Nova História Política e História Global: reflexões metodológicas para um estudo do trabalhismo

New Political History and Global History: methodological reflections for a study of labourism

 

                                                                                               Joelson Lopes Maciel[1]

 

 


Resumo

O presente artigo traz os resultados parciais de reflexões metodológicas decorrentes de pesquisa de doutorado em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. A pesquisa, desenvolvida atualmente pelo autor, busca conexões e comparações entre o trabalhismo brasileiro e o trabalhismo britânico no contexto pós-Segunda Guerra Mundial e assenta-se no campo da Nova História Política. No entanto, em decorrência do caráter transnacional do tema, torna-se interessante buscar reflexões e estratégias metodológicas no emergente, e ainda em constituição, campo da História Global.

Palavras-chave: Nova História Política; História Global; Trabalhismo.

Abstract

This article presents the partial results of methodological reflections from doctoral research ongoing on the History Post-Graduation Program of the Santa Catarina Federal University. The research, currently developed by the author, looks for connections and comparisons between the Brazilian and the British labourism in the in the post-World War and is based on the field of New Political History. However, due to the transnational character of the theme, it becomes interesting to seek for methodological reflections and strategies in the rising, and still in formation, field of Global History.

Keywords: New Political History; Global History; Labourism.


 

 

 

Introdução

O Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) surgiu oficialmente no contexto de decomposição da ditadura do Estado Novo, em 1945. Foi, junto com o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), um dos partidos eleitoralmente mais relevantes da República construída pela Carta de 1946. O PTB elegeu um presidente da República: Getúlio Vargas; e um vice-presidente: João Goulart – que viria a se tornar presidente e foi “apeado” do posto em 1964, num golpe que marcou a instauração de uma ditadura civil-militar, que durou 21 anos.

O PTB se caracterizou nos seus anos de existência por ser um partido de massas, que desfrutava do carisma de seu primeiro líder: Vargas; mas que, após sua morte em 1954, passou por disputas internas que o levaram cada vez mais para pautas reformistas. Estas pautas foram o tom do governo Goulart a partir de 1961: as chamadas reformas de base.

A relação próxima dos seus principais líderes com a classe trabalhadora sempre constituiu importante operação de legitimação do PTB na sociedade. Proximidade esta que existia mesmo antes da agremiação, durante a Era Vargas (1930-45), momento em que o presidente Getúlio Vargas estabeleceu uma agenda de “concessões” de direitos trabalhistas historicamente reivindicados pelos sindicatos, em troca do apoio político e mobilização sindical.

Nos anos de 1960, esta relação passou a ser conhecida como populismo, caracterizado pela existência de um líder carismático (neste caso seria Vargas) que conseguia, graças a seu gênio político, manipular a sociedade e obter assim apoio incondicional e acrítico de uma massa amorfa, embevecida por pequenos benefícios. Todavia, essa leitura do período republicano de 1946 a 1964, com a lente do populismo, tem sido discutida por diversos historiadores, que desacreditam seu potencial conceitual, justamente por ter definições vagas e taxar como “populistas” líderes dos mais diferentes lugares, tempos históricos e projetos políticos, da esquerda à extrema direita.[2]

Compreender o trabalhismo brasileiro como uma cultura política é a defesa de muitos dos críticos da teoria do populismo[3]. Cultura política é um conceito que tem sido apropriado pela Nova História Política francesa desde a década de 1980, em seu movimento por uma renovação de temas, objetos e discussões. Também a historiografia brasileira está sendo afetada por esta reflexão da “volta”, ou, melhor dizendo, da renovação da discussão em torno do político.[4] 

Em linhas gerais, pode-se conceituar cultura política como um conjunto de práticas, ideias, normas, símbolos, compartilhado por um grupo humano. É importante salientar que se entende a existência não de apenas uma cultura política nacional (como Almond e Verba defendiam nos anos 1960), mas culturas políticas, no plural.[5] Estas extrapolam partidos políticos, como no caso do trabalhismo brasileiro, embora o PTB tenha sido o mais importante núcleo aglutinador deste conjunto de práticas, ideias, tradições, normas e símbolos que foi o trabalhismo nos anos 1940-60.[6]

Um dos principais nomes da renovação da história política francesa é Jean-François Sirinelli. Seu campo de pesquisa é o estudo do papel dos intelectuais dentro dos partidos e dos espaços políticos. Em uma série de contribuições recentes, Sirinelli[7] exortou os pesquisadores da história política a considerarem o transnational turn, ou giro transnacional, concepção da importância do espaço na história que propiciou a proliferação de campos de pesquisa e abordagens, sendo a História Global uma delas. É para responder a este chamado do historiador francês que se apresentam as reflexões deste artigo.

Sirinelli faz uso da metáfora “ágora, Cidade e mundo”, incentivando pesquisas que se utilizem dos “jogos de escalas” (conceito emprestado de Jacques Revel)[8], para não perder de vista a conjuntura global.

Na metáfora, a “ágora” seria o espaço da discussão política, o Estado e os espaços de mediação e tomada de decisão, os partidos políticos – foi na “ágora” que os historiadores do político mais despejaram suas atenções e reflexões; na década de 1980, com a nova história política, a “Cidade”, que seria o “viver-junto”, ou seja, a sociedade em sua acepção mais ampla, passou a ser também alvo de reflexões e pesquisas, sinalizando uma primeira e essencial abertura no campo da história política; e o “mundo” seria a abertura final pela qual deve passar a Nova História política, em consonância com o avanço das abordagens em escala global.

Mas o global não virá a substituir o nacional, regional ou local, mesmo que sua ambição seja a de transcender do Estado-nação como unidade básica de estudo, ou o que é chamado de nacionalismo metodológico. De fato, para Sirinelli, mesmo com a abertura para a “Cidade” e, neste momento, para o “mundo”, a “ágora” continuará desempenhando importante papel nas considerações e pesquisas do político.

Esta discussão teórica nos traz novamente ao PTB e ao trabalhismo brasileiro. De acordo com Ângela de Castro Gomes e Maria Celina D’Araújo, em diversos de seus escritos, o Partido Trabalhista Brasileiro nasceu em 1945, com provável inspiração no Partido Trabalhista Inglês (Labour Party). D’Araújo (1996) inclusive cita alguns contatos mais diretos, através de correspondência ou citação direta, entre líderes trabalhistas brasileiros e ingleses.

Não é a primeira vez que se pensa o contato entre o PTB e o Labour Party. D’Araújo (1991) procedeu a uma comparação ampla entre estes dois partidos e mais o Partido Social-Democrata Alemão e o trabalhismo estadunidense. Contudo, a autora buscava mais a relação entre os sindicatos e a classe operária, e como esses partidos buscaram arregimentar os trabalhadores.

