Representação Histórica e Experiência: (des)continuidade temporal e possibilidade de verdade na narrativa histórica

Historical Representation and Experience: temporal (des)continuity and the possibility of true in historical narratives

 

 

                                                                                               Fernando Gomes Garcia [1]

 

 


Resumo

Existem duas tendências de se interpretar a experiência histórica entre os historiadores contemporâneos: uma, em que se considera a existência do passado, e outra que o considera como inexistente, acessível apenas por “rastros documentais”. Firma-se uma hierarquia ontológica entre passado e presente, que relega o passado a um status inferior. Notadamente, desposam essa percepção, os narrativistas; enquanto, sustentando o contrário, temos os autores de tradição fenomenológica e hermenêutica. Dentre essas duas perspectivas, paira a questão da continuidade e descontinuidade do passado na narrativa histórica: se o passado não é mais, como podemos escrever uma História verdadeira? Ou haveria, uma continuidade entre tempo e narrativa, que permitisse o historiador representar verdadeiramente o passado? Argumento em favor de uma configuração narrativa da experiência e uma verdade de tipo representacional na historiografia.

Palavras-chave: Narrativismo; Representação do passado; Temporalidade.

Abstract

There are two tendencies to interpret the historical experience among contemporary historians: one considers the existence of the past, the other that it – the past - is already gone, accessible only by “traces.” In that sense, an ontological hierarchy between past and present arises, being the past an inferior instance of existence. The narrativist approach support this position, while phenomenologists and hermeneutics argue the other way round. Then, questions about the continuity and discontinuity between time and narrative emerges, putting at stake the possibility of a true representation of historical past. If the past is no more, how can we write a truthful History? Or would there be a continuity between time and narrative allowing a truthful representation of the past? I argue here for a narrative-configured time of experience and for a representational type of true.

Keywords: Narrativism; Past representation; Temporality.


 

 

 

 

"... como heróis de romances, diz Roquentin: 'se despem do pecado de viver'. Eles criam inícios e fins artificiais, um minuto que dura humano em tudo, ordenado entre esses pontos, como nos desafios da ficção, negando a puro existir dentro do mundo "

(KERMODE, 2000, pp. 133-134)

 

"Não é o caso, como Mink parece sugerir, que primeiro vivemos e agimos e depois, sentados ao redor da lareira contando o que fizemos, assim criando algo inteiramente novo graças a uma nova perspectiva." 

(CARR, 1991, p. 61).

 

Introdução

Há mais de meio século, a Teoria da História se vê confrontada com teses narrativistas que questionam a capacidade da representação historiográfica em aludir a um real exterior ao texto histórico.[2] O que, no limite, na interpretação – ainda que equivocada – de alguns autores, tornariam equivalentes tanto o texto escrito pelo historiador, quanto aquele da lavra de um literato. Nesta perspectiva, a Teoria da História poderia muito bem ser substituída pelo que a Teoria Literária tem a dizer sobre a escrita, negligenciando o texto histórico, suas pretensões de ser verdadeiro a alguma realidade exterior tal qual o passado. No cerne deste conflito paira uma concepção filosófica de tempo e de narrativa, segundo a qual a temporalidade vivida pelos homens no mundo é desprovida de configuração, de sentido, enquanto a definição de narrativa, orientada por um ponto final, reúne as divergências de orientações que existem na vida e as encadeiam, à maneira de um romance realista, dando sentido às ações e uma compreensão configuracional do todo – por mais pervasiva que a noção de sentido possa ser. Esta seria uma diferença crucial, posto que desta maneira, a representação histórica nada mais faria do que importar da literatura formas de enredar fatos isolados, adquiridos via peregrinação nos templos da documentação, sem que nenhum desses registros fosse capaz de assegurar o realismo da narrativa – a integralidade deste efeito de real estaria nas mãos dos enredos que o historiador dispõe. Há, na filosofia, um ponto de vista contrário, mormente dos descendentes filosóficos da fenomenologia husserliana e da hermenêutica heideggeriana, que defende uma continuidade temporal entre ambas as fases do fazer historiográfico – o da pesquisa histórica e o da escrita histórica. E que, assim, as características de coesão, realismo, compreensão e unidade narrativa estão primordialmente na ação, e que a posterior narrativa é apenas um refinamento desta propriedade indelevelmente humana – da vida humana em seu gestar. Se este não é, propriamente, um argumento sobre as diferenças e semelhanças entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional, de toda maneira é um argumento importante para que se evite as confusões perpetradas por teóricos desconstrucionistas irresponsáveis ou leitores desatentos, que foram incapazes de distinguir nos argumentos de autores ditos “pós-modernos” aquilo que prefeririam ignorar.

Em suma, a pretensão deste artigo é (a) retomar o argumento narrativista de que há uma descontinuidade temporal entre o mundo e a narrativa; (b) apresentar o argumento fenomenológico de que a organização e coerência presente na narrativa é típica da experiência vivida, pré-configurada; (c) confrontar os dois pontos de vista e pensar as possibilidades de verdade da representação histórica. Talvez este último objetivo não seja alcançado satisfatoriamente.

Quero tratar de quais as implicações que as experiências reais vividas pelos homens e sociedades são determinantes, ou não, na escrita que o historiador faz do passado. Recorro à clássica distinção entre os discursos ficcionais e os historiográficos: o segundo, a despeito de configurar o tempo da mesma maneira como o primeiro – ou seja, de fornecer um sentido ao tempo vivido, arranjando início, meio e fim num todo narrativo e sintetizando identidades –, é fundamentalmente diferente das ficções, uma vez que tem como pressuposto o passado tal como foi vivido (ou, para usar a consagrada e repleta de mal-entendidos expressão de Ranke, wie es eingentlich gewesen ist). As narrativas ficcionais, da mesma maneira que as históricas, referem-se ao mundo-da-vida (lebenswelt), sendo, a despeito da liberdade criativa em relação a facticidade dos fatos narrados, mimética, tal como a História.[3] Especificamente, a mímesis operada pela historiografia refere-se a uma configuração específica do tempo, que é o passado, e sua atividade serve para forjar uma identidade temporal para os homens. Fica assim claro, que o empreendimento da História e da Ficção, apesar de miméticas, são fundamentalmente distintas, ainda que emerjam do mesmo lugar – o mundo-da-vida – e valem-se das mesmas estratégias para configurar os elementos da narrativa. Essa estratégia é o que podemos chamar de elaboração do enredo, onde os dados da experiência são entrelaçados entre início-meio-fim, ou mais especificamente, entre passado-presente-futuro, e cada acontecimento, por mais ínfimo que seja, faz parte da História, ou seja, não é aleatório nem acidental. Tanto História quanto Literatura emergem da mesma realidade e valem-se das mesmas estratégias discursivas que podemos chamar, como Hayden White, de escrita literária, o que complica o caso da distinção entre ambas, que sustentam pretensões diferentes – no caso da História, referir-se a um passado ocorrido e que lhe é exterior. Nas palavras de Ricoeur, o que a forma narrativa realiza é a síntese do heterogêneo (RICOEUR, 2010). Nas palavras de Kermode, é a tomada de controle do tempo pelo homem, com algum exagero, sua superação, onde não há inícios que não sejam redimidos no fim, onde todas as expectativas são concretizadas no final, e a sucessão infinita do tempo cronológico é substituída por um tempo kairológico, capaz de demonstrar que todos os acontecimentos possuem uma relação com outros, esteja ele à frente ou atrás, temporalmente (KERMODE, 2000). O uso do mesmo recurso narrativo pela História e pela ficção para fornecer sentido a operações miméticas essencialmente distintas coloca um problema – o da possibilidade da representação histórica. Se nossas experiências ativas e passivas não possuem uma forma em si mesmas, sendo esta uma doação estética feita pelo historiador que, a posteriori, a configura em uma narrativa, a historiografia não estaria condenada ao fracasso, a uma injustiça com o passado, contando, ao invés, aquilo que não aconteceu? Não seria toda representação uma falsa representação? O embaraço que a questão narrativa impõe à historiografia, mais do que essas semelhanças, reside na questão temporal. Se a estrutura de início-meio-fim é uma invenção da narrativa, o passado seria disforme? Ou, dizendo de maneira mais radical, o passado seria meramente aquilo que passou ao qual não temos mais acesso, senão por alguns ou vários documentos? Se assim for, a forma narrativa de se representar o passado como ele realmente aconteceu seria uma sua desfiguração. Pretendo defender, remontando aos argumentos e David Carr, que há uma continuidade na estrutura temporal da ação à narrativa, tornando possível reavivar a noção de representação histórica que não seja uma desfiguração da realidade por uma ordem que lhe é externa.

