Os limites de Global Classics

Fábio Morales[1]

 

BROMBERG, J. Global Classics. London and New York: Routledge, 2021. 133 p.

 

Na primeira semana de fevereiro de 2021, a The New York Times Magazine publicou um (já célebre) perfil de Dan-El Padilla Peralta, latinista estadounidense negro de origem dominicana, que escancarava os compromissos do campo de Classics – ou Estudos Clássicos, a partir de seu paralelo brasileiro – com o colonialismo e o racismo (POSER, 2021). O título da reportagem era sintomático acerca das implicações do debate: “Ele quer salvar Classics da branquitude. O campo conseguirá sobreviver?”. O texto gerou debates em diversos lugares e veículos do mundo, da imprensa grega (IOANNIDIS, 2021), acostumada a discutir a centralidade econômica do turismo histórico, a mesas redondas de antiquistas brasileiros (GT DE HISTÓRIA ANTIGA, 2021), marcados pelos intensos debates sobre o lugar da Antiguidade no ensino de História no Brasil.

O perfil e as subsequentes entrevistas de Dan-El Padilla Peralta permitiram que sujeitos de diferentes partes do mundo percebessem as tensões e contradições do (afluente) campo universitário estadounidense. Visto do Brasil, o debate tornava evidentes tanto os paralelos, como por exemplo a importância da “tradição greco-romana” na formação das elites escravistas e de uma identidade europeia, quanto os contrastes, como na quantidade de instituições universitárias e de financiamento acadêmico, ou ainda na experiência social do imperialismo a partir de posições antagônicas. Este jogo de paralelos e contrastes se explica pela história recente do Brasil. A partir da redemocratização dos anos 1980, a historiografia brasileira iniciou um movimento de revisão profunda de seus pressupostos eurocêntricos, o que motivou o surgimento de perspectivas alternativas, como as histórias dos grupos populares e subalternos, das relações de gênero, dos usos do passado ou dos processos globais de integração. O debate em torno das críticas de Padilla Peralta, então, apontava para o surgimento, nos Estados Unidos, de uma ainda marginal crítica aos compromissos eurocêntricos e elitistas do campo. Num curioso caso de “vantagem do subdesenvolvimento”, antiquistas brasileiros puderam “anacronizar” a academia estadounidense, assistindo a um debate intenso ali, mas já datado aqui.

No mesmo ano, em 2021, outro livro abriria mais uma janela para o debate estadounidense: o programático Global Classics, de Jacques Bromberg, professor na University of Pittsburgh e editor do recém lançado periódico Global Antiquities. A junção do adjetivo global ao tradicional substantivo Classics pareceu promissora a este leitor, a depender do que o autor conceberia como Classics e como “global”. Realizada a leitura, percebo que é justamente nestas duas concepções que estão os maiores ganhos e a maiores oportunidades perdidas no livro. Vejamos.

A introdução apresenta a proposta geral do livro: renovar o campo de Classics em função dos desenvolvimentos teórico-metodológicos e ético-políticos ligados aos estudos pós-coloniais, subalternos, feministas e, acima de tudo, aos estudos globais. Classics, para o autor, é um campo privilegiado para a interlocução com os estudos globais, em virtude tanto do necessário “descentramento” do campo diante de sua vinculação ao eurocentrismo, quanto do engajamento de classicistas com os debates dos estudos globais. Este engajamento seria visível em estudos publicados nas últimas décadas sobre o Mediterrâneo e o império romano como “espaços globais”, ou das migrações, colonizações e formas de mobilidade de pessoas, ideias e coisas. No entanto, para o autor, tais iniciativas são ainda incipientes, dadas as dificuldades do campo em superar as “estruturas cognitivas da modernidade”, tais como a ênfase nas fontes produzidas por homens, citadinos e letrados (elitismo) ou a projeção dos estados nacionais territoriais sobre as realidades sociais antigas (nacionalismo metodológico). Daí o projeto do livro: oferecer um arcabouço conceitual para a “globalização” de Classics, para a superação de seus eurocentrismos, internalismos, historicismos e elitismos. Os demais capítulos do livro se dedicam a delinear quais são (ou deveriam ser) os traços deste novo campo, de um Classics global.