Por fim, quais questões se colocam na análise da trajetória internacional do trabalhismo? Para além dos contatos citados por D’Araújo (1996) e mais alguns contatos que ocorreram nos anos 1940 e 50, não foi problematizada a qualidade desta conexão entre brasileiros e ingleses. Pode-se ainda fazer uma série de perguntas a estes momentos de contato: como? Quais as motivações? Quais os resultados concretos? Deixaram marcas no trabalhismo brasileiro? Influenciaram o trabalhismo inglês? Foram, simplesmente, um movimento de difusão de ideologia europeia para a América? Ou consistiram em estratégias de assimilação muito específicas? O que foi assimilado? E se as respostas às questões anteriores contribuírem para tornar mais complexo o contato entre trabalhistas dos dois países, abre-se a oportunidade de colocar-se duas outras perguntas: é lícito falar numa cultura política trabalhista global, mesmo admitindo prováveis variações locais? Então talvez seria o caso de vários trabalhismos globais?

No esforço de compreender o trabalhismo e, em certa medida, caminhos para a própria história política na chave transnacional, este ensaio metodológico traça reflexões divididas nas seguintes seções: na primeira, procura-se inspiração em dois campos aparentemente distantes, a História Global e a micro-história italiana; na segunda, o objetivo é discutir a importância da busca por conexões, diretas ou indiretas, entre os dois partidos políticos, e os ganhos desta operação; em seguida, amadurecendo os caminhos metodológicos, compreender que rastrear conexões não basta, sendo necessário buscar também comparações entre os movimentos políticos; numa penúltima seção será discutido o papel da agência individual dentro da história política e da História Global e, finalmente, algumas considerações à guisa de conclusão.

 

A Nova História Política, o global e o micro

Na longa trajetória da História como um saber, o século XIX representou um momento de definição do campo através da adoção de parâmetros de cientificidade do período. Nesse momento, a História vincula-se ao objetivo de narrar as histórias nacionais, posto que se buscava naquela a legitimação dos Estados-Nação. A partir do fim do século XX, reflexões na disciplina têm passado por uma inflexão em direção ao transnacional, no bojo do conceito de “globalização”, o chamado spatial turn.

Neste contexto, emerge certa “História Global”. Conceituá-la é tarefa difícil dadas as divergências entre historiadores que a reivindicam. Não por acaso Conrad (2019) dedicou seu livro a marcar território, uma “carta de intenções” sobre como deve ser a História Global. Dentre três paradigmas, o autor entende que a História Global como história dos processos de integração é o mais sofisticado e deve ser seguido. Um paradigma preocupado com o estudo de causalidades, conexões e comparações numa chave global, isto é, transcendendo o contentor do Estado-Nação. Ao mesmo tempo objeto de estudo e forma particular de olhar a história, esta História Global pretende superar o nacionalismo e o eurocentrismo metodológicos, dando voz a atores de diversas regiões do mundo.

Em relação a esta pesquisa, a História Global apresenta uma afinidade clara: a busca de explicações e fatores em uma conexão externa, isto é, a busca por uma explicação que não seja endógena. De fato, analisando a historiografia do trabalhismo brasileiro, incluindo aí estudos sobre as origens do partido e a formação e transformação da cultura política, observa-se que os temas globais ou transnacionais não desempenham papel relevante como fator explicativo.

Este diagnóstico pode parecer de pouca relevância inicialmente, considerando que os historiadores do político, desde o início da disciplina, têm sido afeitos ao já referido nacionalismo metodológico, mas é importante porque demonstra até certo ponto o potencial de inovação da pesquisa, que aceita o desafio proposto por Sirinelli (2014), de “abrir” novamente a história política, agora uma abertura para o “mundo”.

Todavia, faz-se necessário saber até que ponto a história política “renovada”, originária na França da década de 1980, e que inspira teoricamente esta pesquisa, tem relação de fato com a História Global. Conforme já citado anteriormente, vozes da área têm exortado a considerar o spatial turn; mas, e da parte dos praticantes da História Global?

Sebastian Conrad, em seu seminal e já citado livro, comenta o esforço coletivo organizado por Stein U. Larsen (2001). Com colaborações de autores ao redor do mundo, inclusive o brasileiro Hélgio Trindade, que escreve sobre a Era Vargas (1930-45), as contribuições do livro vão no sentido não de estabelecer um conjunto de critérios rígidos e tentar encaixar os regimes políticos do Entreguerras neste, mas “perceber o modo como casos distintos, com diferentes formas de lidar com as transformações estruturais e de desafiar a ordem internacional, acabavam por estar relacionados” (CONRAD, 2019, p. 100). Esta abordagem deverá ser considerada durante a pesquisa, especialmente durante as operações de comparação. Não pretende-se partir de um modelo preestabelecido e, artificialmente, encaixar os dados encontrados.

Também numa abordagem que ultrapassa as fronteiras nacionais, Hyslop (2006) utilizou a viagem do líder trabalhista inglês Keir Hardie por Austrália, Índia e África do Sul na década de 1900 para traçar conexões e compreender características dos movimentos trabalhistas nestes países, especialmente o último.

Para além destes dois exemplos, retoma-se Conrad, quando menciona investidas no campo de uma História Global dos direitos humanos. Segundo o historiador alemão, estes esforços enfatizam o aparecimento dos direitos humanos

[...] enquanto discurso genuinamente global. Os historiadores têm explorado cuidadosamente a abrangência global do discurso dos direitos humanos, colocando menos ênfase na Revolução Francesa e mais na apropriação e universalização de uma linguagem de direitos no Haiti, poucos anos mais tarde. [...] Nesta leitura, as origens intelectuais dos direitos humanos são menos importantes do que as condições globais sincrónicas que, em lugares muito distintos, permitiram a sua aceitação universal assim como a sua fusão com diferentes genealogias locais. (CONRAD, 2019, p. 97-98).

 

Aplicada a estas reflexões, o interesse é, portanto, não necessariamente comparar as origens dos dois partidos, o inglês e o brasileiro, mas sim, as condições que possibilitaram a adoção (e em qual grau teria sido esta adoção) do trabalhismo inglês como inspiração entre os burocratas do Estado Novo brasileiro nos anos 1940. É neste sentido que o mais importante não é a origem ou a difusão, mas as condições que tornaram atrativa e possível a ideia do trabalhismo no Brasil.

Até o momento, o intuito desta seção tem sido o de fundamentar a relação entre a Nova História Política e a História Global, demonstrando mais aproximações que incompatibilidades. Contudo, o político, conforme assinalou Sirinelli (2014), embora tenha de estar atento à transnacionalidade, não deixará de ser nacional ou, em última instância local, localizado em certo espaço geográfico e construído pelas sociedades e pela agência e estratégias individuais.

No âmbito desta pesquisa, não se pode esquecer que as fontes, principalmente, tratam de correspondências e escritos de indivíduos envolvidos nas atividades partidárias. Sendo assim, é preciso atentar-se ao local, ao individual, onde a micro-história pode ser a janela de abertura.