Todavia, a noção filosófica de que realidade e representação históricas possuem uma continuidade temporal a que a historiografia, supostamente, faz referência, não livra de embaraços a questão sobre como a representação histórica se “refere” ao passado. Não se trata, aqui, de, ao contrário de uma concepção extrema, segundo a qual não existe realidade histórica, passar para outra, antípoda, de um objetivismo transparente entre passado e o artefato produzido pelo historiador. A pretensão do artigo é ponderar os bons argumentos, tanto narrativistas quanto fenomenológicos, para tentar refletir sobre como o texto histórico diz respeito ao passado. As relações entre tempo e narrativa; entre a experiência vivida e a sua posterior configuração em texto – eis o tópico sobre o qual desenvolverei algumas ideias. Algumas ideias, apenas. Que, certamente, levarão a algum embaraço posterior, reacendendo uma possibilidade, inesperada e mal-vinda, de que a relação entre o discurso histórico e o passado é a de espelho da realidade, de uma verdade por correspondência. Se assim fosse, o ofício do historiador seria estéril, desnecessário, uma duplicação do próprio discurso do agente. Sustentarei que não é este o tipo de verdade que emerge do discurso histórico, e sim um de tipo diferente, mais afeito à estética do que à epistemologia – uma verdade como descoberta, alethéia, ao modo como sustenta Ankersmit, elaborando sobre Heidegger. Assim, a História, o texto histórico como artefato, antes de procurar ser uma cópia do passado como um todo, para além das referências protocolares, quer desvelar uma nova realidade sobre o ser – um ser que não é apenas uma entidade biológica, que não é dado de antemão, mas um ser que depende de histórias para constituir-se a si mesmo.

 

A visão narrativista do passado: o argumento da descontinuidade entre realidade e ficção

Muitos poderiam querer encaixar a noção narrativista de História e as semelhanças apontadas, por ela, entre a História e a Literatura, ao discurso filosófico da “pós-modernidade”. Alun Munslow, ele mesmo um assumido pós-modernista, define a pós-modernidade como uma realidade contemporânea em que as condições de aquisição de conhecimento são postas de uma maneira diferente do que se dá na modernidade. Não seria, portanto, um novo momento histórico colocado em contrário à modernidade, mas sim uma transmutação do modernismo, no qual a crítica do conhecimento desenvolveu a sua totalidade questionadora. A condição pós-moderna seria a transição da questão moderna de “como adquirimos conhecimento” para a autoconsciência dessa questão – ou seja, perguntar-se pelos métodos segundo os quais julgamos adquirir conhecimento. É a modernidade questionando a si mesma. Pois essa condição “pós-moderna” do conhecimento, em suma, chegaria à História com o seguinte questionamento:

Os historiadores profissionais podem ser confiados em reconstruir e explicar o passado objetivamente, inferindo os “fatos” das evidências, e, depois do duro trabalho da pesquisa, irão escrever suas conclusões sem problemas para todos que lerem? (MUNSLOW, 2006, p. 2).

 

Concluindo da seguinte forma:

Vou argumentar que a natureza genuína da História pode ser entendida apenas quando não for vista como um empreendimento objetivo e empirista, mas como a criação e eventual imposição do historiador de uma narrativa particular ao passado (MUNSLOW, 2006, p. 2).

 

De tal maneira, a posição de Munslow é a de que o passado não nos revela experiências em formato de histórias, mas sim que as experiências são formatadas pelo historiador, deste modo, podendo, naturalmente, uma vez que detém este poder, formular o passado em termos interpretativos quaisquer, que atendam a uma necessidade de poder – à maneira de Foucault. Não existiria, por trás do texto histórico, um passado do qual poderia ser dito que a narrativa faz jus “ao que realmente aconteceu”, a realidade seria a própria narrativa enredada pelo historiador. Munslow defende uma História pós-moderna ou desconstrucionista, e a define como um paradigma antitético ao da História empírica, tal como ele a chama, que seria a suposta crença dos historiadores de que há uma relação transparente entre a evidência documental e a narrativa histórica escrita por ele (que mais parece um espantalho argumentativo do que um paradigma a ser combatido). Ao contrário desta suposta crença, o autor nos fala de um “historiador autoconsciente”:

No entanto, o historiador autorreflexivo e autoconsciente pode argumentar que é possível oferecer uma interpretação que, mesmo não reclamando ser a narrativa verdadeira, é, ainda assim, plausível e portanto uma formulação aceitável dele [do passado] (MUNSLOW, 2006, p. 13).

 

 Este seria o historiador desconstrucionista, para quem a História é um empreendimento narrativo e não empírico, consciente das formas como o historiador cria interpretações sobre o passado ao invés de achá-las nos documentos. Para ele, a História, e a narrativa como seu sinônimo, seria incapaz de representar a realidade objetivamente. O passado seria “sublime”, ou seja, disforme, caótico, e somente o artifício narrativo imposto pelo historiador daria um sentido a esse passado, em forma de narrativa. Segundo Munslow, este fracasso é indicado por Hayden White, que “insiste que a História falha se sua intenção é a intenção modernista da reconstrução objetiva do passado de acordo, simplesmente, com a evidência (MUNSLOW, 2006, p. 11); o que, na verdade, é uma interpretação equivocada de White, para quem a investigação documental é de plena importância para o exercício historiográfico e a narrativa, ao contrário de fazer fracassar o intento de explicação do passado, torna-o possível através dos tropos.

A escolha em trazer Alun Munslow para a discussão se dá por ele ser um pós-modernista convicto, usando autores ditos pós-modernos e reivindicando-os como uma tradição a ser seguida. Assim, ele junta autores diversos como Hayden White, Michel Foucault e Jean-François Lyotard numa frente contra o que chama de História empírica, em prol de um suposto paradigma pós-moderno – a meu ver, uma simplificação da história da epistemologia da História. Ou seja, se há alguma caricatura aqui não é de minha parte, mas da própria tinta dos assim declarados “pós-modernos”. O que, na verdade, Munslow busca criticar, mas acaba fazendo mais do que isso, é a noção de verdade-correspondência entre a História escrita e o passado. Porém, o que alcança é a destituição da noção de um passado ao qual a historiografia possa fazer referência, restando apenas as interpretações posteriores partindo de documentos – os traços do passado.

“O argumento vai assim, do mesmo modo que não há base para acreditar que uma metodologia empírica pode garantir o entendimento do passado como ele foi, também não há um enredamento original a ser descoberto” (MUNSLOW, 2006, p. 13).

Ao dar sentido ao passado, ao fornecer uma interpretação a estes documentos, supostos únicos traços do passado, a narrativa do historiador se torna onipotente. Por certo, como ele diz, não existe História sem historiador, posto que a disciplina é uma criação humana. Mas, com isso, com a história sendo apenas um empreendimento literário, o autor está desconsiderando a ordem narrativa que as próprias histórias vividas – estas sim, verdadeiros traços do passado – possuem, e integra o time de Louis Mink, Frank Kermode e Kalle Pihlainen para quem o passado já passou, não existe mais e desfruta de um status ontológico inferior ao presente. Como o historiador lidaria com o passado que pretende representar uma vez que sobre ele só restam documentos e uma batalha de representações asseguradas somente por ideologia? Com quais ferramentas se poderia escrever Histórias? Que tipo de verdade podemos acessar com este entendimento? A seguir, sem chamar seus argumentos de uma crença pós-moderna, no entanto, tentarei desenvolver os principais e convincentes argumentos de que o passado não existe mais nos autores referidos, para, em seguida, oferecer uma contraposição, mais ao gosto de quem escreve.

