A Grande Substituição, o colonialismo projetado e os usos do passado: esboço para uma crítica ao caráter paranoico da Nova Direita francesa

The Great Replacement, projected colonialism and the uses of the past: outline for a critique of the paranoid character of the French New Right

 

                                                                                               Victor Barone[1]

Glaydson José da Silva[2]

 

 


Resumo

Este texto tem um duplo objetivo: por um lado, analisar a obra de Renaud Camus, Le Grand Replacement, representativa do ideário da Nouvelle Droite francesa e da extrema-direita mundial, a partir de uma abordagem que articula os estudos coloniais e a psicanálise; por outro lado e na sequência, busca-se compreender o papel dos usos do passado neste discurso conspiracionista da extrema-direita, isto é, busca-se explicar a parte que cabe ao passado, em especial à História Antiga, na prática discursiva daqueles que partilham da crença na teoria popularizada por Camus, A Grande Substituição. Nesse sentido, o texto, desdobramento de uma pesquisa de mestrado, analisa tanto o caráter paranoico da Nouvelle Droite francesa no que se refere ao seu discurso conspiracionista, bem como o papel dos usos do passado neste mesmo discurso.

Palavras-chave: Usos do passado; Nova Direita francesa; Psicanálise.

Abstract

The purpose of this article is twofold: in one hand, to analyze the work of Renaud Camus, Le Grand Replacement, representative of the ideas of the French Nouvelle Droite and the global extreme right, from an approach that articulates colonial studies and psychoanalysis; on the other hand, it seeks to understand the role of the uses of the past in this far-right conspiracy discourse, that is, it seeks to explain the part that belongs to the past, especially to Ancient History, in the discursive practice of those who share the belief in the theory popularized by Camus, The Great Replacement. In this sense, the text, unfolding from a master research, analyzes both the paranoid character of the French Nouvelle Droite in relation to its conspiracy discourse, as well as the role of the uses of the past in this same discourse.

Keywords: Uses of the past; Nouvelle Droite; Psychoanalysis.


 

 

 

 

Horkheimer é o autor de uma grande sentença: “Quem não quer falar do capitalismo deve calar-se também sobre o fascismo”. É uma sentença que, contestando mais uma vez a “teoria crítica”, deve ser reformulada: “Quem não quer falar do colonialismo deve calar-se também sobre o capitalismo e o fascismo”.

Domenico Losurdo, em O Marxismo Ocidental (2018, p. 100-101).

 

Na esteira da socióloga americana Cynthia Miller-Idriss, é possível argumentar que, durante os últimos anos, a extrema direita se tornou global. E este global não diz respeito ao tipo de abordagem sociológica ou historiográfica adotado pela autora. Pelo contrário, é em razão de uma atribuição de seu próprio objeto que decorre a necessidade do uso do termo. Na visão dos militantes, a ameaça à civilização branca é global e, com efeito, as extremas-direitas partilham entre si um mesmo desafio.[3] Como aponta Miller-Idriss (2020, p. 16): “o extremismo de direita, especialmente hoje, está globalmente conectado e entrelaçado”, uma vez que compartilha de uma mesma tarefa diante de uma ameaça pós-colonial (CAHEN; BRAGA, 2018), isto é, de ameaças constituídas por estruturas herdeiras do colonialismo europeu e, em particular, francês.[4]

A referida ameaça comum a todos os grupos da extrema direita global – sejam eles parte da Nouvelle Droite francesa, da far-right americana, dos White Supremacists, dos identitários[5] europeus ou dos neonazistas assumidos (CAMOUS; LEBOURG, 2017) – tem origem em uma teoria elaborada por Renaud Camus, romancista francês e ideólogo da extrema direita, em seu romance intitulado Le Grand Replacement (The Great Replacement ou A Grande Substituição).

Segundo esta teoria, que ocupa um lugar central na práxis da extrema direita, haveria em curso uma investida demográfica islâmica global contra a civilização ocidental, um processo de substituição, via imigração, da população branca por uma população não branca (especialmente do norte da África e do Oriente Médio). Em outras palavras, uma espécie de contra-colonização empreendida pelas antigas colônias francesas e europeias. Como afirmou Camus em entrevista para o Le Nouvel Observateur, “é muito simples. Você tem um povo e, quase de repente, em uma geração, você tem em seu lugar um ou vários outros povos” (CAMUS, 2012, p. 99).

Tendo em vista as informações supracitadas e o caráter basilar de Renaud Camus no discurso e na prática da extrema direita global, o objetivo deste artigo é duplo: por um lado, analisar a obra Le Grand Replacement a partir de uma abordagem que articula os estudos coloniais e a psicanálise em uma perspectiva histórica; por outro lado, busca-se compreender o papel dos usos do passado no discurso conspiracionista da extrema-direita, isto é, a parte que cabe ao passado, em especial a História Antiga, no prática discursiva daqueles que partilham da crença na Grande Substituição.

 

 

De militante LGBT e socialista do maio de 68 a ideólogo da extrema direita: quem é Renaud Camus?

Antes de mais nada, é imprescindível fornecer alguns dados biográficos sobre o autor aqui analisado. Jean Renaud Gabriel Camus nasceu em 1946, em Chamalières, uma pequena comuna na região central da França. Estudou Filosofia, Literatura e Ciência Política nas grandes universidades francesas. Enquanto homossexual, teve participação ativa durante os eventos de maio de 68, sobretudo na condição de militante da causa LGBT (BASSETS, 2019). Além disso, tornou-se membro do Partido Socialista Francês.

Camus, mais tarde, viria a se tornar conhecido em virtude de sua atuação como escritor novelista e romancista do universo literário francês. Em 1979, publicou Tricks, obra prefaciada por Roland Barthes e aclamada pela crítica, na qual narra as aventuras de um homem homossexual em Paris. Em razão do veio romancista, Camus se tornou figura uma famosa tanto do universo literário francês quanto do universo LGBT parisiense. Em 1992, o autor decide se afastar dos centros urbanos e adquire uma propriedade com um castelo do século XIV, em Plieux, no Sul da França, onde vive isolado desde então (BASSETS, 2019).