A micro-história italiana surgiu nos anos 1970 dentro do campo da História Social e, desde então, tem contribuído para reflexões não sobre pequenos objetos ou eventos, mas para grandes questões historiográficas, e sempre à procura não da regra, mas da exceção, investigando as rachaduras e inconsistências dos grandes sistemas. Giovanni Levi, em A Herança Imaterial (2000), desafia noções estabelecidas em relação à modernização e à introdução de relações capitalistas na Europa, a partir do estudo da vila piemontesa de Santena. Todavia, considerando a origem da metodologia no campo da História Social, surge a questão: seria a micro-história incompatível com Nova História Política surgida uma década mais tarde na França?

É uma resposta difícil, mas certamente não há uma proibição na utilização de pressupostos da micro-história numa pesquisa no âmbito do político. Contudo, depende das perguntas realizadas pelo pesquisador. Se está apenas à procura da regra, do “sistema” estabelecido, será difícil para a micro-história agregar algo. Não é suficiente reconhecer que culturas e ideias existem e têm seu poder coercitivo, pois vive-se entre linguagens que competem entre si e são ambíguas produzindo várias respostas. A política comporta espaços de ambiguidade, interstícios, rachaduras. Diminuir a escala é aproximar-se destas rachaduras de sistemas coesos apenas na aparência, revelando as dinâmicas e as fragilidades.

O arsenal teórico da micro-história é interessante para se pensar a política: um conceito como o de “racionalidade limitada” pode gerar reflexões que auxiliem na qualificação da ação política de indivíduos e grupos, tema no cerne do estudo discutido neste texto.

Mais diretamente pode-se observar aproximações entre a micro-história e a história política. Levi (1992) escreve sobre mecanismos sociais geradores de conflitos e solidariedades entre indivíduos, e que acabam por propiciar a estes indivíduos a criação de identidades. Isso remete ao conceito de cultura política, em resumo, um conjunto de valores, práticas e representações políticas, compartilhado por determinado grupo, e que expressa uma identidade coletiva. Conflitos e mediações sociais, objetos da micro-história, são fundamentais na construção de uma cultura política, e podem revelar conflitos entre diferentes culturas políticas também. Outro tópico que pode ser caro à história política é, novamente, a discussão da racionalidade. A filiação de um grupo humano ou indivíduo a um partido, movimento, corrente política ou o compartilhamento de um pensamento político específico (Levi cita adesão política) é uma ação derivada do seu acesso à informação e ao seu processamento. Sendo assim, a adesão de um grupo a uma cultura política poderia ser estudada através da micro-história? Talvez a questão seja inclusive equivocada, e mais válido seja questionar a coesão de uma cultura política – diminuir a escala pode revelar dinâmicas conflituosas, ambiguidades, e a ação de indivíduos e grupos diante de tais ambiguidades. A história política pode se beneficiar da microanálise, ao buscar “à contrapelo” a dinâmica e as fragilidades de uma cultura aparentemente “homogênea” se observada de outra escala. Tudo depende das questões, do problema da pesquisa e se a micro-história é a abordagem mais efetiva para a investigação.

Embora não tenha utilizado especificamente do conceito de cultura política, Scott e Hébrard (2014), através da microanálise em seu livro Provas de Liberdade, traçaram interessantes características das estratégias eleitorais e políticas dos negros livres na Luisiana da Reconstrução (1865-77), configurando uma pluralidade de culturas políticas naquele contexto da história estadunidense, de luta por direitos e cidadania. Não apenas demonstraram de forma convincente redes de informações atlânticas e a circulação e assimilação de ideias como a de direitos públicos: noção de um jurista italiano amplamente defendida no Congresso Legislativo da Luisiana por um dos personagens estudados pelos autores.

Se nesta primeira seção o objetivo foi o de fundamentar a relação entre a Nova História Política e a História Global e a micro-história, demonstrando mais aproximações que incompatibilidades, na próxima pretende-se estabelecer uma proposta de pesquisa, que pode apresentar maior ou menor grau de proximidade com as duas abordagens aqui expostas. 

 

Seguindo conexões

Antes de tudo, é válido retomar o volume organizado por Larsen (2001). Isto porque é um dos poucos trabalhos na área do político citados por Sebastian Conrad. Com cerca de oitocentas páginas e mais de vinte capítulos escritos por historiadores ao redor do globo, versam sobre a inserção do fascismo em diversos países. Há aqui a intenção de uma síntese planetária. É neste sentido que Conrad aproxima este esforço da perspectiva global.

Todavia, não é possível realizar um trabalho deste escopo num doutorado. Sendo assim, a proposta mais adequada seria a de utilizar a relação entre o trabalhismo brasileiro e o inglês como uma “resposta local” a uma questão geral, a disseminação de ideias políticas, mais especificamente, a disseminação do trabalhismo. Para isto, será necessário rastrear conexões, seguir pessoas, correspondências, para qualificar tal relação e, também, operações de comparação entre o caso inglês e o brasileiro, um cotejamento a fim de observar semelhanças e, principalmente, as diferenças. Sendo assim, é preciso cautela em taxar esta proposta de uma História Global.

De fato, é imperativo o diálogo desta História Global com o campo da Nova História Política, uma das principais inspirações teórico-metodológicas deste trabalho, e que surgiu na França nos anos 80, a partir da obra “Por uma história política” (1988), organizada por René Remond, reunindo uma série de historiadores do político interessados em renovar o campo. As contribuições vão no sentido de um diálogo com a história cultural e propõem, em linhas gerais, a abertura da história política a temas que ultrapassem a restrita esfera da história do Estado, das relações diplomáticas e dos parlamentos. Assim, são retomados temas como o estudo do papel dos intelectuais dentro da sociedade, dos partidos políticos, da influência religiosa na política, o desempenho da mídia na opinião pública, as possibilidades do gênero biográfico, dentre outros. A política deixa o ambiente restrito do parlamento e ganha as ruas, passa a dialogar com outros campos da pesquisa histórica, como a já citada história cultural, a história ambiental, a história social.

Muitos dos autores referenciais a esta pesquisa contribuíram com um capítulo do livro organizado por Remond (2003), como Jean-Fraçois Sirinelli e suas reflexões acerca dos intelectuais, Serge Berstein (1998) com a renovação do tema dos partidos políticos, e ambos com o conceito de cultura política.

Já aludido anteriormente, Sirinelli (2014) é quem propôs, anos depois da renovação da história política, uma nova “abertura”, acompanhando o que chama de giro transnacional à abertura da Nova História Política aos contextos internacionais. A pesquisa em discussão pretende atender a este chamado pela abertura ao “mundo”, considerando, entretanto, que a “ágora” continuará a desempenhar um papel de destaque nas análises e reflexões do historiador do político.[9]

Em contato com a história política, tem produzido frutos no sentido de, por exemplo, buscar a trajetória global do fascismo, no já citado trabalho de Stein U. Larsen (2001); ou no caso de uma trajetória transnacional do trabalhismo, no também já citado texto de Hyslop (2006).

Mais que a relação profícua entre a perspectiva global e o campo da história política, deve-se prestar atenção a dois elementos mais caros propostos pela perspectiva global: além da ideia de ultrapassar as fronteiras nacionais em busca da causalidade dos fenômenos, está a intenção de combater o eurocentrismo e o etnocentrismo. Combate que deve ser travado já na leitura e análise das fontes.