 

Kermode e a ficcionalização do tempo

Começando por Kermode, talvez pelo crítico literário britânico não estar preocupado com a fundamentação epistemológica da História, mas com a necessidade humana por narrativas. Segundo Kermode, é uma necessidade humana a criação de ficções que criem pontos finais para as histórias. A história da vida de um homem, de qualquer homem, não tem início, meio e fim. Nascemos in media res, jogados ao mundo distante de seu início, da criação, e sem saber ainda como será seu final. Daí a nossa necessidade por criar histórias que nos conectem, ainda que apenas ficcionalmente, que forneça essa concordância temporal – a seu ver, que apenas a ficção pode fornecer. Nessa necessidade se incluí tanto o pensamento apocalíptico de seitas cristãs do medievo, para quem o fim sempre estava próximo, senão no dobrar de uma encruzilhada, na próxima, quanto nas mais sofisticadas teorias da História, como as de Hegel, uma teodiceia secularizada. O final, quanto mais postergado, mais seguramente próximo estaria da previsão seguinte.

“Homens no meio fazem um investimento imaginativo considerável em padrões coerentes os quais, pela provisão de um fim, torna possível uma consonância satisfatória entre a origem e o meio. Por isto a imagem do fim não pode ser permanentemente falsificada.” (KERMODE, 2000, p. 17).

Ser orientado para o final, o que é o mesmo de ter nascido no meio das coisas, significa identificar no início aquilo que decorrerá; o fim é sempre um indício do início e estamos sempre na beira do que irá acontecer – a isto se chama consonância. A constante postergação do final, ou seja, os apocalipses frustrados, para que se tenha um controle humano do tempo, precisam ser reinseridos nessa sequência, e enquanto são adiamentos do final, também são novas justificativas para o fim que chega. Na Literatura, este movimento é imitado pela peripeteia. Quanto mais sofisticada uma história é, mais o final é adiado, menos o fim pode ser uma previsão do início – mas ao se chegar ao fim, o sentimento de concordância é o mesmo. Quanto mais a sensação de destino é obliterada e a sensação de liberdade humana é exacerbada, mais ao gosto do leitor exigente estariam as narrativas, sendo o contrário – as narrativas que o fim e o início concordassem sem grandes desenlaces no meio, seriam mais simplórias e menos parecidas com a realidade. A realidade mais se parece com o sentimento de crise permanente do que com um sentimento de fim que as histórias fornecem. Eis a diferença essencial entre elas: na ficção, temos uma concordância entre início, meio e fim, por mais complexa que essa relação possa ser, por mais falseável que nossas expectativas sejam pelos verdadeiros finais; na vida, temos finais provisórios que nunca chegam a se concretizar, temos a consciência perturbada, um mundo de liberdade e contingências múltiplas que sempre nos surpreendem em relação ao que esperamos.

Mas a noção de ficção de Kermode é bastante ampla, não se aplica somente a textos ficcionais, ou porventura, históricos; não se aplica necessariamente a textos. Ficcionalizar é humanizar o tempo, e para além de um início e um fim, as ficções precisam de ordenamento. Um tempo kairológico ao invés de meramente cronológico. O tempo passado, a conexão entre as partes, deixa de ser o maldito tempo da sucessão desordenada de uma coisa depois da outra para ser o tempo de uma coisa causando a outra. Mais uma vez a relação entre o tempo da revelação, do Gêneses ao Apocalipse, e o tempo da ficção. A concordância entre os tempos seria a redenção da vida, em contrário do caos dos acontecimentos que acontecem entre o início e fim de maneira puramente cronológica; é o homem tomando controle do tempo de sua existência. É preciso ter uma concordância. A literatura, o romance, é um paradoxo: ao mesmo tempo em que é uma necessidade humana, é uma negação dessa mesma realidade. A realidade não poderia se haver sem a ficção, ao mesmo tempo que a ficção, tentando imitar a realidade, a distorce. Kermode fala que “a História dos romances é uma História dos anti-romances” (KERMODE, 2000, p. 131). O que isso quer dizer? Significa que o romance moderno, em sua evolução, nega o campo da ficção como desejo de concordância temporal; que, cada vez mais, o autor tenta se afastar da literatura com um início, meio e fim presumíveis e cede à uma mímesis da realidade, contingente por excelência. Mas que isto não significa que o romance cede ao caos e à liberdade dos agentes, senão que a busca pela forma, pela satisfação, é alcançada a um alto custo. Somente quando o romance é capaz de reproduzir a falta de sentido da vida e sua ausência de inícios e finais, que a concordância encontrada pelo autor pode trazer o consolo. Tomando A Náusea, de Sartre, como romance paradigmático do anti-romance, podemos entender a frase de que a ficção nos lava do pecado de existir; da mesma forma, da maneira que a consonância é negada e buscada na história do romance moderno, podemos entender como, em Kermode, aparece a distinção entre realidade e ficção. As “aventuras” e os “momentos perfeitos” só existiriam nos livros, jamais na vida. Uma vez evidenciada a luta e a autoconsciência do romancista moderno em negar o paradigma da “terra da ficção”, dos estereótipos, dos personagens bem definidos, vemos a abertura de um abismo entre esta ficção e a realidade. A realidade é a pura contingência e a literatura é a forma dada a essa contingência, por mais que se tente negá-la. O mundo precisa da ficção justamente para superar a falta de início e de fim, para que a pura sucessão de eventos seja vista como uma sequência coerente, organizada, humana.[4]

 

Louis Mink e o fim da História Universal como distinção entre tempo e narrativa

Partindo, agora, para a epistemologia da História, vemos reflexo desta noção tanto em Mink quanto em White; a começar por Mink. “Histórias não são vividas, mas contadas. A vida não possuí inícios, meios ou fins.” (MINK, 1987a, p. 60). Talvez a frase mais famosa dentro da filosofia narrativista da História, testemunhando uma separação entre o mundo-da-vida e o mundo-do-texto. Atesta a visão de Mink, e outros que o seguiram, de que o valor cognitivo da História está na narrativa, não na realidade que pretende representar. Mink o assevera quando defende o processo narrativo da História como sendo cognitivamente válido mesmo não fornecendo os tipos de lei que o projeto de unidades das ciências, proposto por Hempel e suas “covering laws” requeriam. Aquele que espera encontrar no trabalho do historiador leis gerais para a queda da democracia, para o início e curso das guerras e genocídios, sobre regras gerais que ocasionam revoluções decepcionar-se-ão com o que a disciplina pode entregar. Ao contrário – e tão somente – a História pode fornecer explicações do tipo que a literatura e ficção proporcionam, como o “isso aconteceu, então isso aconteceu”. A História, ao dispor os acontecimentos como sequência, dá a impressão de que um aconteceu depois do outro e que isso não poderia ser de outra maneira; o antecedente serve de causa ao posterior. É a isto que presta o historiador ao colocar sentenças comprováveis, como “Hitler tomou o poder, na Alemanha, em 1933”, em uma narrativa histórica sobre a ascensão do III Reich. Mais do que isso, a narrativa, pronta, abole o sentido do tempo. Na narrativa histórica, ao contrário da ficcional, o fluxo do tempo não segue do início ao final, apenas, mas, da mesma forma, do final ao início – o totum simul da famosa metáfora (MINK, 1987a, p. 51). Este é o tipo de compreensão histórica, o compreender, tomar em conjunto (grasp together) que apenas a narrativa garante – e que as histórias reais não possuem. A vida não teria início, meio ou ponto final, a realidade histórica só poderia ser depreendida de fontes que asseverassem afirmativas protocolares verificáveis, nunca uma narrativa completa. Ou seja, a história não tem referente, o que não quer dizer que a narrativa seja um meio inadequado de representação do passado. Pelo contrário, é pela ausência de referência ao passado que somente as narrativas podem superar as assertivas individuais e postular a história como um conhecimento respeitável.