O primeiro traço é ser Transborder, “transfronteiriço”, título do capítulo 1. A discussão inicia com a oposição conceitual entre o par internacional/multinacional, que remete às fronteiras fixas entre os países, e o par transnacional/global, que se refere a “processos e arranjos que transcendem os limites dos estados circunscritos (bounded polities)” e “conectam pessoas em diferentes partes de complexas redes sociais transfronteiriças” (p. 17). Entendendo globalização como um fenômeno do segundo par, o autor argumenta que processos semelhantes já ocorreram na Antiguidade: daí a acusação de etnocentrismo contra os que situam o início da globalização na expansão europeia do século XV, ou de presentismo contra os que datam a globalização no século XX. Ao voltar-se para a reação de classicistas a este debate, o autor elenca dois movimentos. O primeiro é o esforço de “libertar a Antiguidade do atenocentrismo, ao laconicentrismo e ao romanocentrismo” (p. 21), ou seja, de retirar a centralidade de Atenas, Esparta e Roma dos estudos sobre a Antiguidade. O segundo é o surgimento de abordagens globalizantes em livros de grande impacto, especialmente a história mediterrânica de P. Horden e N. Purcell em Corrupting Sea (2000), a história das redes sociais migratórias e coloniais de I. Malkin em Small Greek World (2011) e as histórias dos gregos para além e para aquém da polis de K. Vlassopoulos em Unthinking the Greek Polis (2007) e Greeks and Barbarians (2013). O autor então encerra o capítulo com dois estudos de caso para uma história “descentrada” e globalizante: Políbio e Aï Khanoum. No historiador de Megalópolis, contemporâneo às guerras de conquista romana, o autor identifica uma consciência global, baseada nos sinais de um destino global (“ecumênico”, nos termos do autor) da dominação romana. Na cidade construída na antiga Báctria (atual Afeganistão), onde identidades gregas e centro-asiáticas compartilhavam o espaço público, Bromberg vê um exemplo de glocalização de processos globais que contraria a visão da globalização como homogeneização e desaparecimento das identidades locais. A conclusão do capítulo reforça este ponto com um panorama de abordagens globalizantes sobre as literaturas e mitografias clássicas, centradas nas tensões entre os níveis locais e globais, por um lado, e em processos de hibridização, por outro.

O segundo traço do novo campo é ser Transhistorical, “transhistórico”, título do capítulo 2. Aqui, o autor traça um paralelo entre descentramentos espaciais e temporais: “assim como o pensamento transnacional envolve o questionamento das fronteiras territoriais, o pensamento transhistórico envolve o desafio aos contornos temporais e às fronteiras da periodização” (p. 49). O projeto do “transhistoricismo” implica, segundo Bromberg, no questionamento dos fundamentos de períodos e cronologias e, consequentemente, na reflexão sobre a multiplicidade temporal. O exemplo escolhido é a periodização tradicional da história da Grécia (micênico, obscuro, orientalizante, arcaico, clássico, helenístico e romano), determinada por fatores políticos e fundada em uma concepção da Grécia como nação. Tal periodização permite que determinados locais fossem “anacronizados” (ou, na expressão que Bromberg retira de Johannes Fabian, tivessem sua “coevalidade negada”, p. 56): o paralelo entre a Macedônia do período clássico e os poemas homéricos, um topos da historiografia, a afasta de cidades gregas contemporâneas, ou seja, situa a Macedônia clássica fora, e depois, de seu tempo. Contra as narrativas lineares, diacrônicas e demarcadas em períodos homogeneizantes, que o autor chamada de “historicismo”, a abordagem “transhistoricista” enfatiza os processos e temporalidades múltiplas que transcendem os períodos tradicionais. Sintomaticamente, o autor menciona a discussão de Braudel acerca das três escalas temporais, apresentadas como “longa duração”, “história social” e “tempo individual”, sem, no entanto, aderir ao esquema – nem, ao que parece, compreender a proposta braudeliana da dialética das durações. Para reforçar o contraste entre historicismo e transhistoricismo, o autor discute extensamente a oposição entre os estudos da “tradição clássica” e os estudos de “recepção dos clássicos”. Os primeiros, para Bromberg, são historicistas, pois baseiam-se em uma narrativa linear da transmissão da “herança” clássica ao longo do tempo e pela elite europeia ou ocidental - aqui, vale destacar a sagacidade do autor em associar o vocabulário do patrimônio clássico ao cotidiano dos herdeiros de alta classe europeus, entre “dívidas” e “legados” (p. 64). Os últimos, ao enfatizar os modos de apropriação e reinvenção desta tradição no constante diálogo entre o presente e o passado, se aproximam do transhistoricismo. Apesar de reconhecer que ambos os campos são, habitualmente, reféns do nacionalismo metodológico (pois comparam as transmissões ou recepções a partir de experiências nacionais), o autor representa os estudos da “tradição clássica” como exemplo da temporalidade linear eurocêntrica moderna (que deve ser superada), e os estudos de recepção como exemplo de abordagem pós-moderna que enfoca a convivência e interação entre os tempos (que deve ser difundida).