Documentos não são portadores de verdades evidentes. As fontes arroladas, de caráter institucional, ligadas a partidos políticos ou correspondências de indivíduos, não serão assim encaradas, mas arguidas sob a égide dos objetivos da pesquisa e da bibliografia selecionada. O diálogo entre fontes e historiografia dependerá, no decorrer da pesquisa, do que estas fontes têm o potencial de revelar.

Outro ponto a ser observado é a preocupação com armadilhas que podem se apresentar a uma pesquisa que almeja analisar processos políticos para além das fronteiras nacionais, escolhendo dois países de continentes diferentes – o risco já aludido do eurocentrismo e do etnocentrismo.

 Sendo assim, como hipótese de pesquisa, mesmo admitindo que as conexões (sejam trocas comerciais, culturais, políticas) entre diferentes países são permeadas por relações de poder desiguais, pretende-se não aderir acriticamente a noções como a difusão de ideologia “superior”, europeia, recebida e assimilada inocentemente na América. Ambiciona-se qualificar, revelar a complexidade (se há) dos processos de dispersão e recepção de ideias, práticas e códigos.[10]

A própria noção de culturas políticas, no plural, ao evitar homogeneizações e pretender a pluralidade de práticas e códigos, pode fornecer elementos para evitar o eurocentrismo e o etnocentrismo.

Em termos de estratégia de pesquisa, a prioridade inicial é o levantamento das conexões entre o Partido Trabalhista Brasileiro e o Labour Party: seguir pessoas, ideias, objetos, será fundamental para estabelecer contatos síncronos entre as duas culturas políticas em formação.

Contudo, apenas seguir os contatos não basta. É preciso qualificar estas conexões, compreender quando, como, porque e de qual natureza vieram. Para tais processos é imperativa a análise dos documentos produzidos no contexto destes contatos, sejam correspondências, discursos, publicações, dentre outras. As fontes estão descritas na seção abaixo, mas já se pode adiantar que todas são acessíveis, ponto que também vai ao encontro da viabilidade deste estudo.

Se os contatos pressupõem uma atenção à sincronia, não será possível descuidar-se da diacronia, situando estas conexões na tessitura do tempo. Isto implica atenção não apenas aos contatos síncronos. Por exemplo, pode ser relevante questionar se havia projetos concorrentes entre as elites políticas estado-novistas. Este levantamento será possível graças à análise do acervo de edições das revistas “Cultura Política” e “Ciência Política”, publicações do DIP. Os seus artigos podem revelar sinais da busca por inspiração política em modelos internacionais.

 

Procedendo a comparações

Operações de comparação também estão previstas entre os objetivos, vale observar quais contribuições pode trazer a abordagem da História Comparada, mesmo entendendo que não será a pesquisa completamente direcionada para esse fim.

Antes de aprofundar reflexões e proposições metodológicas, há que se destacar que Maria Celina D’Araújo (1991) procedeu a um exercício comparativo analítico. Suas unidades comparativas, ou “casos” eram o PTB, o Labour Party, o Partido Social-Democrata alemão (SPD) e o que historiadora chama de trabalhismo estadunidense sem partido, isto é, que não chegou a formar uma agremiação partidária. D’Araújo busca nos movimentos estrangeiros elementos com “o objetivo de reter aqueles elementos que nos pareçam mais pertinentes para o estudo do PTB e do trabalhismo brasileiro” (D’ARAÚJO, 1991, p. 5).

Assim, a autora busca responder a três dimensões. A primeira é a relação entre os sindicatos e o partido nesses países; a segunda é a integração da classe trabalhadora na estrutura política; a terceira é a qualificação do controle do governo sobre os trabalhadores em cada país. É com base nestes três tópicos que D’Araújo procedeu sua comparação, não entrando necessariamente em questões intrapartidárias ou aprofundando seu conceito de cultura política – ainda tributário de leituras dos anos 1960 que falavam de uma única cultura política nacional, aparentemente.

O estudo de Maria Celina D’Araújo é uma referência obrigatória graças às pertinentes informações que reuniu. Contudo, metodologicamente, pretende-se distanciar de seu procedimento formal, que encara seus casos de forma isolada, contidos dentro do Estado-nacional. É imperativo encontrar um caminho metodológico que conjugue o global e a comparação.

Para além da noção de que toda história é História Comparada, pode-se extrair desta perspectiva alguns sinais norteadores. Barros (2007), ao refletir sobre artigo seminal de Marc Bloch (1928), em que o francês postula parâmetros para uma História Comparada, observa que em “Os Reis Taumaturgos” (1924), Bloch utilizou-se da comparação entre a sociedade francesa e inglesa da Idade Média para construir também uma nova aproximação com a história política, transcendendo as fronteiras nacionais.

De certa forma também é uma inspiração a esta pesquisa o olhar transnacional de Marc Bloch voltado para uma abordagem da história política. Mas não apenas isto. O historiador francês aponta a vantagem de se comparar sociedades vizinhas e contemporâneas, por serem “constantemente influenciadas umas pelas outras, sujeitas em seu desenvolvimento, devido a sua proximidade e a sua sincronização, à ação das mesmas grandes causas, e remontando, ao menos parcialmente, a uma origem comum” (BLOCH, 1928 apud BARROS, 2007, p. 13). Embora Reino Unido e Brasil não sejam exatamente sociedades vizinhas, os movimentos políticos que aqui pretende-se estudar apresentam similaridades e o elemento da sincronia, que desempenha papel importante quando se trata do método comparativo.

Acrescenta-se que Sebastian Conrad (2019) – ao escrever a respeito das potencialidades oferecidas pela história comparada à uma análise global, embora não remeta à Marc Bloch – pontua que uma abordagem mais benéfica seria não a da comparação entre duas unidades apartadas, mas “comparar dentro dos contextos sistémicos com que ambas se relacionam e aos quais respondem de diferentes maneiras. Ao colocarem as duas unidades numa situação global comum, as próprias comparações começam a fazer parte da abordagem da História Global” (CONRAD, 2019, p. 60). Assim sendo, Conrad nos aponta a necessidade de comparações com conexões mais estreitas entre sociedades em contextos globais, ou transnacionais ao menos. Leitura que vai ao encontro das ideias de Bloch a respeito da história comparada.

Contudo, um último ponto é essencial para se compreender como será utilizada a perspectiva comparativa. Carlo Ginzburg (2021), refletindo sobre o mesmo artigo de Marc Bloch referenciado por Barros, assinala que o historiador francês não enxergava a comparação como a busca por analogias superficiais (aliás, um preconceito contra a perspectiva): “Todo o objetivo da história comparativa, Bloch insistiu, é enfatizar as diferenças específicas entre os fenômenos com os quais lida” (GINZBURG, 2021, p. 11). Ou seja, deve-se atentar aos perigos de criar analogias superficiais e, na prática, irrelevantes na relação entre os trabalhismos brasileiro e inglês.