É durante o início dos anos 2000, no entanto, que Camus parece se envolver em um processo de conversão política. De militante socialista e LGBT, se tornará um dos grandes ideólogos não só da Nouvelle Droite francesa, mas, também, e, sobretudo, da extrema-direita global. Em 2002, fundou um partido chamado In-nocence preocupado, especialmente, com o tema da imigração. No ano de 2011 publicou Le Grand Replacement (A Grande Substituição) e, em 2018, publicou uma versão para o público de língua inglesa chamada de You Will Not Replace Us (Vocês não irão nos substituir)[6]. O nome deste último livro, vale dizer, é o grande mote dos movimentos supremacistas brancos, sobretudo nos Estados Unidos da América, onde os whitesupremacists vociferam “You will not replace us” durante as manifestações, como aponta a matéria do The New York Times que cobriu as manifestações (STOLBERG; ROSENTHAL, 2017).

 

 

Recepção da obra[7]

Publicado em 2011, a obra de Renaud Camus foi responsável por popularizar uma teoria da conspiração já existente. A partir desse momento, os “identitários adotaram a narrativa da Grande Substituição (ZÚQUETE, 2018, p. 148) e se tornaram os seus principais divulgadores (EKMAN, 2022, p. 1.132). A obra e a teoria foram recebidas e incorporadas por diversos agentes da política internacional, pela mídia e por terroristas da supremacia branca.

A partir da popularização da obra de Camus, o discurso tomou forma e chegou tanto aos estúdios de televisão, bem como ao congresso norte-americano. “Nos Estados Unidos, a ideia da substituição foi propagada pelo apresentador da Fox News Tucker Carlson” repetidas vezes (EKMAN, 2022, p. 1.132). O senador Ron Johnson “também explorou a questão da Grande Substituição quando abordou a questão dos novos grupos de eleitores” (EKMAN, 2022, p. 1.132). Figuras de poder como Viktor Orban, primeiro ministro da Hungria, e Robert Fico, político da Eslováquia, advogam convictamente a teoria popularizada por Camus e pelo movimento identitário (EKMAN, 2022, p. 1.131). 

As ideias conspiracionistas de Camus afetaram não apenas o círculo da direita francesa, mas, também, e, sobretudo, a extrema direita global, principalmente aquela ala mais radical que pressupõe o terror voluntarista. O título do manifesto deixado por Brenton Tarrant, o atirador islamofóbico da Nova Zelândia que matou 51 pessoas em uma mesquita, em 2019, fazia referência ao livro de Camus. Ainda, no mesmo ano, o manifesto deixado pelo atirador de El Paso, que matou 22 pessoas em um mercado nos Estados Unidos, continha alusões diretas à teoria de A Grande Substituição (EKMAN, 2022, p. 1.139).

Além do conteúdo em si, o que chama a atenção nas obras de Camus é o caráter global de seu discurso e a forma como ele encontra terreno fértil não só na França, onde se originou, mas em grande parte do Norte Global, especialmente nas antigas metrópoles coloniais que hoje recebem massivas ondas imigratórias.

 

 

A Grande Substituição, ou o colonialismo reverso

Desde 2012, o ano de sua publicação, Le Grand Replacement foi lida e absorvida mundialmente pela extrema direita – de ideólogos militantes a jornalistas, apresentadores de televisão, políticos da direita americana e terroristas islamofóbicos. Importa ressaltar que a obra é a transcrição de uma conferência do autor proferida em Lunel, na França, em 26 de novembro de 2010, que, posteriormente, foi divulgada em encontros da extrema direita, como em algumas reuniões do Bloco Identitário, grupo europeu integrante da Nouvelle Droite francesa.

A Grande Substituição, segundo Camus, é um processo demográfico por meio do qual um povo, em um curto espaço de tempo, é substituído paulatinamente por um outro povo por meio de ondas migratórias. A mais atual vítima deste processo seria o povo francês, em particular, e o homem branco, europeu, de modo geral. Camus (2012, p. 12-13) teria se dado conta deste processo ainda na década de 1990, ao caminhar pelas velhas ruas de Hérault (Erau), no sul da França, e perceber que as pessoas que ali estavam presentes, contrastando com as antigas construções francesas, eram pessoas que “pelo seu traje, pela sua atitude, pela sua própria língua, pareciam não pertencer a este lugar, mas provir de outro povo, outra cultura, outra história”. Segundo o autor, qualquer francês, ao andar pelo metrô de Paris, por exemplo, seria capaz de perceber “que a França está em processo de substituição de povo” (CAMUS, 2012, p. 13).

A percepção de Camus tem uma longa tradição junto à extrema-direita francesa. Indignado, o antigo líder do Front National, Jean-Marie Le Pen (1987, p. 10), observava, no final dos anos de 1980, a respeito da concessão “indistinta” e “incontrolada” da cidadania francesa, que “La carte d’identité n’est pas la Carte Orange”, pois essa poderia ser demandada por qualquer pessoa sem que se lhe solicitasse nenhum pré-requisito. É, ainda, nas palavras de Jean-Marie Le Pen que se percebe, de modo manifesto, pelo olhar da extrema direita francesa, o grande perigo que os imigrantes oferecem em relação à identidade nacional.[8] Em seus termos: “Acuso nossos adversários de serem cúmplices de um verdadeiro genocídio político, pois tomar a um povo sua identidade é tomar uma grande parte de sua alma” (LE MONDE, 1989).

Segundo Camus, durante cinco séculos, até o final do século XIX, a França não fora palco de imigração. Pode até ter recebido figuras estrangeiras, mas não de forma sistêmica. Cita, ainda, positivamente, estrangeiros que tiveram um papel central na história francesa, tais como Mazarino, Lully e o pai de Émille Zola, e acena com ânimo para este tipo de imigração (CAMUS, 2012, p. 33). Coincidentemente, todos eles eram italianos, todos eles eram brancos. O alvo de Camus e da extrema direita parece não ser o imigrante em si, mas o imigrante não branco, em especial, vindo do Magrebe, aquele ser provisório, deslocado, de que fala Abdelmalek Sayad (1998).