O terceiro traço, finalmente, é a Transdisciplinarity, “transdisciplinaridade”, título do capítulo 3. Aqui, a discussão enfatiza as dimensões éticas da organização dos campos acadêmicos e suas “demarcações de fronteira” (boundary works), tanto internas quanto externas. Ainda que o problema da necessidade de especialização em função de fontes e métodos seja levantado, o foco da discussão (com base em Michel Foucault e Thomas Gieryn) está na vinculação das práticas disciplinares ao colonialismo e ao eurocentrismo, deslegitimando saberes não-ocidentais e reforçando as posições de poder dos intelectuais, em geral homens, brancos, ricos e ocidentais. A ascensão de práticas e instituições de pesquisa interdisciplinar, no entanto, se por um lado cria as bases institucionais para a superação das fronteiras disciplinares, por outro significa o aumento da competição por financiamento e o risco de enfraquecimento da autonomia dos departamentos tradicionais. A alternativa apresentada pelo autor, neste quadro, é a transdisciplinaridade como uma prática de pesquisa colaborativa que atravessa os diferentes campos, mais habilitada a enfrentar problemas concretos colocados pela globalização como a desigualdade, a xenofobia, a guerra, a mudança climática e o terrorismo. Classics, para o autor, deve superar a interdisciplinaridade (que não eliminou a ultraespecialização e a fragmentação da pesquisa) no sentido da transdisciplinaridade para conseguir se globalizar, condição fundamental para inserir-se no debate público trazendo soluções para problemas concretos. Para Bromberg, atualmente há apenas sinais deste engajamento: em primeiro lugar, a autocrítica de classicistas, que refletem sobre seus lugares privilegiados de produção de conhecimento e sobre as ideologias que orientam suas agendas de pesquisa, e em segundo lugar, a participação no debate público por meio das mídias digitais, com foco na crítica aos usos políticos nefastos das representações da Antiguidade. Para o futuro, o autor também defende um maior diálogo como “colegas de fora de instituições euro-americanas” (p. 93).

No epílogo, o autor antecipa críticas à construção de um Classics transfronteiriço, transhistórico e transdisciplinar por meio da listagem de possíveis falácias: tal campo seria generalizante e homogeneizante, reforçaria visões de cima para baixo e desejaria incorporar tudo, afora a quase impossibilidade de se fazer histórias a partir de baixo. Contra tais falácias, o autor reitera que o campo proposto enfatizará as identidades e diferenças locais, vocalizará as subjetividades subalternas e buscará analisar processos concretos de conexão histórica ou realizar comparações a partir de abordagens multicêntricas e multiescalares. Conclui o epílogo – e o livro – aludindo a um quarto conceito, o de “transgressão”, argumentando que a reformulação do campo deve necessariamente vincular a produção de conhecimento à busca por transformação social e justiça sociopolítica.

Feito este percurso, é preciso ressaltar que o livro dá um passo importante no delineamento de um campo plural e crítico, a partir da apresentação consistente dos conceitos de transfronteiridade, do transhistoricismo e da transdisciplinaridade. A profusão de exemplos que apontam para a necessidade de se considerar as múltiplas globalizações em períodos mais recuados, no mais, é eloquente. No entanto, a meu ver, cinco pontos principais indicam os limites da proposta, e reduzem a expectativa de que o campo, neste delineamento, cumpra seu objetivo de superar o eurocentrismo, quanto mais de tornar-se plenamente crítico e transgressor.