Esta é uma das armadilhas do método comparativo arroladas por Barros, sendo as outras o risco do anacronismo, a insistência em enquadrar em modelos prévios qualquer evidência descoberta e o que o historiador chama de “Ilusão sincrônica”, a ideia de que todas as sociedades em estágios similares são passíveis de comparação. Em relação a este último risco, defende-se a comparação entre aspectos dos trabalhismos brasileiro e inglês devido, não a questão da sincronia – o Labour Party foi criado meio século antes do Partido Trabalhista Brasileiro – embora tenham governado seus países, simultaneamente, em ao menos uma ocasião – mas, principalmente, a seus pontos de conexão e as recorrentes referências observadas, preliminarmente, na historiografia e nas fontes brasileiras, que apontam para esta “inspiração” inglesa para a criação do PTB[11]

Aqui deve-se acrescentar o conceito de “comparação incorporada”, desenvolvida por Philip McMichael (1990) e aprofundada por outros autores, dentre os quais pode-se citar também Dale Tomich (2011), como um procedimento que poderia ser a solução para evitar tais riscos.

McMichael desenvolve a “comparação incorporada” como uma resposta às comparações formais e à “comparação abrangente” formulada por Charles Tilly. O autor vê que as primeiras abstraem seus casos do tempo e do espaço, tratando-os como independentes uns dos outros, enfatizam apenas características semelhantes e diferentes na superfície. Deixam assim de captar dois aspectos essenciais dos casos em comparação: seu caráter relacional inevitável; e o papel de diferentes temporalidades na formação dos casos – ou seja, os atributos em comparação não são equivalentes, mas formados em temporalidades e espaços diferentes.

Já Tilly, em linhas gerais, é criticado por considerar as “partes”, as unidades de comparação, determinadas por uma totalidade já alcançada a priori, ou seja, por ser uma comparação funcionalista e mecanicista. A proposta de McMichael, através da comparação incorporada, é modificar esta compreensão da relação entre o global e o local, para evitar homogeneizações artificiais e abstratas, e também a perda da noção das particularidades e de processos que são multifacetados. Isto é, a ideia é incorporar a história à comparação: cada uma das unidades de observação vive um tempo histórico diferente e, assim, terá respostas e ações diversas diante de processos globais, o que torna a abordagem de Tilly problemática. Assim, McMichael não vê seus “casos” apartados, mas como instâncias de observação (em estágios temporais diferenciados) de processos sistêmicos: as unidades, ou instâncias, agem mutuamente entre si, moldando-se, e assim enriquecendo a contribuição destes processos globais, que tornam-se mais complexos, não agindo apenas como determinantes das dinâmicas locais.

Tomich (2011) retoma a contribuição de McMichael para analisar a constituição da complexa economia mundial do século XIX, comparando a produção açucareira de Cuba e Martinica. Essas "unidades de comparação" têm história e constituição próprias, e uma influenciou mutuamente a outra (esta é uma das premissas da "comparação incorporada", a inter-relação entre as unidades), dentro de uma unidade maior. As unidades comparativas e o todo não são abstratos, como nos métodos comparativos tradicionais, mas pontos de observação de processos sistêmicos. Enfim, analisando os casos locais de Cuba e Martinica, Tomich pretende enriquecer a compreensão da multifacetada economia do século XIX – que, neste caso, é o processo sistêmico que se busca compreender através da comparação.

O que poderia agregar este procedimento a uma pesquisa do campo da história política e, mais especificamente, a este estudo com foco nos trabalhismos brasileiro e britânico? Inicialmente, seria necessário levar a variação de escala também para o tempo. O Labour Party surgiu cerca de meio século antes do PTB – o tempo político e social de Inglaterra e Brasil é diferente, acrescentando mais um elemento de complexidade. Ou seja, no decorrer da década de 1940, quando está sendo gestado um partido trabalhista no Brasil, o britânico já foi governo em algumas oportunidades, é muito mais maduro.[12] 

Contudo, mesmo com esta diferença de idade, os dois partidos ascenderam ao governo de seus respectivos países no mesmo período, a vitória do Labour nas eleições de 1945 possibilitou a ascensão de Clement Attlee ao cargo de primeiro-ministro, posição renovada no pleito de 1950. Neste mesmo ano, Getúlio Vargas é eleito presidente do Brasil. Não só isso, é o período pós-Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos da Guerra Fria, quando uma nova conjuntura política global está em gestação. Inglaterra e Brasil, parte da mesma aliança na Segunda Guerra (embora com papéis diferenciados) saíram do conflito como vitoriosos, mas em realidades distintas: o primeiro foi fustigado pelo processo de independência de várias ex-colônias, minando o antigo poderio colonial, e via-se num contexto de Guerra Fria alinhado ao bloco capitalista não mais como líder, graças à emergência dos Estados Unidos; o outro, saía da guerra de maneira turbulenta, com golpe de Estado, mas caminhando rumo a uma economia mais industrializada e, também, associada ao bloco capitalista.[13]

Esta integração de Inglaterra e Brasil – e, pode-se argumentar, dos partidos em questão[14] –, em dinâmicas políticas mais amplas pode sinalizar também a aproximação com outra abordagem de pesquisa, observada em Marques & Silva Júnior (2019). Analisando a diáspora de fazendeiros escravocratas em dois momentos centrais na reorganização da economia do mundo capitalista e no Atlântico, os autores buscam conjugar as estratégias da comparação, da busca por conexões, não deixando de observar o contexto mais amplo em que se inscreveram estes dois momentos da diáspora. O primeiro, do Santo Domingo colonial francês para Cuba e Louisiana, no início do séc. XIX; o segundo, de fazendeiros sulistas derrotados na Guerra de Secessão (1861-65) para o Brasil.

Integrados a dinâmicas mais amplas do capitalismo e da escravidão oitocentista, estes locais estavam direta ou indiretamente conectados e a comparação das dinâmicas permitiu aos autores chegar a conclusões convincentes sobre os diferentes destinos das empreitadas e como elas influenciaram processos maiores e foram moldadas por estes processos também.

Pensando nesta conjugação de estratégias para o estudo da relação entre os trabalhismos[15], pode-se antever a necessidade de comparações, sejam elas mais analíticas (ou formais) ou na perspectiva “incorporada”; também as conexões estão presentes, como demonstra análise parcial das fontes; e, conforme já comentado em parágrafo anterior, os dois partidos, e os dois países, não estão dissociados de um contexto global de reordenamento geopolítico e econômico no pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja, fazem parte deste conjunto, estão integrados, agem sobre esta totalidade, mas também são influenciados por ela – os países e, por extensão, os partidos, lócus de mediação política.[16] 

 

Mais reflexões: o papel dos indivíduos, a escrita

Se a proposta é a de rastrear conexões, seguir estes indícios, caracterizar o processo de assimilação e transformação do trabalhismo inglês em relação ao brasileiro, por conseguinte levando a operações de comparação, há a oportunidade de se tecer mais duas considerações neste momento.