É por detrás da constatação acima que subjaz o velho conceito de raça. Contudo, ao contrário de alguns grupos da Nouvelle Droite francesa que tentam camuflar o conceito se valendo de outros termos, como etnia, mas com a mesma conotação, Camus vocifera sem medo: raça! Segundo ele, o termo teria um sentido de uma história e uma herança cultural compartilhadas, e não de uma herança biológica (CAMUS, 2012, p. 20). Curiosamente, o autor lamenta que o conceito tenha sido, segundo ele, vítima da falácia lógica reductio ad hitlerium, isto é, que Hitler tenha usado a palavra raça e isto tenha rendido má fama ao vocábulo. Camus (2012, p. 56) defende ainda que assim como não podemos associar o vegetarianismo às monstruosidades do líder nazista, uma vez que Hitler fora vegetariano, não deveríamos, também, associar o termo raça ao espectro hitlerista.

O que ocorre no início do século XX, segundo ele, é a estruturação de um processo que, por meio de ondas migratórias vindas do norte da África e do Oriente Médio, resultará na substituição demográfica da população branca francesa por uma população não branca, muçulmana. E esta suposta invasão resultaria no aumento da violência e da delinquência na França e na desarmonização da sociedade como um todo (CAMUS, 2012, p. 54), o que coaduna com o repertório de problemas associados à imigração na França pelos partidos de extrema direita, como: falta de segurança pública, desemprego, saúde e decadência (sic) moral (ORFALI, 1990, p. 152). Camus (2012, p. 45) propõe ainda que o processo de Grande Substituição é, em verdade, uma guerra de conquista, uma espécie de contra-colonização da França empreendido pela Argélia, isto é, colonização da Europa pela África. O autor, no entanto, se questiona se este é um projeto arquitetado e operado de forma consciente, ao que conclui ser indiferente. Segundo ele, o que importa é que tal processo está realmente em curso (CAMUS, 2012, p. 54).

É preciso notar que contra-colonização pressupõe um movimento de retorno, isto é, estabelece que já houve um primeiro movimento colonizador, a saber, o europeu. Camus (2012, p. 47), a esse respeito, nega o colonialismo francês, diz que não foi nada parecido com o verdadeiro colonialismo, como o do império português no Brasil, por exemplo. Para ele, as colônias francesas, a exceção da Argélia, não eram colônias, eram simplesmente “dependências” representadas por meia dúzia de administradores, soldados e missionários. Ao se referir à Argélia, por outro lado, aceita o caráter verdadeiramente colonial, mas diz, em um tom tipicamente colonizador, que apesar da “riqueza arquitetônica e urbanística deixada pela colonização francesa”, a Argélia vive hoje em ruínas, na tirania, no caos (CAMUS, 2012, p. 44).

O que causa espanto e indignação, segundo Camus (2012, p. 43), é que – respondendo ao presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika, que à época equiparou o colonialismo francês a um genocídio – “não é muito comum ver pessoas oprimidas, assim que libertadas, correrem para o país que as oprimia, a fim de permanecer sob o seu domínio”, a não ser que elas tenham imigrado à França com objetivos coloniais, de invasão e conquista.

Mas como resistir a esta investida colonialista vinda dos antigos colonizados? Segundo Camus, apesar de uma das táticas dos invasores ser a do aumento de sua taxa de natalidade, haja vista a queda da natalidade dos europeus, não é fazendo filhos e disputando o território quantitativamente e demograficamente que essa batalha será vencida. Isto porque, em suas palavras, “o que mais prejudica a humanidade e o planeta é a proliferação humana. O planeta não aguenta mais” (CAMUS, 2012, p. 43). E aqui é possível notar o caráter ecofascista[9] do discurso de Camus, um elemento típico da Nouvelle Droite francesa e dos movimentos identitários europeus.

Para Camus (2012, p. 64), “os polos de resistência ao que está acontecendo, a Grande Substituição e a contra-colonização”, não são, portanto, o aumento da taxa de natalidade francesa e europeia, nem uma valorização da religião cristã face ao islamismo, nem uma saída política encabeçada por Marine Le Pen e seu partido, Rassemblement National. A melhor forma de combater a Grande Substituição e o colonialismo reverso seria, para ele, a valorização e a promoção da cultural nacional, verdadeiramente francesa. É por isso que o partido de Camus “reivindica, desde a sua fundação, a criação, na França, de uma rádio e de um canal de televisão consagrados à cultura nacional” (CAMUS, 2012, p. 65).

O que sustenta a constatação da colonização reversa – os antigos colonizados que são agora colonizadores das antigas metrópoles – é uma concepção de Camus que, de forma surpreendente, se vale de uma proposição feita por Franz Fanon (1980), o revolucionário negro combatente da Guerra de Libertação da Argélia e teórico marxista anticolonial. Tanto assim o é que Camus abre seu livro com o seguinte epílogo extraído do escrito Racismo e cultura, publicado em 1969:

A primeira necessidade é a escravização, no sentido mais rigoroso, da população autóctone. Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referência. A expropriação, o despojamento, a razia, o assassínio objetivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais, ou pelo menos condicionam essa pilhagem. O panorama social é desestruturado, os valores sociais, ridicularizado, esmagados, esvaziados (FANON, 1980, p. 37).

 

Na perspectiva de Camus, portanto, o processo empreendido pelos imigrantes do Magrebe, especialmente muçulmanos argelinos, é uma operação colonial, na qual, segundo Fanon, em vistas da exploração econômica, é preciso, primeiro, destruir toda a cultura e os sistemas de referência do povo colonizado, procedendo à ridicularização e à substituição de seus valores. É por este motivo que a solução encontrada por Camus e pelo seu partido é a resistência cultural, a valorização da cultura francesa e europeia. Para alguns de seus seguidores isto não é suficiente, sendo necessário uma ação direta, como, por exemplo, no caso do terrorista Brenton, referido anteriormente.

O colonialismo projetado: História e Psicanálise[10]

A partir do exposto, propomos lançar algumas bases para uma crítica ao caráter paranoico da extrema direita global, ancorando-se na Psicanálise e na História, a partir de A Grande Substituição, de Renaud Camus.

Como ideólogo basilar da extrema direita e autor da teoria da Grande Substituição, Camus fundamentou a sua tese em uma constatação: a Europa e a França, de modo particular, estariam sendo ocupadas em uma investida de caráter colonialista. Como disse o autor, ocorre hoje uma espécie de contra-colonização da França pela Argélia, da Europa pela África (CAMUS, 2012, p. 45).