Outro ponto que Mink levanta em favor da descontinuidade do mundo e da narrativa é a ausência de uma História Universal, que se assemelha à ideia de Crônica Ideal, de Arthur Danto, segundo a qual haveria uma realidade exterior aos textos históricos, como “histórias não contadas”, sobre as quais poder-se-ia conferir se as histórias contadas são verdadeiras ou falsas. A noção de Mink e a de Danto diferem-se; apesar de ambas funcionarem como o conjunto total de fatos do passado sobre o qual as narrativas poderiam ser conferidas se verdadeiras ou falsas, para Danto, a Crônica Ideal assume uma crítica ao conhecimento histórico ideal. Se existisse uma tal crônica, ainda assim o trabalho do historiador seria necessário, pois este não se trata de apenas verificar o que é verdadeiro ou falso, mas é condicionado pelos eventos posteriores, e essa condição temporal é a do ofício do historiador. Para Mink, no entanto, a História Universal funciona de uma maneira diferente. Em suma, a ideia de História Universal é decadente, apesar de persistir de algum modo na escrita da História de uma maneira sub-reptícia, como a ideia de que existe um passado ao qual comparar-se as narrativas históricas, à maneira de histórias não contadas.

Aproximemo-nos mais para entender melhor o conceito: História Universal, em sua acepção original, entende a história humana como o novelo completo do passado – e, também, do futuro – sobre o qual poderíamos descobrir um único tema. Não importa o que acontecesse, um único sopro poderia ser descoberto como o motor de todas as diferentes ondas que chegam na praia dos acontecimentos históricos. “[História Universal] era a reclamação de que o conjunto dos acontecimentos humanos pertence a uma única história” (MINK, 1987b, p. 190), no aguardo de alguém para contá-la. Segundo, “a ideia de História Universal especifica que existe um único tema central desenrolando-se no enredo da História” (MINK, 1987b, p. 190). Como o Espírito, em Hegel, ou o proletariado, em Marx, com seu determinismo histórico rumo à emancipação das classes. Ainda, a História Universal “implica que os eventos do processo histórico são ininteligíveis quando vistos em relação apenas às suas circunstâncias imediatas” (MINK, 1987b, p. 191); e por último a História Universal considera a variedade das formas humanas e das culturas a uma mera variação de um mesmo caráter humano universal. Assim, com o desenvolvimento das histórias nacionais e da antropologia, entendendo cada povo como único e específico, a História Universal desapareceu, subsumindo diferentes narrativas e biografias ao invés de um só e mesmo movimento na diversidade.

A ideia de uma História Universal, claro, não desapareceu com seu nome na dissolução do Romântico. Ela sobreviveu pelo século XIX na guisa da doutrina do progresso, e no presente na forma do materialismo histórico ortodoxo. Mas a visão do conhecimento histórico mais largamente compartilhada em nossos tempos é precisamente a negação das reclamações da história universal. Em vez da crença de que há uma única história abraçando o conjunto dos eventos humanos, acreditamos que há várias histórias, não apenas sobre diferentes eventos, mas também diferentes histórias sobre o mesmo evento (MINK, 1987b, p. 193).

 

Essa é a diferença da nossa era para a da História Universal; “acreditamos” em múltiplos enredos que podem ser usados para várias ou uma mesma História, enquanto, antes do Romantismo, se acreditava no desenvolvimento do gênero humano através de um único enredo que seria descoberto e contado. Como, no entanto, em configurações epocais e filosóficas tão diferentes, a História Universal ainda resistiria? Eis precisamente o ponto em que a História Universal se aproxima da Crônica Ideal; uma vez que as Histórias são formadas por afirmações verdadeiras e só podem ser consideradas verdadeiras caso todas essas afirmações singulares tenham valor de verdade – se assim a historiografia quer se distinguir da Literatura – uma narrativa histórica não se trata disso. Ela tem relações causais, de início, meio e fim, de seleção e exclusão de eventos, ao contrário do que seria uma mera crônica. E, sendo desta forma, como considerar o valor de verdade de uma narrativa que, diferentemente de uma teoria científica, não pode ser validada apenas pelas afirmações protocolares únicas com seu valor de verdade verificável? A ideia de uma História Universal subsume-se, assim, na Historiografia, como a ideia de um passado que existe, onde todas as narrativas possíveis se encontram e podem ser verificadas em seu valor de verdade, à maneira que a evidência histórica se propõe a atestar a veracidade das afirmações individuais que se pretendem verdadeiras (ou falsas).

Ainda que a ideia de que o passado é uma História não contada saiu da arena da crença consciente e controvérsia para habituar-se como uma pressuposição na área do nosso quadro conceptual a priori o qual resiste asseverações e examinações explícitas. Dizer que pressupomos, como a priori um conceito de história universal, significa: assumimos que tudo que aconteceu pertence a um único e determinado quadro de atualidade não modificável. (“O que foi feito foi feito. Você não muda o passado”) (MINK, 1987b, p. 194).

 

O dilema que Mink nos coloca é: ou voltamos a acreditar na História Universal, com todos os seus problemas elencados acerca de únicas narrativas sobre o passado, ou confirmamos que diferentes enredos podem ser elaborados formando diferentes narrativas, e devemos, portanto, abandonar de vez o conceito de História Universal. Isso significa dizer: ou encontramos as normas que permitem dizer que uma estrutura narrativa é melhor do que a outra e que as narrativas se referem ao mundo real à maneira das afirmações singulares, ou devemos abandonar a ideia de que existe um passado “como as coisas realmente ocorreram” a ser verificado pelas narrativas.

Mas enquanto objetividade for concebida de uma crônica cumulativa, isso não pode ser traduzido em termos de narrativa histórica [...] Uma narrativa deve ter unidade própria; isso é o que é reconhecido ao dizer que ela deve ter um início, meio e um fim (MINK, 1987b, p. 197).

A função cognitiva da forma narrativa, então, não é apenas para relacionar uma sucessão de eventos, mas encorpar um conjunto de interrelações de muitos diferentes tipos como um todo único. [...] A análise e criticismo da evidência histórica pode em princípio resolver disputas sobre matérias de fato sobre a relação entre fatos, mas não sobre as possíveis formas de relação. O mesmo evento sob uma mesma descrição ou diferentes descrições pode pertencer a histórias diferentes e sua significância particular irá variar com seu lugar em diferentes – frequentemente muito diferentes – narrativas (MINK, 1987b, p. 198).

 

Fica asseverada a diferença entre História e crônica, e a diferenciação entre os fatos e evidências que podem ser verificáveis e a narrativa completa. Para não perder de vista o intento deste artigo, clarifique-se, portanto, que o ataque de Mink à História Universal significa a dissonância entre uma narrativa completa e um passado a que a narrativa pode fazer referência enquanto uma História verdadeira. A que se refere à narrativa? Não à História Universal, não a uma Crônica Ideal, sendo estes a ideia do conjunto de coisas que aconteceram. Cessa-se, portanto, as pretensões da História ser referencial a um passado, e com isto, jaz a noção de uma continuidade entre o passado e a narrativa histórica; entre um e outro restam apenas os “traços do passado”, os documentos; e em Mink como em Kermode, tanto pela negação da História Universal ou pela afirmação de que Histórias são contadas e não vividas, em um, e pela necessidade de redimir a existência criando pontos finais, em outro, abre-se um abismo entre o vivido e o representado. Assim, de um lado, temos a experiência disforme, e de outro, a narrativa que dá forma à experiência; temos a ausência de um passado ao qual fazer referência; temos um passado ausente, inacessível.

 

Hayden White: narrativa versus crônica

Hayden White aprofunda este problema em sua diferenciação entre crônica e narrativa, e em seu conceito de enredamento. Uma famosa passagem de White a esse respeito revela mais do que se costuma extrair dela:

Diz-se às vezes que o objetivo do historiador é explicar o passado através do “achado”, da “identificação” ou “descoberta das “estórias [stories] que jazem enterradas nas crônicas; e que a diferença entre “história” e “ficção” reside no fato de que o historiador “acha” suas estórias, ao passo que o ficcionista “inventa” as suas. Essa concepção da tarefa do historiador, porém, obscurece o grau de “invenção” que também desempenha um papel nas operações do historiador (WHITE, 2008, p. 22).