A primeira é o papel do indivíduo dentro da pesquisa. Existe grande potencialidade da biografia como abordagem para a história política e para a trajetória do trabalhismo: demonstrativa deste potencial, apenas para citar um trabalho, é a dissertação de mestrado do autor do presente artigo, onde parte-se da trajetória de Carlos Gomes de Oliveira (1894-1997) para aprofundar discussões acerca da construção do PTB em Santa Catarina nos anos 1940 e das disputas partidárias internas nas duas décadas seguintes em nível nacional (MACIEL, 2018).

De qualquer forma, a agência e as estratégias dos sujeitos, numa compreensão da micro-história, não podem estar sujeitas a um contexto supostamente coeso e dominante. Esta reflexão sobre o individual e o contexto, debate que pode ser recolocado nos termos de oposição entre o micro e o macro, entre o local e o global. Justamente, a questão da agência individual não está dissociada da compreensão de contexto e de “sistema”. Na verdade, a ação dos sujeitos estabelecendo ou não conexões, intercâmbios e redes de informações tem de informar algo novo, formar o contexto, trazer novos conhecimentos sobre este contexto, sobre os mecanismos de troca e intercâmbio de informações e ideias políticas.

Um segundo debate que pode ser levantado é o do tempo. Inicialmente, um esclarecimento a respeito do recorte temporal, que deve se concentrar nas conexões entre o Labour Party e o Partido Trabalhista Brasileiro criado em 1945 e extinto pelo AI-2 em 1965, excluindo assim a recriação do PTB a partir de 1979.

Feita esta ressalva, a relação com o tempo transitará entre a sincronia e a diacronia, caminho problemático, de acordo com Conrad (2019, p. 185): “como gerir o impacto das estruturas sincrônicas, por um lado, e a continuidade, por outro, continua a ser um aspeto fundamental de qualquer análise em história global”. A questão do tempo dialoga diretamente com a História Global, por esta buscar explicações para fenômenos históricos fora do Estado-Nação, em outras palavras, privilegiando os contatos sincrônicos entre diferentes locais. Todavia, mesmo Conrad (e o bom senso) admite que não é plausível descartar o endógeno e, portanto, as transformações e fenômenos ao longo do tempo.

No caso deste estudo, ambas as dimensões devem ser consideradas, com suas potencialidades analíticas. Como pode-se cogitar compreender o surgimento de um partido político com ideologia trabalhista no Brasil sem considerar a trajetória social e política do país nos anos anteriores? Transitar entre estas dimensões é que será complexo. Envolveria um “jogo de escala” temporal, de forma que elas se complementassem.

A ideia de “jogos de escalas”, novamente vale citar, pode e deve ser operada nesta pesquisa, ao considerar a necessidade de se debruçar não só sobre relações internacionais entre instituições, mas sobre as ações de indivíduos. Conjugar a escala “global” às atividades observáveis, através do microscópio, será um desafio. Mas os benefícios podem ser interessantes, assim sintetizados por Conrad:

Através deste jogo, os historiadores globais estão em posição de gerir vários níveis da prática social e de abordar as interações globais, sem terem, forçosamente, de fazer do mundo inteiro a sua unidade de análise. Por outras palavras, o global não é uma esfera distinta, exterior aos casos nacionais ou locais. Trata-se, antes, de uma escala para que se pode remeter, mesmo quando olhamos para as vidas de indivíduos concretos e para os pequenos espaços. (CONRAD, 2019, p. 171).

 

A última constatação da citação anterior leva invariavelmente à terceira reflexão necessária: o espaço. Até onde irá o global nesta pesquisa? Humanamente é impossível ter o mundo inteiro como espaço, assim surgindo a necessidade de um recorte temporal. E, como destaca Sanjay Subrahmanyam (2017), não é possível escrever “do nada”, sem perspectiva territorial. A escolha por duas regiões não é de todo modo restritiva pensando da perspectiva do global, não sendo necessária uma corrida alucinada em incluir arbitrariamente na pesquisa outras regiões.

E, se recorremos aos adeptos da micro-história, a história é a ciência das perguntas gerais e respostas locais, e se esta se coloca perguntas de grande fôlego historiográfico, é possível discutir os mecanismos de intercâmbio de ideias entre estas duas agremiações políticas de dois países diferentes, e testar, por exemplo, a possibilidade de conceitos como cultura política numa perspectiva transnacional, ou as dinâmicas entre “centro” e “periferia”. Perguntas gerais e respostas específicas, na relação entre o trabalhismo inglês e brasileiro.

Todavia, é possível antever uma possibilidade de mais áreas do globo serem consideradas. Hyslop (2006) discorre a respeito do que chama de “diáspora” do trabalhismo britânico, fazendo referência à viagem de Keir Hardie às colônias britânicas no início do século XX: época do surgimento de agremiações de trabalhadores que interessavam ao Labour Party (e vice-versa). Relações em condições potencialmente diferentes daquela entre o trabalhismo brasileiro e o inglês.

Trazer esta “diáspora” acarretaria mais problemas no tratamento com as fontes. Neste domínio, a História Global parece ainda engatinhar, e uma “má” História Global, no raciocínio de Conrad, pode ainda lançar mão do recurso da leitura de “segunda mão”, baseando-se na interpretação de outros pesquisadores sobre fontes que não pode acessar. Aí jaz um dos problemas de se pensar fenômenos globalmente, como a circulação e assimilação de ideias.

A micro-história, por seu turno, é mais atenta à documentação primária, calcando-se numa descrição densa, próxima a antropologia. O estudo intensivo do material documental, a pesquisa recorrente nos arquivos, são pontos característicos desta metodologia e da própria disciplina. 

Há outro ponto: o fato de ser uma pesquisa que ultrapasse o contentor Estado-Nação, mirando um partido político do Reino Unido, consequentemente, levanta a barreira linguística, ponto abordado por Subrahmanyam (2017). O historiador indiano busca convencer, através de sua erudição, que as pesquisas de História Global existem, não exatamente sob esta alcunha, desde há muito, e que seus melhores exemplares são aqueles em que os cronistas obtiveram êxito em formar um acervo documental do “outro”, do estrangeiro. É necessário, portanto, derrubar a barreira do idioma, o que não é um caso tão complexo tratando-se da língua inglesa. Contudo, se outra fonte surgir, em idioma diverso, decisões difíceis – mantê-la ou não – serão cobradas. Contando com as tecnologias atuais, porém, é possível fazer um caso para a sua manutenção.

Por fim, uma última reflexão necessária é a forma da escrita, tão importante para a divulgação do trabalho historiográfico e que, por si só, apresenta características essenciais. A escrita não é apenas o veículo do conhecimento.

Se a proposta de pesquisa é a de seguir ideias e pessoas para estabelecer e qualificar as conexões entre o trabalhismo nestes dois países e, também, realizar operações de comparação, qual a forma de escrita mais adequada?