O processo referido por Camus não tem lastro na realidade concreta, uma vez que é uma teoria da conspiração. A sua realidade reside apenas em uma paranoia social da Nouvelle Droite. Na condição de patologia, a paranoia conta com mecanismos de defesa. Em nosso caso, a teoria da conspiração da Grande Substituição parece corresponder à projeção,[11] um mecanismo de defesa do Eu que busca expulsar de si o que não suporta internamente, isto é, o intolerável de si é projetado no exterior, no outro, neste caso, na forma paranoica.

Para Peter Gay (2012, p. 289-290), historiador e biógrafo de Freud, a projeção é a “operação de expelir sentimentos ou desejos que o indivíduo considera totalmente inaceitáveis – demasiado vergonhosos, demasiado obscenos, demasiado perigosos – atribuindo-os a outrem”. Por essa perceptiva, se Camus, como vimos, nega o colonialismo francês, e a própria civilização europeia nega, esconde e camufla sua tradição colonial e as atrocidades cometidas por ela, é natural que, em uma operação do inconsciente europeu, essa mesma tradição, demasiado vergonhosa e obscena, seja expelida e, em seguida, identificada no outro, a saber, no imigrante. A Grande Substituição, a contra-colonização, o colonialismo reverso, a invasão da Europa, supostamente empreendida por imigrantes muçulmanos, do ponto de vista da Psicanálise e da História do colonialismo, não passa de um mecanismo de defesa do sujeito paranoico europeu. Desconfortável com a sua própria história, o europeu localizaria, mais uma vez, no imigrante, no (pós-)colonizado, o alvo de sua expiação.

É possível deduzir que o espanto singular provocado pelo nazismo – a despeito de haver uma tradição colonial europeia que lhe antecedeu cometendo crimes de natureza tão bárbara quanto aqueles perpetrados pelo nacional socialismo e servindo-lhe de modelo –, descrito por Aimé Césaire (2020, p. 18) em seu Discurso sobre o colonialismo, é o mesmo espanto sentido por Camus, pela extrema direita e pelos europeus de modo geral, uma vez que o que lhes assombra e lhes faz perplexos “não é o crime em si, o crime contra o homem [...]”. Isto porque o mesmo processo de conquista e colonização que é atribuído aos antigos colonizados de hoje, são os mesmos “procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas aos árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África” (CÉSAIRE, 2020; p. 18). O que lhes assombra, na verdade, é “o crime contra o homem branco”, é sentirem na pele, mesmo que de maneira paranoica e delirante, a maior contribuição da civilização europeia à humanidade, a saber, a tradição colonial e a sua máquina de moer gente. E esta tradição de expropriação, como nos alertou Marx, atrelada umbilicalmente à história do capitalismo, “está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo (MARX, 2013, p. 787), [...] escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés” (MARX, 2013, p. 830).

 

O papel dos usos do passado no discurso xenofóbico e paranoico

O passado, em especial, a História Antiga tem um papel fundamental no discurso da extrema-direita francesa, sobretudo, em relação à teoria da Grande Substituição de Camus. Como se sabe, extrema-direita tem na Antiguidade a “origem das justificativas de suas propostas”, isto é, “como instrumento legitimador de seu ideário.” (SILVA, 2007, p.21).

Essa apropriação e apelo a um passado está presente também na obra de Camus. Para o autor, a defesa da identidade de seu povo face à Grande Substituição passa pela noção de raça. E segundo ele, esta seria “menos uma comunidade hipotética de parentesco biológico e mais uma longa história compartilhada”, isto é, raça seria “cultura e herança” e não “hereditariedade” (CAMUS, 2012, p. 07). Portanto, neste aspecto, a história, e, sobremaneira, a História Antiga, tem uma grande relevância, ao passo que é na sua mobilização e valorização que reside a resistência à substituição. É nesse sentido que Camus reproduz com entusiasmo as palavras de Charles de Gaulle, apelando para a ideia de que, face à ameaça exterior, é preciso fortificar os laços com o passado e rememorar que a identidade francesa remonta à Antiguidade grega e romana:

É muito bom que haja franceses amarelos, franceses negros, franceses pardos. Eles mostram que a França está aberta a todas as raças e tem uma vocação universal. Mas somente na condição de permanecerem uma pequena minoria. Caso contrário, a França não seria mais a França. Nós ainda somos, antes de tudo, um povo europeu pertencente à raça branca, de origem grega e latina, de cultura e de religião cristãs (DE GAULLE apud CAMUS, 2012, p. 07).

 

A aparição contemporânea do fenômeno dos usos do passado no seio da extrema direita francesa é indissociável da intelecção dessa mesma extrema direita. De tal modo, buscaremos identificar, brevemente, como e por quais razões um passado determinado, a saber, a História Antiga, é mobilizado na busca da construção de um discurso anti-imigração e xenofóbico, eixos basilares da teoria da Grande Substituição.

Os “usos do passado” podem ser entendidos, como uma forma de recepção, entre outras, “na qual a mobilização/reutilização do passado assume um caráter pragmático e instrumental, tal como aquela levada a termo durante a Revolução Francesa [...], os diferentes nacionalismos [...] ou pelo nazifascismo [...] (SILVA, FUNARI; GARRAFFONI, 2020, p. 44).

Para Klas-Göran Karlsson (2011, p. 137), “uma maneira de refletir sobre a consciência histórica é estudar suas ativações ou os usos histórico-culturais da história na sociedade”. Segundo essa perspectiva, os usos ordinários da história correspondem a valores fundamentais da vida, animadores da consciência histórica, ditos em termos de existência e identidade, moral e política de poder e ideologia, sempre mediados pela cultura, o que aduz a diferentes usos da história em um mesmo contexto ou em contextos distintos. Além disso, para o autor,

Um uso ideológico da história está relacionado às tentativas feitas, principalmente por grupos de intelectuais e políticos, de obter o controle das representações públicas, de organizar elementos históricos em um contexto dominante de significado. Esse arranjo não é, como no caso acadêmico-científico, definido por sua correspondência à evidência empírica e ao discurso acadêmico em geral, mas por sua correspondência a tarefas externas, ou melhor, por sua capacidade de convencer, influenciar, racionalizar, mobilizar e autorizar com a ajuda de perspectivas históricas. Consequentemente, o foco no uso ideológico da história não está em elementos históricos separados, como no caso do uso moral, mas na totalidade da construção histórica, em sua consistência, suas pretensões e clareza pedagógica. O uso ideológico está intimamente ligado ao sucesso daqueles sistemas de ideias que empregam a história para construir legitimidade e racionalizar equívocos e erros do passado, referindo-se a necessidades objetivas ou leis históricas. Em geral, o objetivo de legitimação é muitas vezes alcançado por meio de limites cronológicos absolutos e periodizações bem definidas, descrições em preto e branco, fortes linhas de continuidade e perspectivas de progresso não problemático (KARLSSON, 2011, p. 137).

