proposta pela BNCC para a História Indígena, da África e dos afrodescendentes, que muitos procuravam evitar pela preocupação de serem chamados de eurocêntricos, conservadores e, talvez, racistas. Em texto divulgado no jornal O Globo e publicado com destaque no site da ANPUH Nacional, Vainfas criticou de forma virulenta a ênfase na história dos sujeitos ameríndios, africanos e afro-brasileiros, identificada como uma estratégia do “regime lulopetista” para incentivar os “ódios raciais e valores terceiro-mundistas superados”, questionando a viabilidade de uma proposta curricular centrada no ensino de conceitos e noções estruturantes do conhecimento histórico, tais como sujeitos, grupos sociais, comunidades e lugares de vivência, que na sua opinião eram “impossíveis de serem ensinados a crianças, salvo como doutrina” (VAINFAS, 2015). Note-se que esse último aspecto nem se configurava como uma novidade, pois esses conceitos eram previstos como conteúdo no Ensino Fundamental I desde os velhos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que por sua vez não fizeram mais do que reiterar o conteúdo prescrito pela tradição escolar. Contra a proposta que classificou de “obscurantista”, Vainfas clamou em oração: “Que Deus salve o Brasil desta praga – só apelando a Deus et pour cause”, conferindo um caráter sagrado à sua campanha contra aquela versão da BNCC.

Sem apelos ao Deus cristão, Marcelo Rede também optou por uma abordagem mais direta do problema político por trás daquela proposta curricular, reconhecendo que subvertia a abordagem dos conteúdos de História no que dizia respeito aos grupos raciais e às classes econômico sociais. O problema, no seu ver, era reenquadrar os conteúdos de História

 

a serviço do novo foco: uma história do Brasil vista como desdobramento da história africana e indígena. Essa visão germinou por décadas nas faculdades de pedagogia e de humanidades. Propõe reler a história pelo viés dos dominados e busca versão historiográfica da pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Com uma atualização: à cartilha tradicional da esquerda (na qual o oprimido era, por excelência, a classe trabalhadora) juntou-se a leitura multiculturalista e pós-moderna, que valoriza opressões a grupos específicos (negros, indígenas, mulheres). Em tempos de petismo, tornou-se projeto de reforma do ensino (REDE, 2016).

 

Para Cerri e Costa, a campanha difamatória promovida pelos profissionais de História contra a primeira versão da BNCC recorreu a uma “forma de discurso de alta aceitação no momento do impeachment [da presidenta Dilma Rousseff], o de negação da ciência por meio de uma condenação antecipada dos cientistas de Humanas e Sociais por ‘excesso de ideologia’”, levando ao incômodo reconhecimento de que organizações negacionistas como a Escola Sem Partido usavam “estratégia argumentativa da qual se aproximaram perigosamente alguns setores da própria academia” (CERRI, COSTA, 2021, p. 4). Procurando explicar esse movimento, consideraram que o problema foi seus pares não reconhecerem o Ensino de História como campo de pesquisa, sendo espantoso “que todas as especialidades em História se sintam confortáveis em discutir outra especialidade sem ler sua produção acumulada ou consultar seus especialistas”, e decidam simplesmente “ignorar a produção de conhecimento e de acúmulo de discussão de políticas públicas por tantos debatedores” (CERRI, COSTA, 2021, p. 16-17). Concordo, mas apenas parcialmente.

Não houve apenas uma aproximação perigosa da estratégia argumentativa dos negacionistas. O negacionismo foi efetiva e largamente explorado como estratégia de deslegitimação da primeira versão da BNCC e detratação de seus autores, que negaram “o conhecimento produzido pelos pesquisadores dos domínios do Ensino de História” (OLIVEIRA, OLIVEIRA, no prelo). Os princípios básicos de nosso ofício, como buscar a bibliografia especializada para fundamentar pontos de vista, foram atropelados porque interessava unicamente sepultar a ideia de uma proposta curricular de história vista a partir de baixo, alternativa ao etnocentrismo europeu, com ênfase na história dos povos indígenas, africanos e afro-brasileiros.