Quando se fala de Nova História Política, traz-se à baila certos “retornos”, como o do fato e o da narrativa (aqui numa referência ao ensaio Stone, em 1979). Os historiadores do político têm optado pela forma narrativa para a construção e divulgação de seus resultados de pesquisa.

Também na micro-história italiana a narrativa é forma preponderante. Giovanni Levi (1992) traz o seu papel dentro da metodologia em duas principais características: a primeira seria a de criar um relato coerente e verossímil do processo analisado, em outras palavras, demonstrar as dinâmicas “entre os sistemas normativos e aquela liberdade de ação criada para os indivíduos por aqueles espaços que sempre existem e pelas inconsistências internas que fazem parte de qualquer sistema de normas e sistemas normativos” (LEVI, 1992, p. 153); a segunda característica seria a de expor a construção da metodologia e o raciocínio do pesquisador ao leitor, isto é, “incorporar ao corpo principal da narrativa os procedimentos da pesquisa em si, as limitações documentais, as técnicas de persuasão e as construções interpretativas” (LEVI, 1992, p. 153).

Considerando que a narrativa está longe de englobar apenas a descrição, seja ela organizada cronologicamente ou outro arranjo, tornar o ponto de vista do autor intrínseco ao texto historiográfico pode ser uma meta instigante, admitindo a discrepância entre as principais etapas como a de rastrear e caracterizar as conexões, que pode ser um relato um tanto mais descritivo; e a etapa comparativa entre o trabalhismo brasileiro e o inglês, que tende a não ser um relato descritivo.

 

Considerações finais

Diante da exposição introdutória, da proposta de pesquisa e de todas as reflexões pensadas na seção anterior, é possível destacar algumas conclusões preliminares.          

A primeira é a de que a pesquisa da trajetória do trabalhismo, aqui discutida, ainda não está concluída. Mais leituras certamente serão agregadas ao produto final, à tese. As ideias debatidas nas páginas anteriores constituem resultados parciais do estudo. 

A segunda, derivada diretamente da primeira, é a de que uma pesquisa na disciplina da História não deve esconder-se atrás de rótulos, e sim, buscar caminhos teórico-metodológicos viáveis para responder às suas perguntas de pesquisa. Assimilar ideias que possam auxiliar na compreensão do processo histórico analisado.

De fato, é numa das “abordagens concorrentes” da História Global que se encontra um método de interesse para a execução dos objetivos, a história comparada. Também a ideia de uma História Transnacional, que não deve ser tomada como sinônimo de Global, foi invocada em diversos momentos[17]. Sendo assim, procurou-se não rotular esta investigação diretamente no âmbito da História Global, mas sim demonstrar que há aproximações.

Dos procedimentos tematizados, também pode-se considerar, preliminarmente, que tampouco é mandatório restringir-se a apenas um: realizar apenas comparações, sejam elas “analíticas” ou “incorporadas”, ou apenas rastrear conexões. Maiores ganhos para a compreensão do trabalhismo podem advir justamente da conjugação destas estratégias.

Por fim, é possível afirmar que a história política não é um campo anacrônico da disciplina da História, e que os historiadores que ali se posicionam podem e devem incorporar discussões e experimentá-las em suas pesquisas, contribuindo – pode-se dizer em tom um tanto otimista – para a própria disciplina da História. Neste artigo, procurou-se demonstrar como o estudo do político, por englobar tantos aspectos da sociedade e da vida humana, também pode se beneficiar de reflexões de áreas que aparentemente lhe são distantes, como a micro-história. Assim como a História Global, a nova história política está também em construção e o diálogo com outros campos é imperativo para este processo.

 

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Recebido em 22/05/2022.

Aceito em 20/08/2022.



[1] Mestre em História. Doutorando do PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista do Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina – FUMDES. Brasil. E-mail: joelsonlopesm@gmail.com | https://orcid.org/0000-0003-0134-1205

[2] Por exemplo Jorge Ferreira (2001), que possui extensa bibliografia neste sentido. Para ele, analisar a experiência democrática brasileira de 1946 a 1964 como fruto do “populismo” implica conceber a ação de um líder onisciente, uma massa acéfala e o “peleguismo” sindical: tais fatores teriam sido os responsáveis pelo sucesso do PTB e caracterizado todo o período. Este “consenso populista” é criticado pelo pesquisador quando traça a história do conceito e seus usos – que extrapolaram o meio acadêmico –, da década de 1960 (quando formulado por Francisco Weffort) até a década de 1990. Segundo ele, o termo populismo foi utilizado inicialmente como uma crítica ao período republicano de 1946 e especialmente ao trabalhismo, mas acabou se transformando num termo pejorativo, sem potencial explicativo. O esvaziamento do conceito, apontado pelo autor, implica que qualquer um pode ser taxado de “populista”: “O populista, portanto, é o adversário, o concorrente, o desafeto. O populista é o Outro. Trata-se de uma questão eminentemente política e, muito possivelmente, político-partidária, que poderia ser enunciada da seguinte maneira: o meu candidato, o meu partido, a minha proposta política não são populistas, mas o teu candidato, o teu partido e a tua proposta política, estes, sim, são populistas. Populista é sempre o Outro, nunca o Mesmo” (FERREIRA, 2001, p. 124). O historiador tem procurado como alternativa uma interpretação do trabalhismo a partir da história cultural e do conceito de cultura política (FERREIRA, 2005).

[3] Também pode-se citar aqui Ângela de Castro Gomes, em “A invenção do trabalhismo” (2005), que observa o trabalhismo a partir desta perspectiva, ao invés do “consenso populista”.

[4] Os principais nomes da “renovação” do político na historiografia francesa são René Remond, Jean-François Sirinelli e Serge Berstein. Estes e outros foram publicados no Brasil no livro traduzido do francês “Por uma história política”, organizado pelo primeiro e publicado pela FGV, em 1996. No caso brasileiro, contribuições profícuas têm sido realizadas por Motta, como a organização do volume “Culturas políticas na história: novos desafios” (2014).

[5] Motta (2014), em seu debate sobre a apropriação do conceito de cultura política, traça um histórico do conceito, sendo a referência principal deste parágrafo.

[6] Entre os historiadores de interesse para a reflexão sobre o trabalhismo nas últimas décadas, pode-se citar Jorge Ferreira, Ângela de Castro Gomes, Maria Celina D’Araújo e Adalberto Paranhos, cujas obras consultadas estão listadas entre as referências bibliográficas. Em relação à historiografia do Partido Trabalhista Britânico, deve-se destacar as contribuições de Steven Fielding, da Universidade de Nottingham, e John Callaghan, da Univerdade de Wolverhampton. Entre as referências estão listados algumas de suas obras.

[7] Nomeadamente o capítulo “A História Política no transitional turn: a ágora, a Cidade, o mundo... e o tempo”, do livro “Abrir a História: novos olhares sobre o século XX francês”, publicado em 2014; e a entrevista cedida a Clavel e Rodrigues (2015). O artigo de Santos Júnior (2019), comentando os apontamentos do francês, também forneceram subsídios para refinar as reflexões.