 

É na perspectiva descrita por Karlsson que entendemos os usos do passado na análise da extrema direita, em geral, e da extrema direita francesa, em particular. Nesse domínio, o foco da mobilização do passado reside no significado de seu uso, naquilo que lhe é acrescido ou suprimido, objetivando conferir sentido a uma finalidade (identitária, nacional, de classe, racial, de gênero etc.) no presente, entendida como uma “apropriação indevida” (FLEMING, 2006, p. 129), um abuso. Com esse fim, os usos do passado atuam para criação e consumo de uma narrativa que, produzida no presente, não deixa de estabelecer expectativas para o futuro.

É mediante a chave de compreensão supracitada que entendemos as consequências dos usos do passado não somente em A Grande Substituição, mas pela extrema-direita atual quando mobiliza o passado, em amplo sentido. Por essa razão, concentramos esforços no aspecto da historicidade dos usos do passado e no lugar que este fenômeno ocupa no discurso conspiracionista da Nouvelle Droite francesa. Para tal, examinamos duas aparições indiciárias deste fenômeno: a primeira por parte do partido Rassemblement National e a segunda por parte do pequeno grupo Terre et Peuple.

Em visita à Dinamarca, no verão de 2018, o presidente francês Emmanuel Macron se tornou o alvo de uma polêmica envolvendo uma de suas falas em um discurso para franceses que residem em Copenhagen. Ao elogiar o modelo de seguridade social dinamarquês, em virtude de sua flexibilidade nas questões trabalhistas – resultado, vale dizer, de reformas elaboradas nos últimos anos –, Macron lançou mão de uma comparação cultural entre povos como forma de explicar a recusa do povo francês às reformas de cunho neoliberal que tentava embalar no país. Nas palavras do presidente: “Esse povo luterano [dinamarqueses], que viveu as transformações desses últimos anos, não é exatamente igual a um gaulês refratário à mudança!” (LE MONDE, 2018). Ao passo que Marine Le Pen, atual presidente do Rassemblement National, a principal força da extrema direita francesa, reagiu com exasperação: “Na Dinamarca, Macron castiga o “gaulês refratário a mudanças”: como de costume, ele despreza os franceses no exterior”. Em seguida, lança uma provocação fervorosa ao presidente: “Os “gauleses” ficarão felizes em responder à sua arrogância e ao seu desprezo” (LE MONDE, 2018).

À primeira vista, como historiadores preocupados com a mobilização do passado no presente, o que nos desperta a atenção aqui é o uso do termo gaulês por dois atores políticos franceses do século XXI. Assim, podemos nos perguntar: por que, no presente, se recorre à Antiguidade? E por que a este passado em particular? Que diagnóstico do mundo atual é este que pressupõe a conjuração de guerreiros mortos na Antiguidade? Estes questionamentos iniciais e muito particulares, nos levam a um outro, mais universal: com quais objetivos e por quais razões os sujeitos que fazem a história a fazem, como diria Marx, conjurando os mortos e trajando roupagens de outrora? (MARX, 2011, p. 25-26).

Apesar de parecer um questionamento de tipo filosófico, esta inquietação só pode ser respondida quando recorremos ao poder explicativo da disciplina histórica. Sendo assim, é preciso insistir no fato de que só é possível compreender a história e as manifestações da extrema direita francesa de modo geral – e este apelo à Antiguidade, em particular – ao concebê-la no interior da unidade do processo histórico, isto é, se se encarar estes sujeitos históricos como constituídos pela – e constituintes de uma – totalidade concreta (LUKÁCS, 2003, p. 83).

Se é fundamental ter em vista o contexto de existência e ação destes atores sociais, é preciso, no encalço, contemplar o século XX, isto é, o desenrolar do processo histórico que fez do mundo o que ele é hoje. O período que vai de 1945 até 1973, comumente chamado de Era de Ouro, configura-se como os aproximadamente trinta anos em que o capitalismo democrático europeu esteve em seu ápice, proporcionando a construção de um amplo Estado de Bem-Estar Social em nível continental e tendo como política econômica hegemônica o keynesianismo (STREECK, 2018, p. 15). Este welfare assenta-se sobre duas circunstâncias objetivas fundamentais: a primeira delas, de tipo econômico, é o colonialismo em África e Ásia, elemento que proporcionava enormes taxas de lucro e condições objetivas favoráveis à manutenção de uma ordem social como essa na Europa. A segunda, como bem lembra Eric Hobsbawm (1995), é produto da geopolítica da Guerra Fria: a pressão exercida pela URSS (ameaça de uma revolução iminente) coincidiu com a vigência do Plano Marshall.

Contudo, ao final dos anos de 1960, irrompe um momento de inflexão social. Em maio de 1968, trabalhadores e estudantes marcham na França e, em seguida, por toda a Europa, reivindicando mais, muito além das benesses da Era de Ouro, e os movimentos de libertação nacional se concretizam. O pacto firmado no Pós-Guerra se esvai no início da década de 70, momento em que Wolfgang Streeck localiza a “ruptura na história da economia política das democracias capitalistas”, precisamente quando as elites econômicas (“dependentes do lucro”) entendem que não há mais margem para concessões aos “dependentes do salário” (STREECK, 2018, p. 16).