O primeiro ponto é a surpreendente ausência de crítica do conceito de Antiguidade como sinônimo de “Antiguidade greco-romana”, e da correspondente divisão disciplinar que fundou o campo de Classics como separado da Egiptologia e da Assiriologia. Fundado na chamada “tradição clássica”, associada ao conjunto de textos escritos em grego e latim (sendo assim um ramo da Filologia), com o tempo o campo passou a abrigar os campos da Arqueologia Clássica (ou, recentemente, Mediterrânica), da Filosofia Antiga e da História Antiga. No Brasil, tal repartição origina a oposição entre, por um lado, a “Antiguidade Ocidental”, que corresponde às histórias gregas e romanas, e por outro lado, a “Antiguidade Oriental”, que corresponde às histórias das antiguidades do Nordeste Africano (vale do Nilo) ou do Oriente Próximo (Levante, Mesopotâmia, planaltos anatólico e iraniano etc). A ausência da crítica desta organização faz com que o autor procure as globalizações apenas dentro do mundo greco-romano! Não por acaso, os dois estudos de caso “transfronteiriços” são: (1) a concepção global de um historiador grego no coração do império romano em construção, e (2) uma colônia grega nos limites do mundo helenístico. Isto deveria entrar em contradição com o projeto de uma história “transfronteiriça”, dado que ainda estão na esfera da “Antiguidade Clássica” (equivalente a Grécia e Roma). No entanto, na medida em que o autor enxerga o “nacionalismo metodológico” na pólis, e não na categoria de civilização, qualquer ultrapassagem das fronteiras e centralidades de Atenas, Esparta e Roma (os centrismos mencionados no cap. 1) já é suficientemente transfronteiriça. A permanência da referência greco-romana na definição de Antiguidade faz o autor ignorar a possibilidade de histórias de mais larga escala, que integrem o Mediterrâneo e o Oriente Próximo em narrativas não centradas em gregos e romanos. Tais histórias são já habituais nos estudos sobre a Idade do Bronze e cada vez mais visíveis nos estudos sobre o período “clássico”, quando a Grécia orbitava, no nível geopolítico, a Pérsia aquemênida, ou sobre a Antiguidade “romana” e “tardia”, quando o império romano apresentava conexões e paralelismos com os impérios parto e sassânida. Sintomaticamente, o Império Parto não é mencionado no livro, e o império persa sassânida o é apenas de passagem. Afinal de contas, Global Classics de Bromberg ainda é, acima de tudo, Classics.

O segundo ponto é a programática, mas superficial, discussão sobre as múltiplas temporalidades que compõem o tempo social. Como mencionado acima, ao discutir o problema da multiplicidade temporal, Bromberg faz menção a Braudel, mas restringe sua leitura do autor francês à proposta dos “três tempos”, citando a edição em inglês da coletânea de ensaios “Sobre a História”. A oportunidade perdida, neste caso, foi a de não aprofundar a discussão sobre a dialética das durações em Braudel e, particularmente, sua derivação em R. Koselleck (especialmente em Estratos do tempo) e na ampla bibliografia que discute o conceito de temporalidade enquanto objeto teórico (cf. MARQUESE; SILVA JÚNIOR, 2018; SALOMON, 2018). Há muito foi demonstrado que o tempo social é múltiplo, produto e vetor de temporalidades com durações e ritmos distintos, em função de diferentes e sobrepostos processos sociais. Não se trata, como parece compreender o autor, de apenas “transgredir” as fronteiras dos períodos tradicionais do mesmo modo como a globalização “flui” através das fronteiras espaciais. Mais do que isso, trata-se de discutir como, historicamente, fronteiras entre temporalidades são constituídas dialeticamente, seja em função de projetos de dominação (como A. Gunder Frank demonstrou em seminal artigo dos anos sessenta; FRANK, 1966), seja em função de formas de resistência de grupos que negam as acelerações históricas (ROSA, 2013, 2018). O caso da onda antiquarianista das províncias gregas sob dominação romana demonstra as ambiguidades da relação de diferentes comunidades com as diferentes temporalidades sobrepostas na virada do primeiro milênio a.C. (SPAWFORTH, 2012; MORALES, 2015).