[8] Os “jogos de escalas” implicam uma operação de variação da escala de observação, passando do objeto micro ao macro, ou vice-versa. Para muitos, indica o caminho de se observar não apenas o espaço nacional, mas o global e o local.

[9] Ainda segundo Sirinelli (2014, p. 113), “A ágora certamente permanece aí o epicentro, mas não podemos dissocia-la de suas coroas externas, a Cidade, portanto, mas também o mundo”. Cada uma das “escalas” torna-se indispensável na compreensão da outra, mas a “ágora”, que é eminentemente nacional, continuará o centro. Vê-se que a Nova História Política não tem ilusões de abandonar o espaço do Estado-nacional em sua análise, mas vê como um caminho teórico metodológico para a pesquisa.

[10] Hipótese que vai ao encontro das considerações de Sebastian Conrad (2021) em artigo recente em que tematiza o ideal de masculinidade que emergiu em escala global no início do século XX, calcado na construção do corpo musculoso – visto como belo – e seu principal ícone, Eugen Sandow. Para Conrad, a emergência deste ideal de masculinidade e culto ao corpo em várias localidades ao redor do planeta no mesmo período não se deveu a um papel “missionário” de Sandow que, de fato viajou a muitos países, mas sim porque nestes locais, e a Índia britânica é o exemplo mais aludido pelo autor, já existiam condições sociais e políticas para o surgimento do bodybuilding. O exemplo aludido pelo autor é a Índia sob domínio britânico, onde o movimento nacionalista Swadeshi, anterior à passagem de Sandow pela região já enfatizava a prática de exercícios e a força física masculina como construtoras de uma nação independente. Conrad acaba por operar um jogo de escalas não necessariamente geográfico, mas temporal, considerando não apenas o Reino Unido, país onde ganhou notoriedade o personagem, mas as regiões por onde Sandow teve sua ação “missionária”: há o “tempo curto” do evento, as viagens do fisiculturista, mas só este tempo curto não encerra o potencial explicativo; foi preciso buscar outras temporalidades, como o tempo médio, da conjuntura, de articulação dos movimentos nacionalistas indianos e, também, o tempo de longa duração do capitalismo e do imperialismo europeu na Ásia; estas três temporalidades fornecem um quadro mais complexo sobre o surgimento do ideal de beleza masculino investigado pelo autor. Enfim, no caso do trabalhismo, esta interpretação pode servir tanto para analisar o surgimento de movimentos que se intitulavam trabalhistas após a já mencionada viagem do líder Keir Hardie através de algumas colônias – África do Sul, Índia, Austrália, por exemplo – quanto para qualificar a relação entre os trabalhismos britânico e brasileiro: não é plausível pressupor que era necessária a ação “difusionista” ou “missionária” do trabalhismo britânico para o surgimento do trabalhismo brasileiro – mas é plausível supor que existiriam no Brasil condições necessárias para a adoção de alguns de seus princípios, mas com características próprias, decorrentes da própria trajetória brasileira – condições propiciadas por uma temporalidade diferenciada, uma conjuntura de transição para uma experiência democrática, mas com permanências da conjuntura estadonovista anterior, um tempo mais longo (BRAUDEL, 1978) da formação da classe operária brasileira e o problema de sua inserção na política, processos diferenciados do caso britânico, apenas para citar alguns casos. Contudo, mesmo assim, ambos os trabalhismos coexistiram e estabeleceram conexões entre si e com o mundo no qual estavam inseridos, o mundo da Guerra Fria, sob a área de influência do bloco liderado pelos Estados Unidos (embora em posições ainda assim diferenciadas neste bloco). De qualquer forma, as conexões e comparações entre eles têm de ser pensadas em suas temporalidades próprias, além da sincronia.

[11] Importante assinalar que a História Global não é a única a buscar conexões na construção de seus objetos de estudo: nota-se a existência da história conectada, desenvolvida, desde a década de 1990, pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam (1997).

[12] Aqui é válido retomar Sirinelli: embora seu foco seja o estudo da história do tempo presente, a variação de escala temporal faz-se necessária de qualquer forma.

[13] Uma das fontes a ser analisada com mais vagar é o livro “Bases e fundamentos do trabalhismo”, autoria de Clement Attlee no final dos anos 1930, traduzido e publicado no Brasil em 1948, numa coleção da Editora A Nôite que contava com outros títulos cujos autores eram alinhados aos Estados Unidos. Vale mencionar que este livro de Attlee é citado por Alberto Pasqualini em seu “Bases e sugestões para uma política social” (1958). Pasqualini já nos anos 1940 e 1950 era considerado um dos principais ideólogos do trabalhismo brasileiro. Sobre o político gaúcho, ver a tese de Silva (2012). Quanto à publicação do livro de Attlee no Brasil na coletânea da Editora A Nôite, pode indicar um esforço de construção e normatização de uma ordem política da Guerra Fria no Brasil, incentivando posições mais “moderadas” para conter o avanço do comunismo no país. Vale lembrar que tanto Brasil quanto Reino Unido passavam por este processo de formação da Guerra Fria, elemento que não se deve perder de vista na comparação entre os dois trabalhismos.

[14] Um partido é um espaço de mediação, é uma resposta a uma questão social relevante para a sociedade. Sendo assim, a ascensão destes dois ao governo de seus países no final dos anos 1940, deve falar um pouco sobre seus respectivos países, e também fornecem uma visão multifacetada da política mundial no início da Guerra Fria.

[15] Aqui vale registrar um agradecimento ao Prof. Dr. Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, docente do Programa de Pós-Graduação da UFSC que, em disciplina ainda em andamento, contribuiu para fomentar as reflexões metodológicas deste parágrafo mais especificamente.

[16] Todavia, até o momento, podemos afirmar com muito mais segurança as influências (diretas ou indiretas) do trabalhismo britânico sobre o brasileiro. Entretanto, considerando ambos fazerem parte de uma mesma totalidade (o mundo pós-segunda guerra mundial), faz-se necessária uma investigação sobre como as dinâmicas do trabalhismo brasileiro podem ter afetado a totalidade da política em nível global e como essa influência pode ser observada a partido do ponto de vista do Labour Party.

[17] Se por um lado História Global e História Transnacional buscam transcender os limites geográficos do Estado-nação em suas investigações, na última o Estado-nacional mantém sua preponderância sobre o “global” como unidade de análise. Os trabalhos de História Transnacional “investigam, assim, as diversas maneiras pelas quais um país acabou por se situar no mundo e como o mundo, em contrapartida, produziu efeitos profundos em cada sociedade” (CONRAD, 2019, p. 61) e vão ao encontro da ideia de abertura da história política ao “mundo” de acordo com Sirinelli (2014), posto que o Estado-Nação continuará desempenhando papel importante. Por outro lado, o “global”, na História Transnacional, “serve mais como um pano de fundo, onde se tenta situar o nacional, e menos como um contexto no qual se investigam sistematicamente problemas de causa e efeito” (CONRAD, 2019, p. 64).