Essa inflexão histórica que impôs a reboque, como reação, o início de uma verdadeira Revolução Neoliberal, se constitui o marco da origem do ser social de nossa época. David Harvey (2005) chama este processo de acumulação flexível. O historiador ítalo-americano Giovanni Arrighi (1996), no encalço, profundamente influenciado pelas contribuições de Fernand Braudel que concernem à historicidade do sistema capitalista, chama a atenção para o caráter transitório deste instante no que se refere ao regime de acumulação capitalista. Eric Hobsbawm (1995) considera este um momento de inflexão no breve século XX. Guardadas as substanciais diferenças entre os autores, fato é que os três, seguidos pelo sociólogo frankfurtiano Wolfgang Streeck (2018), estão seguros em enunciar o ano de 1973 como o início de um novo tempo no que se refere ao sistema capitalista mundial, tempo este ainda em vigência nos anos de 2020, marcado, sobretudo, pelo embalo de uma Revolução Neoliberal e destruição do Estado de Bem-Estar Social.

É justamente sob essas circunstâncias objetivas que se pode localizar o surgimento da Nouvelle Droite francesa (1968) e do partido Front National (1972-1973), uma direita nova. Pierre André Taguieff (1994) capta neste momento uma ofensiva de grande envergadura vinda da direita, agora reinventada. E mais tarde, com os avanços da Revolução Neoliberal, da globalização e do projeto da União Europeia, surgirá, sob os esforços de Pierre Vial (ex-professor de História Medieval da Universidade de Lyon III e antigo membro do Front National), o grupo Terre et Peuple (1995), um dos chamados grupos identitários, marcado, sobretudo, pelo seu caráter anti-islã, anti-globalização, anti-neoliberal e anti-UE (ZÚQUETE, 2018). Para o grupo e a revista Terre et Peuple, a Antiguidade está na ordem do dia.

Ora, mas por que traçar a história do século XX e do surgimento da Nouvelle Droite francesa? Pois talvez resida aí a explicação para a fala de Macron e a resposta de Marine Le Pen. Apesar de breves menções aos gauleses, as falas de Macron e Le Pen são indícios de uma realidade mais profunda que só pode ser respondida se levarmos em conta tanto o contexto de sua produção, quanto o tempo a que elas se referem, a saber, a Antiguidade.

 O atual presidente representa, antes de tudo, a ponta de lança do projeto neoliberal de destruição do Estado de Bem-Estar Social europeu iniciado na década de 1970, empenhado em embalar reformas alinhadas à União Europeia. A Nouvelle Droite francesa, por outro lado, seja o partido Rassemblement National, seja o grupo Terre et Peuple (ambos objetos de nossa atenção), são marcadamente críticos da globalização, da União Europeia e, sobretudo, da imigração, entendida como Grande Substituição. Com efeito, são defensores da identidade nacional e dos regionalismos, versados na defesa de um estado social restrito ao povo francês (uma espécie de welfare chauvinismo). Não há espaço para explicar as razões de a Nouvelle Droite francesa ser anti-neoliberal e anti-UE. Por este motivo, nos contentemos em primeiro lugar em assumir tal afirmação como premissa e, em segundo, concentrar nossos esforços em explicar o fenômeno dos usos do passado, o uso deste passado em particular, a Antiguidade.

Sabe-se que, no seio da extrema-direita francesa, recorrer ao passado, especialmente à Antiguidade, é uma prática habitual, como demonstrou Glaydson José da Silva (2007) em sua obra de 2007, História Antiga e usos do passado. O mito gaulês e o apelo ao herói vencido, Vercingétorix, são constantemente rememorados durante o período de ocupação nazista, por exemplo, tanto pelos colaboracionistas, para justificar a invasão alemã como benigna (assim como teria sido a invasão romana da Gália), quanto pela resistência francesa. Essa confusão entre História Antiga e história nacional é um fenômeno marcadamente europeu, sobretudo francês.

Quando Macron e Le Pen, ainda que de maneiras diferentes, recorrem aos gauleses, eles se valem, com efeito, de uma operação discursiva já conhecida no que concerne aos usos do passado. No entanto, em razão das circunstâncias objetivas de seu tempo, esta operação se dá de maneira invertida. Agora, como veremos, a extrema direita faz, implicitamente, uma leitura negativa da invasão romana da Gália.

Ao caracterizar o povo francês como culturalmente avesso a mudanças, Macron, por um lado, invoca o passado gaulês para se referir não só à insistente resistência do povo francês às reformas neoliberais propostas por ele. No encalço, de maneira implícita, Macron faz alusão à vã persistência gaulesa em resistir face a ameaça romana. Já Le Pen, como representante da Nouvelle Droite francesa, não se opõe ao uso desta referência, mas, sobretudo, reforça o apelo ao mito gaulês. Contudo, por outro lado, afere destaque a esta persistência, encarando-a como uma virtude. Ao não ceder às mudanças, isto é, ao resistir à invasão romana da Gália, o povo francês resiste, também, às reformas neoliberais impostas por Macron e pela União Europeia, este grande inimigo que ameaça a França. Com efeito, resistir ao inimigo externo é, antes de tudo, insistir na defesa do nacional e, especialmente, do regional, na defesa da identidade francesa face às ondas imigratórias de árabes-muçulmanos. E aqui chegamos, talvez, à questão medular para a Nouvelle Droite francesa.

Por ocasião da tímida e indiciária manifestação de apelo à Antiguidade (tanto a provocação de Macron, bem como a resposta de Marine Le Pen), nota-se que, diferentemente do que ocorreu durante a ocupação nazista da França, a extrema-direita hoje ressignificou este passado. A invasão romana da Gália não é mais vista como um evento positivo. A Nouvelle Droite francesa ressignificou a sua leitura da Antiguidade. O inimigo exterior, sejam eles os romanos ou os nazistas, não são mais vistos com bons olhos, como o foram. Agora, diante de novas circunstâncias históricas já detalhadas, a Nouvelle Droite francesa, aqui representada pelo partido, opta por atribuir valor ao regional e ao nacional. Com efeito, em razão de sua oposição à União Europeia e à sua agenda neoliberal, à modernidade e à globalização e, sobretudo, aos imigrantes (Grande Substituição), a invasão romana é vista também com maus olhos.

A luta contra a imigração é a razão de ser da Nouvelle Droite: seja o partido Rassemblemente National, seja o pequeno grupo Terre et Peuple, ambos podem ser vistos como representativos desta Nouvelle Droite, uma vez que, organicamente, partilham de um mesmo objetivo: a expulsão dos imigrantes da Europa e, sobretudo, da França, pois entendem ter lugar aí um processo de invasão e substituição da população branca europeia por uma população árabe-muçulmana, ideia que tem origem na teoria da Grande Substituição.