 

Há dois níveis de interpretação nessa passagem, além da equivocada, evidentemente. Descartemos a equivocada de vez, que seria a equivalência total entre História e ficção, de que o trabalho arquivístico do historiador é ignorado por White e que o tudo são apenas “estruturas verbais”. O primeiro nível de interpretação seria um mais correto e mais evidente, a de que existe uma diferença entre crônica e a narrativa histórica, entre um conjunto de fatos não narrados dispostos caoticamente, e a estrutura de início, meio e fim que o historiador dá ao passado histórico. Porém, mais profundamente, subjaz nesta interpretação uma característica importante para este estudo: a diferença entre “achado” e “inventado” não diz respeito somente aos fatos como são estruturados em uma narrativa, diz respeito à própria estrutura narrativa deles. Dizer que não achamos ou identificamos estórias enterradas nas crônicas implica em dizer que toda estrutura narrativa é uma doação posterior da História, mais do que propriamente falar que não se acha “dados puros e verdadeiros”. A distinção, portanto, entre um historiador e um narrador de ficção, não é que um quer representar uma realidade passada enquanto o outro representa apenas eventos imaginários – que porventura podem ter sua fundamentação nos acontecimentos, ou não – mas que por trás do ofício do historiador, por trás de sua narrativa, há a crônica. E, importante ressaltar, a crônica não nos lega narrativas, mas eventos que devem ser colocados em enredo – enfatizando a diferença entre o mundo-da-vida e o mundo-do-texto; que um é regido pelo caos e aleatoriedade, e outro pela sequência ordenada e narrativa. O que rege, a meu ver, a coesão dos discursos narrativistas é um equívoco ontológico segundo o qual o passado não existe. Para White e outros narrativistas, como os expostos acima, o passado não tem uma materialidade presente, ele é conhecido apenas por “traços” de entidades materiais “que indicam não tanto o que as coisas que as produziram eram, como, ao contrário, o fato de que “alguma coisa” se passou em certo lugar ou fez algo neste lugar” (WHITE, 2014, pos. 66).

Minha própria posição tem a ver com as considerações familiares sobre as condições de possibilidade de um conhecimento científico do “passado histórico”, nomeadamente o fato de que eventos passados, processos, instituições, pessoas e coisas que não são mais perceptíveis ou conhecíveis diretamente do jeito que o presente ou entidades que ainda estão vivendo. Portanto, uma teoria da correspondência histórica falha por meio de falácia de uma concretude mal colocada (WHITE, 2014, pos. 66).

 

Sendo que o passado não existe, para White não existe uma relação possível de correspondência entre a narrativa histórica que faz o historiador e aquilo do que ele fala – supostamente o passado. Novamente nos vemos diante da metáfora da Crônica Ideal, à qual poderíamos nos remeter para conferir se a narrativa histórica é verdadeira ou não. No entanto, estruturada apenas acima de traços, o que resta ao historiador são documentos, testemunhas e monumentos – eventos que a crônica apenas oferece, mas que um determinado de tipo de narrativa colocará em enredo. Este colocar em enredo é o que dá o caráter de explicação da História e o senso de realidade.

Quando nós, modernos, olhamos para um exemplo de alguns anais medieval, nós não podemos ficar senão apenas presos na aparente ingenuidade do analista [...] Em outras palavras, nós estamos propensos a ver o aparente fracasso do analista em enxergar que os eventos históricos dispõem eles mesmos ao olho perceptor como histórias aguardando para serem narradas (WHITE, 1990, p. 6).

 

A estrutura narrativa dos Anais analisados, apontando a data e o acontecimento, segundo White, se aproximaria mais da realidade como ela é do que a nossa estrutura narrativa. Um maldito evento depois do outro. É depois de ficcionalizar, enredar, de escolher entre um tipo de mythos e outro dentre os que o nosso repertório cultural oferece, é que a história ganha seu significado. O caos, o puro “isso depois daquilo” se parece mais com a nossa realidade do que a estrutura narrativa ficcionalizada capaz de dar explicações sobre o passado. Em suma, o que essas passagens de White dizem, é que não há sentido inerente no passado para que o historiador simplesmente os ache e os fixe em histórias, mas sim que ele – o sentido – é dado pelo historiador na medida em que interpreta o passado. Assim, determinado evento pode ser descrito como início de uma história, seu final, como motivo de transição e ter significados múltiplos a depender de como é enredado.

 

O historiador-robô Mark II

A perspectiva de White e dos narrativistas, em geral, é endossada por Kalle Pihlainen. Em um artigo em que propõe um experimento um tanto quanto bizarro, o de uma máquina do tempo que nos garantiria acesso ao passado sem passar pelas querelas intelectuais metodológicas, ele se pergunta “e se o passado fosse acessível, afinal de contas?” A questão de Pihlainen é mais mostrar que, mesmo com o passado acessível, o trabalho do historiador ainda seria importante, pois afinal de contas, ainda caberia a ele o papel de atribuir sentido ao passado e fornecer interpretações. Uma interpretação única do passado, mesmo com esse acesso limitado a ele – ou seja, não poderia ser manipulado como se pode manipular as experiências humanas do presente – não resultaria em grandes implicações para a existência do ofício de historiador. Para o historiador finlandês, o trabalho desta máquina do tempo só afetaria os historiadores na medida em que fossem voyeuristas ou que relegassem a profissão como um simples ato de checagem dos fatos – claramente, nenhuma das duas, a ocupação fundamental do historiador, segundo Pihlainen (PIHLAINEN, 2012). Mas o que ressalta dessa abordagem, novamente, é o estatuto ontológico do passado, que se difere do estatuto ontológico do presente de uma maneira que entre um e outro não haveria continuidade, senão alguns traços materiais do presente que serviriam para a fase da pesquisa documental. Em termos da fase escrita da pesquisa histórica, ou seja, a da atribuição de sentido ao passado, esta continuaria a mesma – mesmo que a magia interviesse em favor da primeira. Aqui, novamente, é negada a contiguidade entre passado e presente, e o sublime parece dominar todo do terreno da terra estrangeira da nossa não-contemporaneidade. Enquanto os eventos dos passados não possuem sentido, a narrativa o possui. A realidade histórica e a narrativa histórica, o mundo-da-vida e o mundo-do-texto são vistos como descontinuidades temporais, de modo que, segundo Carr, faz a narrativa se tornar um representante inadequado do mundo:

Para White, narrativa é imposta a um mundo não narrativo, o distorcendo e o escondendo ao invés de revelá-lo. Para Ricoeur, a narrativa tem certas características do mundo pré-narrativo, mas sua função primordial é transformá-lo numa coisa nova mais do que descobrir sua verdade. Ao fim, sua função é ética ao invés de epistemológica. Então podemos ver que por várias razões, a narrativa, que parece funcionar muito bem na vida ordinária como um modo de explicação, não caiu nas graças dos teóricos que se preocupam de vários modos com ações e eventos humanos (CARR, 2014, pp. 220-221).

 

O argumento narrativista, a este respeito, não parece convincente para os historiadores mais ligados à escola fenomenológica, ou mesmo para os historicistas. Para filósofos como David Carr e historiadores como Ankersmit, o passado não apenas tem sua presença, como as experiências passadas se organizam de forma narrativa. Somos afetados pelo passado. A este contraponto pretendo dedicar a próxima seção.

 

As histórias são vividas: continuidade entre realidade e ficção e o argumento fenomenológico

Segundo a fenomenologia, o historiador só é capaz de estudar o passado porque, pré-tematicamente, está envolvido neste passado. O passado, no caso, não é uma invenção intelectual do historiador, senão, antes a própria condição do surgimento da pergunta pelo próprio passado. Estamos todos imersos na historicidade [Geschichtlichkeit], sejamos historiadores ou não, e é nesse passado pré-temático que agimos e sofremos, que a configuração temporal e quase narrativa surge para possibilitar o trabalho do historiador. Em suma, o passado, de certa forma, é mais descoberto do que inventado pela agência narrativa. David Carr quer combater a coalisão de pensamentos dos que acreditam que “Os eventos reais não se agrupam simplesmente de uma maneira narrativa, e se nós os tratássemos dessa maneira, estaríamos falseando a vida” (CARR, 2016, p. 229)

Ao buscar um passado pré-temático aos feitos do historiador, em verdade, Carr não está em busca da tradição que determina o que o historiador pode escrever ou não. Antes, ele quer afirmar que não há uma descontinuidade entre tempo e narrativa, que a experiência e ação humana são configuradas de acordo com os mesmos princípios que a narrativa, e que não precisam ser narrados para tomarem forma.