O terceiro ponto é a ainda mais surpreendente persistência da definição acrítica da globalização como sinônimo de “fluidez”, “transgressão de fronteiras” e “descentramento”. O autor identifica no conceito de “globalização como homogeneização” o espantalho a ser atacado, e reitera a todo momento que uma abordagem global deve ressaltar as diferenças culturais e identidades locais. Esta crítica é pertinente, ou foi, até o início dos anos 2000, quando as diferenças culturais e identidades locais ainda não haviam sido completamente absorvidas pela indústria cultural em nível global na chave do exotismo ou das formas culturais “étnicas”. O que espanta é a falta de crítica à ideia de globalização como “aldeia global”, um mundo sem fronteiras, sem centros, no qual os processos podem fluir transgredindo as frágeis barreiras e controles – em síntese, o projeto neoliberal de globalização. A década de 2000, no entanto, foi prolífica em crises migratórias e econômicas (que aprofundaram os abismos entre exploradores e explorados tanto no nível externo, interestatal, quanto no interno, social), na multiplicação de processos de segregação espacial urbana, de campos de refugiados, de muros, na ampliação massiva do investimento de estados nacionais em suas indústrias bélicas e na formação de blocos econômicos protecionistas. Tal contexto fez com que mesmo aos estudiosos do Norte Global, pouco acostumados a esta percepção, fosse imprescindível uma reformulação do conceito de globalização em função do conceito de fronteiras internas e externas, culturais e econômicas, regionais e sociais (cf., por exemplo, os cuidados e ressalvas em CONRAD, 2016). Ora, processos globais não são globais porque negam ou transgridem as fronteiras, ou porque não têm centros (e consequentemente, periferias), mas porque reconfiguram as fronteiras em função de projetos socialmente definidos: no caso da globalização neoliberal, a concentração de capital nas mãos de elites do Norte Global e o enfraquecimento das instituições de controle cívico de seus fluxos no Sul Global. Tanto em Políbio quanto em Ai Khanoum, se as fronteiras culturais entre gregos e romanos, ou gregos e iranianos, podem ser nuançadas, as fronteiras entre dominantes e dominados, entre as estruturas imperiais e as populações locais, e a existência de centros de poder e decisão, são claras. O autor, em diversos momentos, advoga uma abordagem multiescalar e multidimensional da globalização, mas perde a oportunidade de explorar como as múltiplas escalas e dimensões das globalizações antigas produzem – e se reproduzem por – sobreposições de diferentes centralidades e periferalidades, por meio de rearranjos de fronteiras externas e internas.

O quarto ponto diz respeito à ausência de consideração crítica acerca da organização do campo de estudos da Antiguidade em outras regiões do mundo; em outras palavras, a ausência de uma história global dos estudos antigos, da qual o campo de Classics anglófono são uma seção. Esta consideração levaria o autor a perceber como, em diferentes regiões, o campo se articula de maneiras diversas. Tome-se o caso, por exemplo, de Brasil e Argentina (objeto de artigo neste dossiê da revista Fronteiras): nestes países, associações e grupos de trabalho normalmente ignoram as barreiras tradicionais entre Estudos Clássicos e Estudos Egípcios ou Assírios, diferente de países do Norte Global. Além disso, na América Latina a História Antigua está mais próxima da História como um todo do que das Letras Clássicas ou da Filosofia Antiga, ensinadas, no nível da graduação, em departamentos de Letras e de Filosofia, respectivamente. Tais arranjos alteram as fronteiras disciplinares, estabelecendo parâmetros próprios para a rediscussão sobre a transdisciplinaridade e suas exigências técnicas e ético-políticas. Ao ignorar completamente esta dimensão, o livro reforça a homogeneização e, digamos, abraça seu próprio espantalho.

O quinto ponto, finalmente, se refere à ausência de diálogo com pesquisadores do Sul Global. Esta questão é abordada diretamente no capítulo 3, quando Bromberg afirma que um campo de Classics global “requer o engajamento com formas diversas de conhecer o passado antigo e a amplificação de vozes e perspectivas de colegas de fora de instituições euro-americanas” (p. 93). A afirmação traz decerto um senso de responsabilidade social, mas a bibliografia do livro é eloquente: há apenas dezesseis textos em francês, quatro textos em italiano, um texto em alemão e um texto em espanhol (este, publicado em 1949) e nenhum texto em português, para ficar nas línguas neolatinas. O problema, aqui, não é apenas de representatividade, peça central na retórica do autor, mas também de deficiência teórica e política, que a obra sofre por não incorporar o saber acumulado fora das “instituições euro-americanas”. Para ficar no caso brasileiro, a crítica mencionada no primeiro ponto, a saber, a equivalência entre “Antiguidade” e “Antiguidade greco-romana”, já foi amplamente realizada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 por antiquistas brasileiros, sendo o texto mais influente o artigo de Norberto Guarinello, publicado em português e em inglês (GUARINELLO, 2003, 2008). Quanto à crítica da globalização enquanto “aldeia global”, ela já foi desenvolvida amplamente no clássico de Milton Santos, Por uma outra globalização, publicado em português, italiano e inglês (SANTOS, 2000, 2016, 2017). Como se vê, não se trata apenas do problema conhecimento restrito, no mundo anglófono, de línguas neolatinas, mas da seleção da bibliografia em inglês. Assim, fica-se refém de uma constante reinvenção da roda; o livro, apesar de prometer um Global Classics, poderia intitular-se Globalizing Euro-American Classics by reading scholars who work in Euro-American institutions and write primarily in English.