Em diversas edições da revista do grupo Terre et Peuple, por exemplo, pode-se ler o célebre adágio francês: “Nossos ancestrais, os gauleses”. Diante do prenúncio de uma iminente guerra étnica que se dará em solo europeu (uma verdadeira luta de raças), decorrente da Grande Substituição, Pierre Vial (2001, p. 32), o líder do grupo, anuncia que “para aqueles que sabem entender, a voz de Vercingetórix está sempre presente. Ele conclama a Europa celta à batalha, no combate identitário que é, hoje, o jogo decisivo para nossos povos”. Numa crônica publicada online no site do grupo, em 2013, Vial anuncia que “um número crescente de gauleses, exasperados, está se acostumando com a ideia da inevitável necessidade de uma cruzada identitária de reconquista” da Europa (VIAL, 2013).

Nesta segunda aparição do fenômeno selecionada por nós, mais uma vez, há um apelo ao mito gaulês. E, no mesmo sentido da primeira, esta manifestação também parece fazer a leitura negativa da invasão romana da Gália, uma vez que, ao se referir à onda imigratória sentida pela França, apela ao mito para defender a identidade nacional do invasor externo, preservando o regional, o gaulês, o francês, face ao inimigo que bate à porta, sejam eles os romanos, sejam eles os imigrantes. Caso contrário, o célebre adágio utilizado pelo grupo seria: “nossos ancestrais, os galo-romanos”. O que não ocorre.

O exame minucioso das duas manifestações deste fenômeno nos revela que os mortos são conjurados conforme a necessidade histórica imposta pelas circunstâncias. Esta tímida e indiciária manifestação em resposta ao presidente francês e a retórica combativa do grupo Terre et Peuple face ao processo de Grande Substituição, ambos se valendo do mito gaulês, foi uma maneira que encontramos de insistir na historicidade do discurso quando diante de novas circunstâncias.

 

Considerações finais

Este artigo, que buscou tanto analisar a obra de Renaud Camus a partir de uma abordagem pós-colonial e psicanalítica, bem como explicar o papel dos usos do passado neste discurso conspiracionista, a saber, a teoria da Grande Substituição, se encerra com o apontamento de algumas considerações.

Em primeiro lugar, é preciso destacar a capilaridade alcançada pela teoria da Grande Substituição, quando de sua vulgarização por Renaud Camus. Ela encontrou receptores tanto no seio da própria extrema-direita global, bem como em outros campos da sociedade, como na grande mídia, nos salões políticos e, sobremaneira, nas ações terroristas.

Concluímos que a explicação para este fenômeno pode ser dada apenas se levarmos em conta a história do colonialismo europeu, uma vez que a Grande Substituição é a projeção de uma leitura paranoide da Nouvelle Droite sobre a realidade que se impõe, invertendo a lógica colonial. Os colonizadores de agora, para Camus e seus seguidores, são os colonizados de outrora. E vale ainda dizer que o passado tem aqui um papel fundamental, ao passo que a mobilização e a valorização da Antiguidade são a pedra de toque deste discurso, como assim o é para a extrema-direita global de modo geral e para a Nouvelle Droite em particular. Para esses agentes a História Antiga tem larga importância, conforme ilustram tanto a obra de Camus, as manifestações dos membros do partido Rassemblemant National e do grupo Terre et Peuple.   

Ao cabo, pode-se notar que a forma por meio da qual a Antiguidade é mobilizada, – incluindo suas mudanças e permanências – é historicamente determinada. Isto porque, a Nouvelle Droite francesa, este sujeito histórico que têm sua gênese com o fim da Era de Ouro (1973) e com o início da Revolução Neoliberal, seus projetos de nação e de Europa e suas expressões por meio de livros, periódicos, publicações online, discursos políticos e outras formas de comunicação, está marcado à ferro pelas circunstâncias objetivas e subjetivas que os envolvem.

O manejo do passado no presente por estes atores não só influi no desdobramento do processo histórico (ação, é claro, limitada pelas circunstâncias políticas), como também é informado por este. Parafraseando a historiadora brasileira Emília Viotti da Costa (2014, p. 117), na existência e ação de cada um destes sujeitos históricos (a obra, o partido e o grupo) pulsam os ritmos da História, e suas múltiplas subjetividades – estratégias de ação, discurso e projeto de mundo – “são tanto constituídas pela História quanto constitutivas da História”. Não é possível encontrar a Verdade nestes discursos, mas é possível encontrar, na forma de ideologia, a representação da verdade que informa a ação no mundo, ou práxis, destes sujeitos históricos. E aquela (a ideologia) deve ser contemplada aqui no sentido aferido por György Lukács (2010, p. 34) ao se referir a Marx, isto é, como “formas ‘nas quais os seres humanos se conscientizam desses conflitos’ (isto é, daqueles que emergem dos fundamentos do ser social) ‘e o combatem’”.

Os sujeitos que fazem a história a fazem conjurando os mortos e trajando roupagens de outrora porque fazê-lo, quando diante dos conflitos sociais (em nosso caso a Grande Substituição), é, em última instância, munir-se de um arsenal poderosíssimo a que damos o nome de História. E esta, como nos ensinou Walter Benjamin (LÖWY, 2005, p. 65), não é irrevogável, isto é, nenhum evento passado está, efetivamente, assegurado; é no presente que o passado será laborado e o seu sentido, extraído.