Como vimos, essa estrutura pertence certamente aos eventos humanos - experiências e ações - sobre os quais se contam histórias e, mais importante, pertencem a eles se contamos ou não histórias, no sentido literário. E mais, se estivermos corretos, essa estrutura pertence essencialmente a tais eventos, os quais não poderiam existir sem ela. Assim como a estrutura de início-meio-fim requer uma sequência temporal para ser o que são, a sequência temporal requer esse tipo de encerramento; a essa altura, significa, como essa uma sequência humana, cujas fases e elementos são as coisas da experiência humana (CARR, 1991, pp. 51-52).

 

Essa é uma afirmação repetida diversas vezes por Carr ao longo de sua obra, em diversas maneiras, afirmando que a narrativa não é uma imposição, e sua ordem não é algo alheio à ação, mas sim uma continuidade mais sofisticada da própria configuração temporal que a ação traz em si. Que a narrativa só é possível de ser configurada porque a própria experiência de que ela fala também é configurada. Portanto, os teóricos que alegam a descontinuidade entre tempo e narrativa, estão errados – posto que de tal maneira, a representação seria uma distorção temporal.

Em Time, Narrative, and History, o próprio autor tenta demonstrar como as nossas experiências mais simples são configuradas em passado-presente-futuro (CARR 1991, p.149). Num segundo momento, testa se esta configuração permanece quando tomamos ações mais complexas e que são atravessadas por outras ações e experiências, nossas ou dos outros, concorrentes ou paralelas. Sua fenomenologia, seguindo Husserl, Dilthey, Heidegger, e dialogando intensamente com Schapp e McIntyre, é convincente. O esforço do primeiro momento evoca uma passagem de Husserl, onde se faz uma analogia entre percepção temporal e espacial. O exemplo tomado é o ouvir de uma melodia. Quem escuta uma nota, não escuta apenas a nota que está tocando, mas já prefigura as notas seguintes e as anteriores, ouvindo, portanto, uma canção inteira, todas as notas a um só tempo. Claro que a expectativa da próxima nota pode ser frustrada, ouvindo-se outra, mas isto não é suficiente para derrubar a ideia de que uma nota não é ouvida isoladamente, mas em conjunto com todas as demais – servindo a própria frustração ou surpresa como um componente estrutural do futuro na experiência. Surgem, assim, duas das invenções mais brilhantes de Husserl, a noção de retenção e a de protenção. A retenção é diferente da memória, não é um passado chamado ao presente pelo esforço do sujeito, mas um passado que compõe a estrutura da ação. A retenção é aquilo que “acabou de ser passado”, mas está intimamente ligado ao que ainda é, de forma que a estrutura da experiência tem um background do qual se destaca. “Retenção é, definitivamente, uma consciência de algo passado: a nota anterior se foi para sempre. Ainda, estou consciente dela juntamente com a presente e ela torna o presente possível” (CARR, 2014, p. 34). Assim, a experiência presente é conectada a um passado infinito através das retenções-das-retenções. Não é só uma nota anterior que é “segurada” pela melodia que segue, mas toda as notas das músicas, até o momento de silêncio que a antecede, é uma retenção de outra retenção. Da mesma forma ocorre com as protenções, sendo nada mais do que um futuro imediatamente ligado à experiência, que varia de acordo com sua evolução, podendo alternar entre sendo indefinido, esperado ou surpreendente. A experiência, portanto, desde a mais simples manifestação, é composta por presente-passado-futuro, se destacando de um background temporal. A comparação com uma paisagem é eficaz. Assim como a condição de o "aqui" ser percebido é a sua situação em um todo mais amplo, em uma paisagem que marca o que o cerca, um primeiro plano e um segundo plano, sendo o "aqui" a situação entre o que se destaca e o que compõe a paisagem – também é assim com o tempo. Nossa experiência, seja ela ativa ou passiva, leva em conta um passado e um futuro, não como mera expectativa ou lembrança, mas como uma protenção e uma retenção. O agora, portanto, está sempre composto de um passado que é imediatamente evocado pela experiência e de um futuro, que lhe é indissociável.

Isso tanto na melodia que se escuta, ou em uma ação que se executa, por exemplo, um saque num jogo de tênis. Ao invés de se considerar cada movimento do corpo como uma ação simples separada, todas elas são vistas como integrantes de uma mesma ação, um meio para se alcançar um fim. De maneira que tudo que se faz para alcançá-lo é retido, bem como o fim a ser alcançado figura como uma quase-retrospectiva daquilo que ainda não aconteceu, mas se espera que aconteça. Há uma continuidade psicológica e fisiológica entre o levantar o braço, atirar a bola ao alto e acertá-la no campo adversário. Que naturalmente, também pode se mostrar equivocada, por exemplo, ao errar a bola, quebrar a raquete ou errar o ponto de qualquer outra maneira. Assim, todo agir humano tem uma espécie de retenção-protenção, que é o mesmo de uma conexão essencial entre o passado-presente-futuro. Configuração, portanto, não exclusiva da narrativa. "O alicerce dos eventos humanos, assim, não é uma "pura sequência", mas seqüências configuradas" (CARR 1991, p.44). E Carr afirma ainda mais categoricamente, assegurando a continuidade entre tempo e narrativa:

A existência e experiência humana como nós as descrevemos consiste não em tempos que se sobrepassam, não em escape ou ser levado por seu fluxo, mas em um tempo que modela e forma. Tempo humano, para nós, é tempo configurado. A união narrativa do contar uma História não é um salto sobre o tempo, mas uma forma de ser do tempo. Ela não é mais exterior a ele do que os montes num vale de rio, ou as mãos do artesão em uma escultura de barro (CARR 1991, p. 89 – grifo meu).

 

Um passo adiante foi dado para demonstrar que a vida de um indivíduo, composta por várias ações, também possui essa conexão temporal entre passado-presente-futuro, uma estrutura, por assim dizer, de protenção-retenção. São experiências e ações que necessitam mais reflexão, tanto sobre o passado quanto sobre o futuro, desta vez sim em formato de memória e expectativa. Fundamental neste ponto são os conceitos de Besinnung, que significa uma criação de sentido quando ele é perdido; e de Zusammehang des Lebens, que seria criar uma concordância para a vida a partir de todos os eventos passados, no presente, para uma projeção de um futuro. Aqui a estrutura narrativa da ação fica mais evidente, uma vez que as conexões com o antes e com o depois não são imediatas – dependem da reflexão. Quando uma ação ou experiência é abandonada e depois retomada, como por exemplo a leitura de um livro, a escrita de um trabalho, a retomada de alguma atividade após um repouso, ou mesmo a continuidade de nossa existência após o sono, necessita de uma operação mental que seja capaz de situar o homem no presente da ação. Podemos nos pegar no meio de alguma atividade sem lembrarmos o propósito ou fim dela, assim faz-se necessário lembrar dos passos antes dados e das intenções que se quer concluir. A isto chama-se Besinnung. E como a vida de um indivíduo é feita de ações paralelas e concorrentes, e entra em conflito ou concordância com a ação de outros indivíduos, para que a se garanta a identidade do próprio, é necessário distinguir aquilo que realmente importa do ruído, do contingente – e isto é essencialmente narrativo. Seguindo a afirmação de Schapp em seu Envolvido em Histórias, "Die Geschichte steht fur den Mann", significando que a identidade de alguém não é mais que a sua história. Assim, para falar quem é alguém, conta-se uma História sobre essa pessoa. E, considerando a existência como um conjunto de ações e experiências, pessoais e coletivas, cada uma com seu próprio telos, como definir a História a ser contada?