Para alguns pode parecer ter escapado à percepção dos detratores da primeira versão da BNCC que naquele contexto, marcado pela mobilização contra o Partido dos Trabalhadores e a presidenta Dilma Rousseff, estavam sendo lançadas as bases do movimento de direita que viria a assumir a direção do país em 2018. Contudo, me parece o contrário, que o êxito político do grupo que derrubou de forma ilegítima a primeira versão da BNCC se deve justamente à percepção de um ambiente político desfavorável ao PT e suscetível a intensa polarização, diferente do início dos anos 2000, quando as cotas foram implementadas. O fortalecimento da extrema direita favorecia uma articulação capaz de barrar eficazmente a emergência de ações afirmativas no ensino, que o Executivo propôs com a colaboração de militantes do Movimento Negro que ocupam cargos no governo. E como na mobilização contra as cotas, os historiadores exploraram o acesso à grande imprensa para furar a bolha do espaço acadêmico e fazer suas ideias chegarem ao público privilegiado que lê artigos de opinião em jornais, alguns só acessíveis aos assinantes. Vencida a batalha, os negacionistas saíram de cena, deixando aos professores da Educação Básica e aos pesquisadores do Ensino de História a tarefa de lidar com o entulho conservador das versões seguintes da BNCC.

 

Considerações finais

Nesse texto foram apresentadas evidências de historiadores negacionistas que, tal como os negacionistas da extrema direita, desqualificaram “não apenas do conhecimento historiográfico produzido nas universidades brasileiras, mas também os próprios historiadores, vistos como portadores de interesses ocultos, ‘doutrinadores’” (VALIM, AVELAR, BEVERNAGE, 2021, p. 26). Houve historiadores que mudaram de opinião? Sim, principalmente no caso das cotas. Quando estão no lado vencedor, as pessoas se sentem menos inclinadas à autocrítica e revisão de seus posicionamentos, mas quando são vencidas tendem a se perguntar sobre o que houve de errado. No entanto, terem mudado de opinião lhes isenta de responsabilidade sobre a difusão daqueles discursos? De modo algum. A despeito de como se posicionem agora, publicaram na imprensa que grupos ideológicos aparelhados no governo tentavam impor nas escolas uma educação moral panfletária, politicamente enquadrada por um partido de esquerda, defensor de um projeto nacionalista que estimula ódios raciais ao valorizar a opressão da classe trabalhadora, de negros, indígenas e mulheres. Intelectuais profissionalmente treinados para analisar relações de poder e cultura política não seriam tão ingênuos de não perceber que estavam insuflando ódios racistas e classistas. Mesmo arrependidos, foram formadores de opinião e porta-vozes dos setores mais radicalmente conservadores e preconceituosos da sociedade.

Esse é um ponto de vista que não agradará os que acreditam nos negacionistas da direita que nos acusam todos de esquerdistas, nem os que confiam na autoimagem de cientistas democratas que forjamos sobre nossa categoria profissional. De todo modo, avalio que precisamos repensar as relações entre Ensino de História e experiência democrática na nossa área, cuja formação e relação com a sociedade poderia ser mais bem conhecida. Como “em casa de ferreiro o espeto é de pau”, conforme diz o adágio popular, quantos de nós conhece a história dos embates que se travaram a cada proposta inclusiva que os grupos detentores de poder em nossa área tiveram de discutir? Nos cursos de Historiografia e História do Ensino de História, talvez devêssemos incluir entre os temas de estudo os embates para a admissão de professores de Educação Básica na ANPUH, a criação dos cursos noturnos, a expansão do número de vagas na graduação, a criação de cursos de pós-graduação fora do eixo Sul-Sudeste, a interiorização por meio dos cursos EaD, a criação da pós-graduação profissional em ensino, e a adoção de cotas raciais e sociais. Do mesmo modo, seria interessante descobrir como, e se, os currículos incorporaram temas referentes à História dos trabalhadores pobres, das mulheres, dos africanos, da população negra e dos povos indígenas no Brasil republicano, da população LGBTQIA+ ou outros grupos excluídos e marginalizados.