Isto posto, é importante dizer que o livro vale a leitura e incorporação crítica pelo campo acadêmico brasileiro. O livro apresenta um balanço abrangente da bibliografia anglófona sobre o tema e é, ele mesmo, um documento das tentativas de sobrevivência do campo de Classics no centro do capitalismo, com um esforço genuíno de autocrítica e incorporação de demandas que visam justiça social. Um campo efetivamente global de estudos das Antiguidades, no entanto, ainda está por ser delineado.

 

 

Referências bibliográficas

 

CONRAD, S. What is global history? Princeton: Princeton University Press, 2016.

FRANK, A. G. The Development of Underdevelopment. Monthly Review, p. 17–31, 1966.

GT DE HISTÓRIA ANTIGA. GTHA Debate I: História Antiga, cancelamento e racismo, com Gilberto Francisco, Priscilla Gontijo e Felix Jacome. Youtube, gravado em 24 fev. 2021. Disponível em: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gyHz-B_KxZI

GUARINELLO, N. L. A Morphology of Ancient History from a Tropical, Half-European Viewpoint. In: FUNARI, P. P. A.; GARRAFFONI, R. S.; LETALIEN, B. (Org.). New Perspectives on the Ancient World: Modem Perceptions, Ancient Representations. Oxford: Archeopress, 2008. p. 1–7.

GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politeia: História e Sociedade (Vitória da Conquista), v. 3, n. 1, p. 41–61, 2003.

IOANNIDIS, Sakis. Classical studies needs structural changes | eKathimerini.com. E Kathimerini, Athina, 12 set. 2021. Disponível em: <https://www.ekathimerini.com/opinion/interviews/1167721/classical-studies-needs-structural-changes/>. Acesso em: 2 ago. 2022.

MARQUESE, R. DE B.; SILVA JÚNIOR, W. L. DA. Tempos históricos plurais: Braudel, Koselleck e o problema da escravidão negra nas Américas. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 11, n. 28, p. 44-81, dez. 2018.

MORALES, F. Atenas e o Mediterrâneo romano: espaço, evergetismo e integração. 2015. Tese. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2015.

POSER, Rachel. He Wants to Save Classics From Whiteness. Can the Field Survive? Dan-el Padilla Peralta thinks classicists should knock ancient Greece and Rome off their pedestal — even if that means destroying their discipline. The New York Times Magazine, New York , NY, 2 fev. 2021. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/02/02/magazine/classics-greece-rome-whiteness.html>.

ROSA, H. Remède à l’accélération: Impressions d’un voyage en Chine et autres textes sur la résonance. Paris: Flammarion, 2018.

ROSA, H. Social Acceleration: A New Theory of Modernity. Tradução Jonathan Trejo-Mathys. New York: Columbia University Press, 2013.

SALOMON, M. (Org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Edições Ricochete, 2018.

SANTOS, M. Per una nuova globalizzazione. Tradução J. Falconi. Salerno: Arcoiris, 2016.

SANTOS, M. Por uma outra globalização. 30a edição ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SANTOS, M. Toward an Other Globalization: From the Single Thought to Universal Conscience. Tradução Lucas Melgaço; Tim Clarke. New York: Springer, 2017.

SPAWFORTH, A. Greece and the Augustan cultural revolution. Cambridge, UK; New York: Cambridge University Press, 2012.

 

Recebido em 30/06/2022.

Aceito em 09/08/2022.

 

 

 

 


 


 



[1] Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: fabio.morales@ufsc.br | https://orcid.org/0000-0002-9942-5011