Carr introduz aqui um conceito caro aos teóricos da literatura, identifica os diferentes envolvidos em uma História: o narrador, os personagens e a audiência. Ao viver a própria vida, o homem conta para si mesmo a sua História, servindo de narrador, personagem e audiência, e o acordo narrativo oriundo daí é a sua própria identidade. Mas, permanece a questão, dentre tantas histórias, como montar a História da vida de um indivíduo? É necessário eliminar os ruídos, considerar apenas as histórias que importam para a constituição da identidade. Se as ações simples possuem uma teleologia, as ações compostas, por serem várias, possuem inúmeras teleologias. Quais delas são importantes para o indivíduo? Para facilitar, podemos considerar o alvo de todas as ações a existência feliz do homem, mas isso basta? Não há critérios para se definir a composição narrativa de uma História pessoal, e ainda que houvesse, ela estaria sujeita a rearranjos, uma vez que à medida que o tempo passa, há uma necessidade de realocação dessas histórias. "Isso significa que o todo pode muito bem se modificar, e as partes mudam, não em relação a si mesmas, mas em relação às outras que compõem o todo " (CARR 1991, p. 99). Há um elemento importante nesta discussão, a saber, a da autenticidade do homem que vive as Histórias, se ele é ator, coautor ou simplesmente vive nas histórias que contam a seu respeito; porém, não é, de imediato, isso, que interessa. A questão que deve sobrepor-se a que tipo de história um homem pode se enredar em seus desafios existenciais perante a morte é a que o homem conta histórias para si mesmo a todo tempo. “Nós podemos viver e agir sem contarmos histórias, mas não podemos contar histórias sem viver e agir” (CARR, 2014, p. 112). Agir é contar uma história para si próprio; mais do que isso, contar e recontar para si mesmo ou também para os outros, na medida em que agimos. A forma narrativa nunca é uma imposição exterior da criação do literato ou do historiador aos eventos que aconteceram, mas é a forma mesma adotada pelos agentes que vivem suas experiências: “Pode ser considerado como o princípio organizador não apenas de ações e experiências, mas também do self que atua. Existe um aspecto autobiográfico da vida mesmo daqueles que nunca sentam-se para escrever suas biografias” (CARR, 2014, p. 113). Há aqui, algo muito diferente do que a teoria narrativista e seus arautos pretendem. Ao contrário de propor uma diferenciação entre tempo passado e narrativa, o filósofo propõe uma sua continuidade através do conceito de experiência. Porém, se as ações são narradas in locu, para que narrá-las depois? Carr não nega a importância da narrativa histórica, mas atribui a ela apenas a vantagem de um ponto de vista posterior, capaz de reorganizar as narrativas da ação de maneira diferente. Há uma verdadeira metafísica narrativa da vida cotidiana, pretende Carr, elaborando sobre as reflexões ulteriores de Danto. (CARR, 2014, p. 112)

Portanto, temos uma configuração narrativa do passado, assim como a do texto histórico, ordenadas em início, meio e fim. Aparentemente isto é suficiente para resgatar a teoria da verdade por correspondência na História. Com o alcançado pela fenomenologia estaríamos aptos a um acesso direto ao passado? A máquina do tempo de Pihlainen ou a Crônica Ideal de Danto e Mink estariam resguardadas? O Historiador, teria, afinal, um referente? Um passado enquanto tal para que as narrativas sejam comparadas. É sedutor dizer que sim, mas este sequer é o propósito de Carr, que o rejeita, e assevera que o ponto de vista do historiador, diacrônico, é importante a se levar em conta, e que ele tem o poder de alterar enormemente a narrativa dos atores históricos. O que Carr pretende, simplesmente, por um lado, é mostrar a continuidade da estrutura narrativa da ação e da narração – portanto, defendendo que uma não desfigura a outra –; e, por outro lado, ele busca resgatar a experiência histórica do excesso de teoria da representação e da memória, que, para ele, mostra um passado distante ao invés de uma continuidade. Nesse sentido, ele junta esforços a Ankersmit, Eelco Runia e outros, no que Ethan Kleinberg chamou de paradigma da presença (KLEINBERG e GHOSH, 2013). Mas se este não é o intento de Carr – resgatar a possibilidade de uma verdade por correspondência na História –, tampouco estou interessado nisso. Será suficiente caso tenha sido meritoso em demonstrar, através do apanhado historiográfico em tela, um equilíbrio ontológico entre passado e presente. Mas tampouco este mérito é suficiente ou o objetivo final do artigo. Resta, agora, ensaiar uma confrontação aos dois pontos de vista, narrativista e o fenomenológico, para refletir sobre a ontologia do passado e sobre a que tipo de verdade histórica este conhecimento pode almejar.

 

Conclusão

O ataque de Frank Ankersmit à possibilidade de a História fazer referência ao passado é tão, ou mais, decisivo que a crítica de Mink à História Universal. Longe está, entretanto, de afirmar puerilmente que não há possibilidades de uma verdade histórica, apenas que a temos através de um tipo diferente – a verdade representacional. Referência, diz-nos Ankersmit, é o tipo de função da linguagem que nos permite “a unicamente escolher apenas uma coisa individual em meio à infinidade de coisas contidas no universo” (ANKERSMIT, 2012, p. 87), associar linguagem e uma coisa-no-mundo individualmente. A verdade referencial seria a do tipo da lógica, das afirmações protocolares que se pretendem verdadeiras e que compõem a narrativa; mas, como vimos, a narrativa é mais do que isso. A lógica da verdade referencial faz parte da descrição, não da representação. Podemos descrever uma cadeira como azul, como tendo quatro pernas, como sendo grande, pequena ou pesada. A cadeira tem atributos identificáveis que a lógica descritiva pode apreender. Mesmo um personagem histórico pode ser descrito como sendo alto, baixo, audaz, covarde; ou como o vencedor de uma eleição ou o perdedor de uma guerra. Porém, esta lógica falha para definir a verdade das narrativas históricas.

Pense num livro sobre a Revolução Francesa. Nele você não pode indicar os capítulos, seções, parágrafos, ou sentenças que referem exclusivamente à Revolução Francesa e aqueles que atribuem, exclusivamente, certa propriedade a ela, como tipicamente é o caso das afirmações singulares verdadeiras (ANKERSMIT, 2012, p. 65).

 

As afirmações com pretensões de serem verdadeiras ou falsas se imiscuem num todo organizacional narrativo, como mostra-nos Mink; mas, especialmente, White nos fala, de modo que o todo narrativo não se confunde com suas partes. A verdade representacional se dá por três instâncias, ao contrário das duas da descrição. Ao representar algo que extrapola a simples ontologia do objeto passível de descrição, numa operação que tem a (1) representação, (3) o objeto que é alvo da representação, e (2) entre ambos, o aspecto que é presentificado pela representação. Este aspecto não se confunde nem com a representação em si, nem com o representado. Consideremos um dos exemplos que Ankersmit nos dá, o de uma seção de fotos da mesma pessoa. A pessoa fotografada é a mesma, e podemos dizer das diversas fotografias que elas representam a mesma pessoa, mas cada foto particular é diferente uma da outra, de maneira que o presentificado por cada uma dessas fotografias não podem ser acusadas de serem falsas representações da mesma pessoa, nem se pode escolher uma ou mais fotos para defini-las como representando autenticamente a verdade da pessoa. A representação pressupõe a multiplicidade; um evento histórico pressupõe várias narrativas da mesma maneira que uma pessoa se dá a múltiplas representações pictóricas. Representações são sempre representações de aspectos. Em suma, Ankersmit concorda com a tese narrativista de que não existe uma Crônica Ideal para se comparar o passado, uma vez que a realidade histórica possui uma ontologia diferente da realidade material dos objetos. Assim, também descarta a tese, que poderia ser relacionada a David Carr, de que a experiência vivida em sua forma quase narrativa, servisse de referência para a narrativa.