Qualquer discussão sobre o compromisso social e responsabilidade de nosso ofício será fragilizada se não assumirmos: o que singulariza e caracteriza o conhecimento histórico na escola e nas universidades, em termos epistemológicos e político-sociais, é o currículo etnocêntrico europeu brancoreferenciada, protagonizado por grupos dominantes brancos ou embranquecidos, povoado quase exclusivamente por figuras masculinas e heteronormativas, com espaço de atuação restrito aos centros do poder, estando o Sudeste para o Brasil como a Europa está para o mundo. Este é o currículo que atende os interesses daqueles que se congratulam por serem movidos tão somente pela defesa da ciência, plenamente satisfeitos com a “falta de lucidez em relação a suas próprias ideias preconcebidas por não sentirem necessidade de elucidar suas motivações” (PROST, 2014, p. 90-91). A despeito dos interditos, essa singularidade revela que, como área de conhecimento, continuamos compromissados com a naturalização e a perpetuação de desigualdades e discriminações de classe, raça, gênero e região, e essa é nossa contribuição para a formação histórica e cultural da população com acesso à educação formal, incluindo os grupos que gritam palavras de ordem antidemocráticas.

Num cenário marcado por polarizações políticas, é urgente fazer parte da ética profissional “enfrentar as decorrências políticas das posições adotadas nos resultados da historiografia e, sobretudo, no ensino e História” (FÉNELON, 1993, p. 74). Do contrário, nossa contribuição à formação e uma cultura democrática inclusiva e atenta às demandas dos movimentos sociais vai continuar dependendo das iniciativas individuais de alguns professores, especialmente dos que ousam assumir compromisso político e responsabilidade social com os excluídos e marginalizados, permanecendo firmes nas trincheiras da resistência, mesmo carregando a pecha de militantes.

 

Referências bibliográficas

ABUD, K. M. Formação da alma e do caráter nacional: ensino de história na Era Vargas. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, p. 103-114, 1998.

ALBERTI, V., PEREIRA, A.. A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 37, p. 143-166, jan./jun. 2006.

ANDRADE, M. F. de. Rebeliões escravas na comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais: o caso das Carrancas. Afro-Ásia, Salvador, n. 21-22, p. 45-82, 1998-1999.

ARAÚJO, V. L. de. O Direito à História: O(a) Historiador(a) Como Curador(a) de Uma Experiência Histórica Socialmente Distribuída.” In: PEREZ, R., GUIMARÃES, G., BRUNO, L.. Conversas Sobre o Brasil: Ensaios de Crítica Histórica. Rio de Janeiro: Autografia, 2017.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS MEDIEVAIS (ABREM). Carta da ABREM sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Goiânia, 2015. Disponível em: http://livrozilla.com/doc/1540512/carta-da-abrem-sobre-a-base-nacional-comumcurricular. Acesso em: 25 set. 2022.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (Seção Rio de Janeiro). Carta crítica da ANPUH-RIO à composição do componente curricular história na Base Nacional Comum Curricular. Rio de Janeiro, 18 nov. 2015. Disponível em: http://rj.anpuh. org/download/download?ID_DOWNLOAD=1614. Acesso em: 25 set. 2022.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA (Seção Paraná). Manifesto público do seminário estadual realizado pela ANPUH/PR sobre a BNCC pela rejeição da proposta de Base Nacional Comum Curricular para a área de História apresentada pelo Ministério da Educação. Marechal Cândido Rondon, 19 fev. 2016. Disponível em: http://www. pr.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=61986. Acesso em: 25 set. 2022.

ÁVILA, A. L. Qual passado escolher? Uma discussão sobre o negacionismo histórico e o pluralismo historiográfico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, p. 161-184, 2021.

AZEVEDO, C. M. M. de. Cotas raciais e universidade pública brasileira: uma reflexão à luz da experiência dos Estados Unidos. Projeto História, São Paulo, n. 23, p. 347-358, nov./2001.

AZEVEDO, C. M. M. de. Cota racial e Estado: abolição do racismo ou direitos de raça. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p. 213-239, jan./abr. 2004.

AZEVEDO, C. M. M. de. Cota racial e jargão policial na universidade: para onde vamos? Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 222-224, jan./jun. 2005.

BARBOSA, E., MAGNOLI, D.. História sem tempo. O Globo, Rio de Janeiro, 08 dez. 2015. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/historia-sem-tempo-17719022. Acesso em: 25 set. 2022.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Diretrizes Curriculares para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. In: Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.

BOGHOSSIAN, B., MONTEIRO, T.. Militares criticam comissão da verdade e homenageiam o golpe de 64. O Estado de São Paulo, São Paulo, 28 mar. 2013. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,militares-criticam-comissao-da-verdade-e-homenageiam-golpe-de-64,1014395. Acesso em: 25 set. 2022.