Ao cabo, vale ainda apontar para um último aceno a nós historiadores: se o conjunto de ideias que informa a ação destes sujeitos históricos envolve o uso político da História, mais especificamente da História Antiga, é preciso nos agarrarmos à asserção ética que fez Hobsbawm (1998, p. 20): “[nós historiadores] temos uma responsabilidade pelos fatos históricos em geral e pela crítica do abuso político-ideológico da história em particular”. Delicada, mas com o mesmo poder de matar que uma bomba, veículo da memória, a História, discurso sobre o passado, é produzida nos diferentes presentes dos historiadores, instâncias a partir das quais se realizam as construções e reconstruções históricas (HOBSBAWM, 1998, p. 17). Ogni vera storia è storia contemporanea (Toda verdadeira história é história contemporânea) asseverava o aforismo cunhado por Benedetto Croce, que pautou a sua interpretação historiográfica em Teoria e história da historiografia (1917) e em A história como pensamento e ação (1938), obras marcadas pela forte influência de Vico, Hegel e Marx, mas, sobretudo pela das duas grandes guerras, a lembrar que:

A necessidade prática, que está no fundo de todo juízo histórico, confere a toda história o caráter de “história contemporânea”, porque, por remotos e remotíssimos que pareçam cronologicamente os fatos por ela referidos, a história se relaciona sempre com a necessidade e a situação presentes, nas quais aqueles fatos propagam suas vibrações (CROCE, 1962, p. 11).

 

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Recebido em 17/10/2022.

Aceito em 05/12/2022.



[1] Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), licenciado em História pela FE-USP e mestrando em História pela Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP). Brasil. E-mail: barone.victor@unifesp.br | https://orcid.org/0000-0002-5947-5508

[2] Professor Doutor. Professor Associado do departamento de História na Universidade Federal de São Paulo. Brasil. E-mail: sglaydson@hotmail.com | https://orcid.org/0000-0002-2229-6071

[3] Uma ilustração pontual desse pressuposto pode ser percebida pela realização, entre 08 e 09 de junho de 2006, em Moscou, da “Conférence Internationale sur L’avenir du Monde Blanc”. A página da internet do grupo de extrema-direita francês Terre et Peuple trazia, em 10 de junho desse mesmo ano, uma crônica assinada pelo editor da revista (de igual nome), Pierre Vial, intitulada “Appel de Moscou”. Nessa crônica, foi reproduzida uma declaração, oriunda do evento, assinada por representantes de diferentes países fazendo referências à “Consciência de uma origem comum” dos povos europeus; ao “parentesco de suas línguas e culturas e de sua vontade preservar sua identidade” e ao “perigo de morte que ameaça os povos europeus que não somente correm o risco de perder sua identidade, mas cuja existência histórica é igualmente ameaçada”. A referida declaração pode ser consultada em: <https://www.terreetpeuple.com/chroniques-par-pierre-vial/24-appel-de-moscou.html>. Acesso: 30 set. 2022.

[4] É preciso deixar claro que o termo pós-colonial, aqui empregado, tem um caráter temporal, isto é, diz respeito à perpetuação temporal de estruturas sociais herdeiras do colonialismo. Neste sentido, pressupõe-se que as heranças coloniais são uma dimensão fundante tanto do discurso bem como da prática das extremas direitas (em uma dimensão francesa ou global). Para mais, cf. Cahen e Braga (2018).

[5] Tanto na Europa, bem como nos EUA, o termo Identitário tem um significado diferente daquele atribuído ao conceito no Brasil. Para os propósitos deste artigo, é preciso considerar a semântica ligada ao mundo europeu e americano, que define os identitários como um movimento de extrema-direita popularizado na Europa de fins da década de 60 e tem como princípio a ligação de um povo a uma terra, afirmando o direito dos povos europeus às terras que lhe são por direito. Isto implica, em última instância, em um discurso altamente xenofóbico e racista, tendo como alvo, sobretudo, os imigrantes (ZÚQUETE, 2018, p. 1-2). Destaca-se nos estudos dos movimentos identitários europeus o sociólogo português José Pedro Zúquete, autor da obra The Identitarians: the movement against globalism and islam in Europe (2018).

[6] Estas informações sobre a trajetória biográfica e a produção bibliográfica de Renaud Camus podem ser encontradas na página do próprio autor: Renaud-Camus.net. Disponível em: http://www.renaud-camus.net/. Acesso em 12/12/2022.

[7] A ADL (Anti-Defamation League), organização mundial de combate ao anti-semitismo, rastreou largamente a recepção da obra de Camus, apontando para sua origem e para terroristas, políticos e personalidades da mídia internacional que propagaram a teoria da Grande Substituição nos últimos anos. Disponível em: https://www.adl.org/resources/backgrounders/the-great-replacement-an-explainer. Acesso em 13/12/2022.

[8] A metáfora da Carte Orange (título de transporte de abono semanal ou mensal utilizado na Île de France entre meados dos anos de 1970 e março de 2010) para referir-se aos imigrantes na França foi muito comum nos anos de 1980. Um leitor da revista Terre et Peuple, indignado com a presença dos imigrantes na França escreveu à redação da revista o seguinte “Hoje, não é necessário comprar um bilhete de avião para descobrir outras civilizações; podemos, desde já, fazer uma volta ao mundo em 80 estações de metrô, o que, vocês reconhecem, não é muito bom para a indústria do turismo, em geral, e de viagens organizadas, em particular!” (ROLINAT, 2001, p. 7).

[9] Ecofascismo é uma linha política caracterizada, sobretudo, pela combinação do ideário fascista com o discurso ambiental, isto é, pelo uso retórico do discurso de preocupação ambiental para legitimar o racismo e a xenofobia. Estes grupos identitários ecofascistas acreditam que a degradação ambiental da sua terra implica, também, na degradação de seu povo/raça (ZIMMERMAN, 2008, p. 531).

[10] É preciso dizer que há uma larga tradição em que a Psicanálise é utilizada em análises sociológicas ou históricas, e esta tradição ancora-se na afirmação freudiana de que “a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social” (FREUD, 2022, p. 35). Podemos citar a Escola de Frankfurt, com Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985; 2019) e seus trabalhos sobre o fascismo, propaganda e a personalidade autoritária, por exemplo, e até mesmo Eric Fromm (1986), na busca de decifrar a relação entre os impulsos emocionais e as opiniões políticas dos sujeitos, ou Wilhelm Reich (2019), com sua análise freudiana do nazismo.

[11] De acordo com Peter Gay (2012, p. 289-290), a projeção “é um mecanismo acentuado, por exemplo, em antissemitas, que acham necessário transferir sentimentos pessoais que consideram baixos ou sujos para o judeu, e então detectam estes sentimentos nele. É uma das defesas mais primitivas, facilmente observável no comportamento normal, embora muito menos acentuada do que entre neuróticos e psicóticos”.