O que ficaria no lugar dessas teses, se algo? Como asseverar que determinada representação de uma experiência do passado seria verdadeira, ao invés de mera interpretação? Ankersmit não sucumbe ao desespero niilista de que todas as interpretações, na ausência da possibilidade de uma verdade descritiva, seriam de mesmo valor. Ao contrário, e acertadamente, o historiador holandês reconhece que a prioridade da representação como uma verdade tautológica – só se pode interpretar sobre algo que existe. A representação é soberana pois aquilo que deve ser interpretado é sempre uma realidade que, de alguma forma, carece de um sentido e pede uma “substituição”, a interpretação quer tomar o lugar da realidade (ANKERSMIT, 2012, p. 56). Diante disso, temos a verdade representacional. Ela conecta a representação histórica revelando um aspecto do mundo em particular. A verdade proposicional (a de se afirmar que uma sentença é verdadeira ou falsa) está contida na verdade representacional. A representação, o aspecto do mundo revelado pela verdade representacional, engloba as múltiplas verdades proposicionais, mas não se resume a elas. A verdade representacional é um pedaço do mundo como ele é: “Isso nos dá a verdade ontológica da representação. Verdade, aqui, é uma propriedade não da linguagem, mas do mundo e suas coisas” (ANKERSMIT, 2012, p. 109) . Eis a diferença da verdade representacional e proposicional; enquanto esta nos revela verdades pela linguagem, a outra nos faz revelações sobre o mundo através da relação com os aspectos diferentes do mundo que nos são demonstrados.  Aqui a noção de verdade representacional se aproxima da noção de verdade heideggeriana, de descobrimento, desvelamento. A verdade representacional nos revela algo sobre o ser que não é uma questão, mas algo que é feito aparecer pelo presentificado. A verdade que uma História traz é como se um véu tivesse sido removido de nossas faces e nós pudéssemos enxergar a realidade de outo modo.

Em suma, em concordância com a noção de Heidegger de verdade como αλήθεια, ou Unverborgenheit, a verdade representacional é uma revelação da realidade. Não linguagem, mas a realidade ela mesma acende a luz da verdade, muito embora esta autorrevelação da realidade só possa ser alcançada através da representação (ANKERSMIT, 2012, p. 112).

 

Mas o que é revelado, ou desvelado, pela verdade histórica, pela verdade representacional que ela carrega? O próprio mundo, o Ser, a identidade de sujeitos que não são apenas substratos materiais ou entidades biológicas, mas feitos de experiências históricas e que precisam de narrativas para não se desfragmentarem. A verdade das narrativas históricas é o espelho em que o Humano se reconhece como Humano. Tanto o Humano como indivíduo quanto como coletivo precisam ser construídos pela narrativa histórica, e a verdade deste tipo de empreendimento não é a das meras proposições individuais, mas algo que revela aspectos que somente a representação pode revelar. Como desvelamento, o problema da verdade histórica se desloca tanto do problema narrativista quanto do puramente fenomenológico e se junta à hermenêutica do Dasein. A questão de se existe ou não uma Crônica Universal com a qual se pode cotejar as afirmações do historiador perde importância; a questão de se existe um passado pré-temático anterior à narrativa histórica ganha novas dimensões. Reconhece-se o passado existente, mas não como uma simples continuidade entre experiência e narrativa, num conglomerado que seria a verdade-correspondência. Como diz Runia, a confusão de que existe, em História, um sujeito conhecedor e um objeto a ser conhecido, assim, nitidamente distintos, é um ocultamento de questões ontológicas sob a epistemologia (RUNIA, 2014, pp. 84-85). A ontologia do passado não se reconhece como total ausência, como querem os narrativistas, ou como um passado imutável e acessível, como querem os realistas ontológicos, tão-somente se dispormos do correto método de investigação (KLEINBERG, 2007).

A questão transforma-se. Reconhece-se a existência de um passado anterior à narrativa, mas que é diferente, pouco claro. A verdade representacional recolhe um pedaço do passado embaçado, onde as diversas verdades proposicionais se confundem, e como que o clarifica. Mas, mais importante do que isso, elas constroem algo novo, um Ser que não existia antes das narrativas, mas que se constroem a partir delas. Cada representação de um aspecto do Ser lhe revela uma nova face, antes encoberta. O problema da temporalidade se transfere da mera epistemologia, como se apresenta no narrativismo e na fenomenologia, para a ontologia, quando a hermenêutica do Dasein entra em cena. A verdade deixa de ser mera concordância para ser desvelamento da historicidade:

A enunciação é verdadeira significa: que ela descobre o ente em si mesmo. Ela enuncia, mostra, “faz ver” o ente em seu ser-descoberto. O ser-verdadeiro (verdade) da enunciação se deve entender como um ser-descobridor. A verdade não tem, portanto, de modo algum a estrutura de uma concordância entre conhecer e objeto, no sentido de uma adequação de um ente (sujeito) a outro (objeto) (HEIDEGGER, 2012, p. 605).

 

A verdade é um ser-descobridor, ou seja, aquilo que tira o véu das coisas que deixam oculto o ser-das-coisas. Ser-descobridor é um modo de ser do Dasein, e descobrir é um modo-de-ser do ser-no-mundo. A verdade é um modo de abertura do mundo, antes encoberto – é um encontrar-se. “O Dasein é “na verdade”” (HEIDEGGER, 2012, p. 611). Entre outras coisas, pensar assim a verdade significa pensar o Homem como projeto, como poder-ser. “O Dasein, como entendedor, pode se entender a partir do “mundo” e dos outros ou a partir do seu poder-ser mais-próprio”  (HEIDEGGER, 2012, p. 613). O jogo da verdade situa o Ser na propriedade e ao mesmo tempo na impropriedade, no projetar e no modo de ser a-gente. O Dasein opera na verdade e na não-verdade, no ocultamento e na possibilidade de ser arrancado desse ocultamento. A verdade representacional de Ankersmit, em diálogo com Heidegger, nos permite pensar uma verdade muito mais fundamental que a da mera correspondência, em que o mundo nos é revelado cada vez mais, e possibilita novas formas de reconfigurá-lo e reconfigurar o Ser. Para se pensar as possibilidades de verdade em História, mais do que epistemologia, é necessário um cuidado ontológico. Afinal, o que distingue o trabalho do historiador do dos falsários é uma crença de que nos relacionamos com o passado de um modo verdadeiro; o que implica uma reflexão sobre se o passado existe ou é mero traço de existência – o que implica rever o estatuto ontológico do passado. E escrever uma História verdadeira, mais do que pensar em uma correspondência entre representação histórica e realidade histórica, é pensar as possibilidades de Ser do Dasein. Urge, portanto, pensar o passado, também, enquanto presença.

 

Referências bibliográficas

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RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa: a intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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WHITE, Hayden. Narrativity in the representation of reality. In: (org.). The Content of the Form. Baltimore: John Hopkins University, 1990.

WHITE, Hayden. Meta-História: A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo: EDUSP, 2008.

WHITE, Hayden. The practical past.  Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2014. [E-book]

 

Recebido em 14/09/2022.

Aceito em 09/12/2022.



[1] Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Brasil. E-mail: eroestrato@gmail.com | https://orcid.org/0000-0002-0211-8999

[2] O termo narrativismo designa um tipo de Filosofia da História de matriz anglo-saxã, desenvolvida nos anos 1960-1970 como decorrência das discussões da filosofia analítica da História, que buscavam encontrar no texto histórico o mesmo tipo de explicação generalizante que nas ciências naturais. Ao mesmo tempo que se lhe apresenta como continuidade é, ao mesmo tempo, uma espécie de ruptura. A característica principal do narrativismo é considerar o texto histórico como um artefato literário – nas palavras de Hayden White – e perscrutar como uma narrativa pode pretender alcançar uma verdade que é exterior ao texto. Naturalmente, este desafio causou repercussões, destacando-se entre defensores deste tipo de teoria Keith Jenkins, Alun Munslow e, entre os detratores, que são maior número, Richard Evans, Carlo Ginzburg, Lynn Hunt e Peter Zagorin. Estes últimos defendem um “realismo” historiográfico e atacam o suposto relativismo narrativista como uma falha moral. Apesar da relativa antiguidade do debate, ele se mostra longevo e atraente.

[3] É proveitoso esclarecer em nota a grafia da palavra História, com maiúscula, e história, com minúscula. A primeira refere-se tanto à disciplina científica e acadêmica quanto à forma escrita que é o fim das pesquisas históricas. Já em minúscula, história se refere ao mundo-da-vida, onde as ações e paixões humanas ocorrem.

[4] É irônico que Roquentin seja um historiador que abandona seu ofício ao perceber a falta de sentido do mundo. Tão ou mais irônico, entretanto, é que reconheça na própria narrativa que escreve, em seu romance, a superação dessa falta de sentido – a cura pela doença de viver, o reencontro com o sentido.