CALIL, G.. Uma história para o conformismo e a exaltação patriótica: crítica à proposta de BNCC/História. Giramundo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, p. 39-46, jul./dez 2015.

CARVALHO, A. B. de. Razão e paixão: necessidade e contingência na construção da vida ética. Conjectura: filosofia e educação, Caxias do Sul, v. 17, n. 1, p. 199-217, jan./abr. 2012.

CARVALHO, J. M.. Saudade do escravo. Folha de São Paulo, São Paulo, 02 abr. 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0204200032.htm. Acessado em: 25 set. 2022.

CARVALHO, J. M.. Genocídio racial estatístico. In: MAGGIE, Yvonne et alii. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

CARVALHO, J. M.. Cidadania, o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

CERRI, L. F., COSTA, M. P.. O banho, a água, a bacia e a criança: história e historiadores na defenestração da primeira versão da Base Nacional Curricular Comum de História para o Ensino Fundamental. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, p. 1-21, 2021.

CERTEAU, M. de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre. História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

COSTA, S.. A mestiçagem e seus contrários: etnicidade e nacionalidade no Brasil contemporâneo. Tempo social, v. 13, p. 143-158, 2001.

DIAS, R, B.. A Comissão Nacional da Verdade, a disputa da memória sobre o período da ditadura e o tempo presente. Patrimônio e memória, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 71-95, 2013.

FENELON, D. R.. Cultura e História Social. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 73-90, dez./1993.

FERREIRA, Leonídio Paulo. No Brasil nunca houve Ku Klux Klan. Diário de Notícias, Lisboa, 17 set. 2017. Disponível em: https://www.dn.pt/mundo/no-brasil-nunca-houve-um-ku-klux-klan-8776741.html . Acesso em: 25 set. 2022.

FERREIRA, M. de M.. Notas iniciais sobre a história do tempo presente e a historiografia no Brasil. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 80 ‐ 108, jan./mar. 2018.

FLORENTINO, M.. Da atualidade de Gilberto Freyre. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FÓRUM DOS PROFISSIONAIS DE HISTÓRIA ANTIGA E MEDIEVAL. Carta de Repúdio à BNCC produzida pelo Fórum dos Profissionais de História Antiga e Medieva. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3127-carta-de-repudio-a-bncc-produzida-pelo-forum-dos-profissionais-de-historia-antiga-e-medieval. Acesso em: 25 set. 2019.

GOES, José Roberto Pinto de. Cotas, um remédio que é um veneno. Estadão, São Paulo, 13 abr. 2004. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,cotas-um-remedio-que-e-veneno,20040413p7862. Acesso em: 25 set. 2019.

GOES, José Roberto Pinto de. Histórias mal contadas; O racismo vira lei. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

GONZALES, L., HASENBALG, C.. Lugar de negro. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1982.

GONZALES, L.. Racismo e Sexismo na Cultura brasileira. Ciências Sociais Hoje, p. 223-244, 1984.

GOSS, K. P.. Conservadores X Progressistas: o debate entre intelectuais sobre as políticas de ação afirmativa para estudantes negros no Brasil. Revista Tomo, Aracajú, n. 24, p. 109-143, jan./jun. 2014.

GRIN, Mônica. O Estatuto da Igualdade Racial: uma questão de princípio. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

GUIMARÃES, A. S. A. O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação. Estudos afro-asiáticos, Rio de Janeiro, n. 38, p. 31-48, dez./2000.

GUIMARÃES, A. S. A. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2005.

GUIMARÃES, M. L. L. S.. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 5-27, 1988.

JESUS, C. A. N. de, GANDRA, E. A.. O negacionismo renovado e o ofício do historiador. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 46, n. 3, p. 1-17, set.-dez. 2020.

MACHADO, M. H.. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed. Da UFRJ, Edusp, 1994.

MAESTRI, M.. A racialização do Brasil. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de JAneiro: Civilização Brasileira, 2007.

MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

MARIANI, B.. As formas discursivas e a ameaça comunista. Línguas e Instrumentos Linguísticos, Campinas, SP, n. 44, p. 270-289, jul./dez. 2019.

MARTINHO, F. C. P.. O pomo da discórdia: sobre as cotas raciais e o debate na Uerj. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

MATTOS, I. R.. O tempo saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: HUCITEC, 2004.

MOREIRA, A. J.. O que é racismo recreativo? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

NASCIMENTO, A.. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

OLIVEIRA, I. F. de; OLIVEIRA, M. M. D. de. Base Nacional Curricular Comum: Caminhos percorridos, desafios a enfrentar. In: CAVALCANTI, E.; ARAUJO, R. I. S.; CABRAL, G. G.; OLIVEIRA, M. M. D. de (Org.). História: demandas e desafios do tempo presente. São Luís:  EDUFMA, 2018.

OLIVEIRA, I. F. de; OLIVEIRA, M. M. D. de. Podemos afirmar que os professores formadores são negacionistas?. In: IV SEMINÁRIO NACIONAL HISTÓRIA E CONTEMPORANEIDADES. Passados (re)negados: história, verdades e demandas políticas. No prelo.

PROST, A.. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

REDE, M.. O assassinato da História. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 fev. 2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1744204-o-assassinato-da-historia.shtml. Acessado em.

REIS, J. J., SILVA, E.. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

RIBEIRO, D.. Quem tem medo do feminismo negro: São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

SALES JÚNIOR, R.. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 229-258, nov./2006.

SILVA, A. C.. Desconstruindo a discriminação do negro no livro didático. Salvador: EDUFBA, 2010.

SILVA, J. P. da. Relações étnico-raciais e o espaço escolar: articulações e dissonâncias entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro a partir do Programa Nacional do Livro Didático (1995-2014). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019.

SOUZA, J. T. Educar para as relações étnico-raciais na escola e na universidade. In: ANDRADE, J. A. de, PEREIRA, N. M. Ensino de História e suas práticas de pesquisa. São Leopoldo: Oikos, 2021.

VAINFAS, Ronaldo. Racismo à moda americana. In: MAGGIE, Y. et al.. Divisões perigosas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

VAINFAS, Ronaldo. A nova face do autoritarismo. O Globo, Rio de Janeiro 05 dez. 2015. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/nova-face-do-autoritarismo-18225777. Acesso em: 25 set. 2022.

VALIM, P., AVELAR, A. de S., BEVERNAGE, B.. Apresentação. Negacionismo: história, historiografia e perspectivas de pesquisa. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 41, n. 87, p. 13-36, 2021.

VILLA, Marco Antonio. A revolução cultural do PT, O Globo, Rio de Janeiro, 05 jan. 2016. Disponível em: http://oglobo.globo.com/opiniao/a-revolucao-cultural-do-pt-18407995. Acesso em: 25 set. 2022.

 

Recebido em 20/10/2022.

Aceito em 14/12/2022.



[1] Doutora em História Social. Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Brasil. E-mail: juliana.teixeira.souza@ufrn.br | https://orcid.org/0000-0002-9537-7884

[2] Agradeço imensamente à Margarida Maria Dias de Oliveira e Itamar Freitas de Oliveira o acesso à publicação no prelo, assim como à leitura e sugestões para revisão desse artigo.

[3] A oposição às ações afirmativas contou com a participação de profissionais das várias áreas das Ciências Humanas, mas como o objetivo deste artigo é problematizar o que singulariza e caracteriza o conhecimento histórico, o corpus documental foi composto por artigos acadêmicos, artigos de opinião, cartas e manifestos publicados na imprensa e internet por profissionais formados em História ou profissionalmente vinculados a departamentos de História.

[4] No site da Escola Sem Partido, ver abas Quem somos e Programa Escola Sem Partido. Disponível em http://escolasempartido.org/. Acesso em: 25 set. 2022.

[5] Rapidamente, outro grupo de professores, pesquisadores, intelectuais e militantes do Movimento Negro lançou um manifesto a favor das cotas, também subscrito por vários historiadores. Os dois manifestos foram amplamente divulgados na imprensa. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acesso em: 25 set. 2022.

[6] O adendo “(termo meu)” está no texto original.

[7] Uma outra leitura, que assume um posicionamento crítico sobre a primeira versão da BNCC sem deixar de valorizar a ênfase na diversidade étnico-racial e cultural da população brasileira foi proposta por Martha Abreu, sendo divulgada pela ANPUH-RJ e MEC. Disponível em: https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3126-carta-da-profa-dra-martha-abreu-sobre-a-carta-critica-da-anpuh-rio-a-proposta-da-bncc. Ver também: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/Martha_Abreu.pdf. Acesso em: 25 set. 2022.